Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
46/14.1TACLB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: PESSOA COLECTIVA
TITULARES DO DIREITO DE QUEIXA
LEGITIMIDADE PARA A DESISTÊNCIA DE QUEIXA
Data do Acordão: 01/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CELORICO DA BEIRA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 113.º, N.º 1, DO CPP
Sumário: I – Cada um dos titulares de órgão estatutário de um ente colectivo tem legitimidade para, separadamente, exercer direito de queixa relativamente a crime de que esse ente seja ofendido.

II – Contudo, apenas conjuntamente [através de deliberação da Assembleia Geral da pessoa colectiva], podem tais titulares desistir da queixa entretanto apresentada em processo de natureza criminal.

Decisão Texto Integral:













ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

No Juízo de Competência Genérica de Celorico da Beira, Comarca da Guarda, no Processo Comum (singular) que aí corre termos sob o 46/14.1TACLB, em que são arguidos A., B. e C., na fase de saneamento do processo (artº 311º, CPP), foi proferido o seguinte despacho (transcrição):

Nas contestações apresentadas, os arguidos A. e B invocaram uma nulidade insanável, referindo que a promoção do processo penal pelo Ministério Público, no que concerne ao crime de infidelidade (crime semi-público), tendo por base a apresentação de queixa por parte de (…) e de (…), é nula, nos termos do art. 119.°, alínea b) do CPP, uma vez que, no entender dos contestantes, não se depreende que aqueles tivessem legitimidade para apresentar queixa pelos factos em causa, cominando a invalidade de todos os actos subsequentes à queixa apresentada no que concerne ao aludido crime de infidelidade, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 122.° do CPP.

O MP, com os fundamentos expostos a fls. 1113 e ss., entendeu que não se encontra verificada a nulidade invocada.

O arguido C., por duas vezes notificado para se pronunciar, optou por nada dizer.

Cumpre decidir.

Nos termos do preceituado no art. 119.° do CPP: "Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição; b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.°, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência; c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência; d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade; e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 32º f); O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei. " - negritos e sublinhado nossos.

Assim, as nulidades insanáveis no nosso sistema processual penal são apenas as que se encontram previstas em norma especial e as constantes do elenco do art. 119.° do CPP.

Ora, a situação que os contestantes invocam não está cominada em qualquer disposição legal do CPP como nulidade, nem se enquadra em qualquer das situações previstas no art. 119.° do CPP.

Tanto basta para que a nulidade insanável invocada (que não está consagrada no CPP) tenha de improceder, o que se determina, não ficando por dizer que se os arguidos contestantes pretendessem arguir a irregularidade da queixa apresentada, deveriam ter suscitado essa questão no prazo aludido no art. 123.°, n.º 1 do CPP, o que não fizeram.

Custas pelos arguidos A. e B. que se fixam numa UC para cada uma.

Notifique.


*

Desistência de queixa apresentada pelo arguido A. em 06.12.2018:

O arguido A., alegando ser Presidente da Associação Recreativa e Beneficente do (…), juntando, para isso comprovar, um documento da AT, veio desistir da queixa (que não apresentou).

O MP, no dia 10.01.2019, renovou os fundamentos invocados na promoção de fls. 1113 e 1114, salientando que, no seu entender, o arguido A. não tem legitimidade para desistir da queixa apresentada, uma vez que não demonstrou que, nesta data, ocupa qualquer cargo de direcção na Associação ofendida nos autos, pugnando que seja designada data para realização da audiência de julgamento.

Desde 18.01.2019 (há cinco meses portanto), o Tribunal, por sucessivos despachos, determinou que o arguido A. comprovasse a legitimidade para apresentar a desistência de queixa pelo crime mencionado - o que o mesmo nunca logrou fazer - chegando a oficiar, nomeadamente, o Tribunal entidades terceiras para obter os livros das actas n.ºs 30 (inclusive, pese embora cópia da acta n.º 30 constar dos autos) e seguintes da Assembleia Geral da Associação ofendida para aferir da legitimidade do arguido A. para desistir de queixa.

