Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
239/08.0GTSTR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
ERRO SOBRE A ILICITUDE
Data do Acordão: 05/05/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 17º CP E 3.º N.º1 DO DECRETO-LEI N.º 2/98, DE 3/1
Sumário: 1. Tendo o arguido um documento que o habilitava a conduzir o ciclomotor em causa por tempo indeterminado, não lhe era exigível que se fosse informar posteriormente sobre a manutenção dos requisitos da licença, os quais foram alterados legislativamente, sem a prévia existência de qualquer campanha publicitária relevante.
2. A falta de consciência da ilicitude não é censurável sempre que o engano ou erro de consciência ética que se exprime no facto não se fundamente em qualidade desvaliosa e juridicamente censurável da personalidade do arguido.
3. O condutor que actua convicto da legalidade da sua condução age sem consciência da ilicitude da sua conduta, sem culpa.
Decisão Texto Integral: I - Relatório

J..., residente na G…, A..., foi submetido a julgamento no âmbito do processo comum singular n.º 239/08.0GTSTR, do Tribunal Judicial de A... e por sentença publicada a 14-10-2009 (fls. 44 a 55), veio a ser absolvido da imputada prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível nos termos do disposto no art. 3.º n.º1 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
2. O Ministério Público interpôs recurso de tal sentença - requerimento de 15 de Outubro de 2009 (fls. 58 a 66) -, pedindo a sua revogação e a condenação do arguido com pena especialmente atenuada.
Extrai da motivação do recurso as seguintes [transcritas] conclusões:
A. Na douta sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:
"a) No dia 23 de Julho de 2008, cerca das 17h20m J... conduziu o veículo ciclomotor de matrícula XX-XX-XX na Estrada n°361, Rotunda do Intermarché, A..., sem possuir licença de condução ou qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir o mesmo na via pública."
"b) Naquele circunstancialismo de tempo e lugar, J... possuía a licença de condução de velocípedes a motor com o n" 2492, emitida pela Câmara Municipal de A..."
B. Resultou não provado que:
"I. Naquele circunstancialismo de tempo e lugar, J... sabia que conduzia o mencionado ciclomotor sem ser portador de licença de condução ou qualquer outro título que o habilitasse à condução do mesmo;
II. J... quis agir como descrito, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei".
C. Concordamos, inteiramente, com a factualidade dada como provada e não provada, na douta sentença, concordando, também, inteiramente, com a sua motivação, a qual não colocamos em causa.

Porém, discordamos, das conclusões jurídico-legais retiradas das mesmas.

D. Á data da prática dos factos, o título que o arguido possuía não era válido para a condução do veículo ciclomotor. Porém, este estava convicto que se encontrava habilitado, encontrava-se, assim, em erro sobre a ilicitude do facto.

E. No caso concreto, estando o arguido a conduzir um veículo a motor, em via pública, sabia que deveria informar-se sobre a necessidade de estar habilitado para o conduzir. O arguido estava consciente de que a condução de veículos necessita de determinados requisitos legais, apenas julgou, sem se informar do contrário, que os possuía.
No nosso entender, tal erro é censurável ao arguido.

F. Realça-se que, na douta sentença recorrida também se considerou que tal erro era censurável "A um condutor nas condições do arguido impunha-se tal conhecimento e, não o tendo, tal é censurável. A conduta do arguido - ao não se certificar dos requisitos para a condução - é assim, censurável".

G. Ora, concluindo-se que a conduta é censurável, tem aplicação o disposto no n°2 do artigo 17o do Código Penal, que determina que o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo.

H. No nosso entender, o erro afasta o dolo, ou seja, a intenção de agir em desconformidade com a lei, ou de, pelo menos, se conformar com essa realização.

I. Porém, a lei determina que, uma vez afastado o dolo, se a conduta for censurável, ou seja, reprovável, sendo exigível que o arguido agisse de outra forma, o facto seja punido como doloso.

J. Discordamos, assim, da sentença recorrida que, considerou existir erro, ou seja, estar afastado o dolo. Considerou que tal erro é censurável e, de seguida, volta a avaliar o dolo, considerando a conduta negligente.

K. Na nossa perspectiva a lei penal considerou que o erro censurável deve ser punido, ainda que com pena especialmente atenuada.

L. Ao absolver o arguido, por considerar que o erro é censurável e, daí não retirar as devidas consequências legais, o Tribunal a quo, salvo melhor opinião, decidiu de forma contrária à lei.

Pelo exposto, entendemos que o Tribunal violou o disposto pelo artigo 17° n°2 do C.P., pelo que deve a sentença ser revogada, sendo o arguido condenado, com pena especialmente atenuada, nos termos do disposto pelos artigos 17o n°2 e 72° do CP.

