Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
606/08.0GASEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EDUARDO MARTINS
Descritores: SANEAMENTO DO PROCESSO
REJEIÇÃO ACUSAÇÃO
NÃO INDICAÇÃO DO LUGAR DA PRÁTICA DOS FACTOS
Data do Acordão: 07/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 283.º, N.º 3, AL. B) E 311.º, N.º 2, AL. A) E N.º 3, AL. B), DO CPP
Sumário: A indicação do lugar da prática dos factos, até porque não faz parte da ilicitude do tipo legal de crime, não deve ser vista como elemento essencial da acusação, sendo antes um mero elemento circunstancial.
Decisão Texto Integral: A - Relatório:
1. Nos Autos de Processo Comum (tribunal singular) n.º 606/08.0GASEI, foi proferido, em 1/2/2010, despacho a rejeitar a acusação particular deduzida nos autos e a julgar extinto o procedimento criminal.
O assistente, J..., em 6/10/2001, deduzira acusação particular contra a arguida, A..., imputando-lhe a prática de um crime p. e p. no artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, sendo certo que o Ministério Público, em 12/10/2009, acompanhou tal peça processual.
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2. Inconformado com essa decisão, em 8/2/2010, o Ministério Público veio recorrer da mesma, defendendo que o despacho judicial em causa deve ser revogado e substituído por outro que designe data para a realização da audiência de julgamento, em virtude de não ter feito a adequada interpretação do disposto nos artigos 283.º, n.º 3, al. b) e 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b), do CPP, extraindo da Motivação as seguintes Conclusões:
I) A expressão “se possível” prevista no artigo 283.º, n.º 3, al. b), do CPP, apenas poderá ser interpretada no sentido de que poderão existir casos em que a possibilidade de narração de factos do lugar não ocorra, ou seja, muito embora, se possível, deva constar da acusação, não se traduz num facto essencial da mesma.
II) Não pode confundir-se a falta de narração de factos do tipo de crime com a omissão de apenas um facto atinente às coordenadas geográficas que, como resulta das diligências de inquérito, nem sequer se logrou apurara.
III) do teor da acusação particular deduzida, constam todos os factos necessários à subsunção ao crime que é imputado à arguida, se se não foi efectuada uma maior concretização quanto ao lugar da prática dos factos foi porque tal não se revelou possível.
IV) Não resultando dos autos a exacta localização dos factos ou sendo a mesma duvidosa, sempre o Tribunal de Seia seria competente para a fase de julgamento por imposição do disposto no artigo 21.º, do mesmo diploma legal, que derroga a regra geral da competência prevista no artigo 19.º.
V) A apurar-se, em sede de audiência de julgamento, a localização exacta dos factos, tal nem sequer consubstancia uma alteração substancial de factos, podendo, apenas, vir a determinar o cumprimento do preceituado no artigo 358.º, do CPP, ou a eventual incompetência territorial do Tribunal.
VI) A narração dos factos efectuada na acusação particular em nada afectou as garantias de defesa da arguida, pois daquela resultam as acções que, em concreto, lhe são imputadas, e sendo certo que a arguida também nada invocou a este respeito.
VII) Pese embora a peça acusatória possa pecar por alguma exiguidade na narração factual, não se pode confundir uma acusação com algumas deficiências com uma acusação nula.
VIII) Os factos imputados à arguida na acusação particular deduzida pelo assistente e acompanhada pelo Ministério Público preenchem os elementos objectivos e subjectivos do crime de injúria, inexistindo fundamentos para a rejeição da acusação.
IX) face ao exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogar-se o despacho judicial recorrido, em virtude de o mesmo não ter feito a interpretação adequada do disposto nos artigos 283.º, n.º 3, al. b) e 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b), do CPP, assim os violando, devendo assim ser substituído por outro que designe data para a realização da audiência de julgamento.
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3. A arguida, em 19/2/2010, respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência e apresentando as seguintes Conclusões:
I) Adere-se integralmente aos fundamentos do douto despacho do Meritíssimo Juiz que sustentaram a decisão do não recebimento da acusação particular e a consequente extinção do procedimento criminal.
II) A acusação não descreve qualquer conduta da arguida que conduza a ser-lhe imputável a prática, como autora material, do tipo legal de crime de que é acusada.
III) Por omissão desse elemento essencial, a acusação é nula, vício que se invoca nos termos das disposições conjugadas dos artigos 283.º, n.º 3, al. b), 285.º, n.º 3 e 118.º, n.º 1, todos do CPP.
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4. Por sua vez, o assistente respondeu ao recurso, em 3/3/2010, defendendo a procedência do mesmo e apresentando as seguintes Conclusões:
I) A presente acusação particular deduzida pelo assistente contém, pois, a indicação sucinta dos factos, condição suficiente e necessária para a mesma dever ser admitida.
