Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2560/10.9TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE
FUNDAMENTOS DE FACTO
Data do Acordão: 10/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 619º E 621º NCPC, ANTERIORES ARTS. 671º E 673º DO CPC.
Sumário: I – A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo uma total identidade entre ambas as causas.

II - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença (razão de certeza ou segurança jurídica), não se exigindo a tríplice identidade.

III - Os fundamentos de facto não assumem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado.

IV - Nos casos em que a reconvenção é legalmente imposta ou em que a necessidade resulta indirectamente da lei material, a reconvenção torna-se “necessária ou compulsiva”, logo, na sua falta, o réu fica inibido de propor acção autónoma.

Decisão Texto Integral:



Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1.1.- A Autora – M..., Lda. – instaurou (31/12/2010) na Comarca de Pombal acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus – J... e mulher M...

            Alegou, em resumo:

            A Autora é uma sociedade destinada à exploração de lar de idosos e, em 19/5/2009, adquiriu, para o efeito, em locação financeira, à C... Leasing e Factoring SA, a fracção autónoma designada pela letra B do imóvel sito na Rua ..., inscrito na matriz respectiva sob o artigo ..., correspondente ao r/c esquerdo.

            Os Réus nunca entregaram as seguintes partes integrantes da fracção “B”, situados na ala poente do Lar: arrumos (4 divisões), sala de pessoal, sala de refeitório de pessoal, casa de banho, vestiário e arrecadação.

Tal lar dispõe das licenças camarárias e do Instituto de Segurança Social, mas não pode fornecer as condições necessárias para os utentes e funcionários.

Os Réus venderam essa parte do imóvel para que a Autora continuasse no edifício a actividade de lar, e reservaram para eles uma outra parte, a que veio a corresponder a fracção “A”, por constituição de propriedade horizontal.

Os Réus ocupam ilicitamente parte da fracção “B” do imóvel, bem sabendo que lhes não pertence, causando prejuízo económico.

Pediu cumulativamente:

a) Seja declarado que as divisões identificadas no art. 6º da p.i. integram a fracção B) do imóvel referido no art.1º da petição;

b) A condenação dos Réus a entregar-lhe tais divisões e a indemnizá-la pelo custo da sua reposição nas condições anteriores;

c) A condenação dos Réus a indemnizá-la dos danos que lhe estão a causar e que se venham a apurar, que liquidam em €42. 000,00.

Contestaram os Réus, defendendo-se, além do mais, com a excepção da litispendência, por estar pendente acção (processo nº...) onde se discute exactamente a mesma questão.

Nela pretende-se o reconhecimento do direito de propriedade dos ora Réus sobre a fracção “A”, incluindo a totalidade do rés-do-chão/cave da casa de habitação, onde se encontra a cozinha, por uma relação de inclusão. Pelo facto de a Autora vir aqui discutir apenas uma parte desse mesmo rés-do-chão, não deixa de haver identidade do pedido. A causa de pedir é a mesma, ou seja, o direito de propriedade sobre determinadas divisões do prédio, e existe identidade das partes em ambas as acções.

Concluíram pela procedência da excepção de litispendência e requereram a condenação da Autora como litigante de má-fé.

            Replicou a Autora contraditando a excepção de litispendência, porque embora admita a identidade de sujeitos e de causa de pedir, nega a identidade de pedidos, na medida em que no processo nº ... se pretende o direito de propriedade sobre uma cozinha, nesta acção pede-se o reconhecimento do direito de propriedade sobre outras divisões do mesmo imóvel.

            1.2. - No saneador decidiu-se julgar procedente a excepção da litispendência e absolver os Réus da instância e condenar a Autora como litigante de má fé na multa de 4 UC.

            1.3. - Inconformada, a Autora recorreu de apelação, e a Relação, por acórdão de 27/3/2012, confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, revogou a sentença e ordenou o prosseguimento do processo.

            1.4.- Por despacho de 7/12/2012 elaborou-se saneador e o saneamento do processo.

            1.5. – Os Réus juntaram certidão da sentença proferida no proc. nº ... e, após garantido o contraditório, foi proferida (3/7/2015) sentença que decidiu:

“ Pelo exposto, o Tribunal decide julgar integralmente improcedente a presente ação n.º ... proposta por M..., Lda., contra J... e M..., e consequentemente absolver os RR. dos pedidos deduzidos pela autora M..., Lda.”

            1.6.- Inconformada, a Autora recorreu de apelação com as seguintes conclusões:

...

            Os Réus contra-alegaram no sentido da improcedência do recurso.


