Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
42/16.4GECVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
MEDIDA DA PENA
PERDA DO VEÍCULO
Data do Acordão: 04/05/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (J L CRIMINAL DA COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 40.º, 71.º E 109.º DO CP; ART. 30.º DA CRP
Sumário: I - O bem jurídico protegido no crime de condução sem habilitação legal é a segurança de circulação rodoviária e indiretamente a tutela de bens jurídicos que se prendem com essa segurança, como a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais.

II - Quando a condenação do arguido nos presentes autos não é um episódio ocasional e isolado no contexto de uma vida de resto fiel ao direito e, pelo contrário, é a repetição de condutas, em anos sucessivos. Sendo de realçar que nem o cumprimento de penas de prisão o levaram a interiorizar o desvalor da sua conduta. Considerando o grau de perigosidade do arguido que resulta dos factos provados, entendemos que a aplicação ao arguido de uma pena de 12 meses de prisão, pela prática do crime de condução sem habilitação legal, quando em abstrato a pena vai de 1 mês a 2 anos de prisão, é proporcional e adequada às exigências de prevenção e da culpa, pelo que não merece censura, por excesso, a pena que lhe foi aplicada.

III – Em princípio, o veículo automóvel conduzido por quem para tal não está habilitado não deve ser considerado instrumenta sceleris, nem como instrumento objetivamente perigoso para a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas e que oferece sério risco se ser utilizado para o cometimento de novos ilícitos típicos.

IV - Existe uma diferenciação de requisitos de declaração de perdimento consoante o bem seja do arguido ou de terceiro alheio ao processo penal, não podendo deixar de ser também diversos os mecanismos de defesa de quem pode ver o bem declarado perdido a favor do Estado.

Decisão Texto Integral:            





Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

           

     Relatório

Pela Comarca de Castelo Branco – Instância Local da Covilhã, Secção Criminal – Juiz 1, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo sumário, o arguido

            A... , solteiro, desempregado, filho de (...) e de (...) , solteiro, nascido em 16-02-1981, concelho de Seia, freguesia de (...), nacional de Portugal, NIF n.º (...) , BI n.º (...) , com domicílio na Rua (...) Sobral de S. Miguel,

imputando-se-lhe a prática de um crime de condução de veículo a motor na via pública sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.3.º, n.ºs1 e 2 do Decreto-lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 18 de outubro de 2016, decidiu julgar procedente a acusação e, em consequência:

- condenar o arguido A..., como autor material de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido e pelo art.3.º, n.º 2 do D.L. 2/98 de 3 de Janeiro, na pena de 12 meses de prisão; e

- declarar perdido a favor do Estado o veículo de matrícula OI (...) ;

           Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido A..., concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1. A pena que aplicada ao Arguido é exagerada e infundada, atentos que sejam o grau de culpa e ilicitude, por um lado, e as necessidades de prevenção geral e especial por outro.

2. O facto de o Arguido ter confessado integralmente e sem reservas a prática do crime que lhe vinha imputado, bem como o facto de se ter provado que o mesmo se encontra inscrito, desde Agosto de 2015, em escola de condução, com vista à obtenção do título de habilitação legal para a prática da condução, são atenuantes que o tribunal “a quo” nem ponderou, nem valorou.

3. Ao valorar tais atenuantes, a pena a aplicar deveria, e deve, ser reduzida para metade.

4. Na sentença de que ora se recorre, foi feita tábua rasa de tais atenuantes, não se lhe fazendo sequer qualquer menção ou referência, o que conduz inevitavelmente a deficiente fundamentação para a determinação em concreto da pena, por um lado, e ao exagero desmedido da pena aplicada, por outro lado.

5. A sentença ora em crise viola clara e frontalmente o princípio da proporcionalidade ao condenar o Arguido na pena acessória de perca do veículo a favor do Estado, pois que a desproporção entre a gravidade do comportamento deste e o valor de veículo em causa, é manifesta, objectiva, evidente e notória.

6. Na avaliação da perigosidade do objecto cuja declaração de perda se possa vir a proferir deve partir-se de um critério objectivo, o que, in casu não sucedeu.

