Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
504/11.0TXCBR-P.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: PERDÃO DE PENAS
EXECUÇÃO SUCESSIVA DE VÁRIAS PENAS
EXCLUSÃO DO PERDÃO
Data do Acordão: 03/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 1.º, N.º 2, E 2.º, N.º 6, DA LEI 9/2020, DE 10-04; ART. 63.º DO CP
Sumário: I – No cumprimento de várias penas de prisão, não se autonomiza a pena relativa ao crime excluído do perdão, de modo a permitir a aplicação dessa medida de graça às demais penas que, por força do disposto nos artigos 1.º, n.º 2, e 2.º, n.º 6, da lei n.º 9/2020, de 10-04, da mesma não estão excluídas.

II – Assim também sucede mesmo quando a pena imposta por um dos crimes elencados nos normativos referidos venha a ser extinta, pelo cumprimento, durante a execução sucessiva de diversas penas.

Decisão Texto Integral:




ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I. Relatório

1.Nos autos de Liberdade Condicional, que sob o nº 504/11.0TXCBR-H que correm termos pelo Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, relativos a R. foi instaurado incidente de com vista à eventual colocação em liberdade do condenado.

2. Requereu o condenado o perdão do remanescente da pena ao abrigo da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, sobre o qual requereu o despacho de indeferimento datado de 23 de dezembro de 2020.

3.Inconformado, o condenado interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

1ª. O recorrente deverá beneficiar do perdão contido na lei 9/2020 de 10 de Abril.

2ª O recorrente preenche todos os requisitos para que lhe seja aplicado este instituto, e,

3ª Não se encontra abrangido por qualquer causa de exclusão.

4ª O facto de já se encontrar extinta a pena, por cumprimento, que o poderia excluir deste perdão ao momento da análise do processo é o suficiente para revogar o douto despacho.

5ª A letra da lei não prevê que os critérios definidos na lei tenham que estar todos reunidos à data da sua publicação, pelo que não deverá o julgador substituir-se ao legislador criando um regime mais “fechado”, especialmente quando a matéria em questão se reporta a direitos, liberdades e garantias.

Neste sentido,

6ª Se o legislador não quisesse permitir uma apreciação casuística, teria limitado a aplicação da lei no tempo, ou já a teria revogado.

7ª A “razão de ser” da lei continua actual,

8ª Mais actual ainda dado o contexto situacional – aumento exponencial de casos de doença por covid-19 que se têm verificado,

9ª Pelo que, mais uma vez, fica suportada a ideia de que o legislador teve em mente que a lei vigorasse durante um período significativo, ou seja, que a sua excepcionalidade acompanhasse a evolução pandémica.

10ª  Assim, e com o devido respeito por opinião contrária, não poderá ser outra a interpretação senão a de que cada caso deverá ser analisado à luz dos elementos que se verificam à data dessa mesma avaliação.

4. Respondeu o MP em primeira instância concluindo pela total improcedência do recurso

5. Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer, no qual concordando com esta resposta, conclui no mesmo sentido.

6. Colhidos os vistos legais, nada obsta à decisão de mérito.

II.  A decisão recorrida

O despacho sob recurso tem o seguinte teor:

Compulsando os autos (os presentes e os apensos), constata-se que, à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, de 10/4, o recluso R. encontrava-se em cumprimento de uma pena de 4 anos e 6 meses de prisão, imposta no processo n.º 314/16.8JAAVR, pela prática de um crime de roubo, e ainda da pena de prisão remanescente decorrente da revogação da liberdade condicional que lhe havia sido concedida no âmbito do processo n.º 121/14.2T3ADG, no qual foi condenado pela prática de crimes de roubo, furto qualificado, injúria agravada e ofensa à integridade física qualificada, dizendo os crimes de injúria agravada respeito a factos perpetrados pelo recluso contra agentes de força policial e segurança (agentes da Guarda Nacional Republicana) no exercício das respectivas funções.