II) Não pode a mesma se, assim, rejeitada pelo simples facto de não conter a indicação do local da emissão e/ou recepção das mensagens escritas e enviadas num telemóvel com destino a outro telemóvel.
III) Tanto mais que tal indicação, de acordo com o disposto na al. b), do n.º 3, do artigo 283.º, do CPP, deverá constar sempre (isto é, quando) a mesma se torne possível.
IV) Não quando, como no presente caso, por virtude da mobilidade inerente à utilização do meio de comunicação em causa, se torna extremamente difícil, senão mesmo impossível, proceder à sua determinação.
V) E tanto assim que, mesmo em sede de inquérito, não se logrou obter essa indicação.
VI) pelo que, compreensivelmente, se revelou impossível proceder à sua indicação na acusação particular deduzida pelo assistente.
VII) Os locais de emissão e de recepção tanto poderiam ser Celorico da Beira como Seia, tudo dependendo da mobilidade dos portadores/utilizadores de ambos os telemóveis, configurando desta forma um crime de localização duvidosa ou mesmo um crime de localização desconhecida, atenta a dificuldade na determinação dos locais concretos.
VIII) Contudo, em ambos os casos, será competente o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime (artigo 22.º, n.ºs 1 e2, do CPP).
IX) Logo, se a notícia do crime, por virtude da respectiva denúncia, teve lugar na área de intervenção territorial do Tribunal da Comarca de Seia, será este o competente para receber a acusação e proceder ao julgamento do caso em apreço.
X) Deve, assim, o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser revogado o despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz de Direito e ser marcada data para a audiência de julgamento
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5. O recurso foi, em 16/3/2010, admitido.
6. Instruídos os autos e remetidos a este Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 30/4/2010, emitiu douto parecer no qual acompanhou, integralmente, a posição do recorrente, considerando, em resumo, que “a indicação do lugar da prática dos factos, até porque não faz parte da ilicitude do tipo legal de crime, não é elevada a elemento essencial da acusação, sendo antes um mero elemento circunstancial, e isto ainda que possa o mesmo ser relevante para efeitos de aferir da efectiva competência territorial da respectiva comarca”.
7. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º2, do Código de Processo Penal, não tendo sido exercido o direito de resposta. 8. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
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B – DECISÃO RECORRIDA:
“O assistente J... deduziu acusação particular, acompanhada pelo Ministério Público, imputando à arguida A... a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do C. P. – cfr. fls. 88 e ss.
A acusação reporta-se a factos praticados pela arguida através da utilização de um telemóvel (mensagens escritas).
Porém, a acusação não faz qualquer referência ao local da prática dos factos, mormente o local do envio das mensagens e/ou o local da recepção das mesmas, por parte do assistente.
A este propósito, dispõe o artigo 19.º, n.º 1, do CPP, que “é competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação”:
Assim, e independentemente da questão de saber se o crime se consumou na área da comarca do envio das mensagens ou na área da comarca da recepção das mesmas (caso não haja coincidência entre as mesmas), o certo é que nada foi alegado a este nível.
Por seu turno, não pode o Tribunal basear-se noutros elementos dos autos para o efeito, pois a acusação define o thema do processo, inclusive os pressupostos de competência do Tribunal.
Não se olvida que o artigo 283.º, n.º 3, al. b), do CPP (também aplicável à acusação particular, nos termos do disposto no artigo 285.º, n.º 3, do CPP) apenas exige que a acusação deve conter a “narração, ainda que sintética, dos factos (…) incluindo, se possível, o lugar (…) da sua prática.
Não obstante, entende-se que tal possibilidade não exclui a necessidade de a acusação conter um mínimo de factualidade atinente às circunstâncias de lugar da conduta imputada ao arguido, por forma a se poder concluir, nesta fase, pela competência territorial do Tribunal, nos moldes acima referidos.
É que a competência territorial deve ser aferida pela positiva (“o Tribunal é competente”) e não pela negativa (“o Tribunal não é incompetente”), o que requer um mínimo de substrato factual para o efeito.
A ausência de quaisquer elementos que permitam concluir pela competência deste Tribunal, consubstanciada na falta de narração do local da prática dos factos, é fundamento de rejeição da acusação – artigo 311.º, n.º 3, al. b), do CPP.
Em face do exposto, rejeito a acusação particular deduzida nos presentes autos e, em consequência, julgo extinto o procedimento criminal.
Custas a cargo do assistente, que se fixam em 1 UC, levando-se em conta a taxa de justiça já paga – artigos 515.º, n.º 1, al. f), do CPP, e 85.º, n.º 3, al. e), do CCJ.
Notifique.”