Desta forma se fazendo JUSTIÇA.”
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O arguido não respondeu.
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Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu o seguinte parecer: Por sentença de 14.Out.2008, proferida no âmbito do processo comum singular em epígrafe, pelo 3o juízo criminal do Tribunal Judicial de A... (secção única), o arguido J... foi absolvido da autoria de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3o n° 1, do Decreto-Lei n° 2/98, de 3 de Janeiro (flas 44 a 55);
1. Inconformado com aquela decisão dela veio interpor recurso o MINISTÉRIO PÚBLICO, em 15.Out.2009, para este Tribunal da Relação de Coimbra (fls 58 e 59 a 66);
2. O arguido não apresentou resposta à motivação de recurso;
3. O recurso foi admitido por despacho de 19.Jan.2010, tendo sido mandado subir, imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (fls 71);
4. A decisão é recorrível (artº 399° e 400°, este a contrario), o recurso foi interposto por quem tem legitimidade [art° 401°, n° 1, alínea a)] e tempestivamente [art° 411°, n° 1, alínea b)], e mostram-se correctamente fixados o momento [art° 407° n° 2, alínea a)] e forma de subida do recurso (406° n° 1) devendo, todavia, ser fixado ao mesmo recurso o efeito não suspensivo [art°s 408° a contrario e 414° n° 3, ambos do CPP];
5. Devem, assim, os autos prosseguir para decisão em CONFERÊNCIA [artº 419° nº 3, alínea c) do CPP].
-II-

Quanto ao objecto do recurso:

Visto (art. 416° 1 e 417° n° 1 do CPP)”

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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por aí dever ser o recurso julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

II – Fundamentação

1. Questão prévia – efeito do recurso.
No despacho de admissão do recurso, foi-lhe atribuído efeito suspensivo (fls 71), contra o qual se insurge o Exmº Procurador-Geral Adjunto, entendendo que deve ser fixado ao recurso o efeito não suspensivo nos termos dos arts 408º a contrario e 414º, nº 3 ambos do CPP.
Vejamos.
De acordo com a previsão da al. a) do nº 1, do art 408º, do CPP, “ Têm efeito suspensivo do processo os recursos interpostos de decisões finais condenatórias, sem prejuízo do disposto no artº 214”.
Como se retira da previsão do referido art 408º, “a contrario”, o recurso interposto pelo MP da sentença absolutória proferida no âmbito dos presentes autos não tem o efeito que o tribunal a quo lhe atribuiu (suspensivo) mas sim não suspensivo.
Em consonância, fixa-se ao recurso o predito efeito (não suspensivo).
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2. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

No caso, os poderes cognitivos deste Tribunal ad quem, sem embargo do conhecimento oficioso dos vícios elencados no n.° 2 do art. 410, do CPP, conformam-se apenas à revisão da matéria de direito, visto que foi o recorrente MP que de forma expressa declarou concordar inteiramente com a factualidade dada como provada e não provada na sentença e com a respectiva motivação, assim se demarcando o objecto do recurso (art. 412 n.° 1, do CPP).
Nestes termos, nesta instância, importa examinar as questões referentes:
a) Se a sentença enferma de algum dos vícios do art. 410º, n.º 2 do CPP;
b) Se o arguido deve ser condenado, por censurabilidade da falta de consciência da ilicitude.

2. A decisão revidenda julgou provada e não provada a seguinte [transcrita] materialidade:
A)Factos provados:
1) No dia 23 de Julho de 2008, cerca das 17h20m, J... conduziu o ciclomotor de matrícula XX-XX-XX na Estrada n.º 361, Rotunda do Intermarché, A..., sem possuir licença de condução ou qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir o mesmo na via pública;
2) Naquele circunstancialismo de tempo e lugar, J... possuía a licença de condução de velocípedes a motor com o n.º 2492, emitida pela Câmara Municipal de A...;
3) J... agiu de forma livre e deliberada;
4) J... não tem antecedentes criminais;
5) J... encontra-se reformado, auferindo mensalmente uma pensão no valor de €591,00 (quinhentos e noventa e um euros);
6) J... vive com a esposa, que se encontra igualmente reformada e que aufere mensalmente uma pensão no valor de €133,00 (cento e trinta e três euros);
7) J... vive em casa própria;
8) J... tem o 4.º de escolaridade.

B) FACTOS NÃO PROVADOS
Nenhuns outros factos se provaram com interesse para a boa decisão da causa, designadamente e no essencial que:
I. Naquele circunstancialismo de tempo e lugar, J... sabia que conduzia o mencionado ciclomotor sem ser portador de licença de condução ou qualquer outro título que o habilitasse à condução do mesmo;
II. J... quis agir como descrito, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