O remanescente da pena única imposta no aludido processo n.º 121/14.2T3ADG viria a ser declarado extinto, pelo cumprimento, em 15 de outubro de 2020. Ora, de acordo com o art. 1º/n.º 2 da Lei n.º 9/2020, as medidas previstas em tal diploma não se aplicam a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança no exercício das respectivas funções, pelo que, salvo melhor opinião, não poderá beneficiar o referido recluso do perdão por si mencionado no seu requerimento. Assim, por dele não poder beneficiar, não se aplica ao recluso R. perdão contido na Lei n.º 9/2020.

III. Fundamentação de facto

Com pertinência para o thema decidendum, estão assentes os seguintes factos:

O condenado encontra-se em cumprimento sucessivo de uma pena de quatro anos e seis meses de prisão imposta no processo n.º 314/16.8JAAVR, pela prática do crime de roubo e de uma pena de um ano, um mês e vinte e oito dias de prisão remanescente decorrente da revogação da liberdade condicional que lhe havia sido concedido no processo no âmbito do processo n.º 121/14. 2T3AGD.

No processo n.º 121/14. 2T3AGD, em 15 de outubro de 2020, foi proferido acórdão cumulatório que englobou as penas relativamente aos crimes de furto qualificado, roubo, ofensa à integridade física qualificada e injúria agravada contra agentes da força policial e de segurança (GNR), no exercício das suas funções.

O condenado encontra-se ininterruptamente detido desde 4 de janeiro de 2017 à ordem do processo n.º 314/16.8JAAVR.

A metade da soma da pena de prisão e do remanescente decorrente da revogação da liberdade condicional tiveram lugar no dia 2 de novembro de 2019.

Os 2/3 da pena de prisão e do remanescente decorrente da revogação da liberdade condicional ocorrerão no dia 12 de outubro de 2020.

O termo da pena e do remanescente ocorrerá em 1 de setembro de 2022.

Em 15 de outubro de 2020, o remanescente da pena única foi declarado extinto, pelo cumprimento, por despacho proferido no âmbito do processo n.º 121/14.2T3AGD. 

IV. Apreciação do recurso

Sustenta o recorrente que, no caso de cumprimento sucessivo de penas, uma vez declarado extinta a pena de prisão pela prática dos crimes cometidos contra as forças de segurança (GNR), é de aplicar o regime excepcional de flexibilização da execução da pena e das medidas de graça no âmbito da pandemia da doença Covid 19, aprovado pela Lei n.º 9/2020, de abril, à pena que ainda lhe falta cumprir pelo cometimento do crime de roubo.

O contrário foi defendido pelo despacho recorrido.

É este impasse que cumpre decidir.

Dispõe o artigo 1º, n.º 2, da Lei em análise:

As medidas previstas na presente lei não se aplicam a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das respetivas funções.

Por seu turno, estabelece o artigo 2º, do mesmo diploma:

1. São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

2. São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena.

3. O perdão referido nos números anteriores (…), em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única.

4. Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cúmulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos.

5. (…)

6. (…)

7. O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infracção dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infracção superveniente acresce à pena perdoada.

Sobre a natureza das medidas de graça, já nos pronunciámos no Acórdão proferido no Processo nº 187/20.6TXCBR-B.C1, onde então salientámos que, o principio geral de direito como relevo para o que agora nos ocupa, tem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência, que as medidas de graça, como providências de excepção, constam de normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas.

Por isso mesmo, são excecionais as normas que estabelecem perdões, não comportando, por isso mesmo, aplicação analógica (artigo 11.º, do Código Civil), nem admitindo interpretação extensiva ou restritiva, devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas, impondo-se, assim, uma interpretação declarativa.

Neste sentido, decidiu o Acórdão de Fixação de Jurisprudência, datado de 25 de outubro de 2001, Processo n.º P00P3209, in www.dgsi.pt: são insuscetíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo.

Pelo que, o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto direta e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo.