O arguido A. informou o Tribunal que desconhece o paradeiro dos livros e que, desde 15.06.2014, nunca mais entrou nas instalações/sede da Associação ofendida, o que, só por aqui, demonstra que, pelo menos desde 15.06.2014, a nível fáctico e real, o arguido não desempenha o cargo de representante legal da Associação ofendida.

Cumpre apreciar e decidir.

O crime de infidelidade, p. e p. pelo art. 224.º, n.º 1 do CP, nos termos do disposto no art. 224.º, n.º 3, é um crime semi-público, admitindo, como tal, desistência de queixa.

Nos termos do disposto no art. 116.º, n.º 2 do CP: "O queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1.ª instância. A desistência impede que a queixa seja renovada."

Efectivamente, é um dado seguro e incontestável que os presentes autos se iniciam, em 01.07.2014, com uma queixa apresentada pelo arguido C. e por (…) (cfr. fls. 10 a 13).

Como já se disse, em traços sintéticos e suficientes para o momento, o bem jurídico protegido pelo crime em apreço é o património de outra pessoa, no caso, o património da Associação Recreativa e Beneficente do (…) e, como tal, será esta a titular do interesse, imediata e directamente, tutelado pela norma incriminadora sub judice.

Assim, e na esteira do que a jurisprudência superior tem entendido (cfr., V.g., Ac. do TRP, de 02.12.2015, proc. n."º3204112.0TAMTS-F.P1, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsfl-/71D899DF0137071E80257F4000416151, Ac. TRL, de 22.09.2005, proc. n.º 7063/2005-9, in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsflO/cc24004e90176b50802571 08003ba217 e Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 145/2006, de 03.04.2006, in Diário da República n.º 66/2006, Série II, de 2006.04.03), no crime de infidelidade em apreço, a ofendida é a Associação Recreativa e Beneficente do (…) e não os seus sócios, carecendo estes últimos de legitimidade para apresentarem queixa (e para desistirem dela, acrescente-se).

Ademais, não fique por dizer que para comprovar a sua qualidade de ser Presidente da Associação Recreativa e Beneficente do (…), o arguido A. limitou-se a juntar um documento da AT.

Ora, é consabido que a AT nada prova quanto à composição de órgãos sociais de pessoas colectivas de tipo associativo.

Saliente-se que o regime normativo aplicável à ofendida obter-se-á pelos respectivos estatutos.

Chame-se, então, à colação o art. 5.° dos Estatutos da ofendida: "São órgãos da Associação a assembleia geral (…), a direcção (…) e o conselho fiscal (…), sendo todos os seus membros eleitos bienalmente em assembleia geral (…),"

Remeta-se também para os arts. 40.° e 51.° (este último directamente dirigido à Direcção) dos Estatutos que reiteram que as eleições para os órgãos sociais têm lugar de dois em dois anos.

Ora, pese embora o Tribunal estar há cinco meses a tentar obter o livro de actas da Assembleia Geral da ofendida, único elemento susceptível de demonstrar a composição actual dos órgãos sociais da ofendida, nada logrou obter, constando apenas dos presentes autos cópia da acta da Assembleia Geral n.º 30 (cfr. fl. 89), de 16.03.2013 e, portanto, "válida", nos termos dos arts. 5.°,40.° e 51.° dos Estatutos, até 16.03.2015, não se deixando de salientar que afinal sempre têm de existir os Livros das Actas de Assembleia Geral da ofendida (aqueles que ninguém quis juntar aos autos apesar de ordem judicial nesse sentido).

Assim sendo, tendo sido afirmado, como referimos, pelo próprio arguido A. que, desde 15.06.2014, nunca mais entrou nas instalações/sede da Associação ofendida, o que, só por aqui, demonstra que, pelo menos desde 15.06.2014, a nível fáctico e real, o arguido não desempenha o cargo de representante legal da Associação ofendida, conforme defendido pelo MP, o arguido não tem legitimidade para desistir da queixa apresentada.