7. Perigosos serão apenas aqueles “instrumentos ou produtos que, atenta a sua natureza intrínseca, isto é, a sua específica e co-natural utilidade social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa e devam por isso considerar-se, nesta acepção, objectos perigosos”, o que não é, de todo, o caso do veículo em causa.

8. Importa por outro lado, distinguir entre perigosidade do objecto e perigosidade do agente, para que àquela se não atribua algo a que a esta pertence, em nome da certeza de que apenas a primeira justifica declaração de perda, o que, in casu parece ter sucedido e não é legalmente admissível.

Termos em que dando-se provimento ao presente recurso e revogando-se a sentença proferida no que a dosimetria das penas aplicadas se refere, se fará a mais elementar Justiça!

O Ministério Público na Comarca de Castelo Branco – Instância Local da Covilhã, respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pelo não provimento do recurso e confirmação integral da sentença recorrida.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer  no sentido de que o recurso deverá improceder, mantendo-se a decisão recorrida.

Notificado deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.417.º do Código de Processo Penal, o recorrente nada disse.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            A matéria de facto apurada e respetiva motivação constantes da sentença recorrida é a seguinte:

            Factos provados

1) No dia 10/10/2016, pelas 11, 30 horas, no Sobral de S. Miguel, Covilhã, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, matrícula OI (...) sem que fosse titular de licença de condução, ou qualquer outro documento que legalmente a habilitasse à condução estradal.

3. O arguido procedeu ao exercício da condução do veículo supra referido, na via pública, bem sabendo, que não era titular de licença de condução ou de qualquer outro documento que legalmente a habilitasse à condução estradal e que, por isso, lhe estava vedada tal actividade.

4. O arguido actuou de modo livre, deliberado e consciente, sabendo bem que a sua conduta era violadora de normas do Código da Estrada, disciplinadoras da condução e do trânsito, e que, agindo de forma descrita, incorria em responsabilidade criminal.

5- O arguido tem os antecedentes criminais que constam de fls., 14 a 23 por crimes idênticos ao destes autos, sendo que na última condenação por factos idênticos o foi na pena única de 16 meses de prisão (sentença cumulatória no processo n.º 210/10/5gbCVL do 2.º juízo este Tribunal) de foi condenado nestes autos por sentença de 03/05/2011 (transitado em julgado) das seguintes penas:

     a) O arguido foi condenado em 02/06/2011, pela prática, em 27/11/2010, de um crime de condução sem habilitação legal e um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível, respectivamente, pelos artigos 3.º do DL 2/98, de 03.01 e 292.º, n.º 1 do Código Penal na pena única de 12 meses de prisão.

     b. Anteriormente a tal condenação foi arguido condenado nos autos de comum singular nº 60/09.9GECVL, que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, por sentença de 14/12/2010 (transitada em julgado em 07/03/2011), pela prática, em 23/10/2009, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3.º do DL 2/98, de 03.01 na pena de 8 meses de prisão cfr. fls. 153 e ss.

6) O arguido está desempregado;

7) A companheira recebe o subsídio social de reinserção;

8) O casal tem uma filha de 8 meses;

9) A companheira do arguido não tem carta de condução;

10) O arguido está inscrito em escola de condução desde 31/08/2015;

            Factos não provados

Não se provou qualquer outro facto com interesse para a decisão. Cfr. 124 do Código de Processo Penal.

Motivação

Os factos atinentes ao ilícito colhem a sua demonstração nas declarações do arguido que confessou integralmente e sem reservas os bem como nas suas declarações sobre a sua situação pessoal e económica e, ainda no CRC junto aos autos.

                                                                       *

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Como bem esclarecem os Cons. Simas Santos e Leal-Henriques, «Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).  

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente A... as questões a decidir são as seguintes:

- se a pena aplicada ao arguido é exagerada e infundada; e

- se a sentença recorrida violou o princípio da proporcionalidade ao declarar perdido o veículo automóvel a favor do Estado, pelo que deve ser revogado o seu perdimento.


-

            Apreciemos as questões.