No que toca à interpretação declarativa há que atender ao imperativo do no artigo 9º do Código Civil, estatuindo:

1. A interpretação da norma não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»

O texto da norma, dentro do fim, da ratio e sistema em que se insere, constitui, assim, os limites que o intérprete não ultrapassar. «Só até onde chegue a tolerância do texto e a elasticidade do sistema é que o intérprete se pode resolver pela interpretação que dê à lei um sentido mais justo e apropriado às exigências da vida.» (Manuel de Andrade, Ensaio Sobre A Teoria Da Interpretação Das Leis).

Dito isto;

Para aqui, interessam os seguintes pressupostos de que depende a aplicação do perdão:
a) O crime cometido pelo agente não tenha sido contra membro de forças policiais e de segurança e funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das respectivas funções [artigo 1.º, n.º 1];
b)  As penas de prisão dos reclusos transitadas em julgado sejam de duração igual ou inferior a dois anos (artigo 2.º, n.º 1];
c)  Os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenando por decisão transitada em julgado, de duração superior a dois anos, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos e se o recluso tiver cumprido pelo menos metade da pena (artigo 2.º, n.º 2].

O perdão abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição, e, em caso de cumulo jurídico, incide sobre a pena única (artigo 2.º, n.º 3];  

Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cumulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento for igual ou inferior a dois anos. (artigo 2.º, n.º 4];

O perdão é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infracção dolosa no ano subsequente. [artigo 2.º, n.º 7].

O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2, só pode ser aplicado uma vez [artigo 2.º, n.º 9].

A libertação dos reclusos é antecedida dos procedimentos indicados pela Direção-Geral da Saúde. [artigo 8.º].

O perdão (genérico) extingue a pena, no todo ou em parte [artigo 128.º, n.º 3 do Código Penal].

Diante o elemento literal destes preceitos, maxime, o artigo 1.º, n.º 2 e artigo 2.º, n.º 4, mostra-se claro que os condenados por crimes cometidos contra membro de forças policiais e de segurança e funcionários e guardas dos serviços prisionais, não beneficiam do perdão.

As penas pela prática deste tipo de ilícito não integram o catálogo de crimes previstos no artigo 1.º, n.º 1, não são abrangidas pelo regime excepcional de flexibilização das penas e das medidas de graça. Se, à data de entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, estiver em execução pena de prisão pela prática de um dos crimes excluídos do diploma, por sentença transitada em julgado, tanto basta para excluir o recluso do beneficio do perdão (cf. artigo 2.º, n.º 7).

Se o recluso estiver a cumprir, em cúmulo jurídico, uma pena única, o perdão incide sobre a pena única e não sobre as penas parcelares (artigo 2.º, n.º 3, in fine).

Se o recluso estiver a cumprir penas sucessivas, sem que haja cúmulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório das penas integradas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento for igual ou superior de dois anos.

O legislador não deixa dúvidas. O perdão incide sobre uma única pena, seja por força do cúmulo jurídico das penas parcelares; seja pelo cumprimento de penas sucessivas, em que não há lugar a cúmulo jurídico (vide por exemplo, falta dos pressupostos exigidos pelos artigos 77.º e 78.º, do Código Penal).

Quando se trate de uma execução sucessiva de penas, em que não há lugar ao cúmulo jurídico, o perdão não incide sobre o remanescente de cada uma das penas, mas sobre o remanescente do tempo de prisão resultante da soma das penas que falta cumprir.

A pena pela prática do crime contra as forças policiais não é susceptível de perdão, por aplicação directa do artigo 1.º, n.º 2 e impede que o perdão seja concedido às outras penas de prisão que o recluso esteja ou tenha de cumprir, cumulativa ou sucessivamente.

O recluso que tiver sido condenado por qualquer um dos crimes elencados, mesmo que já tenha estado colocado à ordem do processo de onde emerge essa condenação pelos crimes de catálogo durante a totalidade da sua duração, sem restituição à liberdade, e as restantes penas, a cumprir em sucessão, estejam fora daquele elenco, não pode beneficiar do perdão. [José Quaresma, e-bok do CEJ, em edição atualizada em 22 de abril de 2020, disponível na página do CEJ].