Não se deixando de dizer que atentaria contra qualquer princípio de Justiça a que, enquanto Juíza de Direito, devemos obediência homologar uma desistência de queixa apresentada por um arguido (em flagrante conflito de interesses) que afirma que, desde 15.06.2014, foi deliberado, pela Associação aqui ofendida (sendo ela, como vimos, a titular do interesse, imediata e directamente, tutelado pelo crime sub judice), a sua proibição de entrada "em qualquer local pertencente à associação", queixa essa apresentada contra ele (cfr. fls. 10 a 13).

Como tal, nos termos do disposto no art. 51.°, n.º 2, "a contrario sensu" do CPP, não homologo a desistência de queixa apresentada pelo arguido A., por o mesmo não ter legitimidade para desistir da mesma, deixando consignado que não dei cumprimento ao art. 51.°, n.º 3 do CPP (determinando a notificação dos arguidos B. e C. para declararem se se opõem à mencionada desistência de queixa) para evitar actos inúteis, uma vez que falha o pressuposto base de uma desistência de queixa: a legitimidade para tal.

Custas pelo arguido A. que se fixam numa UC. Notifique.


*

Através de requerimento datado de 03.12.2018, o arguido C. invocou uma nulidade insanável, referindo que a promoção do processo penal pelo Ministério Público, no que concerne ao crime de infidelidade (crime semi-público), tendo por base a apresentação de queixa por parte dele próprio e de (…), é nula, nos termos do art. 119.°, alínea b) do CPP, uma vez que não foi apresentada contra ele, cominando a invalidade de todos os actos subsequentes à queixa apresentada no que concerne ao aludido crime de infidelidade, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 122.° do CPP.

O MP e os arguidos A. e B. não se pronunciaram.

Cumpre decidir.

Nos termos do preceituado no art. 119.° do CPP: "Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição; b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.°, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência; c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência; d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade; e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º f) O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei." - negritos e sublinhado nossos.

Assim, as nulidades insanáveis no nosso sistema processual penal são apenas as que se encontram previstas em norma especial e as constantes do elenco do art. 119.° do CPP.

Ora, a situação que o arguido C. invoca não está cominada em qualquer disposição legal do CPP como nulidade, nem se enquadra em qualquer das situações previstas no art. 119.° do CPP.

Tanto basta para que a nulidade insanável invocada (que não está consagrada no CPP) tenha de improceder, o que se determina, não ficando por dizer que se o arguido pretendesse arguir a irregularidade da queixa apresentada por ele próprio e por (…), deveria ter suscitado essa questão no prazo aludido no art. 123.°, n.º 1 do CPP, o que não o fez.

Não ficando por dizer que a queixa apresentada pelo arguido C. e por (…) foi apresentada, como não podia deixar de ser, "contra os denunciados ou contra qualquer outro agente dos factos" (cfr. fls. 10 a 13) - negrito nosso.

Custas pelo arguido C. que se fixam numa UC.

Notifique.

           

Inconformada com tal despacho, a arguida B. dele interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

I - Inconformada com os, aliás, doutos Despachos proferidos e com eles não se podendo conformar, interpôs a arguida recurso para o presente Tribunal;

II - O procedimento criminal respeitante ao crime de infidelidade depende de queixa, de conformidade com o preceituado no artigo 224.°, n.º 3, do Código Penal;

III - O inquérito iniciou-se em 01/07/2014, após a apresentação de queixa por parte de C. e (…) contra a aqui recorrente e o A., proclamando serem Presidente e Secretária-Geral, respectivamente, da Associação Recreativa e Beneficente do (…), aqui ofendida;

IV - Compulsados os cinco volumes do processo em crise, bem como o livro de actas da Direcção e a acta n.º 30 da Assembleia Geral da Associação Recreativa e Beneficente do (…) constante de fls. 89, não se depreende que aqueles tivessem legitimidade para apresentar a queixa pelos factos ora em causa;