C) O tribunal recorrido exarou na sentença a seguinte
MOTIVAÇÃO DE FACTO
O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente as declarações do arguido, a prova testemunhal e a prova documental produzida e examinada em audiência.
O critério de valoração da prova é o da livre apreciação, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, exceptuando o caso dos documentos autênticos, valorados de acordo com o preceituado no artigo 169.º do mesmo diploma legal.
A factualidade provada em 1 a 3 alicerçou-se nas declarações convictas, sinceras e credíveis do arguido, concatenadas com o teor do documento reproduzido a fls. 39 e dos autos de notícia de fls. 3 e de apreensão de fls. 4, cuja autenticidade e veracidade de conteúdo não só não foram fundadamente postas em causa, mas sobretudo foram corroboradas pelo depoimento isento e verosímil da testemunha B…, militar da Guarda Nacional Republicana que interceptou o arguido no exercício da condução e que elaborou os mencionados documentos.
A ausência de antecedentes criminais, factualidade provada em 4, resulta do teor do Certificado de Registo Criminal do arguido junto a fls. 35.
A factualidade provada em 5 a 8, respeitante à situação pessoal do arguido, alicerçou-se nas suas declarações, que mereceram credibilidade face à notória espontaneidade e sinceridade que demonstrou ao responder a todas as perguntas.
Os factos não provados alicerçaram-se nas declarações francas, convictas e credíveis do arguido, que admitiu conduzir o ciclomotor naquele circunstancialismo de tempo e lugar, referindo, porém, que desconhecia não estar habilitado uma vez que possuía licença de condução de velocípedes emitida pela Câmara Municipal de A... e que nunca ninguém lhe disse que tinha que a substituir, nem o mesmo se apercebeu de tal obrigatoriedade uma vez que esteve emigrado e, em consequência, ausente do país por um longo período. Mais se consideraram as declarações do militar da Guarda Nacional Republicana que o fiscalizou, B…, que confirmou tais declarações, afirmando que, na altura, o arguido manifestou estar surpreendido e alegou convictamente que pensava estar devidamente encartado.”

