Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1749/07.2TBAVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: LETRA DE CÂMBIO
PRESCRIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 03/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – OVAR – JUÍZO DE EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 46.º DO CPC; ARTIGO 70.º DA LULL; ARTIGO 458.º DO CC
Sumário: 1. A letra prescrita vale como título executivo do artigo 46.º, n.º 1, c), do CPC, desde que o exequente invoque a relação jurídica subjacente e esta não constitua um negócio jurídico formal.

2. Havendo oposição à execução, é o exequente que tem que provar todos os factos constitutivos do direito alegado/executado.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório…

A...e B..., C...e D... (estes três últimos na qualidade de herdeiros e em representação de E..., já falecido), todos com sinais dos autos, por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhes moveu “F..., Lda”, com sede em ..., para haver deles a quantia de 162.753,99 € (de capital e juros vencidos) e juros vincendos – dizendo que “detém título executivo, como quirógrafo de confissão de dívida, uma letra de câmbio”, que se “reporta a diversos fornecimentos de venda de frutas da exequente aos executados – deduziram, separadamente, oposição, alegando o executado A...– aqui único recorrente – em síntese o seguinte:

Que estando a letra – cuja subscrição, no lugar do aceite, implicitamente confessa – “dada” à execução prescrita, para a mesma poder valer como título executivo, deveria a exequente ter alegado a “causa debendi”, isto é, a origem das relações comerciais, atenta a referência a “relações comerciais” constante da letra; acrescentando que jamais teve relações comerciais com a exequente como pessoa singular e que as relações com ela sempre ocorreram como sócio da empresa “ G..., Lda”, razão por que, enquanto pessoa singular, nada deve à exequente.

Contestou a exequente, alegando que está a invocar a letra exequenda justamente como mero “quirógrafo de confissão de dívida” e que a relação fundamental não prescreveu. Mais referiu, a propósito da relação fundamental, que a “ G..., Lda.” emitiu vários cheques sem provisão a seu favor e que, confrontados com tal situação, os seus sócios – o executado A...e o falecido E... – aceitaram a letra dos autos, com o que assumiram a dívida daquela, concluindo, assim, que a dívida dos autos deriva de fornecimentos de frutas à dita “ G...”.

Conclui pois pela improcedência da oposição deduzida.

Foram, em ambos os autos de oposição, proferidos despachos saneadores e dispensadas a fixação da base instrutória e a selecção dos factos assentes (nos termos dos art. 787º, nº 1 e 2, in fine, e 817º, nº 2, do CPC)
Entretanto, nos termos e com os fundamentos constantes do despacho proferido a fls. 108/109, foi determinada a apensação do apenso “B” (em que é oponente o aqui recorrente A...) ao apenso “A” (em que são oponentes B..., C...e D...).

E, instruído o processo, foi designado dia para julgamento, conjunto, de ambas as oposições.

No início da audiência, o executado/recorrente efectuou requerimento em que sustentou que “a exequente na sua contestação ampliou a causa de pedir”, que “não deve ser admitida”. Pronunciando-se sobre tal requerimento, o exequente disse: “Não existe, ao contrário do alegado, qualquer alteração ou ampliação da causa de pedir (…). A causa de pedir destes autos está plasmada na letra junta como título executivo e essa não foi nem pode ser alterada, uma vez que se refere a fornecimento de produtos frutícolas. Na sua oposição, os executados procuram elidir a presunção da existência da relação fundamental subjacente ao título, nos termos do art. 485.º do C. Civil, sendo que na contestação à oposição a exequente demonstrou, caso dúvida existisse, por que razão é que a letra juntas aos auto foi emitida”. Tendo, a tal propósito, sido proferido despacho, em que se considerou não se haver “procedido na contestação à oposição do executado A...a qualquer alteração ou ampliação da causa de pedir, motivo por que fica prejudicada a necessidade de conhecer do ora requerido pelo executado A...”.

Prosseguindo-se na audiência, considerou a Ex.ma Juíza que havia acordo sobre todos os factos relevantes e, por isso, que “nenhuma prova importará produzir”; ao que o exequente objectou/requereu que havia a apurar se “os aceitantes da letra assumiram pessoalmente, em virtude do aceite, a dívida resultante de cheques devolvidos (…)”; o que foi indeferido pela Ex.ma Juíza, passando-se de imediato às alegações.

Encerrada a audiência, a Mm.ª Juíza proferiu uma única sentença, em que julgou ambas as oposições totalmente improcedentes, determinando o prosseguimento da acção executiva.