II - FUNDAMENTAÇÃO

            2.1.- O objecto do recurso

            A questão submetida a recurso, delimitado pelas conclusões, consiste na análise das implicações, para a apresente acção, das decisões proferidas nos processos nº ... e nº ..., designadamente no âmbito do caso julgado.

            2.2.- Os factos provados
a) Os elementos relevantes do proc. nº ...

            J... e mulher M... instauraram acção declarativa contra M..., Lda e C... Leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito SA, pedindo que se declare anulado o contrato de compra e venda celebrado em 19/5/2009.

            Alegaram, em resumo:

            Em 2002, ao lado da casa de habitação, construíram no mesmo prédio um edifício destinado a lar de terceira idade, constituíram em propriedade horizontal, passando a existir duas fracções: A e B, correspondendo esta ao edifício do lar.

            Venderam a fracção B à 2ª Ré que a deu de locação à 1ª Ré, sendo que dela não faz parte os arrumos (4 divisões), sala de pessoal, sala de refeitório de pessoal, casa de banho, vestiário e arrecadação. Na verdade, estas divisões, bem como todo o rés-do-chão da casa de habitação dos Autores sempre fez parte dela, nunca quiseram aliená-las, nem fazem parte da fracção B.

            Invocaram, assim, o erro sobre o objecto.

            Contestou a Ré M..., Lda por excepção e impugnação, deduzindo reconvenção, para o caso de procedência da acção, pedindo a condenação dos Autores a pagar-lhe a quantia correspondente à diferença que se vier apurar entre € 1.350.00,00 e o valor que os reconvindos tiverem que devolver à 2ª Ré, corresponde ao valor da fracção autónoma, benfeitorias e do estabelecimento comercial aí instalado, acrescida de juros moratórios desde a citação.

Por sentença de 15/7/2014, transitada em julgado, decidiu-se julgar a acção improcedente a absolver as Rés do pedido.

            Na sentença deu-se como provado, além do mais, que

            24. Os Autores haviam acordado com os legais representantes da 1ª Ré que esta utilizaria a zona da cozinha, despensa e casa de banho, que integram o rés-do-chão da sua vivenda (fracção “A”) enquanto procedia à construção de uma cozinha no Lar (fracção”B”), assumindo todos os encargos necessários.

            26. Entre os AA e a 1ª Ré foi acordado que esta devolveria as instalações ditas em 24. Seriam restituídas em prazo exacto não apurado, mas que em todo o caso seria de cerca de três meses, ou seja, após o prazo previsto para a edificação da cozinha na fracção “B”.

            27. Decorrido o prazo previsto para a devolução da cozinha, apesar das várias interpelações para o efeito, a 1ª Ré não procedeu à sua entrega.

            28. O que despoletou a propositura da acção declarativa de condenação descrita em 11

            29. As divisões reclamadas na acção descrita em 11, nunca fizeram parte do Lar porquanto apesar de projectadas nunca passaram do papel.

            30. Das divisões planeadas para o Lar, discutidas nas duas acções, de facto só foi construída a cozinha, que resultou da transformação de um dos quartos que já existia no rés-do-chão da vivenda dos autores.

            31. A parte restante do rés-do-chão, discutida em 11, mesmo após a edificação do Lar foi sempre utilizada pelos autores como habitação.
b) Os elementos do proc. nº ...

            Os Autores J... e mulher M... instauraram (10/5/2010) na Comarca de Pombal acção declarativa, com forma de processo sumário (Proc. nº...) contra a Ré M..., Lda

            Alegaram, em resumo:

            São donos e legítimos possuidores de um prédio urbano, sito na Rua ..., onde construíram um edifício destinado a Lar de Terceira Idade, composto por cave, rés-do-chão, sótão e logradouro, que adquiriram por usucapião.

            Em 2008 os Autores decidiram vender o edifício onde funciona o Lar da Terceira Idade, pelo que constituíram o prédio em propriedade horizontal, transformando os dois edifícios em duas fracções distintas, sendo que a fracção A é a casa de habitação e a fracção B o Lar da Terceira Idade.

            Por escritura pública de 19/5/2009 venderam à Ré a fracção B.

Aquando da celebração do contrato promessa de compra e venda acordaram com o legal representante da Ré que esta utilizaria uma parte da fracção A, sita na zona do r/c que, apesar daqueles pretenderam destiná-la a garagem, se encontra a servir de cozinha de apoio ao lar, enquanto procedia à construção de uma cozinha na fracção B, obrigando-se a Ré a entrega-la no fim de três meses.

Apesar de instados, a Ré nunca mais entregou aos Autores a dita cozinha, bem como as partes a ela afectas (despensa, hall e casa de banho para pessoal), ocupando tal espaço abusivamente, causando prejuízos económicos.