3. Na sentença recorrida foi efectuado o seguinte ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS:
1. O arguido foi acusado da prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
Atenta a matéria de facto apurada, cumpre proceder ao seu enquadramento jurídico-penal por forma a determinar se a conduta do arguido consubstancia uma efectiva negação dos valores ou bens jurídicos criminalmente tutelados por via dos crimes que lhe são imputados nestes autos.
2. Ao abrigo do preceituado no artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, comete o crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal “quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada”.
Das disposições conjugadas dos artigos 121.º a 125.º do Código da Estrada, a habilitação para conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada pode ser titulada, por um lado, por carta de condução, para condução de veículos automóveis e motociclos de cilindrada superior a 50 cm3, e, por outro lado, por licenças de condução, para a condução de motociclos de cilindrada não superior a 50 cm3 e outros veículos a motor que não seja veículos automóveis nem motociclos de cilindrada superior a 50 cm3.
Subjectivamente o referido tipo legal de crime exige uma conduta dolosa nos termos do artigo 14.º do Código Penal.
Caracterizado que foi, nos termos que antecedem, o tipo legal de crime em enfoque nestes autos, cumpre agora fazer a sua subsunção à factualidade apurada, de molde a indagar se o arguido praticou tal ilícito penal.
No caso vertente, tendo-se apurado que o arguido conduzia o veículo ciclomotor pela via pública e que o fazia sem estar habilitado com licença de condução mostram-se preenchidos os requisitos objectivos do crime de condução sem carta.
Sucede, porém, que o arguido não sabia que o fazia sem estar habilitado porquanto detinha a licença de condução de velocípedes a motor com o n.º 2492, emitida pela Câmara Municipal de A..., que em tempos o tinha permitido.
Efectivamente, importa chamar à colação o Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, que no seu artigo 132.º, n.º1 estatuía que o documento que titulava a habilitação para a condução de ciclomotores e motociclo de cilindrada não superior a 50 cm3 se designava licença de condução.
Sucede porém que, nos termos do artigo 47.º do Decreto-Lei n.º 209/98, de 15 de Julho – publicado na sequência da alteração ao Código da Estrada introduzida pelo mencionado Decreto-Lei n.º 2/98 e que regulamentou o regime jurídico da habilitação legal para conduzir veículos na via pública, estatuindo disposições transitórias – durante o prazo de um ano a contar da entrada em vigor do diploma (em 20 de Julho de 1998) os titulares de licença de condução de velocípedes com motor estavam habilitados a conduzir ciclomotores, podendo requerer a sua troca por licença de condução de ciclomotor na câmara municipal da sua área de residência.
Tal prazo foi depois prorrogado pelo Decreto-Lei n.º 315/99, de 11 de Agosto, que no seu artigo 4.º o estendeu até ao dia 30 de Junho de 2000.
Ora, face a tal alteração legislativa impõe-se concluir que, na altura da fiscalização, já o arguido não estava habilitado a conduzir o referido veículo por não ter renovado a licença. Sucede, porém, que o mesmo desconhecia a ilicitude do seu acto. Tal circunstância remete-nos para o problema do erro sobre a ilicitude, previsto no artigo 17.º do Código Penal, que, no caso vertente, é censurável pois não se compreende que um condutor com as condições do arguido desconheça que tinha que substituir a licença de condução que tinha por outra. A um condutor nas condições do arguido impunha-se-lhe tal conhecimento e, não o tendo, tal é censurável. A conduta do arguido – ao não se certificar dos requisitos para a condução – é assim censurável.
Senão vejamos.
O tipo de ilícito – primeiro degrau valorativo da doutrina do crime – tem por função dar a conhecer ao destinatário que determinada espécie de comportamento é proibida pelo ordenamento jurídico e é sempre constituído por uma vertente objectiva (os elementos descritivos do agente, da sua conduta e do seu circunstancialismo) e por uma vertente subjectiva: o dolo ou a negligência. Só da conjugação dos dois elementos ou vertentes (objectiva e subjectiva) pode resultar o juízo de contrariedade da acção à ordem jurídica, o mesmo é dizer, o juízo de ilicitude (cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal - Parte Geral” Tomo I, pág. 231).
O Código Penal não define o dolo do tipo, indicando, porém, no artigo 14.º, as formas que pode revestir (directo ou intencional, necessário e eventual).
No conceito desenvolvido pela doutrina, aquele comporta duas vertentes: a intelectual ou cognoscitiva, isto é, o conhecimento material dos elementos e circunstâncias do tipo legal, e a volitiva ou emocional, isto é, a vontade de adoptar a conduta, o querer adoptar a conduta, não obstante aquele conhecimento, mesmo tendo previsto o resultado criminoso como consequência necessária ou como consequência possível dessa conduta (cfr. M. Simas Santos e Leal Henriques, in Noções Elementares de Direito Penal, pág. 76).
Assim, o dolo do tipo não se basta com aquele conhecimento dos elementos típicos, mas exige simultaneamente “a verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização” (cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal - Parte Geral” Tomo I, pág. 349).