Apenas o executado/oponente A..., inconformado com tal decisão, interpôs recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue a sua oposição procedente.

Termina a sua alegação com as seguintes conclusões:

1 — Uma vez prescrita a obrigação cartular constante da letra dada à execução, nos termos do art. 70° da L.U.L.L., não poderá tal título de crédito valer como título executivo para os efeitos da al. d) do art. 46° do CPC/95, pelas razões indicadas no item 7 a) supra;

2 — O exequente estruturou o seu requerimento executivo no que refere à letra dada à execução, com mero apelo aos puros princípios da abstracção e liberalidade, sem qualquer estrutura fáctica, usando termos literais equívocos na letra e no requerimento executivo e como tal o documento não pode consubstanciar um reconhecimento de dívida por parte do executado, nos termos do art. 458° do CC, para valer como título executivo;

3 - Os executados assinaram a letra de câmbio como pessoas singulares desacompanhados da menção de sócios gerentes e, por isso, não são responsáveis pelos fornecimentos de frutas à sociedade “ G...”, violando-se o disposto no art. 260.º do CSC;

4 — Não foi alegado no requerimento executivo que o executado assinou a letra como aceitante e avalista para garantir os pagamentos fornecidos pela exequente à “ G..., Lda.

5 — A inexactidão dos fundamentos com a decisão configura um erro de julgamento, mas se for entendido que existe contradição dos fundamentos com a decisão, na medida que defendendo a Meritíssima apoiada na Jurisprudência dominante que “um aceite vincule a sociedade, necessário se torna que os seus gerentes assinem o título no lugar respectivo com a indicação dessa qualidade”, e decidiu que tendo sido provados que os executados são sócios e só nessa qualidade aceitaram a letra, mas sem a indicação da qualidade de sócios gerentes, são responsáveis pelo cumprimento do pagamento, constitui uma nulidade nos termos do a al. c) do art. 668° do CPC;

5 — A Meritíssima não distinguiu que os executados (apesar de sócios da sociedade), ao assinarem a letra, fizeram-no em nome individual e não na sua qualidade de sócios gerentes.

Pelo exposto - e pelo que for doutamente suprido por Vossas Excelências - deverá ser concedido provimento à presente apelação

A exequente não apresentou qualquer contra-alegação.

Cumpridos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

*


II – Fundamentação de Facto

Os factos – logicamente alinhados e com as correcções e acrescentos decorrentes do “exame crítico” imposto pelos art. 659.º, n.º 3, e 713.º, n.º 2, ambos do CPC – são os seguintes:

A) A exequente é portadora da letra junta a fls. 18 dos autos de execução, letra na importância de 17.322.340$00, com a data de emissão de 25/03/98 e de vencimento de 25/03/99, em que o sacador é a exequente e onde está identificado como único sacado o aqui executado A...; letra essa que se encontra assinada, transversalmente, por baixo da termo “aceite” (previamente escrito no “impresso” utilizado), no canto esquerdo do rosto da letra, quer pelo executado A...quer pelo falecido E...;

B) Letra que foi emitida na sequência de fornecimentos de fruta, feitos pela exequente à sociedade “ G..., Lda”;

C) No requerimento executivo, no “campo” reservado aos factos, a exequente escreveu:

“ (…)

1. A exequente detém título executivo, como quirógrafo de confissão de dívida, uma letra de câmbio, no valor de 17.322.304$00;

2. Da letra consta, como fonte de débito, transacções comerciais;

3. O referido título reporta-se a diversos fornecimentos de venda de frutas da exequente aos executados.

(…) ”

D) O supra referido E... faleceu em 05.03.2001.

E) O “de cujus” deixou como herdeiros B..., com quem era casado no regime de comunhão geral de bens, e dois filhos, o D... e o C....

F) O falecido E... e o executado A...eram sócios da sociedade “ G..., Lda”.


*

*


III – Fundamentação de Direito

As questões jurídicas não têm que ser necessariamente complexas; e, não o sendo, as suas soluções podem ser, sem que tal signifique “menor valia” jurídica, simples e lineares.

Vem isto a propósito da questão – central nos autos e no recurso – de saber se as letras, as livranças ou os cheques, prescrita a acção cambiária, podem constituir e em que termos, enquanto documentos particulares, títulos executivos[1].