V - De realçar que a acta n.º 30 da Assembleia Geral de fls. 89, datada de 16/03/2013, na qual o Tribunal a quo se sustenta para justificar a composição dos órgãos sociais da ofendida à data da apresentação da queixa em apreço, não configura uma cópia, nem se encontra, sequer, assinada por aqueles que alegadamente tomaram posse no biénio em causa;

VI - Não resulta de qualquer documento existente no processo que C. e a (…) tivessem sido eleitos e tomado posse enquanto Presidente e Secretária-Geral da Associação à data da participação criminal (01/07/2014) e/ou tivessem poderes para o acto, na medida em que inexiste qualquer documento de suporte e/ou assembleia que o legitimasse;

VII - A considerar-se o teor da sobredita acta n.º 30 da Assembleia Geral, o que não se concede, o C. era mero Vice-Presidente da ofendida à data da apresentação da queixa, inexistindo, reitera-se, qualquer deliberação que lhe concedesse poderes para o efeito, não constando, sequer, dos autos, a qualidade em que a (…) apresentou a queixa sob apreciação, em flagrante violação do estatuído no artigo 49.°, n.º 3, do Código de Processo Penal;

VIII - O C., enquanto Vice-Presidente da Associação ofendida à data de apresentação da queixa, é pessoa distinta da ofendida, não é o seu representante legal, nem foi mandatado para agir em seu nome;

IX - Nos termos conjugados do artigo 5.° dos Estatutos da Associação Recreativa e Beneficente do (…) e dos artigos 51.° e 53.° do respectivo Regulamento Interno, a Direcção é constituída por um mínimo de oito associados, não podendo funcionar com menos de seis membros;

X - Não tendo sido o direito de queixa validamente exercido no prazo legal, de acordo com o artigo 115.°, n.º 1, do Código Penal, a mesma é inexistente;

XI - Estribando-se na falta de legitimidade do C. e da (…) para apresentação da participação criminal no que ao crime de infidelidade concerne, dado tratar-se de um crime de natureza semi-pública, dependente de queixa, a recorrente arguiu uma nulidade insanável em sede de contestação, nos termos do disposto no artigo 119.°, alínea b), do C.P.P., havendo sido julgada improcedente;

XII - O Tribunal a quo fez uma interpretação restritiva do normativo legal sob apreciação, no sentido de que apenas contempla situações omissivas do Despacho acusatório por parte do Ministério Público quando é este que tem legitimidade para o efeito;

XIII - O conteúdo normativo a que se refere a “falta de promoção nos termos do artigo 48. (1º cabe na letra do preceito, de igual modo, a situação em que o Ministério Público acusa sem legitimidade, ou seja, fora da previsão do artigo 48.° do C.P.P., o qual, por sua vez, remete para os artigos 49.° a 52.° do C.P.P., definindo o artigo 49.° do C.P.P. a legitimidade em crime dependente de queixa;

XIV - No que ao crime de infidelidade concerne, o Ministério Público deduziu acusação sem legitimidade, ou seja, fora da previsão do artigo 48.° do compêndio legislativo referido;

XV- Interpretação contrária sempre violaria o princípio do processo equitativo, enquanto corolário do Direito de Acesso aos Tribunais e estruturante do princípio do Estado de Direito, de conformidade com o preceituado no artigo 20.°, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa e o artigo 6.°, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;

XVI - De destacar, nessa senda, os ensinamentos de Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 34, no qual se extrai que a falta de legitimidade do Ministério Público para acusar se reconduz à nulidade insanável prevista no artigo 119.°, alínea b) do Código de Processo Penal, bem como o, aliás, douto Acórdão emanado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do processo n.º 154111.0GBCVL.C1, datado de 19/02/2014, disponível em www.dgsi.pt;

XVII - Tendo o Ministério Público deduzido acusação no que ao crime de infidelidade concerne, p. e p. nos termos do artigo 224.° do Código Penal, sem a apresentação de queixa válida para o efeito, verifica-se uma nulidade insanável, a qual contamina tudo o que foi processado posteriormente, designadamente a acusação e todo o processado posterior, conforme decorre do disposto no artigo 122.° do C.P.P.;

