Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
335/09.7TBNLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: DANO NÃO PATRIMONIAL
SEXUALIDADE DO CÔNJUGE
SEGURO OBRIGATÓRIO
ABRANGÊNCIA
Data do Acordão: 10/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – NELAS – INST. LOCAL – SEC. COMP. GEN.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 7º, Nº 1 DO DL Nº 522/85, DE 31/12; 483º, Nº 1, 496º E DO C. CIVIL.
Sumário: I – Tendo a Autora mulher ficado impossibilitada de exercitar a sua sexualidade conjugal em virtude de o marido haver sofrido lesões que o incapacitaram sexualmente, em consequência de acidente de viação de que foi o exclusivo responsável, o dano não patrimonial dela (cônjuge) não está excluído do âmbito do seguro obrigatório, designadamente do art.7º nº1 DL nº 522/85 de 31/12 (vigente à data do acidente).

II - Trata-se de um dano autónomo e próprio da Autora mulher, por violação ilícita do direito de outrem – o direito à sexualidade conjugal enquanto direito de personalidade - e, por isso, o dano é directo, causado indirectamente pelo acidente, da exclusiva responsabilidade do marido, tratando-se de uma situação de hetero-responsabilidade, baseada nas normas dos arts.483 nº1, 496 nº1 e 70 do CC.

III - O problema do nexo de causalidade no âmbito da responsabilidade civil deve colocar-se, desde logo, ao nível da conduta/evento, pois o comportamento (facto voluntário), jurídica e socialmente relevante, abrange não só a conduta, mas também o resultado, sendo designado por “ duplo nexo de causalidade “, ao incidir sobre as duas etapas do processo de responsabilização: ao nível da ligação entre conduta/evento e do facto/dano, embora assentes no mesmo critério.

IV - A teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa (art.563 do CC) não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, admitindo não só a ocorrência de outros factos condicionantes, como ainda a chamada causalidade indirecta, na qual é suficiente que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano.

V - Actualmente há uma preocupação superadora da tradicional categoria de “dano moral“, ampliando o seu espectro, de molde a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento, visando-se, assim, erigir um novo modelo centralizado no “dano pessoal” correspondendo ao “dano ao projecto de vida”, como núcleo do “dano existencial”.

VI - Esta concepção é a que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral.

VII - Comprovando-se que o casamento perdura há vários anos, que a relação entre ambos os cônjuges sempre foi cheia de afecto e amor e que a privação dos seus desejos sexuais causa à Autora mulher profunda angústia, tristeza e sofrimento permanente, provocando desgosto e mal-estar, revela-se adequado quantificar o dano não patrimonial no valor de € 30.000,00.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1.1.- Os Autores – A... e M... – instauraram (24/9/2009) na Comarca de Nelas acção declarativa com forma de processo ordinário, contra a Ré G..., S.A., com sede na ...

Alegaram, em resumo:

No dia 29 de Setembro de 2006, cerca das 13,30 horas, o Autor marido quando conduzia o veículo automóvel de matrícula ...-XC no IC 12, em Canas de Senhorim, interveio em acidente de viação.

Em consequência, o Autor sofreu lesões corporais, que implicaram uma incapacidade permanente parcial, tendo ficado sexualmente incapacitado, o que lhe causa tristeza, sofrimento e angústia, que lhe acarretaram danos patrimoniais e não patrimoniais.

A Autora mulher sofreu danos não patrimoniais, em virtude de, a partir da data do sinistro, e em sua consequência, ter ficado privada de satisfazer os seus desejos sexuais e daí retirar prazer, afectando-a psicologicamente.

Pediram a condenação da Ré no pagamento:

a)Ao Autor marido de uma indemnização a liquidar em execução de sentença para reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais, sofrido em consequência do acidente.

b) À Autora mulher uma indemnização, no valor de € 40.000,00, a título de danos não patrimoniais.

A Ré contestou, defendendo-se, em síntese:

O direito à indemnização do Autor marido está excluído da garantia do seguro obrigatório, por força do art. 7.º, n.º 1, do DL 522/85, de 31/12. Contudo, havendo seguro facultativo, devem improceder os pedidos relativos aos danos não cobertos.