Este elemento volitivo pode traduzir-se em diferentes classes de dolo, consoante a direcção e força da vontade manifestada, podendo assumir-se aquele como directo, necessário ou eventual.
Quanto ao elemento intelectual do dolo, torna-se necessário, para que o dolo se afirme, que o agente conheça e represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo.
Pretende-se que o agente, ao actuar, “conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da sua consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do comportamento. Só quando a totalidade dos elementos do facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito e deve responder por uma atitude contrária ou indiferente ao bem jurídico lesado pela conduta. Por isso, numa palavra, o conhecimento da realização do tipo objectivo de ilícito constitui o sucedâneo indispensável para que nele se possa ancorar uma culpa dolosa e a punição do agente a esse título, com a consequência de que sempre que o agente não represente, ou represente erradamente, um qualquer dos elementos do tipo de ilícito objectivo, o dolo terá, desde logo, de ser negado” (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 334).
É o princípio da congruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo de ilícito doloso.
Adianta ainda o referido autor que “se o tipo de ilícito é o portador de um sentido de ilicitude, então compreende-se que a factualidade típica que o agente tem de representar não constitua nunca o agregado de “puros factos”, de “factos nus”, mas já de “factos valorados” em função daquele sentido de ilicitude…tornando-se indispensável a apreensão do seu significado correspondente ao tipo». Tal exigência deve respeitar não só aos elementos descritivos do tipo, mas também aos elementos normativos, «aqueles que só podem ser representados e pensados por referência a normas, jurídicas ou não jurídicas» (pág. 335).
Embora não se exigindo, quanto a estes, que o agente conheça, com toda a exactidão, a subsunção jurídica dos factos na lei que os prevê, sob pena de só o jurista conhecedor poder agir dolosamente – se o agente conhece o conteúdo do elemento mas desconhece a respectiva qualificação jurídica, há um erro de subsunção, que é absolutamente irrelevante para o dolo do tipo – o certo é que se mostra estritamente necessário que o agente tenha conhecimento dos elementos normativos, numa «apreensão do sentido ou significado correspondente, no essencial e segundo o nível próprio das representações do agente, ao resultado daquela subsunção ou, mais exactamente, da valoração respectiva” (cfr. Figueiredo Dias, in “O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal”, § 22, I, pág. 2).
Para além disso, casos há em que, para a afirmação do dolo do tipo se torna ainda indispensável que o agente tenha actuado com conhecimento da proibição legal.
Tal acontece quando “o tipo de ilícito objectivo abarca condutas cuja relevância axiológica é tão pouco significativa que o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem tanto pela matéria proibida, quando também pela proibição legal. Nestes casos, com efeito, seria contrária à experiência e à realidade da vida a afirmação de que o conhecimento da factualidade típica e do decurso do acontecimento orientam suficientemente a consciência ética do agente para o desvalor do ilícito” (cfr. autor e obra citados, § 20).
O artigo 16.º, n.º 1 do Código Penal, reconhecendo o erro sobre a proibição, afirma que a sua existência exclui o dolo, equiparando-o ao erro sobre a factualidade típica, quando o seu conhecimento “for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto”.
Embora com muita raridade se possa afirmar aquele erro sobre a proibição em direito penal – sendo muito mais usual no ilícito de mera ordenação social –, o certo é que existem casos de ilícito penal em que ele se pode verificar, por isso foi ele admitido pelo legislador.
Entre tais casos podem salientar-se, nomeadamente, certos crimes de perigo abstracto, «em que a conduta, em si mesma, divorciada da proibição, não orienta suficientemente a consciência ética do agente para o desvalor da ilicitude» (exemplo: crime de condução de veículo automóvel em estado de embriaguez - alcoolemia de 1,2 g/l), ou certas incriminações pertencentes ao direito penal secundário, nomeadamente no direito penal económico, «em que a relevância axiológica da conduta, se bem que existente, é de tal maneira ténue que também neste âmbito o conhecimento da proibição deve considerar-se razoavelmente indispensável para a orientação do agente para o desvalor da ilicitude» (cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal - Parte Geral” Tomo I, pág. 348).
Nestes casos, para a verificação do dolo do tipo exige-se o conhecimento da proibição legal e o erro respectivo exclui o dolo, devendo o agente ser punido, se isso for possível, a título de negligência.
Mas o dolo é ainda a expressão de uma atitude pessoal de contrariedade ou indiferença, perante o dever-ser jurídico-penal, sendo, nesta perspectiva, um elemento constitutivo do tipo de culpa dolosa.
O princípio da culpa constitui uma máxima fundamental do direito penal, do que deriva a exigência de que a aplicação de qualquer pena supõe sempre que o ilícito típico foi praticado com culpa, traduzindo-se esta numa censura dirigida ao agente pela prática do facto.