Questão esta provocada – ou, pelo menos, amplificada – pela alteração que a reforma processual de 95/96 trouxe ao art. 46º do CPC[2].

Questão que no caso se reconduz à seguinte pergunta:

Estando o direito cambiário emergente da letra prescrito, por a execução não haver sido intentada no prazo de 3 anos referido no art. 70.º da LULL, tem ainda assim tal letra virtualidades para se constituir como título executivo e para, com base nela, poder ser instaurada uma execução? Ou, perguntado doutro modo, perdida a acção cambiária, pode a letra ser considerada título executivo à luz do art. 46º, n.º 1, al. c) do CPC, agora como simples quirógrafo – enquanto documento particular, assinado pelo devedor, desprovido das características que são específicas e próprias daquele título de crédito?
Questão em que, fazendo a narrativa, se desenharam, em tese, três respostas.
Uma 1.ª, de sentido absolutamente negativo, dizendo que a letra prescrita não cabe no referido art. 46.º, n.º 1, c), do CPC.
Uma 2.ª, de sentido relativamente positivo, dizendo que a letra prescrita vale como título executivo do art. 46.º, n.º 1, c), do CPC, desde que o exequente invoque a relação jurídica subjacente e esta não constitua um negócio jurídico formal.
Uma 3.ª, de sentido absolutamente positivo, defendendo que a letra prescrita vale sempre como título executivo do art. 46.º, n.º 1, c), do CPC, mesmo que o exequente não haja invocado a relação subjacente.
Questão em que, após alguma polémica e controvérsia, fez vencimento doutrinal e jurisprudencial a 2.ª resposta[3], podendo, em síntese, afirmar-se que, depois de prescrita a obrigação cambiária incorporada na letra, esta pode continuar a valer como título executivo, agora na veste de documento particular assinado pelo devedor, no quadro das relações credor originário/devedor originário e para execução da obrigação fundamental (subjacente); ponto é que, neste caso, o exequente alegue no requerimento executivo (não na contestação à oposição) aquela obrigação (obrigação causal) e que esta não decorra dum negócio jurídico formal[4].

Resposta este que, embora dominante, não encerra a polémica; dando azo a nova polémica que, a jusante, agora se começa a colocar.

Efectivamente, cientes da “resposta” que fez vencimento, os exequentes, portadores de títulos cambiários prescritos, passaram a invocar no requerimento executivo a relação/obrigação subjacente.

Porém, em face do conteúdo de tal resposta dominante[5], ficam-se normalmente por uma invocação vaga e genérica da relação/obrigação subjacente, não indo ao detalhe da concreta e precisa alegação da relação/obrigação subjacente.

É exactamente o caso dos autos.

Como consta da alínea C) dos factos provados, o exequente, ao “preencher” o campo do requerimento executivo destinado à exposição dos factos, alegou que “detém título executivo, como quirógrafo de confissão de dívida, uma letra de câmbio, no valor de 17.322.304$00” e que “o referido título reporta-se a diversos fornecimentos de venda de frutas”; e por aqui se ficou.

Ora, da “resposta” jurisprudencial que fez vencimento, resulta que a causa de pedir da execução – em que o título “dado” é uma letra prescrita – é a relação subjacente, causal, existente entre exequente e executado(s), titulada no documento particular que a letra é; e não que a causa de pedir seja a relação abstracta e autónoma do aceite, do endosso ou do aval[6].

Mas também resulta, na medida em que tal resposta se opôs e “venceu” a tese da equiparação (dos títulos cambiários prescritos) ao reconhecimento de dívida do art. 458.º do C. Civil, que os títulos cambiários prescritos – ou, mais exactamente, o que no requerimento executivo tem que ser invocado/alegado para poderem ser títulos executivos – não beneficiam da inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental (inversão que o art. 458.º do C. Civil concede à promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida[7]).

Efectivamente, entendeu-se, na “resposta” que fez vencimento, que o título cambiário, enquanto documento particular assinado pelo devedor, não cumprindo necessária e forçosamente a função de reconhecimento duma dívida, não pode ver-lhe aplicado o art. 458.º do C. Civil; o que significa (em “oposição” à tese do reconhecimento de dívida) que não é o devedor que, como acontece com o reconhecimento de dívida, tem que fazer prova do contrário, isto é, numa execução em que o título seja integrado por uma letra prescrita, não é o devedor, para se eximir à obrigação, que tem que provar que a obrigação não tem causa[8].