            1.ª Questão: da medida da pena aplicada

O recorrente A... defende que a pena de 12 meses de prisão em que foi condenado é exagerada e infundada, face ao grau de culpa e ilicitude, por um lado, e às necessidades de prevenção geral e especial, por outro. No seu entender, o Tribunal a quo deveria ter tido em consideração que o ora recorrente confessou integralmente e sem reservas a prática do crime que lhe vinha imputado e resultou provado estar inscrito, desde Agosto de 2015, em escola de condução, com vista à obtenção do título de habilitação legal para a prática da condução.

Vejamos.

O crime de condução sem habilitação legal é punido, nos termos do art.3.º, n.º 2 do D.L. 2/98 de 3 de Janeiro, com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.

Em face dos factos dados como provados na sentença, não se mostra controvertida a prática pelo arguido de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.3.º, n.º 2 do D.L. 2/98 de 3 de Janeiro, nem a opção pela pena de prisão, em detrimento da pena de multa, tomada ao abrigo do disposto no art.70.º do Código Penal.

Não nos merecendo qualquer reserva aquela opção, enunciemos aqui, sucintamente, o critério de determinação concreta da pena que resulta do art.71.º do Código Penal.

O art.71.º do Código Penal estatui que, na graduação da pena deve o Tribunal atender à culpa do agente e às exigências de prevenção (n.º1), bem como a todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra este (n.º2).

A culpabilidade é um juízo de reprovação que se faz sobre uma pessoa, censurando-a em face do ordenamento jurídico-penal, por ter atuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter atuado em conformidade com esta.

O juízo de censura ou reprovação, é suscetível de se revelar maior ou menor, sendo por natureza graduável, dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela atuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas.[4]

O requisito de que sejam levadas em conta, na determinação da medida concreta da pena, as exigências de prevenção, remete-nos para a realização in casu das finalidades da pena.

De acordo com o art.40.º, n.º1, do Código Penal, a aplicação de penas (e de medidas de segurança) visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais.

Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração). É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial. A prevenção geral negativa ou de intimidação da generalidade, não constitui por si mesma uma finalidade autónoma da pena, apenas podendo surgir como um efeito lateral da necessidade de tutela dos bens jurídicos.  

A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.

As circunstâncias gerais enunciadas exemplificativamente no n.º2 do art.71.º do Código Penal, são, no ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, elementos relevantes para a culpa e para a prevenção e, “ por isso, devem ser consideradas uno actu para efeitos do art.72.º-1; são numa palavra, fatores relevantes para a medida da pena por força do critério geral aplicável.”.

Para o mesmo autor, esses fatores podem dividir-se em “Fatores relativos à execução do facto”, “Fatores relativos à personalidade do agente” e “Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”.

Podemos agrupar, nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do art.71.º, do Código Penal, os fatores supra mencionados relativos à execução do facto; nas alíneas d) e f), os fatores relativos à personalidade do agente; e na alínea e), os fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto. 

Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art.40.º, n.º 2 do C.P.), designadamente por razões de prevenção.

A lei ao impor a habilitação legal para a condução de veículos na via pública, bem como os requisitos para a obtenção de título de condução (artigos 121.º e 126.º do Código da Estrada), pretendeu que os condutores comprovem previamente a sua aptidão para uma actividade comportamental com inegáveis repercussões sociais, dada a perigosidade que envolve quer para os próprios condutores, quer para todos os outros que circulam na via pública ou fazem utilização das suas margens ou proximidades.

O bem jurídico protegido no crime de condução sem habilitação legal é, assim, a segurança de circulação rodoviária e indiretamente a tutela de bens jurídicos que se prendem com essa segurança, como a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais.

No caso em apreciação e no que respeita aos “Fatores relativos à execução do facto”, resulta da factualidade dada como provada, tal como bem refere a sentença recorrida, que o grau de ilicitude do facto é elevado e que o arguido agiu com dolo direto.

É mediano o modo de execução do crime, bem como a gravidade das suas consequências, esta associada à perigosidade da condução de veículo automóvel ligeiro de passageiros sem aprovação em exames certificados pelo Estado.  