Ora, o tipo de culpa doloso verifica-se quando, perante um ilícito típico doloso, «se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas; se uma tal comprovação se não alcançar ou dever ser negada o facto só poderá eventualmente vir a ser punido a título de negligência» (idem, pág. 488).
Já longe vai o tempo em que a “ignorância da lei penal não eximia de responsabilidade criminal” (cfr. artigo 29.º do Código Penal de 1886), fundamentando a irrelevância da falta de consciência da ilicitude para a afirmação do dolo. Com a afirmação do princípio da culpa, o modo de ver o problema tinha necessariamente de ser diferente.
Apesar das divergências existentes na doutrina quanto aos efeitos da ausência daquela consciência do ilícito (teorias do dolo, estrita e limitada e teorias da culpa, estrita e limitada), o certo é que tal ausência deixou de ser irrelevante.
No direito penal português actual existem duas espécies de erro jurídico-penalmente relevante, com duas formas de relevância e diferentes efeitos sobre a responsabilidade do agente: uma exclui o dolo, ficando ressalvada a negligência nos termos gerais (artigo 16.º, do Código Penal); a outra, exclui a culpa, se for não censurável, constituindo causa de exclusão da culpa, mantendo-se a punição a título de dolo se for censurável, embora com pena especialmente atenuada (artigo 17.º, do Código Penal).
Em suma, segundo o nosso Código Penal, há três situações em que o erro exclui o dolo: quando verse sobre elementos de facto ou de direito, de um tipo de crime; quando verse sobre os pressupostos de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa; ou quando verse sobre proibições cujo conhecimento seria razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência do ilícito.
Acompanhando, mais uma vez, Figueiredo Dias (in “Direito Penal - Parte Geral” Tomo I, pág. 503), na conclusão: «o erro excluirá o dolo (a nível do tipo) sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito; diversamente, o erro fundamentará o dolo (da culpa) sempre que, detendo embora o agente todo o conhecimento razoavelmente indispensável àquela orientação, actua todavia em estado de erro sobre o carácter ilícito do facto. Neste último caso o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência-intencional), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores), revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger. Por outras palavras: no primeiro caso estamos perante uma deficiência da consciência psicológica, imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, revela uma atitude interna de específico da culpa negligente.
Diferentemente, no segundo caso estamos perante uma deficiência da própria consciência ética do agente, que lhe não permite apreender correctamente os valores jurídico-penais e que por isso, quando censurável, revela uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal e conforma paradigmaticamente o tipo específico da culpa dolosa.
É esta a concepção básica sobre o dolo do tipo, a consciência do ilícito e a culpa dolosa que está mesmo na base do regime constante dos artigos 16.º e 17.º”.
De uma ou de outra forma, aquele conhecimento tem de resultar directa ou indirectamente da matéria de facto provada.
Deveria, assim, da fundamentação de facto resultar matéria factual que permitisse dizer, que se verifica o elemento subjectivo do crime imputado ao arguido – o dolo directo.
Ora, olhando para aquela matéria, o que se constata é que resultou não provado que o arguido soubesse que conduzia o mencionado veículo sem ser portador de licença de condução ou qualquer outro título que o habilitasse à condução de veículos motorizados e que, não obstante, quis agir como descrito, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Há, por isso, uma “falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito”, pois o arguido era detentor de licença de condução de velocípedes emitida pela Câmara Municipal de A... que em tempos o habilitou a conduzir o ciclomotor em questão, emitida sem qualquer prazo de validade, e, segundo resulta da sentença, ele desconhecia que a licença já não fosse válida, pois nunca ninguém lhe disse que tinha de a substituir.
Ora, tendo o arguido um documento que o habilitava a conduzir o ciclomotor em causa por tempo indeterminado, não lhe era exigível que se fosse informar posteriormente sobre a manutenção dos requisitos da licença, os quais foram alterados legislativamente, sem a prévia existência de qualquer campanha publicitária de relevo.
Aliás, a conduta o arguido até poderá reconduzir-se ao “erro sobre as circunstâncias do facto”, o qual tem por efeito a exclusão do dolo do tipo (cfr. artigo 16.º, n.º 1, do Código Penal).
Na verdade, há uma ausência de conhecimento sobre a relação de contrariedade entre a conduta do arguido e o comando emergente da norma jurídica, porque o agente ignorava a existência da norma que retirou validade ao título de que dispunha para conduzir, actuando, por conseguinte, sem o conhecimento de que fazia algo que a lei proíbe.
Apesar de ressalvada a punibilidade a título de negligência (n.º 3), quando censurável aquele erro, o certo é que, no caso concreto, não está aquela expressamente prevista na lei, o que implica a absolvição do arguido.
Face ao exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 513.º, n.º 1, a contrario sensu, do Código de Processo Penal, não deve o arguido ser condenado no pagamento das custas criminais.
IV – DISPOSITIVO
Tudo ponderado, decide o Tribunal:
a) Absolver J... da acusação da prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.”