XVIII - Não sendo, sequer, admissível a ratificação da queixa-crime ilegitimamente apresentada, na medida em que aquela pressupõe que alguém, sem poderes de representação, haja actuado em nome de outrem, não sendo, assim, juridicamente aplicável quando alguém agiu em nome próprio no exercício de um direito meramente aparente;

XIX - Mesmo que assim não seja entendido, o que não se concede, sempre se deverá conhecer da ilegitimidade do Ministério Público para promover o presente procedimento criminal contra a arguida/recorrente relativamente ao crime de infidelidade de que vem acusada, atenta a inexistência de queixa válida para o efeito, e, em consequência, julgar extinto o procedimento criminal que se fazia valer contra a arguida/recorrente;

XX - Caso assim não se entenda, o que apenas se admite por mera hipótese de índole académica, sempre se dirá que mal andou o Tribunal a quo em não homologar a desistência de queixa apresentada pelo A. em 06/12/2018;

XXI - Ao considerar que, por si só, o então Vice-Presidente da ofendida tinha legitimidade para apresentar queixa no que ao crime de infidelidade concerne, o qual reveste natureza semi-pública, sempre deveria o Tribunal a quo ter homologado a desistência de queixa apresentada pelo Presidente da ofendida;

XXII - À excepção da certidão emanada pela Autoridade Tributária e Aduaneira junta pelo A. com o requerimento de desistência da queixa, a qual certifica a composição dos órgãos sociais da Associação ofendida, inexiste qualquer outro elemento processual comprovativo da sua actual composição;

XXIII - A entender-se que a queixa apresentada pelo então Vice-Presidente é "válida", sempre teria o Tribunal a quo de homologar a desistência de queixa sob apreciação;

XXIV - Não obstante os Estatutos e o Regulamento Interno da ofendida determinarem eleições bienais, o certo é que as últimas terão ocorrido a 16/03/2013, pelo que, até à data da tomada de posse dos novos órgãos directivos, sempre se mantêm em funções os eleitos àquela data;

XXV - Não restando dúvidas, a nosso ver, que o actual Presidente da ofendida é efectivamente o A.;

XXVI - O facto de aquele mencionar não entrar nas instalações da ofendida desde o dia 15/06/2014, não lhe retira qualquer legitimidade que seja na ocupação do cargo em questão;

XXVII - A deliberação aludida no Despacho em crise pelo Tribunal a quo, datada de 15/06/2014, concernente à proibição de entrada na Associação do A. não tem qualquer valor legal, na justa medida em que, reitera-se, inexistiu qualquer outra eleição que fosse desde o sobredito ano de 2013, encontrando-se a mesma convocada e assinada por um "Presidente" que não foi eleito ou tomou posse para o efeito;

XXVIII - Salvo o devido respeito, não se poderá depreender que se trata de uma deliberação da Associação, atenta a ilegalidade que lhe está subjacente;

XXIX - O Tribunal a quo não pode concluir que o A. não desempenha o cargo de representante legal da Associação ofendida por não ter entrado novamente nas instalações da Associação, quando tal ilação se encontra em manifesta oposição com os elementos actuais constantes da base de dados proveniente da Autoridade Tributária e Aduaneira;

XXX - Mesmo a entender-se que existia um conflito de interesses na homologação da desistência de queixa em apreço, atenta a dualidade de qualidade em que o A. intervém no processo (Presidente e arguido), sempre se dirá que deveria o Tribunal a quo ter homologado a desistência de queixa quanto à recorrente, o que não sucedeu;

XXXI - A recorrente apenas foi notificada da decisão de não homologação da desistência de queixa apresentada por A., sem que tivesse sido notificada para se pronunciar quanto ao seu teor, não obstante a alegada falta de legitimidade para o efeito - em violação do disposto no artigo 32.°, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa;