Quanto ao pedido da Autora mulher, para além de não haverem sido alegados os pressupostos da responsabilidade civil, os danos não estão cobertos pelo seguro.

Os Autores replicaram e pediram a condenação da Ré como litigante de má fé.

1.2.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida (10/12/2014) sentença que, na parcial procedência da acção, decidiu:

i)Condenar a Ré a pagar ao Autor marido uma indemnização a liquidar em execução de sentença pelos danos patrimoniais decorrentes da incapacidade permanente parcial e da incapacidade temporária absoluta, no caso de internamento hospitalar, sofridas por aquele;

ii)Absolver a Ré do demais peticionado pelo Autor marido;

iii) Absolver a Ré do pedido da Autora mulher;

iv) Absolver a Ré do pedido de condenação como litigante de má fé.

1.3.- Inconformada, a Autora recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

...

A Ré contra-alegou, no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1.- O objecto do recurso

As questões submetidas a recurso, delimitado pelas conclusões são as seguintes:

i)Saber se a Autora pode exigir da Ré Seguradora uma indemnização por danos não patrimoniais (por violação do direito à sua sexualidade conjugal ) em consequência de acidente de viação imputável culposamente ao Autor, seu marido, que ficou sexualmente incapacitado por causa das lesões sofridas no acidente. Se o dano não patrimonial da Autora está coberto pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, no regime estatuído no art.7º do DL nº 522/85 de 31/12 (vigente à data do acidente).

            ii) Afirmando-se a responsabilidade da Ré, estimar o valor da indemnização.

2.2.- Os factos provados

...

2.3.- Os factos não provados
A Autora sofre um profundo estado depressivo.

2.4.- A responsabilidade da Ré Seguradora e o âmbito da cobertura do seguro.

            Problematiza-se no recurso a questão de saber se Autora, M..., pode reclamar da Ré Seguradora uma indemnização por danos não patrimoniais (por violação do direito à sua sexualidade conjugal) em consequência de acidente de viação imputável culposamente ao Autor, seu marido, visto comprovar-se que ele ficou sexualmente incapacitado por causa das lesões sofridas no acidente, ficando ela impossibilitada de satisfazer os seus desejos sexuais, situação que lhe provoca profunda angústia, desgosto e mal estar.

            Mais concretamente se este dano está coberto pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, no regime estatuído no art.7º do DL nº 522/85 de 31/12 (vigente à data do acidente).

            A sentença recorrida, muito embora considere que os danos sofridos, qualquer que seja a sua qualificação (danos reflexos, indirectos ou danos directos) “poderão ser potencialmente susceptíveis de indemnização”, rejeitou a pretensão da Autora com base nos seguintes tópicos:

            i)O Autor marido foi o exclusivo responsável pelo acidente de viação, logo não há um terceiro a quem se possa imputar a sua incapacidade sexual de que padece, falhando um dos pressupostos da responsabilidade civil aquiliana (“ Ora, não havendo este terceiro responsável pelos danos causados ao Autor marido, os danos sofridos pela Autora mulher em consequência da incapacidade de que ficou a padecer o seu marido não são compensáveis, pois que estes danos sendo decorrentes dos danos sofridos por aquele apenas poderiam ser indemnizados se o seu marido fosse lesado (e não lesante) (…)”).

ii) O dano sofrido pelo Autor marido não resultou da violação ilícita de um direito de outrem, princípio este transversal a todo o regime de responsabilidade civil extracontratual por actos ilícitos, pelo que inexiste qualquer obrigação de indemnizar decorrente desse facto originário (incapacidade sexual) (“na medida em que ela resulta de conduta culposa e lesiva do direito do próprio, e a indemnização prevista no artigo 496.º do Cód. Civil, por danos não patrimoniais da Autora mulher não deixa de ser um dano decorrente do dano sofrido pelo Autor marido que exige a verificação de indemnização por outrem que não da própria vítima.”).

            iii)Os danos reclamados pela Autora mulher são decorrentes das lesões corporais sofridas pelo condutor do veículo seguro, logo estão os mesmos excluídos da garantia de seguro no presente caso concreto, dado o disposto no art.7 nº1 do DL 522/85.