Pediram cumulativamente:

a).- Seja declarado que a fracção “A” do prédio identificado no art.1º, onde se inclui a referida cozinha e partes a ela afectas, é propriedade dos Autores;

b) A condenação da Ré a restituir aos Autores essa parte e abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte dos Autores;

            c) A condenação dos Réus no pagamento de uma indemnização de € 14.250,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação;

            d) Requer que seja executada judicialmente a sentença, caso a Ré venha a ser condenada no pagamento de uma quantia certa, nos termos do art.48 da Portaria nº 331-B/2009 de 30/3.

            Contestou a Ré, alegando, em síntese, que a referida cozinha pertence de pleno direito à fracção B, de que é proprietária a C... Leasing e Factoring SA, como resulta da escritura de constituição da propriedade horizontal.

            Em reconvenção pediu:

            - Seja restituída de imediato a cozinha à Ré, dado que lhe pertence na qualidade de locatária, na sequência de contrato de locação financeira efectuado com a proprietária do imóvel;

            - A condenação dos Autores a liquidar o pedido reconvencional pelo prejuízos causados durante todo o tempo em que a mesma estiver privada da utilização da cozinha, a fixar em liquidação de sentença.

            Por sentença de 24/1/2013, transitada em julgado, decidiu-se:

            Julgar a acção parcialmente procedente e condenar a Ré a reconhecer que a fracção “A” do prédio identificado em “1” a “3” e “8” da factualidade provada é propriedade dos Autores;

            Absolver os Autores/reconvindos do pedido reconvencional.

            2.3.- O caso julgado

            2.3.1.- A sentença recorrida absolveu os Réus do pedido (e não da instância) com fundamento na autoridade do caso julgado da sentença proferida no processo nº ..., porque “ apesar de se julgarem improcedentes os pedidos de anulação do contrato de compra e venda da fracção B formulados por J... e M..., sempre julgou definitivamente, no confronto das mesmas partes (desta acção nº 2560/10.9TBPBL) ( arrumos ( 4 divisões), sala de pessoal, sala de refeitório de pessoal, casa de banho, vestiário e arrecadação, situadas na ala poente do lar) pertencem à fracção A ( de J... e M...) e não da fracção B ( da M..., Lda ) pelo que resta reconhecer tal efeito de autoridade de caso julgado, para o agora peticionado nesta acção, mas sem necessidade julgamento, por efeito de autoridade de caso julgado”.

            Além disso, refere a sentença:

“ Acresce que no âmbito da ação n.º ... a (agora) autora, em sede de contestação, não reivindicou, nem aí alegou em sede de defesa, ser proprietária das divisões agora em causa nesta ação n.º 2.560/10.9TBPBL,  o  que  teria necessariamente de fazer (já que os agora réus aí então o peticionaram) sob pena de preclusão, e sob pena de tais questões, por efeito de autoridade de caso julgado (que abrange as questões que, podendo ser suscitadas, não o foram tempestivamente ou de modo próprio), não mais poderem ser postas em causa, pelo que também não se poderia prevalecer de tal invocação no âmbito desta ação n.º 2.560/10.9TBPBL – arts. 573.º, 580.º, 581.º, do NCPC.”.

2.3.2. A pretensão deduzida pela Autora enquadra-se no âmbito da locação financeira, que é um contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa móvel ou imóvel, adquirida ou construída, por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável, mediante simples aplicação de critérios fixados ( cf. art. 1º do DL n.º 149/95 de 24/6).

A relação económica estabelece-se de forma triangular entre o vendedor, o locatário e o locador (adquirente do bem), funcionando o contrato de locação como uma forma de financiamento ou concessão de crédito, o que remete para a figura da união de contratos, havendo quem defenda tratar-se mesmo de um tipo novo de contrato. Na verdade, é o interessado na locação financeira quem escolhe o bem e se dirige ao fornecedor para o efeito, e não o comprador ( locador financeiro ) que não intervém na negociação, e por isso mesmo não responde pelos vícios ou inadequação da coisa, prevendo a lei uma relação directa entre o fornecedor e o locatário, que fica legitimado a exercer contra o vendedor (os aqui Réus) todos os direitos relativos ao bem locado ou resultantes do contrato de compra e venda ( art.1º e 13º do DL nº 149/95 de 24/6 ).

            É nesta perspectiva que deve interpretar-se a presente acção, na qual, alegando a qualidade de locatária da fracção “B”, a Autora pede a condenação dos Réus vendedores na entrega das divisões identificadas no art. 6º da petição, que diz integrarem a referida fracção locada, e que estão abusivamente ocupadas pelos Réus.