Em suma,

O perdão não incide sobre a pena única decorrente de cumulo jurídico que englobe uma das penas parcelares por condenação de um dos crimes excluídos. O cúmulo jurídico não é refeito para aplicação do perdão às outras penas consequentes de crimes abrangidos pela Lei 9/2020;

De igual modo, no cumprimento das penas sucessivas não se autonomiza a pena relativa ao crime excluído, para aplicar o perdão às demais. O perdão recai sobre o remanescente do tempo de prisão resultante da soma das penas que falta cumprir.

Esta é a interpretação mais conforme com a letra da lei, devendo ter-se em consideração a natureza excepcional das medidas de graça insusceptível de interpretação de ampliações ou restrições que nela não venha expressa. 

No elemento histórico, há que ponderar os precedentes legislativos em matéria de leis de clemência, reiterando-se que uma lei que disciplina o perdão de penas devido à conjuntura pandémica global não pode deixar de ser considerada como lei excepcional e temporária, com tudo o que isso implica, como já vimos, nos seus apertados limites.

Na interpretação lógico, racional ou teleológica e sistemática, adquirem especial relevância as circunstâncias em que a lei em causa surgiu -  inserida numa panóplia de legislação diversificada visando responder à situação de emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID19 que tem provocado a vaga de pandemia a nível mundial -  na tentativa de impedir o surto e a propagação da doença, designadamente, na população prisional, um dos grupos mais expostos ao contágio e alastramento do coronavírus devido ao funcionamento e características do sistema prisional.

A substituição da reclusão por medidas não preventivas da liberdade, temporárias, antecipatórias ou mesmos definitivas, afastando os condenados das prisões tornou-se, assim, uma exigência de salvaguarda dos calamitosos perigos dos surtos e disseminação do coronavírus em ambiente penitenciário.

É, neste circunstancialismo que surge o regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, com o objectivo principal de conter a expansão da doença COVID-19 na população prisional, através da libertação dos reclusos que deixariam de estar expostos aos perigos acrescidos da disseminação da doença, ao mesmo tempo que se reduzia os riscos da contaminação dentro das prisões, por diminuição da respectiva lotação.

Na Proposta de Lei do Governo, o  fundamento para o perdão das penas, como aliás, a medida especial do indulto, o regime extraordinário de concessão de licença de saída e a antecipação da liberdade condicional, radicava na exigência da libertação dos condenados recluídos, salvaguardando, desta forma, o distanciamento físico entre as pessoas (uma das medidas sanitárias de prevenção da expansão da doença do coronavírus), impossível de concretizar nos estabelecimentos prisionais por inexistência de condições que evitassem a concentração dos reclusos.

Com tais medidas, cumprir-se-ia o dever de ajuda e de solidariedade para com as pessoas condenadas, ínsito no princípio da socialidade ou da solidariedade que inequivocamente decorre da cláusula do Estado de Direito.

Porém, nem todos os reclusos pela prática de qualquer crime podiam beneficiar das medidas de clemência, sob pena de abalar a ordem social e o sentimento de segurança da comunidade. Por isso, impôs o legislador limites formais e substantivos à libertação dos reclusos.

Nos de ordem formal, situam-se, nomeadamente, a medida concreta da pena aplicada ou a medida concreta do remanescente da pena.

Nos limites de ordem substantiva inserem-se, entre outros os crimes de exclusão enumerados na lei não abrangidos pelo perdão. E tanto assim é, se o recluso estiver a cumprir pena de prisão pela prática de um só crime ou uma pena única resultante do cúmulo jurídico de várias penas ou de várias penas sucessivas.

A Proposta de alteração da Lei n.º 23/XIV-1 apresentada pelo PCP introduziu o actual n.º 4 do artigo 2.º para clarificar que os condenados por determinados crimes, pela natureza e gravidade, não podiam beneficiar do perdão, ainda que também tivessem sido condenados por outros crimes.