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C - Cumpre apreciar e decidir:
De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
A questão a apreciar é a seguinte:
- Saber se a acusação particular deduzida nos autos deve ser rejeitada, com a consequente extinção do procedimento criminal, em virtude de haver falta de narração do local da prática dos factos, tendo em conta o disposto no artigo 311.º, n.º 3, al. b), do CPP.
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Em síntese, podemos afirmar que a decisão recorrida rejeitou a acusação por entender que a mesma é manifestamente infundada, por não conter a narração dos factos, em toda a sua extensão (falta de narração do local da prática dos factos). Dispõe o artigo 311.º, nº 2, do CPP, que «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) de não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente». De igual modo, o n.º 3, do mesmo artigo, estabelece que «para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d)se os factos não constituírem crime». Assente que o modelo processual penal vigente desde 1987 em Portugal se estrutura no princípio do acusatório, embora mitigado com uma vertente investigatória, (estrutura acusatória mitigada pelo princípio da acusação, segundo artigo 2º n.º 2 ponto 4 da Lei 43/86 de 26 de Setembro, Lei de Autorização legislativa em matéria de processo penal), um dos seus traços estruturais radica exactamente na distinção clara entre a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e se for caso disso sustenta uma acusação e uma outra entidade que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto dessa acusação. Impediu-se assim, entre outras situações, que o juiz quando profere o despacho ao abrigo do artigo 311º, tenha um papel equivalente ao sujeito processual “Ministério Público” fazendo um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam a acusação proferida. Nesse sentido, como já vimos, os quatro motivos explicitados na lei são hoje muito claros: a) quando a acusação não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.
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No caso concreto, importa apenas analisar se estamos face a “uma ausência da narração dos factos”, de acordo com o conceito estabelecido na alínea b), do n.º 3, do artigo 311.º, do CPP.
Vejamos.
Todos estamos de acordo em considerar que a acusação se reporta a factos praticados pela arguida através da utilização de um telemóvel (mensagens escritas), sendo certo que não faz qualquer referência ao local da prática dos factos, mormente o local do envio das mensagens e/ou o local da recepção das mesmas, por parte do assistente.
Todavia, é bom ter presente que a indicação do lugar da prática dos factos, até porque não faz parte da ilicitude do tipo legal de crime, não deve ser vista como elemento essencial da acusação, sendo antes um mero elemento circunstancial.
Com efeito, dispõe o artigo 283.º, n.º 3, al. b), do CPP, que a acusação contém, sob pena de nulidade:
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.”
Ora, não vemos como fosse possível, no presente caso, indicar o lugar da prática dos factos.
Na verdade, estamos perante mensagens enviadas através de telemóvel. Seria sempre aleatória a indicação do local em causa, dada a mobilidade de circulação de emissor e receptor, segundo as regras da experiência comum, sendo de salientar que a arguida, em 20/1/2009, reconheceu ter enviado as mensagens em causa – ver auto de interrogatório de arguido, fls. 35 e 36.
É, até, duvidoso que, hoje, a arguida saiba indicar o local onde estava quando enviou as mensagens e que o assistente localize o sítio onde se encontrava quando as recebeu, já que nos estamos a reportar a factos ocorridos em Dezembro de 2008, a menos que ambos tenham uma memória acima da média ou que tenham registado por escrito tais acontecimentos…
Por conseguinte, é de aceitar como normal a inviabilidade de indicar o local da prática dos factos, sendo verdade que esta não deve levar à rejeição da acusação, quando, como acontece no caso dos autos, estão preenchidos, em tal peça processual, os elementos objectivos e subjectivos do crime. Tenhamos presente que uma acusação não deixa de ser uma peça provisória, a narração de certos acontecimentos a comprovar, sempre passível de alteração ou correcção, através do que a lei prevê nos artigos 358.º e 359.º, ambos do CPP. Uma eventual alteração da acusação dos autos – no sentido da mera localização espacial do envio das mensagens – nem sequer assumiria, no nosso entendimento, a natureza de uma alteração não substancial com relevo, por irrelevante para a consumação do crime em causa. Por outro lado, a atribuição de competência territorial ao tribunal para conhecer dos factos dos presentes autos não deve ser efectuada em função do conteúdo da acusação, mas sim do teor do auto de denúncia (G.N.R. de Seia) e restantes elementos indiciários existentes nos autos, pelo que é argumento não relevante para a rejeição da acusação, tendo em conta a conjugação dos artigos 19.º e 21.º, ambos do CPP.
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C - Decisão:
Nesta conformidade, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, determinando-se a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que designe data para a realização da audiência de julgamento.
Sem tributação.
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(Texto processado e integralmente revisto pelo relator)


Coimbra, 7 de Julho de 2010,

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(José Eduardo Martins)

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(Paulo Guerra)