Em contrapartida, objecta a Apelante dizendo, em suma:

Verificam-se os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual pois o dano foi provocado pelo marido (lesante), único responsável pelo acidente, não havendo confusão entre lesante/lesado.

Decorre do art.7 do DL nº 522/85 que os danos não patrimoniais sofridos pelo cônjuge do condutor não se encontram excluídos do seguro.

O enquadramento para a solução do problema passa necessariamente pela “relação de complementaridade “ ou de interconexão entre o direito dos seguros (regime do seguro obrigatório automóvel) e o instituto da responsabilidade civil extracontratual (art.483 e segs.do CC ).

Na verdade, o dever de indemnização por parte da seguradora depende de dois factores: do regime estabelecido no contrato de seguro (âmbito de cobertura) e da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil.

Intervém aqui o direito comunitário e o princípio da protecção da vítima, como decorre das Directivas Comunitárias sobre o seguro obrigatório automóvel (as Directivas 72/166/CEE, de 24 de Abril (primeira directiva), 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983 (segunda directiva), 90/232/CEE, de 14 de Maio de 1990 (terceira directiva), 90/232/CEE, de 14 de Maio de 1990 (terceira directiva), 2000/26/CE, de 16 de Maio de 2000 (quarta directiva) e 2005/14/CE (quinta directiva).

Conforme elucida o Cons. Moitinho de Almeida, “o regime jurídico do seguro obrigatório automóvel encontra-se amplamente penetrado por disposições comunitárias sobre as quais o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias se tem debruçado e que se reflectem não apenas no domínio do seguro como também nos direitos nacionais em matéria de responsabilidade civil”. E, sendo, em princípio, da competência dos Estados Membros a escolha do regime da responsabilidade civil, a verdade é que “ a interpretação de disposições das directivas ou o seu efeito útil, determinam soluções que penetram as legislações nacionais no domínio da responsabilidade civil (Contrato de Seguro – Estudos, pág.204 e 207).

No mesmo sentido, Sinde Monteiro, para quem “as disposições comunitárias atinentes ao âmbito de cobertura pessoal do seguro de responsabilidade são susceptíveis de assumir uma dimensão não meramente formal e de pura remissão ou subsunção aos conceitos da responsabilidade civil, mas uma dimensão material, da mesma forma aliás que as normas que estabelecem mínimos de cobertura ( que o TJUE considerou terem de valer também para a responsabilidade )” ( “Direito dos Seguros e Direito da Responsabilidade Civil”, RLJ ano 142, pág. 82 e segs.).

Em relação ao beneficiário do seguro que seja um terceiro, em consequência da lesão causada pelo tomador do seguro, a responsabilidade da seguradora é substitutiva do responsável pelo dano ( a seguradora é responsável na medida da responsabilidade do seu segurado) aplicando-se, por isso, a regras da responsabilidade civil aquiliana, sendo que no caso do seguro obrigatório é admissível a “acção directa “( art.29 nº1 do DL nº 522/85). Ou seja, o seguro obrigatório da responsabilidade civil apresenta-se como garantia do direito de indemnização à vítima, pelo que “quem aparece como devedor perante o credor ( lesado) é a seguradora, e não o autor do dano, a metamorfosear um seguro dito de responsabilidade em garantia da obrigação de indemnização “ ( Calvão da Silva, RLJ ano 137, pág. 63).

Isto significa que o direito dos seguros alterou a fisionomia da responsabilidade civil, conferindo ao lesado uma maior e eficaz protecção.

O âmbito da cobertura do seguro:

            Impõe-se saber se os danos não patrimoniais reclamados pela Autora estão excluídos do seguro obrigatório, por força do art.7 nº1 do DL nº522/85 de 31/12 (na redacção do DL nº130/94 de 19/5), em vigor à data do acidente.

            As alterações introduzidas pelo DL nº130/94 deram cumprimento à Directiva nº90/232/CEE do Conselho de 14/5/90, em que um dos aspectos fundamentais regulados contende com o âmbito da cobertura, prevendo que o seguro obrigatório cubra a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, que não o condutor.