Aliás, na discussão na Assembleia da República (reunião plenária 8 de abril de 2020, publicada no DAR I Série n.º 45, pág. 22), o deputado António Filipe do grupo parlamentar do PCP, disse, sobre esta questão:

Evidentemente que as medidas a tomar têm de ser equilibradas para evitar que haja receios, para evitar que as pessoas possam pensar que há quem tenha cometido crimes graves e seja libertado por estas medidas. Portanto, há que evitar o alarme social e aí encontrar um elenco de crimes que quem os tenha cometido não possa beneficiar dessas medidas.  E esse elenco está lá, efetivamente:  quem cometeu crimes graves, crimes violentos, crimes de sangue, crimes de corrupção, crimes de violência sexual, crimes de violência doméstica. Há um amplo conjunto de crimes que quem os cometeu não pode beneficiar destas medidas. Mesmo que tenha sido condenado também por outros crimes, não beneficiará de nenhum perdão, porque quem cometeu esses crimes não sai, pura e simplesmente.

O condenado pelos crimes previstos no n.º 2, do artigo 1.º e n.º 6, do artigo 2.º, não está, pois, incluído no âmbito de da aplicação da Lei n.º 9/2020, mesmo quando a pena consequente de um dos crimes daquele tipo venha a ser declarada extinta pelo cumprimento durante a execução das penas sucessivas.

O cumprimento da pena de prisão extingue a pena, mas não extingue a condenação criminal. O arguido mantém-se condenado pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada e crimes de injúrias contra os agentes da GNR.

O cumprimento da pena não equivale, como quer fazer crer o recorrente, à reabilitação do condenado, já que aquela não constitui um meio através do qual o condenado é recolocado na posição que tinha anterior à sentença condenatória.

A sentença condenatória pela prática de um crime produz efeitos para além do cumprimento da pena. O condenado pela comissão de um ilícito penal mantem-se nessa situação até ao momento em que por lei ou judicialmente, seja declarada a sua reabilitação daquele.  

Trata-se de um direito, um verdadeiro direito do condenado já ressocializado, susceptível de ser feito valer em juízo. Com a reabilitação cessa o estado de perigosidade e indignidade do réu ex-condenado e deixam de se justificar as considerações de necessidade de defesa social.  Ela assenta na presunção de que o indivíduo se encontra reintegrado socialmente e reconduz-se a um principio básico de prevenção especial. [Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 654 a 658. Ver também Lei n.º 37/2015 de 5 de maio].

Não estando o recorrente reabilitado da condenação pela prática dos crimes contra os agentes policiais da GNR, ofensa à integridade física e injúrias, ambas qualificadas, o cumprimento da respectiva pena não afasta a condenação por aqueles crimes, para efeitos de exclusão da aplicação do regime de flexibilização das penas e medidas de graça, por via do COVID 2019.

Por último, diga-se que, independentemente da posição que se assuma, em relação a esta questão, não haveria lugar ao perdão na pena do crime de roubo, na medida, que, à data de entrada em vigor do diploma em análise, o remanescente das penas resultante do somatório das penas sucessivas em cumprimento era de dois anos, três meses e vinte dias, portanto superior a dois anos.

Pelo que, o disposto no artigo 2º, n.º 4 afasta o perdão da pena que o recorrente cumpria.

Não fora a exclusão do perdão em razão da natureza dos crimes, o mesmo incidiria sobre remanescente da soma das duas penas sucessivas, se o tempo que faltasse fosse igual ou inferior a dois anos, o que não é o caso.

E, assim, improcede o recurso.

IV. Dispositivo

Termos em que, sem necessidade de mais largos considerandos, se acorda nesta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a douta decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 4 UC’s.

Coimbra, 10 de Março de 2021

Alcina da Costa Ribeiro (relatora)

Maria Alexandra Guiné (adjunta)