No que respeita aos fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto, que integram a alínea e), n.º2 do art.71.º do Código Penal, o Tribunal da Relação não vislumbra na confissão integral e sem reserva dos factos dados como provados – que além de mencionada na motivação da sentença devia ser incluída nos factos provados -, um fator que atenue relevantemente a responsabilidade do arguido, pois a confissão neste tipo de crimes, em que a prova está praticamente feita por outros meios. Por outro lado, a inscrição do arguido em escola de condução desde 31-08-2015 (ponto n.º 10 dos factos provados), mostra-se um ato inócuo, uma vez os factos em causa têm lugar em 10-10-2016, portanto bem mais de um ano após a simples inscrição na escola. Ou seja, a inscrição não se mostra caucionada em atos relevantes, como a aprovação nos exames teórico e prático, pelo que no caso concreto a inscrição na escola, não tem relevo para a atenuação da sus responsabilidade penal.

Já apresenta várias condenações penais, designadamente oito pela prática de crimes de condução sem habilitação legal, que vem praticando reiteradamente desde pelo menos 2003, além de no proc. n.º 45/02.6TBCVL, do 3.º Juízo do TJ da Covilhã, ter sido condenado por sentença de 17/09/2003, pela prática em 16/07/2001 de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.143.º, do Código Penal, em pena de multa; no proc. n.º 48/03.3GBSEI, do 1.º Juízo do TJ de Seia, foi condenado por sentença de 28/06/2004, pela prática, em 6/09/2003, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo art.347.º, do Código Penal, em pena de prisão, suspensa na execução; no proc. n.º 276/04.4JAGDR, do 2.º Juízo do TJ da Covilhã, foi condenado por acórdão de 3/05/2007, pela prática, em 26/12/2004, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º e 144.º, do Código Penal, e um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida provada, p. e p. pelo art.190.º do Código Penal, em pena de prisão, suspensa na execução, pena de 3 anos de prisão que veio a ser revogada; e, no proc. n.º 477/13.4TACVL, da Comarca de Castelo Branco, Instância Local da Covilhã, Secção Criminal, - Juiz 1, foi condenado por sentença de 1/04/2014, pela prática, em 7/07/2007, de um crime de evasão, p. e p. pelo art.352.º, n.º1, do Código Penal, em pena de 2 meses e 15 dias de prisão.

Anotamos aqui, num parágrafo, que existe um lapso de escrita no ponto n.º 5 dos factos provados pois onde se menciona “… (sentença cumulatória no processo n.º 210/10/5gbCVL do 2.º juízo este Tribunal) ”, deve mencionar-se, de acordo com o CRC do arguido, o processo n.º 200/10/5GBCVL do 2.º Juízo deste Tribunal – correção que se determinará no dispositivo.

Em suma, a condenação do arguido nos presentes autos não é um episódio ocasional e isolado no contexto de uma vida de resto fiel ao direito; pelo contrário, é a repetição de condutas, em anos sucessivos.

Nos “Fatores relativos à personalidade do agente” assume clara preponderância a pouca suscetibilidade do arguido A... ser influenciado pelas penas em que já foi condenado, sendo de realçar que nem o cumprimento de penas de prisão o levaram a interiorizar o desvalor da sua conduta.

No que respeita às condições pessoais e económicas do arguido anotamos que está desempregado, vivendo com uma companheira e uma filha de 8 meses, recebendo a companheira o subsídio social de reinserção.

Considerando o grau de perigosidade do arguido A... que resulta dos factos provados, designadamente do seu passado criminal, entendemos que são prementes as razões de prevenção especial.

Também são elevadas as razões de prevenção geral dada a frequência com que crimes de condução sem habilitação legal são cometidos em todo o País, importando reforçar assim a ideia da validade dos bens jurídicos inerentes às normas violadas.

Perante estes elementos objetivos relevantes para a culpa e para a prevenção, entendemos que é também elevada a culpa do arguido.

Nestas circunstâncias entendemos que a aplicação ao arguido A... de uma pena de 12 meses de prisão, pela prática do crime de condução sem habilitação legal, quando em abstrato a pena vai de 1 mês a 2 anos de prisão, é proporcional e adequada às exigências de prevenção e da culpa, pelo que não merece censura, por excesso, a pena que lhe foi aplicada, que assim se mantém.

            2.ª Questão: do perdimento do veículo automóvel.