XXXII - Sendo forçoso concluir que ao considerar válida a queixa apresentada pelo Vice-Presidente, outra alternativa não estaria ao Tribunal a quo, pela mesma ordem de razão, que não fosse homologar a desistência de queixa apresentada pelo A., atenta a sua qualidade de Presidente da Associação ofendida, no que concerne à recorrente;

XXXIII - Os Despachos sob apreciação violaram, de entre outras, as seguintes disposições legais:

Artigos 48.°, 49.°, 51.°, 52.°, 53.°, n.º 1, 119.°, alínea b) e 122.°, todos do Código de Processo Penal;

Artigos 113.°, 115.°, n.º 1, 116.°, nºs 2 e 3, e 224.°, n.º 3, ambos do Código Penal;

Artigos 20.°, n.º 4 e 32.°, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa; e,

Artigo 6.°, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência:

Revogado o Despacho recorrido, declarando-se a verificação de uma nulidade insanável subjacente à Acusação deduzida pelo Ministério Público, nos termos do artigo 119.°, alínea b), do C.P.P., expurgando do texto da Acusação e ulteriores elementos processuais tudo o referente à alegada prática do crime de infidelidade, p. e p. nos termos do disposto no artigo 224.° do C. Penal;

Ou, se assim não se entender,

Revogar o Despacho recorrido, conhecendo-se da ilegitimidade do Ministério Público para promover o presente procedimento criminal contra a arguida/recorrente relativamente ao crime de infidelidade de que vem acusada, atenta a inexistência de queixa válida para o efeito, e, em consequência, julgar extinto o procedimento criminal que se fazia valer contra a arguida/recorrente e demais arguidos a esse título;

Ou, se ainda assim não se entender,

Revogar o Despacho recorrido e determinar a homologação da desistência de queixa apresentada por J (...) , enquanto Representante Legal da Associação ofendida, no que concerne ao crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224.° do Código Penal, imputado à recorrente e demais arguidos, com as legais consequências.

Assim se fazendo a sã e acostumada JUSTIÇA!

            Respondeu o MP em primeira instância, retirando dessa sua peça as seguintes conclusões:

Por tudo o supra exposto, conclui-se pelo acerto absoluto dos despachos ora recorridos e, por conseguinte, pela não violação de qualquer dispositivo legal, nomeadamente, o preceituado nos artigos 48.º, 49.º, 51.º, 52.º, 53.º, n.º 1, 119.º, alínea b) e 122.º, do Código de Processo Penal, nos artigos 113.º, 115.º, n.º 1, 116.º, n.ºs 2 e 3, e 224.º, n.º 3, do Código Penal, nos artigos 20.º, n.º 4 e 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa e no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto pela ora recorrente, mantendo-se na íntegra os despachos recorridos.

Vossas Excelências farão, como sempre, a costumada Justiça.

            Nesta Relação, a Dig.ma PGA emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:

            Analisadas as conclusões que a recorrente retira da motivação do seu recurso, logo se constata que são duas, essencialmente, as questões que, através delas, coloca à nossa apreciação censória:

- em primeiro lugar suscita a questão da verificação de uma nulidade insanável, subjacente à acusação pública, na parte em que está em causa crime de natureza semi-pública (infidelidade), pois que o MP não teria legitimidade para promover o procedimento criminal, nessa parte, atenta a inexistência de queixa válida para o efeito;

- subsidiariamente pede a revogação do despacho recorrido na parte em que não homologa a desistência de queixa apresentada pelo legal representante da Associação ofendida (o co-arguido A.), relativamente ao mesmo crime.

            Na contestação que apresentara, a arguida havia invocado uma nulidade insanável, que referiu ao artigo 119.°, alínea b), do Código de Processo Penal, por entender que o Ministério Público deduziu acusação, no que ao crime de infidelidade concerne, em manifesta violação do disposto nos artigos 48.° e 49.° do C.P.P., na medida em que inexistia nos autos queixa válida que legitimasse a sua intervenção.