A “resposta” que fez vencimento permite aos portadores de títulos cambiários prescritos, desde que invoquem no requerimento executivo a relação/obrigação subjacente, recorrer desde logo à acção executiva, porém, havendo oposição e negando o executado a existência da relação subjacente, somos como que devolvidos à “estaca zero” em termos de definição do direito, uma vez que, dizendo-se que o exequente não goza da presunção do art. 458.º do C. Civil, é ele que, de acordo com os princípios gerais (342.º, n.º 1, do C. Civil), tem que provar os factos constitutivos do direito alegado/executado.

Enfim, a resposta que fez vencimento redundará, na maior parte dos casos, numa “mão cheia de nada”; num “ambiente” processual – de que os autos constituem um bom exemplo – algo desfavorável.

É que, é bom de ver, os exequentes só irão conseguir provar aquilo que, previamente, hajam alegado.

O que significa – é este o ponto, insiste-se – que, caso se tenham ficado por uma invocação/alegação vaga e genérica da relação/obrigação subjacente, poderão já não estar a tempo para a corrigir e completar.

Pelo seguinte:

A oposição à execução segue, “sem mais articulados, os termos do processo sumário” (cfr. 817.º, n.º 2, do CPC); o que significa, não admitindo réplica a oposição à execução, que a causa de pedir (na falta de acordo) não pode ser ampliada ou alterada (cfr. 273.º do CPC).

Isto dito, revertendo ao caso dos autos e do recurso:

Assumiu a exequente ab initio a prescrição do título cambiário de que era portadora; e, neste contexto, disse mesmo que o invocava como quirógrafo.

Porém, talvez por o considerar, como também referiu, como uma “confissão de dívida”, limitou-se a acrescentar/alegar que “o referido título se reporta a diversos fornecimentos de venda de frutas”.

Em face de tão parca alegação, uma vez deduzida a oposição e nela negada a obrigação fundamental, logo ficou delineado o destino da oposição e da execução.

É discutível, concede-se, que o exequente possa usar a contestação à oposição para corrigir falhas alegatórias do requerimento executivo, porém, é de todo indiscutível que não pode usar a contestação à oposição para ampliar/alterar a causa de pedir.

E foi isso que a exequente fez – o executado/recorrente tinha pois razão no requerimento feito em audiência e supra relatado – ao alegar, na contestação à oposição, uma assunção de dívida por parte dos executados.

Efectivamente, como consta da alínea C) dos factos provados, a exequente havia alegado, no requerimento executivo, que a letra de câmbio tinha “como fonte de débito transacções comerciais”, reportando-a “a diversos fornecimentos de venda de frutas da exequente aos executados; todavia, na contestação à oposição, veio aditar novos factos, uma vez que começou por admitir, infirmando o referido no requerimento executivo, que a venda de frutas afinal tinha sido à “G..., Lda” (que emitiu vários cheques sem provisão), razão pela qual, segundo a exequente, “confrontados com tal situação, os seus sócios – o executado A...e o falecido E... – aceitaram a letra dos autos, com o que assumiram a dívida daquela”.

A adição de tais novos factos (sobre a assunção da dívida dum terceiro devedor) configura – senão mesmo uma alteração da causa de pedir – uma ampliação da causa de pedir; inadmissível numa contestação a uma oposição à execução.

Era esta – e não a que consta da acta supra relatada – a “boa” razão para tal alegação não ser levada, como não foi, à base instrutória; para além de, em boa verdade, em termos factuais, a alegação sobre a assunção de dívida (dos executados A...e do falecido E...) ser bastante parca e insuficiente.

Assim – em face da inadmissibilidade da ampliação/alteração da causa de pedir – a causa de pedir da presente execução, em linha com a “resposta” que fez vencimento, é a relação subjacente, causal, existente entre exequente e executado(s), alegada/invocada no requerimento executivo; ou seja, os “diversos fornecimentos de venda de frutas da exequente aos executados.

O que significa, encurtando razões, que foi a própria exequente que confessou a “inexistência” de tal relação subjacente/causal, ao admitir, na contestação à oposição, como já se referiu, que a venda de frutas afinal tinha sido à “ G..., Lda”, isto é, que não houve, ao contrário do que havia alegado/invocado no requerimento executivo, qualquer venda de frutas à pessoa dos executados.

É quanto basta para julgar procedente o recuso.