            O pedido reporta-se às divisões identificadas no art. 6º da petição e que são “arrumos (4 divisões), sala de pessoal, sala de refeitório de pessoal, casa de banho, vestiário e arrecadação”.

            2.3.3. As implicações da sentença absolutória proferida na acção nº ... e o caso julgado material

A expressão “caso julgado“ é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado“, ou seja, caso que foi objecto de um pronunciamento judicativo, pelo que, em sentido jurídico, tanto é caso julgado a sentença que reconheça um direito, como a que o nega.

            O caso julgado material (arts.619 e 621 nCPC, anteriores arts. 671 e 673) implica dois efeitos - um negativo e outro positivo – sendo em face deles que se distingue a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado ( cf., para a distinção de ambas as figuras, cf., por ex., MANUEL DE ANDRADE, Noções elementares de processo Civil, pág. 320, ANSELMO DE CASTRO, Direito processual civil declaratório, vol. III, pág. 384, TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, pág. 576, e “O objecto da sentença  e o caso julgado material “, BMJ 325, pág.171, MARIA JOSÉ CAPELO, A Sentença entre a Autoridade e a Prova, pág.43 e segs.)

A excepção do caso julgado pressupõe uma tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir (arts.580 e 581 nCPC, anteriores arts.497 e 498) e distingue-se da autoridade do caso julgado, onde este se manifesta no seu aspecto positivo.
Definindo o âmbito de aplicação de cada um dos conceitos, refere TEIXEIRA DE SOUSA:
            “A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contraria na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (...).Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente ( “ O objecto da sentença e o caso julgado material”, BMJ 325, pág.171 e segs. ).
     A jurisprudência tem acolhido esta distinção (cf., por ex., Ac do STJ de 26/1/94, BMJ 433, pág.515, Ac STJ de 10/10/2012 ( proc. nº 1999/11), Ac STJ de 21/3/2013 ( proc. nº 3210/07), disponíveis em www dgsi.pt), sendo que para a autoridade do caso julgado não se exige a coexistência da tríplice identidade.
            Neste contexto, pode distinguir-se ambos os institutos da seguinte forma:
            A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo uma total identidade entre ambas as causas.
            A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença ( razão de certeza ou segurança jurídica ), não se exigindo a tríplice identidade.

            Discutiu-se na acção o problema da anulação do contrato de compra e venda da fracção “B”, por alegado erro sobre o objecto, mas foi julgada improcedente.

            A sentença considera, no entanto, que a decisão sobre os factos provados (cf. pontos 24 a 31) se impõe pela autoridade do caso julgado, mas sem qualquer consistência jurídica.
Com efeito, o caso julgado incide sobre a decisão e não abrange os fundamentos de facto, conforme orientação doutrinária e jurisprudencial prevalecente.

Neste sentido, elucida ANTUNES VARELA (Manual de Processo Civil, 1984, pág 697) – “Os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final”.
Também TEIXEIRA DE SOUSA (Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 577), para quem “os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado”.

No âmbito jurisprudencial, por ex. Ac do STJ de 2/03/2010, ( proc. n.º 690/09.9), disponível em www.dgsi.pt/jstj, onde se afirma – “(…) a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se sobretudo ao nível da decisão, da sentença propriamente dita, e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela. Os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente: prova evidente do que acaba de ser dito é o que está estipulado no n.º 2 do artigo 96 do Código de Processo Civil – “A decisão das questões e incidentes suscitados não constituem, porém, caso julgado fora do processo respectivo, excepto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia”.

No mesmo sentido o Ac STJ de 5/5/2005 (proc. nº 05B691), em www dgsi.pt, ao decidir que “ Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial. Transpor os factos provados numa acção para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui”.

            Por outro lado, perspectivando-se no âmbito do valor probatório da sentença, enquanto documento público, os factos apreciados num processo não se impõem noutro processo, porque a sentença prova plenamente a realização do julgamento ( dos actos praticados pelo juiz), mas não quanto à realidade dos factos dados como provados. Daqui resulta, na esteira de Calamandrei, a rejeição de qualquer “eficácia probatória “ das premissas de uma decisão ( cf. MARIA JOSÉ CAPELO, loc. cit., pág. 114 e segs.).

            2.3.4. As implicações do Proc. nº ...

            No Processo nº ... o que ambas as partes discutem é o espaço da cozinha, que os Autores (aqui Réus) dizem pertencer à fracção “A”, de que são proprietários, enquanto que a Ré (aqui Autora) pede em reconvenção a entrega da mesma.