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4. A leitura da sentença recorrida revela no enquadramento jurídico uma contradição insanável entre a fundamentação e o dispositivo da decisão quando se afirma que o arguido desconhecia a ilicitude do seu acto, o que remete para o problema do erro sobre a ilicitude, previsto no artigo 17.º do Código Penal, e se considera que no caso vertente tal erro é censurável “por não se compreender que um condutor com as condições do arguido desconheça que tinha que substituir a licença de condução que tinha por outra. A um condutor nas condições do arguido impunha-se-lhe tal conhecimento e, não o tendo, tal é censurável. A conduta do arguido – ao não se certificar dos requisitos para a condução – é assim censurável.”. E não obstante o disposto no nº 2 do art 17º, do CP, o arguido foi absolvido.
Apesar do vício detectado, afigura-se-nos possível decidir da causa sem necessidade do reenvio para novo julgamento – art 426º, do CPP.
Com efeito, considerando os factos provados, os não provados e a motivação da sentença, que o MP não colocou em causa, resulta evidente que tendo o arguido um documento que o habilitava a conduzir o ciclomotor em causa por tempo indeterminado, não lhe era exigível que se fosse informar posteriormente sobre a manutenção dos requisitos da licença, os quais foram alterados legislativamente, sem a prévia existência de qualquer campanha publicitária relevante, o que foi facto notório. A licença de condução de velocípedes com o nº 2492, foi passada pela Câmara Municipal de A... em 9 de Fevereiro de 1962, sem prazo, de harmonia com o nº 1 do art 54º do Código da Estrada.
Repare-se que na motivação o tribunal concedeu credibilidade ao arguido e por isso considerou como verdadeiras as suas afirmações, nomeadamente que “desconhecia não estar habilitado uma vez que possuía licença de condução de velocípedes emitida pela Câmara Municipal de A... e que nunca ninguém lhe disse que tinha que a substituir, nem o mesmo se apercebeu de tal obrigatoriedade uma vez que esteve emigrado e, em consequência, ausente do país por um longo período”.
É pois facto assente que o arguido possuía uma licença de condução de velocípedes, passada pela Câmara Municipal ao abrigo do então em vigor art 54º do Cód da Estrada, e por tal razão estava convicto que tal licença era suficiente para conduzir um veículo ciclomotor.
De facto, o DL 114/94, de 3/05, no seu art.132º nº1 estatuía que o documento que titulava a habilitação para a condução de ciclomotores e motociclo de cilindrada não superior a 50 cm3 se designava licença de condução.
Porém, nos termos do artigo 47º do DL 209/98, 15/07 - publicado na sequência da entrada em vigor do novo código da estrada (2/98) e que regulamentou o regime jurídico da habilitação legal para conduzir veículos na via pública, estatuindo disposições transitórias - durante o prazo de um ano a contar da entrada em vigor do diploma – 20/07/1998 – os titulares de licença de condução de velocípedes com motor estavam habilitados a conduzir ciclomotores, podendo requerer a sua troca por licença de condução de ciclomotor na câmara municipal da sua área de residência.
Tal prazo foi depois prorrogado pelo DL 315/99, de 11 de Agosto, que no seu artigo 4º o estendeu até ao dia 30 de Junho de 2000.
Ora, face a tal alteração legislativa impõe-se concluir que, na altura da fiscalização, já o arguido não estava habilitado a conduzir o referido veículo por não ter renovado a licença, sendo que tais cartas permitiam a condução de veículos ciclomotores até à entrada em vigor do DL 209/98 de 15 de Julho. Assim, à data da prática dos factos, o título que o arguido possuía não era válido para a condução do veículo em causa.
Porém, pelas razões supra indicadas, o arguido, - cidadão com quase 70 anos de idade - estava convicto que se encontrava habilitado, pelo que a sua conduta se enquadra no erro sobre a ilicitude do facto, que se encontra previsto pelo artigo 17° do Código Penal, que estabelece:
“1. Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro não lhe for censurável.
2. Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada."
O erro é censurável quando o agente não actua com o cuidado de uma pessoa portadora de recta consciência ético-jurídica, informando-se e esclarecendo-se convenientemente sobre a proibição legal.
A falta de consciência da ilicitude não é censurável sempre que o engano ou erro de consciência ética que se exprime no facto não se fundamente em qualidade desvaliosa e juridicamente censurável da personalidade do arguido.
Para além da capacidade de culpa, da imputabilidade, actua com consciência de ilicitude o agente quando sabe que o que está a fazer é proibido pela ordem jurídica na sua globalidade, ou quando sabe que actuar era uma obrigação e se abstém dessa actuação, omitindo assim uma acção que lhe era exigível.
É pacífico que o que se exige é uma consciência da ilicitude material, no sentido de que aquele comportamento é valorado do ponto de vista axiológico em termos de ser censurado ético-socialmente. Ou seja, é suficiente o conhecimento da censura ético-social do comportamento para que se forme a consciência da ilicitude do facto.
Repare-se que nos termos do art. 17º/1 CP se o erro sobre a ilicitude for um erro não censurável, - for um erro inevitável, - o agente age sem culpa, e consequentemente o erro sobre a consciência da ilicitude não censurável exclui a culpa.
Se pelo contrário, o erro for censurável porque era evitável, segundo o nº 2, daquele art. 17º CP, o agente será punido com a pena correspondente ao crime doloso praticado, podendo contudo beneficiar de uma atenuação especial facultativa da pena.
Concluindo, o Código Penal traduz uma teoria da culpa em detrimento dos que propunham uma teoria do dolo.
Recorde-se que para os partidários da aludida teoria, o dolo fazia parte da culpa. E o dolo, dentro do seu elemento, era integrado também pela consciência da ilicitude: o agente tinha de conhecer e querer um determinado facto sabendo que esse facto era ilícito.
As teorias do dolo - estrita e limitada - conduziam a que quando se actuava sem consciência da ilicitude, ela mesma um elemento do dolo, faltava um elemento do dolo, que por conseguinte estava desde logo afastado.
Já os partidários das teorias da culpa consideram que o dolo é um elemento do tipo e é um elemento subjectivo geral. Assim sendo, a consciência da ilicitude não integra o dolo, é antes um elemento autónomo da culpa, e consequentemente se faltar a consciência da ilicitude o que está excluído é a culpa. E é isso que se consagra no art. 17º CP:
- Se o agente actua sem consciência da ilicitude e se essa falta de consciência da ilicitude não lhe é censurável, a culpa está excluída;
- Se pelo contrário o agente actua sem consciência da ilicitude, mas esse erro é um erro censurável, então o agente é punido por dolo, podendo a pena ser atenuada na culpa manifestada pelo agente.
No caso em apreço, o arguido, enquanto titular de uma licença de condução de velocípedes a motor, não tinha qualquer dever especial de se informar e se esclarecer convenientemente sobre os requisitos da condução de ciclomotores. Tanto mais que essa referida licença de que ele era titular o habilitava a conduzir esses veículos e habilitava-o a conduzir por tempo indeterminado, pois não tinha qualquer prazo de validade.
Não lhe era exigível o conhecimento de que os requisitos necessários à condução se tinham alterado, uma vez que estava convicto de que nenhuma outra actividade era necessário desenvolver para exercer a condução em conformidade com a lei.
Ademais, foi notório que a alteração legislativa que impôs a troca das antigas licenças por outra novas junto das câmaras municipais passou despercebida ao comum dos cidadãos, aliás tal como muitas outras, dada a exabundância da actividade legislativa da época actual.
Ao contrário do recorrente, entendemos que o arguido não omitiu qualquer dever de cuidado ou de informação que sobre o mesmo impendia, razão pela qual o Mmº Juiz andou mal ao considerar que a falta de consciência da ilicitude ficou a dever-se a erro censurável do arguido. Falha que o tribunal a quo veio a contornar, pretendendo que a conduta do arguido até se reconduzia ao “erro sobre as circunstâncias do facto”, com a consequente exclusão do dolo do tipo (art. 16.º, n.º 1, do CP). Daí que tenha ponderado como patente a existência de uma “falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito”, pois o arguido era detentor de licença de condução de velocípedes emitida pela Câmara Municipal de A... que em tempos o habilitou a conduzir o ciclomotor em questão, emitida sem qualquer prazo de validade, e ele desconhecia que a licença já não fosse válida, pois nunca ninguém lhe disse que tinha de a substituir.
Na verdade, há uma ausência de conhecimento sobre a relação de contrariedade entre a conduta do arguido e o comando emergente da norma jurídica, porque o agente ignorava a existência da norma que retirou validade ao título de que dispunha para conduzir, actuando, por conseguinte, sem o conhecimento de que fazia algo que a lei proíbe. E alcançou desta forma, - apesar de ressalvada a punibilidade a título de negligência (n.º 3), quando censurável aquele erro, - a absolvição do arguido, porque no caso concreto, a negligência não está expressamente prevista na lei.
A propósito da distinção das espécies de erro jurídico-penalmente relevante no nosso direito penal, cfr Figueiredo Dias (“Direito Penal - Parte Geral” Tomo I, pág. 503/504; F. Dias, “O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal …”, §§ 14 e 15); Ac. T Rel. de Coimbra de 17.12.2008.
A deficiência da consciência psicológica, imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento, quando censurável, revela uma atitude interna específica da culpa negligente. Diferentemente, estamos perante uma deficiência da própria consciência ética do agente, que lhe não permite apreender correctamente os valores jurídico-penais e que por isso, quando censurável, revela uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal e conforma paradigmaticamente o tipo específico da culpa dolosa.