            O recorrente A... não se conforma também com o perdimento do veículo automóvel a favor do Estado, alegando que a sentença ora em crise viola clara e frontalmente o princípio da proporcionalidade, pois a desproporção entre a gravidade do comportamento deste e o valor de veículo em causa, é manifesta, objetiva, evidente e notória.

Por um lado, não consta da sentença, nem dos autos, qualquer elemento que permita concluir pela propriedade do bem, não se averiguou se o bem não poderia pertencer em compropriedade ao arguido e à sua companheira com quem vive em união de facto.  

Por outro lado, na avaliação da perigosidade do veículo cuja declaração de perda se proferiu  não se partiu dum critério objetivo, nem de teve em consideração a distinção entre perigosidade do objeto e perigosidade do agente, para que àquela se não atribua algo a que a esta pertence, em nome da certeza de que apenas a primeira justifica declaração de perda, o que, in casu parece ter sucedido e não é legalmente admissível.

Vejamos.

O art.30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa estabelece que «Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.».

Decorre deste preceito, no entender do acórdão n.º 176/2000 do Tribunal Constitucional, que “... a lei fundamental veio estabelecer uma proibição, não de existência de penas que impliquem a perda de direitos daquela natureza, mas sim que essa perda seja automática (isto é, sem que seja resultado de uma aplicação concreta pelo juiz, ponderadas que sejam a tipificação da infração, a culpabilidade e a adequação da sanção à gravidade do ilícito, a culpa e outras circunstâncias rodeadoras do ilícito e do respetivo cometimento) da condenação em outra pena ou pela comissão de um determinado ilícito (...)”.[5].

O art.109.º do Código Penal, sob a epígrafe «Perda de instrumentos e produtos», estatui, nomeadamente:

«1. São declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou por este tiverem sido produzidos, quando pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco se ser utilizados para o cometimento de novos ilícitos típicos.

     2. O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto.».

A perda de objetos exige, assim, o preenchimento dos seguintes elementos:

- a prática de um facto ilícito típico;

- os objetos serviram ou estavam destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico (instrumenta sceleris), ou são produto de um crime (producta sceleris); e

- pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, põem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecem sério risco se ser utilizados para o cometimento de novos ilícitos típicos.

Anotando este artigo do Código Penal, diz o Conselheiro Maia Gonçalves que a perda de objetos “...é uma espécie de medida de segurança, operando somente naqueles casos em que existe o perigo de repetição de cometimento de novos ilícitos através do mesmo instrumento. (...) O fundamento da perda dos instrumentos que servem para a prática de factos ilícitos típicos é a sua perigosidade, e esta afere-se pela natureza dos mesmos instrumentos e pelas circunstâncias do caso.”.[6]

Exatamente por a perda dos objetos dever ser vista essencialmente como uma medida preventiva e não como reação contra o crime é que se explica que, nos termos do n.º 2 do art.109.º do Código Penal, a perda não esteja na dependência da efetiva condenação do arguido. Por isto se admite que a perda possa ocorrer mesmo nos casos em que haja arquivamento e ainda que nenhuma pessoa possa ser punida.

Esta é também a posição defendida pelo Prof. Figueiredo Dias, quando sustenta que a finalidade atribuída pela lei vigente à perda dos instrumentos e do produto do crime é exclusivamente preventiva e que só devem ser declarados perdidos “…aqueles instrumentos ou produto que, atenta a sua natureza intrínseca, isto é, a sua específica e conatural utilidade social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa e devam por isso considerar-se, nesta aceção, objetos perigosos.”. O ponto de vista objetivo deve ser o ponto de partida para a avaliação da perigosidade do objeto, e não o ponto de vista subjetivo do relacionamento entre a coisa e um determinado sujeito. “O objeto mais anódino (um lençol, uma meia de seda, um lápis ou uma caneta) pode tornar-se em objeto hoc sensu «perigoso» quando detido por um individuo perigoso. Declarar a perda nestes casos, porém, significaria procurar atalhar a perigosidade do agente, não – como a finalidade do instituto – a perigosidade do objeto: para atalhar a perigosidade do agente dispõe a lei de outros recursos e de outros institutos que nada têm a ver com perda dos instrumenta e dos producta sceleris. Em primeira linha, por conseguinte, deve ser a perigosidade do objeto em si mesmo considerado, independentemente da pessoa que o detém – o tratar-se de uma arma, de um explosivo, de moeda contrafeita ou de cunhos para a fabricar, etc - que justifica, em perspetiva político-criminal, a perda.”.[7]