A sentença recorrida, após aludir aos termos em que um título cambiário prescrito pode constituir título executivo e após dizer que “como quirógrafo (…) se mostram reunidos os requisitos (…) para a letra se considerar (…) título executivo”, equivoca-se e – negando tudo o que acabara de afirmar, isto é, que a letra era uma mero quirógrafo – passou a analisar juridicamente as questões da oposição dos executados à luz das regras cartulares, afirmando a dado passo que, “sendo válidos os aceites[9] prestados pelo executados (…), donde resulta validamente assumida a obrigação de pagamento da quantia mencionada na letra, e não resultando dos autos quaisquer factos que permitam afastar tal obrigação, forçoso se torna concluir conforme pedido pela exequente e julgar improcedentes as oposições objecto da presente decisão, declarando a responsabilidade os executados, nestes autos (apenso “A”) e nos que constituem o apenso “B”, pelo pagamento da quantia exequenda”.

Ora, é este o ponto, passe o paradoxo, a “letra deixou de ser letra”; ou melhor, não foi invocada como letra tout court (senão estaria prescrita).

A causa de pedir da execução não é a relação abstracta e autónoma do aceite; mas, refere-se mais uma vez, a relação subjacente/causal existente entre exequente e executado(s).

Enfim – voltando ao que dissemos no princípio – as questões jurídicas não têm que ser necessariamente complexas; e, não o sendo, as soluções podem/devem manter-se no mesmo nível.

A “resposta” que fez vencimento, como lhe temos vindo a chamar, complicou, salvo o devido o respeito, a questão.

Tanto mais que, antevemos, agora, em sede de ónus da prova, o surgimento de respostas dissonantes.

A que sustentámos ao longo deste acórdão, segundo a qual, se não se aplica o art. 458.º, n.º 1, do C. Civil, então, havendo oposição à execução, é o exequente que tem que provar todos os factos constitutivo do direito alegado/executado.

Uma 2.ª, a sustentar que, se há título executivo, se há base para a execução, é por que se admite estar perante um documento/título que já contém algum acertamento, pelo que, nesta linha de raciocínio, alguma vantagem, alguma presunção (de existência de direito) terá que ser conferida ao portador de tal “tipo” de título executivo.
E, finalmente, para que não se diga que, então, se cai na 3.ª resposta supra referida – de sentido absolutamente positivo, segundo a qual a letra prescrita vale sempre como título executivo do art. 46.º, n.º 1, c), do CPC, mesmo que o exequente não haja invocado a relação subjacente – será ainda possível sustentar que ao exequente basta provar a existência (genérica) duma relação causal com o executado, cumprindo a este demonstrar que tal relação se encontra extinta ou não atinge o “quantum” peticionado na execução.
Enfim, tudo isto para dizer e demonstrar, com o devido respeito e salvo melhor opinião, que a problemática merece ser repensada, escolhendo-se porventura um caminho que seja, do princípio ao fim, mais linear e “amigável”.
De todo o modo – importa referir e salientar – no nosso caso, seja qual for a solução que venha a fazer vencimento, em termos de ónus da prova, e sustentando-se mesmo a 3.º “resposta” inicialmente referida, sempre a solução dos autos e do recurso será a mesma.
Ficou provado – por confissão da exequente, insiste-se – que a relação subjacente/causal invocada foi com uma pessoa jurídica (com uma sociedade) diferente da pessoa singular dos executados; logo, seja por o exequente não haver provado a relação subjacente/causal invocada, seja por a presunção (seja ela qual for) que deva ser conferida ao “titulo” haver sido elidida, sempre o recurso teria, como vai ser o caso, que ser julgado procedente.
Procedência do recurso – é a última nota – que é extensível aos executados não recorrentes.

Como vimos referindo ad nauseam, a causa de pedir da presente execução não é a relação abstracta e autónoma dos “aceites”, mas a relação subjacente/causal existente entre exequente e executados.
Ora, com respeito a tal relação subjacente/causal, são os executados apresentados e demandados como “devedores solidários”, pelo que, em face do que se provou, da “inexistência” da relação subjacente/causal invocada, estamos perante fundamentos que dizem respeito do mesmo modo a todos os executados (recorrente e não recorrentes), pelo que, em síntese, a procedência do recurso aproveita a todos (cfr. art. 683.º, n.º 2, c), do CPC), mesmo aos executados não recorrentes.


Em conclusão, o recurso procede e a respectiva procedência é extensível a todos os executados (incluindo os não recorrentes).


*


IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e, em consequência, julga-se extinta a execução em relação a todos os executados (recorrente e não recorrentes).