A este propósito, salientando o princípio da protecção da vítima na interpretação do art.7º do DL nº 522/85, o Ac STJ de 16/1/2007, proc. nº 06A2892, em www dgsi.pt, aduz a seguinte justificação:

 “ Muito embora tenha de se convir que o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tenha a natureza jurídica de “seguro de responsabilidade”, o certo é que a sua moderna especificidade – com acolhimento no chamado “3.ª Directiva Automóvel”… reside no primado da protecção das vítimas corporais, ressarcindo todos quanto não sejam o próprio condutor (o responsável pelo respectivo ilícito) relativamente aos danos corporais de que forem vítimas, por acidente rodoviário não por si próprios causado.

Na verdade, esse é o resultado interpretativo que se deve fazer do artº 7º. (nº.s 1º e 2º, al. a)), do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo aludido Dec Lei nº 130/94.

Contrariamente ao entendimento anterior, hoje, “terceiro”, em matéria de acidente de viação, é todo aquele que possa imputar a responsabilidade do evento a outrem - e, não, como anteriormente, aquele que não era o tomador do seguro…”

            Está em causa o conceito de terceiro para efeitos do âmbito da garantia do seguro obrigatório e dos danos ressarcíveis, o qual se apresenta definido pela negativa ( cf. Filipe Albuquerque de Matos, “ O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel “, BFDUC, vol.LXXVIII, 2002, pág.329 e segs. ).

            Não é terceiro o condutor do veículo, já que segundo o previsto no art.7 nº1 e 2 a) do DL 522/85, o seguro não cobre as lesões corporais, nem as materiais por si sofridas, ou seja, os danos próprios do condutor.

            O critério do parentesco apenas funciona para as exclusões impostas nas alíneas d) e e) do nº2 do art.7, e que estão limitadas aos danos derivadas de “lesões materiais”, pelo que numa interpretação literal e sistemática, o legislador não pretendeu excluir a indemnização por danos não patrimoniais.

            Não se adere à interpretação no sentido de que a exclusão de todos os danos do condutor estende o seu espectro aos familiares relativamente aos danos decorrentes de danos sofridos pelo responsável.

            Desde logo, pelo carácter taxativo e natureza excepcional da norma do art.7º , que não contém tal abrangência, pois do nº1 decorre expressis verbis a exclusão dos danos decorrentes de lesões corporais sofridos pelo condutor do veículo.

            Depois, o dano reclamado pela Autora é um dano próprio dela, directamente sofrido, por violação do direito à sexualidade conjugal, enquanto direito de personalidade ( arts. 1577, 1671, 1672, 70 CC, 25, 26, 36 e 67 da CRP). Trata-se, portanto, de um direito fundamental com directa tutela constitucional e vinculação imediata, mesmo entre particulares.

            Note-se, porém, revelar-se como um dano autónomo, de natureza estritamente pessoal, radicado na esfera jurídica da Autora, distinta da do marido e que, por isso mesmo, não pode confundir-se com o dano sofrido por ele próprio, e, afora a estreita dependência, nem sequer se poderá equacionar como espécie de projecção do dano do marido.

            Já vimos que a lei não exclui do seguro obrigatório, pelo que resta verificar da comprovação dos requisitos da responsabilidade civil.
São pressupostos da obrigação de indemnização, o facto ilícito, o nexo de imputação subjectiva (a culpa) e a existência de danos causados adequadamente por esse mesmo facto. Incumbe ao autor, como facto constitutivo do seu direito, a prova dos pressupostos do direito de indemnização (arts.342 nº1 e 487 C.C.), designadamente da culpa, através da chamada “prova da primeira aparência”, salvo havendo presunção legal de culpa.

            Uma vez afirmado o dano da Autora, objectivamente grave, e sendo aceite a responsabilidade do condutor (Autor marido) na produção do acidente (despiste), a questão que se coloca é a da imputação objectiva ao dano (próprio) da Autora.