            O pedido formulado é o de que seja declarado que “a fracção “A” do prédio identificado no art.1º, onde se inclui a referida cozinha e partes a ela afectas, é propriedade dos Autores” e a entrega da mesma.

            Contrariamente ao decidido na sentença, não estamos perante pedidos idênticos, pois nesta acção peticiona-se expressamente a entrega de uma parte da fracção, ocupada ilicitamente pelos Réus, com uma identificação precisa dos espaços, sem qualquer referência à cozinha, logo o efeito jurídico pretendido não é o mesmo.

            Aliás, já no acórdão do STJ de 16/10/2012 (fls. 425 e segs.) salientou-se, precisamente, a “inexistência de coincidência identificativa entre as referidas partes da fracções em causa (…)”.

            A sentença recorrida diz o seguinte:

“ Acresce que no âmbito da ação n.º ... a (agora) autora, em sede de contestação, não reivindicou, nem aí alegou em sede de defesa, ser proprietária das divisões agora em causa nesta ação n.º  2.560/10.9TBPBL  (cfr. fls. 163 e  ss.),  o  que  teria necessariamente de fazer (já que os agora réus aí então o peticionaram) sob pena de preclusão, e sob pena de tais questões, por efeito de autoridade de caso julgado (que abrange as questões que, podendo ser suscitadas, não o foram tempestivamente ou de modo próprio), não mais poderem ser postas em causa, pelo que também não se poderia prevalecer de tal invocação no âmbito desta ação n.º 2.560/10.9TBPBL – arts. 573.º, 580.º, 581.º, do NCPC.”.

            Este fundamento tem subjacente a problemática da chamada “reconvenção necessária” e da preclusão, no que tange à falta de exercício da reconvenção, sendo que segundo determinado entendimento a preclusão pode integrar-se no âmbito da autoridade do caso julgado (cf., por ex., Ac STJ de 29/5/2014 ( proc. nº 1722/12), em www dgsi.pt ), embora para TEIXEIRA DE SOUSA ainda que a preclusão possa operar através do caso julgado, ela assume autonomia, porque dele se emancipou (cf. “Preclusão e Caso Julgado”, publicado no blogue do IPPC, 2016).

            Coloca-se, pois, a questão de saber se não tendo a aqui Autora pedido em reconvenção na acção nº ... o reconhecimento do direito de propriedade sobre as divisões identificadas no art.6º da petição e que são “ arrumos (4 divisões), sala de pessoal, sala de refeitório de pessoal, casa de banho, vestiário e arrecadação”, está impedida de o fazer (na presente acção), por força da preclusão.

            Para a doutrina clássica, sendo a reconvenção facultativa, ou seja, inexistindo o respectivo ónus da parte, vigora o princípio da liberdade de escolha entre reconvir e acção autónoma.

            A doutrina moderna é no sentido de que sempre que a reconvenção seja legalmente imposta ou nos casos em que a necessidade resulta indirectamente da lei material, por assentar nas normas reguladoras dos direitos subjectivos privados, a reconvenção torna-se “necessária ou compulsiva”, logo, na sua falta, o réu fica inibido de propor acção autónoma por força do caso julgado, visto que “o caso julgado cobre (rectius, prelude) o deduzido e o dedutível” (cf. sobre o tema, MIGUEL MESQUITA, Reconvenção e Excepção no Processo Civil, pág. 415 e segs.). A jurisprudência vem aderindo a este entendimento (cf., por ex., Ac STJ de 10/10/2012 ( proc. nº 1999/11), em www dgsi.pt).

            Contudo, devido precisamente à falta de coincidência dos elementos da fracção, não fica afectado o resultado alcançado na acção anterior, ou seja, a presente acção de forma alguma “anula”, torna inoperante o decidido na acção nº..., porque os pedidos não são incompatíveis.

            2.4.- Síntese conclusiva
            a)A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo uma total identidade entre ambas as causas.
            b)A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença (razão de certeza ou segurança jurídica), não se exigindo a tríplice identidade.
c) Os fundamentos de facto não assumem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado.

d) Nos casos em que a reconvenção é legalmente imposta ou em que a necessidade resulta indirectamente da lei material, a reconvenção torna-se “necessária ou compulsiva”, logo, na sua falta, o réu fica inibido de propor acção autónoma.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar a apelação procedente a revogar a sentença, ordenando-se o prosseguimento da acção.

2)

            Condenar os Apelados nas custas.

            Coimbra, 11 de Outubro de 2016.


( Jorge Arcanjo )

( Manuel Capelo )

( Falcão de Magalhães )