Custas, em ambas as instâncias, pela exequente/apelada.


*

Barateiro Martins (Relator)
Arlindo Oliveira
Emídio Santos


[1] E vale também como auto-crítica, uma vez que temos aderido à tese que sobre o assunto vem fazendo vencimento.

[2] Ao retirar da respectiva alínea c) a explícita referência às letras, livranças, cheques, extractos de factura, vales, facturas conferidas, como documentos particulares executivos, para nela passar a constar que à execução podem servir de base “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artº 805º (…)”.
[3] Neste sentido, na doutrina,, J. P. Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum, p. 70 a 74, e Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 7ª ed., p. 34 a 36; na jurisprudência: Ac. do STJ, de 29 de Janeiro de 2002, CJ STJ, Ano X, Tomo I. p. 64; Ac. do STJ, de 16 de Março de 2004, www.dgsi.pt.

[4] Resposta corroborada, em certa medida, com o DL 38/2003, que veio consagrar, legalmente, no art. 810, nº 3, al. b), do CPC, tal resposta “dominante”, ao impor que, no requerimento executivo, se exponham, ainda que sucintamente, “os factos que fundamentam o pedido, quando estes não constem do título executivo”.
[5] Em que apenas se alude à “invocação” da relação jurídica subjacente.

[6] E, nesta linha de raciocínio, pode dizer-se que, num caso como os dos autos, quando o(s) executado(s) invoca a prescrição cambiária, ataca uma causa de pedir que não está em causa, que não foi sequer invocada.

[7] O art. 458.º do C. Civil – a propósito da promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida – embora não consagre o princípio do negócio abstracto, estabelece a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental; podendo/devendo esclarecer-se que tal distinção – entre a não consagração do princípio do negócio abstracto e a mera inversão do ónus da prova – apenas acaba por ter relevo nas relações mediatas; uma vez que, todos o sabemos, nas relações imediatas, mesmo nos negócios abstractos, é possível discutir a relação causal/fundamental.

[8] Ou, mais exactamente, como acontece na presunção do art. 458.º do C. Civil, que tem que provar que só há causa para uma parte da obrigação ou que a obrigação não tem qualquer causa ou, ainda, a partir da relação fundamental/causal, que demonstrar a invalidade formal da obrigação (da relação fundamental/causal).

[9] É em todo o caso questionável que a assinatura do falecido E... deva ser, face à literalidade da letra, configurável como aceite.

Traduzindo-se “por definição” o aceite – uma vez que é o negócio jurídico cambiário, de natureza unilateral e abstracta, pelo qual o sacado aceita a ordem de pagamento que lhe foi dirigida pelo sacador e se obriga a pagar a letra no vencimento ao tomador ou à ordem deste (cfr. art. 21.º e ss da LULL) – na assinatura do sacado, não é configurável como aceite a assinatura de alguém, como falecido E..., que não está identificada na letra como sacado.

Evidentemente, se alguém coloca a sua assinatura numa letra é por que a algum título se quer obrigar; a sua assinatura algum concreto e exacto relevo jurídico-cambiário há-de ter; algum concreto e exacto negócio cambiário há-de configurar.

No caso da assinatura do falecido E..., em princípio, é um aval; uma vez que este se exprime – além de pela declaração “bom para aval” ou equivalente expressamente escrita e assinada no verso da letra ou em folha anexa (art. 31.º, n.º 1 e 2, da LULL) – pela mera assinatura aposta no rosto ou face anterior do título por quem não seja sacador ou sacado (cfr. art. 31.º, n.º 3, da LULL).

É o chamado aval “em branco” – aval que, sendo o negócio jurídico-cambiário através do qual uma pessoa garante o pagamento da letra por parte de um dos seus subscritores, deve indicar a pessoa por quem se dá o aval – presumindo a lei, para o caso de tal indicação ser omitida, que o aval é dado ao sacador (“na falta da indicação, entender-se-á que o aval é dado pelo sacador” – assim o dispõe o art. 31.º, n.º 4 da LULL).

Daí que, pela mera literalidade da letra – nada invocando a exequente para, no domínio das relações imediatas, infirmar o sentido de tal presunção – até propendamos para considerar o falecido E... como avalista da exequente, o que significa, em síntese, que a exequente, em termos cambiários, até não tem qualquer direito sobre os herdeiros do falecido E... (por este ser, em termos “literais”, avalista da própria exequente).