O Prof. Germano Marques da Silva defende que, em abstrato, o art.109.º do Código Penal é aplicável à perda de veículo, enquanto instrumento no crime de condução sem habilitação legal. No entanto, acrescenta, que “ dificilmente o veículo representa por si mesmo um perigo para a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, mas atentas as circunstâncias do caso é de admitir que possa oferecer risco de ser utilizado para o cometimento de novos crimes.”.[8]  

Como sanção análoga à medida de segurança, decorre do próprio princípio da proporcionalidade inerente ao Estado de Direito (art.18.º, n.º 2 da C.R.P.), que o perdimento dos instrumenta sceleris, deve ser proporcional à gravidade do ilícito cometido. 

Se os bens confiscáveis forem propriedade de um terceiro, coloca-se a questão suplementar de saber como assegurar processualmente os seus direitos de defesa.

A este respeito, estabelece o art.110.º do Código Penal, nomeadamente, o seguinte:

«1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a perda não tem lugar se os objetos não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada.

  2 - Ainda que os objetos pertençam a terceiro, é decretada a perda quando os seus titulares tiverem concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiverem retirado vantagens; ou ainda quando os objetos forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo os adquirentes a sua proveniência.

  3. (…)».

Em regra, portanto, os objetos não podem ser declarados perdidos a favor do Estado quando tenham pertencido a terceiro, de boa fé. Como anota o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, em bom rigor, no caso de concurso censurável, para a utilização ou produção do objeto, o agente não é terceiro, “mas um verdadeiro cúmplice ou um “cúmplice” negligente” e, no caso de proveito tirado de objeto, o autor pode ser autor de recetação, dolosa ou negligente.[9]

Feitas estas considerações, retomemos o caso concreto

O Tribunal a quo ao determinar o perdimento, a favor do Estado, do veículo de matrícula OI (...) , invocou apenas o disposto no art.109.º, n.º1 do Código Penal e o seguinte:

No caso, considerando em conjunto os factos (condução sem habilitação legal (9 vezes); que o arguido e companheira não tem carta de condução; que o veículo serviu na prática do crime) existe o sério período que o arguido o venha a utilizar no cometimento de idênticos crimes, pelo que se determina sua perda a favor do Estado.”.  

Posto isto.

Antes do mais, importa deixar claro que um veículo automóvel, pela sua natureza, não é um instrumento de crime, mas um meio normal de transporte, permitido pela lei e utilizado por milhares de pessoas, pelo que face à sua específica e conatural utilidade social, não é de qualificar, em regra, como instrumento e menos ainda, objetivamente perigoso.

O tipo legal preenchido pelo arguido A... exige a utilização de veículo, sem o qual não existe crime.

Nesta perspetiva o veículo automóvel utilizado pelo arguido na condução não é propriamente um instrumento do crime, mas um elemento do crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.3.º, n.º1 do DL n.º 2/98 de 3 de Janeiro.

Portanto, em princípio, o veículo automóvel conduzido por quem para tal não está habilitado não deve ser considerado instrumenta sceleris, nem como instrumento objetivamente perigoso para a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas e que oferece sério risco se ser utilizado para o cometimento de novos ilícitos típicos

Perigoso, neste tipo legal, será o agente do crime de condução sem habilitação legal.[10]  

Como bem anota o recorrente A..., não consta da sentença recorrida quem é o proprietário do veículo que o mesmo conduzia no dia 10 de outubro de 2016, designadamente se é do arguido, de terceiro ou de ambos.

Sendo a declaração de perdimento efetuada na sentença ao abrigo do disposto no art.109.º, n.º1 do Código Penal, está implícito na decisão recorrida que a propriedade do veículo é do arguido.

O certo, porém, é que nada se dizendo sobre a propriedade do veículo nos factos dados como provados na sentença, não podemos deixar de concluir que a declaração de perdimento do veículo automóvel de matrícula OI (...) , ao abrigo do disposto no art.109.º, n.º1 do Código Penal, não é suportada pelas respetivas premissas de facto.