Quanto à definição de erro censurável, ensina Figueiredo Dias, pág. 341-342, "O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal:

"A - Se lograr comprovar-se que a falta de consciência de ilicitude ficou a dever-se, directa e imediatamente, a uma qualidade desvaliosa e juridico-penalmente relevante da personalidade do agente, aquela deverá sem mais considerar-se censurável.
B. - Se, pelo contrário, não se logrou tal comprovação, a falta de consciência da ilicitude deverá continuar a reputar-se censurável, salvo se se verificar a manutenção no agente, apesar daquela falta, de uma consciência ético-jurídica, fundada em uma atitude de fidelidade ou correspondência a exigências ou pontos de vista de valor juridicamente relevante.
C. São, por seu turno, requisitos daquela rectitude e da respectiva atitude:
1) Que a questão da licitude concreta (seja quando se considera a valoração em si mesma, seja quando ela se conexiona com a complexidade ou novidade da situação) se revele discutível e controvertida; e isto, não porque nos outros casos se pretenda reverter à velha ideia jusnaturalista do inatismo e evidência de certas valorações, mas a questão há-de ser uma daquelas em que se conflituem diversos pontos de vista de estratégica ou oportunidade, estas também juridicamente relevantes.
2) Que a solução dada pelo agente à questão da ilicitude corresponda a um ponto de vista de valor juridicamente reconhecido, por forma a poder dizer-se que ele conduziria à ilicitude da conduta se não fosse a situação de conflito anteriormente aludida.
3) Que tenha sido o propósito de corresponder a um ponto de vista de valor juridicamente relevante ou, quando não o propósito consente, pelo menos o produto de um esforço ou desejo continuado de corresponder às exigências do direito, para prova do qual se poderá lançar mão dos indícios fornecidos pelo conhecimento do seu modo-de-ser ético jurídico adquirido o fundamento da falta de consciência da ilicitude".
Reportando-nos à matéria de facto provada é óbvia a “falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito”, pois o arguido era detentor de licença de condução de velocípedes emitida pela Câmara Municipal de A..., que em tempos o habilitou a conduzir o ciclomotor em questão, emitida sem qualquer prazo de validade, e, segundo resulta da sentença, ele desconhecia que a licença já não fosse válida, pois nunca ninguém lhe disse que tinha de a substituir.
E repete-se, tendo o arguido um documento que o habilitava a conduzir o ciclomotor em causa por tempo indeterminado, não lhe era exigível que se fosse informar posteriormente sobre a manutenção dos requisitos da licença, os quais foram alterados legislativamente, sem a prévia existência de qualquer campanha publicitária de relevo.
No erro sobre a proibição, o agente, seguro do que faz, crê que a lei o não reprova, e supõe mesmo que ela consente a sua conduta – Cód. Penal Anot. Vitor Pereira e Alexandre Lafayett, pág 101.; vd também Casos e Materiais de Direito Penal, 3ª ed. Rui Carlos Pereira, pág s 139 a 157.
O arguido actuou convicto da legalidade da sua condução pelo que agiu sob erro de proibição ou melhor dizendo sem consciência da ilicitude da sua conduta, sem culpa portanto, pelo que está correcta a sua absolvição – art 17º nº 1, do CP.
Assim, a decisão recorrida, excluindo-se a qualificação do erro como censurável, deve ser mantida.

III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso, e embora por diversos fundamentos, manter a absolvição do arguido.
Sem tributação.

Texto elaborado em computador e revisto (artº 94º nº2 do CPP).



Coimbra, 5/05/2010

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(Isabel Valongo)


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(Paulo Guerra)