            O problema do nexo de causalidade no âmbito da responsabilidade civil tem sido tratado pela doutrina tradicional apenas quanto à ligação entre o facto e o dano. Mas, em bom rigor, ele deve colocar-se, desde logo, ao nível da conduta/evento, pois o comportamento (facto voluntário), jurídica e socialmente relevante, abrange não só a conduta, mas também o resultado.

Daí que, se fale então do chamado “ duplo nexo de causalidade “, ao incidir sobre as duas etapas do processo de responsabilização: ao nível da ligação entre conduta/evento e do facto/dano, embora assentes no mesmo critério (cf., por ex., Pedro Carvalho, A Omissão e Dever de Agir em Direito Civil, 1999, pág.48 e segs. e Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, vol.2º, pág.336 e segs.).

Este duplo nexo de causalidade remete para os critérios da imputação ou de avaliação a que são submetidos os dados empíricos, passando-se, assim, do plano ontológico para o normativo.

Neste contexto, formularam-se diversas teorias sobre o nexo de causalidade, entre as quais se destacam a teoria da conditio sine qua non; a teoria da última condição; a teoria da condição eficiente; a teoria da culpa aos prejuízos em concreto; e a teoria da causalidade adequada.

A lei civil (art.563 do CC) adoptou a teoria da causalidade adequada, ao estabelecer que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Assim, para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes de mais, que, no plano naturalístico, ele seja condição sem o qual o dano não se teria verificado e depois que, em abstracto ou em geral, seja causa adequada do mesmo (nexo de adequação).

Para o efeito, releva a causalidade adequada na sua formulação negativa: a condição deixará de ser causa do dano sempre que, segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo, portanto, inadequado para esse dano ( cf., por ex., Antunes varela, Das Obrigações em Geral, I, 2ª ed., pág.743 e segs., Pedro Carvalho, A Omissão e Dever de Agir em Direito Civil, pág.61; Ac STJ de 15/4/93, C.J. ano I, tomo 2, pág.59, de 15/1/2002, C.J. ano X, tomo I, pág.36 ).

A teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa, não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, admitindo não só a ocorrência de outros factos condicionantes, como ainda a chamada causalidade indirecta, na qual é suficiente que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano ( cf., por ex., Ac do STJ de 29/6/04, de 6/3/07, disponíveis em www dgsi.pt ).

Noutra perspectiva, e a propósito da imputação, Claus Roxin refere que quando o legislador permite, à semelhança do que sucede em outras manifestações da vida moderna, ocorra um risco até certo limite, apenas poderá haver imputação se a conduta do autor significa um aumento do risco permitido (Problemas Fundamentais de Direito Penal, pág.152 ).

O princípio do incremento do risco adopta o seguinte método: deve, em primeiro lugar, examinar-se qual a conduta que não se poderia imputar ao agente como violação do dever de acordo com os princípios do risco permitido; depois, estabelecer-se uma comparação entre ela e a forma de actuar do agente, para se comprovar, então, se, na configuração dos factos submetidos a julgamento, a conduta incorrecta do autor fez aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação do risco permitido.

            Assente que o acidente foi da exclusiva responsabilidade do Autor marido (o que não se discute no recurso), verifica-se que o acidente desencadeou lesões que o incapacitaram sexualmente e este facto desencadeou a impossibilidade de a Autora mulher exercer a sua sexualidade conjugal, sabido que estão casados desde Março de 1974, com uma relação sempre cheia de afecto e amor, e que por causa disso ficou com profunda angústia, sofrimento e mal estar.

            Por conseguinte, tendo o dano (não patrimonial) da Autora mulher sido causado indirectamente pelo acidente, provocado culposamente pelo marido, ele assume a qualidade de lesante. Nesta perspectiva, não parece consistente a justificação de que o dano da Autora mulher apenas seria ressarcível se o acidente (e o dano do marido) tivesse sido provocado por um terceiro responsável.

            Pode afirmar-se que o dano é directo (por violação ilícita do direito de outrem – o direito à sexualidade conjugal enquanto  direito de personalidade) causado indirectamente pelo acidente, da exclusiva responsabilidade do marido, tratando-se de uma situação de hetero-responsabilidade, baseada juspositivamente nas normas dos arts.483 nº1, 496 nº1 e 70 do CC.