E, em 06/12/2018, o co-arguido A., invocando a qualidade de legal representante da ofendida, apresentou um requerimento de desistência da queixa.

            Ambas as questões hão-de merecer uma análise em que sejam atendidos os aspectos adjectivos e substantivos que relevam (mas a segunda apenas caso a primeiro não proceda, dada a sua natureza subsidiária).

            A encerrar o inquérito, o Digno Magistrado do MP formulou acusação contra os três referidos arguidos, imputando-lhes a prática, em co-autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de infidelidade, p.p. pelo artº 224º, 1 e de um crime de danificação ou subtracção de documento e notação técnica, p.p. pelo artº 259º, 1, ambos do CP.

O crime de infidelidade reveste-se de natureza semi pública, pois que o procedimento criminal depende de queixa nº 3 do referido artº 224º).

Analisado o «auto de denúncia», verificamos que o processo tem origem numa queixa apresentada por C. e (…) (invocando o primeiro a qualidade de presidente da Associação Recreativa e Beneficente do (…) e a segunda a qualidade de secretária geral da mesma) contra A. (que é referido como Presidente da Associação, à data dos factos) e contra a ora recorrente (referida como sendo sua tesoureira, na mesma data).

Está aqui em causa a questão da legitimidade para apresentação da queixa.

Invoca a recorrente que «analisados os cinco volumes do processo em crise, bem como o livro de actas da Direcção e a acta n.º 30 da Assembleia Geral da Associação Recreativa e Beneficente do (…) constante de fls. 89, não se depreende que aqueles tivessem legitimidade para apresentar a queixa pelos factos ora em causa, em representação daquela associação».

            Quer-nos parecer, no entanto, que a retórica usada pela recorrente, que baseia a legitimidade relevante para os efeitos de formalização da queixa em questões formais, de autorização pela Associação, não procede, pois que a questão da legitimidade tem um carácter mais substancial e deve ser encontrada através da exegese do artº 113º do CP.

            Este dispõe, no seu nº 1, a titulo supletivo, que a legitimidade em causa radica no “ofendido”, sendo considerado como tal «o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação».

            No nosso caso, esse titular directo é, indubitável e primacialmente, a Associação ofendida. No entanto, dada a natureza moral da sua personalidade jurídica, não podemos deixar de concluir que a sua vontade há-de ser manifestada pelos respectivos órgãos estatutários.

            Nos termos do artº 167º, 1, do CC, o acto de constituição da associação especificará a forma do funcionamento da pessoa colectiva.

            Toda a retórica usada pela recorrente apenas é procedente nas situações em que está em causa a vinculação da associação, a assunção de obrigações pela mesma; já não procede nos casos em que está em causa a defesa do seu património ou dos seus interesses imateriais.

            Ou seja, apenas os órgãos estatutariamente competentes podem assumir obrigações em nome da associação; mas todos eles, individualmente, podem defender os seus interesses. Quando está em causa a defesa desses interesses, podemos falar de uma comunhão de direitos, pelo que é lícito o recurso às regras do regime da compropriedade (v. o artº 1404º, do CC). Assim sendo, se os comproprietários exercem em conjunto todos os direitos que pertencem ao proprietário singular e se cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum (artº 1405º, 1 e 2, CC), do mesmo modo, no que ao nosso caso particular concerne, cada um dos titulares de órgão estatutário tem legitimidade para – separadamente - apresentar queixa relativamente a crimes de que a associação seja ofendida e apenas conjuntamente [através de deliberação da Assembleia Geral – artº 172º, 1, CC] podem dela desistir.

Relativamente à primeira questão (possibilidade de apresentação da queixa por apenas um titular de órgão estatutário), veja-se a similitude existente com a norma do artº 113º, 3 do CP que, nos casos de titularidade plural do direito de queixa permite o exercício individual do mesmo, independentemente da vontade dos demais contitulares.