Como já se consignou existe uma diferenciação de requisitos de declaração de perdimento consoante o bem seja do arguido ou de terceiro alheio ao processo penal, não podendo deixar de ser também diversos os mecanismos de defesa de quem pode ver o bem declarado perdido a favor do Estado.

Mesmo partindo do pressuposto que o veículo automóvel é do arguido e com ele praticou um facto ilícito típico no dia 10 de outubro de 2016, traduzido no preenchimento de todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de condução sem habilitação legal, entendemos que não existem nos autos factos suficientes para declarar o mesmo perdido a favor do Estado ao abrigo do disposto no art.109.º, n.º1 do Código Penal.

Pese embora o arguido A... tenha já várias condenações anteriores, designadamente por crimes de condução sem habilitação legal, nada se consigna na factualidade dada como provada sobre as concretas circunstâncias de utilização pelo arguido do veículo automóvel de matrícula OI (...) , nomeadamente, se foi anteriormente condenado por conduzir este mesmo veículo automóvel.

Não resultando dos factos dados como provados, que o veículo automóvel de matrícula OI (...) é propriedade do arguido, que pode dispor dele quando entender, que reiteradamente o bem usando na condução e com ele vem sendo condenado sucessivamente por crimes de condução sem habilitação legal, não temos como verificada a perigosidade do veiculo como instrumento que oferece sério risco se ser utilizado para o cometimento de novos ilícitos típicos.

O argumento, usado na douta sentença para decretar a perda do veículo, de que companheira do arguido A... não tem carta de condução, não nos parece aceitável. Não só não consta dos factos provados que a companheira do arguido não tem carta de condução, como o agente do ilícito típico não pode ver agravada a possibilidade de ver perdido o veículo pelo facto de um terceiro, seja ele quem for, não ser possuidor de carta de condução.

O Ministério Público não fez qualquer referência ao art.109.º do Código Penal na acusação, nem indicou nela factos que permitissem declarar o perdimento do veículo e o Tribunal a quo também não os acarretou para a sentença.

Assim, sem outras concretas circunstâncias dadas como provadas para além do arguido ter sido condenado várias vezes pela prática de crimes de condução sem habilitação legal, não se podem dar como preenchidos os pressupostos de perda da viatura conduzida por aquele aquando da prática de crime de condução sem habilitação legal.

Consequentemente, impõe-se dar provimento a esta questão.

      Decisão

      Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em:

- conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido A... e revogar a declaração de perdimento a favor do Estado do veículo de matrícula OI (...) ;

- corrigir um erro material, nos termos dos artigos 425.º, n.º 4 e 380.º , n.º 1 al. b) , do Código de Processo Penal), de modo que onde consta, no ponto n.º 5 dos factos provados  “…(sentença cumulatória no processo n.º 210/10/5gbCVL do 2.º juízo este Tribunal)”, deve passar a constar “… (sentença cumulatória no processo n.º 200/10/5GBCVL do 2.º Juízo este Tribunal)”; e

- manter, no mais, a douta sentença.

 Sem custas.


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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.)

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Coimbra, 5 de Abril de 2017

(Orlando Gonçalves – relator)

(Inácio Monteiro – adjunto)


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.  
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.

[4] Cfr. acórdão do STJ, de 27-11-2013, Proc. n.º 37/12.7JACBR.C1.S1 , 3.ª Secção, Relator: Santos Cabral.

[5] In www.dgsi.pt 

[6]  In “Código Penal anotado”, 8ª edição, páginas 474 e 475.

[7] Cf. “Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do crime”, Notícias editorial, páginas 621 e 622.
[8] In “Crimes Rodoviários, Pena acessória e Medida de Segurança”, UCE, págs. 39 e 40.

[9] In "Comentário do Código Penal", UCE, 2.ª edição, pág. 359. 

[10] Cf neste sentido, os acórdão da Relação do Porto, de 12 de Fevereiro de 1992, C.J. , ano XVII, I, pág. 249 e da Relação de Lisboa, de 31 de Março de 2004, C.J. , n.º 174, pág. 137.