            A sentença apresentou ainda como justificação a doutrina do Ac de uniformização de jurisprudência do STJ de 5/6/2014, proc. nº 108/08, disponível em www dgsi.pt:

“No caso de morte do condutor de veículo em acidente de viação causado por culpa exclusiva do mesmo, as pessoas referidas no n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil não têm direito, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a qualquer compensação por danos não patrimoniais decorrentes daquela morte”.

A lógica subjacente ao acórdão, na sua retórica argumentativa, é no sentido de que o cônjuge não é terceiro, e de que não existe lesante, faltando um dos pressupostos da responsabilidade civil, mas deve ser objecto de uma interpretação restritiva, de molde a excluir a indemnização pelos danos não patrimoniais decorrentes da morte do condutor apenas aos que se transmitem por via hereditária aos familiares lesados, e já não os danos (não patrimoniais)  próprios destes.

            Em primeiro lugar, a doutrina do Acórdão parece postergar o “efeito útil” das Directivas Comunitárias ( já citadas) por, na sua relação com o direito da responsabilidade civil, visarem a protecção de todos os lesados, com excepção do condutor. Ora, os familiares lesados, nomeadamente o cônjuge, são terceiros lesados (quer na vertente do seguro, por não intervirem no contrato, quer na vertente do facto lesivo, por não participarem na produção do acidente) e uma tal interpretação excludente é susceptível de violar o princípio da igualdade, por implicar uma discriminação negativa em comparação com os demais lesados (não familiares).

            A propósito do âmbito de cobertura pessoal e do princípio da protecção de todas as vítimas nos considerandos ( nº7 e 9) da 2ª Directiva de 30/12/1983 ( 84/5/CEE) afirma-se ser “conveniente conceder aos membros da família do tomador do seguro condutor ou de toda e qualquer outra pessoa responsável, uma protecção comparável à de outros terceiros vítimas, pelo menos no que toca aos danos pessoais”.

            Depois, a não ser assim, parece que a doutrina deste Acórdão Uniformizador acaba por colidir com a do Ac de uniformização do STJ de 16/1/2004 (proc. nº 6430/07), disponível em www dgsi.pt, que fixou a seguinte orientação:  “Os artigos 483 nº1 e 496 nº1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave”.

                        2.5.- A quantificação do dano não patrimonial

            A Autora reclamou a quantia de € 40.000,00. Na contestação, a Ré considerou exagerado tal valor.
A indemnização pelos danos não patrimoniais não visa reconstituir a situação que existiria se não ocorresse o evento, mas sim compensar o lesado, tendo também uma função sancionatória sobre o lesante.
Embora sem rigor sistemático, é patente uma preocupação superadora da tradicional categoria de “ dano moral “, ampliando o seu espectro, de molde a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento. Pretende-se, assim, erigir um novo modelo centralizado no “ dano pessoal” correspondendo ao  “dano ao projecto de vida”, como núcleo do “dano existencial”.
Na verdade, esta concepção é a que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral.
Como critério de determinação equitativa para o equivalente económico do dano não patrimonial ( arts.496 nº3 e 494 do CC ), há que atender à natureza e intensidade do dano, ao grau de culpa, à situação económica do lesado e do responsável, sendo certo que o seguro de responsabilidade civil é também um elemento a ter em conta, bem como ao valor actual da moeda e aos padrões jurisprudenciais.
Deste modo, para a quantificação do dano, o nosso sistema assenta no recurso à equidade (art.4 do CC) e a desvinculação relativamente a puros critérios de legalidade estrita, pois não está instituído ainda em Portugal um sistema tarifado, semelhante à “ baremación “, vigente em Espanha, com a Ley nº30/1995 de 8/11, vinculativo para os tribunais, ou o modelo francês das “ barèmes “, já que os critérios e valores fixados pela Portaria nº377/2008 de 26/5 reportam-se apenas à regularização extrajudicial de sinistros, não afastando valores superiores aos propostos.
Nesta medida, o direito equitativo não se compadece com uma construção apriorística, emergindo, porém, do “ facto concreto ”, como elemento da própria compreensão do direito, rectius, um direito de resultado, em que releva a força criativa da jurisprudência, verdadeira law in action, com o imprescindível recurso ao “ pensamento tópico” que irá presidir à solução dos concretos problemas da vida.
Em matéria de acidentes de viação tem-se assistido, nas últimas décadas, a uma evolução significativa quanto aos padrões da indemnização, a fim de se evitarem prejuízos irreparáveis aos lesados.
De resto, nesta linha de evolução, entre outros tópicos, apela-se, por exemplo, aos critérios da convergência real das economias no seio da União Europeia, aos montantes mínimos do seguro automóvel obrigatório, fixados em aplicação das directivas comunitárias, como índices emergentes da preocupação legal de protecção dos lesados em matéria de acidentes de viação, o que significa que os danos não patrimoniais devem ser dignamente compensados.
Seguindo este critério de orientação e uma vez que natureza e intensidade das lesões deve servir como “factor-base da ponderação” (cf. Maria Veloso, “Danos não patrimoniais”, Comemorações dos 35 anos do Código Civil, vol.III, Direito das Obrigações, pág.542), impõe-se considerar que o casamento perdura há longos anos (casaram em 23/3/1974), cuja relação entre ambos foi sempre cheia de afecto e amor, e que a privação dos seus desejos sexuais lhe causa , profunda angústia, tristeza e sofrimento permanente, provocando desgosto e mal-estar.
Em juízo de equidade, fixa-se o valor do ano, actualizado nesta data, em € 30.000,00.