Neste sentido vai o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 11.09.2013 no Processo nº 1060/11.4PAESP.P1, relatora Maria do Carmo Dias, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/34a606c6128c5b2880257bef0037b827?OpenDocument): «a apresentação de queixa traduz-se no exercício de um direito que cabe ao respectivo ofendido. Esse exercício do direito de queixa não se pode confundir com a assunção de uma obrigação para a sociedade ofendida. Por isso, o facto da sociedade ofendida apenas se obrigar com a intervenção de 2 gerentes não significa que para apresentar queixa-crime tivesse de estar representada pelos dois gerentes. Portanto, a queixa apresentada por um dos seus gerentes é regular, válida e eficaz.»

 Assim sendo, concluímos que a vontade da ofendida Associação, relativamente ao exercício do direito de queixa, pode ser manifestada por um qualquer dos titulares dos seus órgãos estatutários, nos termos do disposto no artº 113º, 1, do CP.

            Se concluímos que o direito de queixa foi devidamente exercido, temos igualmente de concluir que o MP tem legitimidade para promover o procedimento criminal também relativamente ao crime de natureza semi-pública e (artºs 48º e 49º, 1, do CPP).

            Muito embora estejamos de acordo, nesse pormenor, com a tese da recorrente, de que a inexistência de queixa válida, estando em causa crime que não revista natureza pública, determina a ocorrência de uma nulidade insanável, por falta de promoção do processo pelo Ministério Público nos termos do artº 48º (artº 119º, b), CPP), a questão mostra-se prejudicada pela conclusão a que atrás chegámos: - a de que estavam reunidos todos os pressupostos de procedibilidade de que dependia o exercício da acção penal por parte do MP relativamente também ao crime de natureza semi-pública.

            A análise da segunda questão suscitada – relativa à legitimidade para desistir da queixa – está já parcialmente resolvida face à argumentação por nós usada.

            Com efeito, se é verdade que o exercício do direito de queixa se traduz na defesa dos interesses da Associação e, deste modo, na defesa dos seus activos, já relativamente à desistência dessa mesma queixa, está em causa a renúncia a um direito, razão pela qual, na falta de indicação legal ou estatutária em contrário, deve a mesma resultar de deliberação da Assembleia Geral da Associação (referido artº 172º, 1, CC) a qual, supletivamente, goza de todas as competências não atribuídas a outro órgão.

            A isto acresce que, em caso algum, se poderia conferir legitimidade para o efeito a um dos co-arguidos no processo, pois que isso, a par de traduzir um manifesto conflito de interesses (por um lado o da associação e por outro o do agente do crime), constituiria nítido abuso de direito (do qual, no caso, ele nem sequer era titular).

            O exercício do direito de desistência da queixa depende sempre da titularidade do direito protegido pela incriminação, o que no caso não cabe na esfera jurídica do desistente (v. o artº 116º, 2, CP); vimos já que tal direito cabe à Associação ofendida e que a respectiva vontade deve ser exteriorizada mediante deliberação da sua AG.

Assim decidindo, acreditamos respeitar plenamente as prescrições constitucionais constantes dos artºs 20º, 4 e 32º, 5 da CRP e 6º, 1, da CEDH.

Com efeito o processo mostra-se equitativo e justo, pois que a interpretação que fazemos das normas de direito ordinário se enquadra com o espírito e os aplicáveis princípios constitucionais; também se mostra respeitada a estrutura acusatória do processo e o exercício do contraditório.

            O exercício do direito ao contraditório, no nosso caso, ficou assegurado mediante o exercício do mais vasto e abrangente direito ao recurso (referido artº 32º, 1). Acresce que o direito ao contraditório, resultante do artº 116º, 2 do CP, apenas se refere à possibilidade de o arguido se opor a essa desistência, por pretender levar o julgamento até final, o que, manifestamente, não é o nosso caso.

Termos em que, nesta Relação, se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra o despacho recorrido.

Custas pela recorrente, com taxa de justiça fixada em 4 UC’s.

Coimbra, 15 de Janeiro de 2020

Jorge França (relator)

Alcina da Costa Ribeiro (adjunta)