            2.6.- Síntese conclusiva

a)Tendo a Autora mulher ficado impossibilitada de exercitar a sua sexualidade conjugal em virtude de o marido haver sofrido lesões que o incapacitaram sexualmente, em consequência de acidente de viação de que foi o exclusivo responsável, o dano não patrimonial dela (cônjuge) não está excluído do âmbito do seguro obrigatório, designadamente do art.7º nº1 DL nº 522/85 de 31/12 (vigente à data do acidente).

b) Trata-se de um dano autónomo e próprio da Autora mulher, por violação ilícita do direito de outrem – o direito à sexualidade conjugal enquanto direito de personalidade - e, por isso, o dano é directo, causado indirectamente pelo acidente, da exclusiva responsabilidade do marido, tratando-se de uma situação de hetero-responsabilidade, baseada nas normas dos arts.483 nº1, 496 nº1 e 70 do CC.

c) O problema do nexo de causalidade no âmbito da responsabilidade civil deve colocar-se, desde logo, ao nível da conduta/evento, pois o comportamento (facto voluntário), jurídica e socialmente relevante, abrange não só a conduta, mas também o resultado, sendo designado por “ duplo nexo de causalidade “, ao incidir sobre as duas etapas do processo de responsabilização: ao nível da ligação entre conduta/evento e do facto/dano, embora assentes no mesmo critério.

d) A teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa (art.563 do CC)  não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, admitindo não só a ocorrência de outros factos condicionantes, como ainda a chamada causalidade indirecta, na qual é suficiente que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano.
e) Actualmente há uma preocupação superadora da tradicional categoria de “ dano moral “, ampliando o seu espectro, de molde a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento, visando-se, assim, erigir um novo modelo centralizado no “dano pessoal” correspondendo ao “dano ao projecto de vida”, como núcleo do “dano existencial”.
f) Esta concepção é a que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral.
g) Comprovando-se que o casamento perdura há vários anos, que a relação entre ambos os cônjuges sempre foi cheia de afecto e amor e que a privação dos seus desejos sexuais causa à Autora mulher profunda angústia, tristeza e sofrimento permanente, provocando desgosto e mal-estar, revela-se adequado quantificar o dano não patrimonial no valor de € 30.000,00.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar procedente a apelação e, revogando a sentença, condenar a Ré a pagar à Autora M... a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), a título de danos não patrimoniais.

2)

            Condenar a Ré nas custas da apelação, sendo as da 1ª instância na proporção do decaimento, entre Autora e Ré.

            Coimbra, 20 de Outubro de 2015.


( Jorge Arcanjo )

( Manuel Capelo )

( Falcão de Magalhães )