Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
146/13.5TBTND-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
INVENTÁRIO
CABEÇA DE CASAL
ADMINISTRAÇÃO
QUOTAS SOCIAIS
ARROLAMENTO
Data do Acordão: 02/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.2079, 2087, 2093 CC, 67 CSC, 406, 409 CPC
Sumário: 1.- O cabeça de casal está obrigado a prestar contas dos bens cuja administração exerceu e, em processo de inventário, as contas a prestar, só podem respeitar ao período temporal em que, após a nomeação para o cargo, administrou os bens da herança.

2.- Sendo relacionadas em processo de inventário as quotas de uma sociedade, a sua administração (em si mesmas consideradas e não dos bens das referidas sociedades) incumbe ao cabeça de casal.

3.- A administração das quotas societárias pelo cabeça de casal, relacionadas em processo de inventário, não deve confundir-se com a administração das sociedades, que continua a ser assegurada pelos respectivos órgãos sociais.

4.- As funções de cabeça de casal sobrepõem-se às do depositário dos bens arrolados, nos termos do art. 409 nº1 CPC.

Decisão Texto Integral:



            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

M (…)  propôs a presente acção especial de prestação de contas contra E (…) , já ambos identificados nos autos, por apenso aos autos de inventário que sob o nº 146/13.5tbtnd-A correm termos no Tribunal recorrido.

Para tal invocou, em síntese, que o réu ficou depositário das quotas de duas sociedades (verbas nº 24 e 25 da relação de bens mais actualizada constante dos autos de inventário, e já não 28 e 29, como vem referido na p.i.) nos autos de arrolamento, pretendendo que venha prestar contas da administração de tais quotas.

Refere a autora, para justificar o pedido, que o réu tem vindo a “receber todos os proveitos dessa administração”, que o mesmo “encontra-se desde 2013 na posse exclusiva das quotas sociais administrando e retirando para si próprio em exclusivo os proveitos e lucros desses bens: vendendo e comprando bens móveis e imóveis e gerindo os valores existentes nas contas bancárias”.

O réu veio opor-se, invocando desde logo a ilegitimidade activa da autora e alegando que esta tem acesso à prestação de contas de ambas as sociedades e que tem sido ela a tirar proveito do património das sociedades sem prestar contas.

Por despacho proferido em 01-06-2018, foi determinado que:

 “ Face à alegação efectuada, no confronto com o pedido formulado, afigura-se que o que a requerente pretende é mais propriamente a prestação de contas das sociedades cujo capital social é integrado por aquelas quotas, do que propriamente a prestação de contas da administração destas últimas pelo cabeça de casal nomeado no inventário.

Considerando que a administração das mencionadas sociedades continua a ser assegurada pelos seus órgãos de administração estatutariamente designados, o que não está em causa nestes autos nem foi beliscado pela nomeação de cabeça de casal das quotas relacionadas, e considerando que a administração, pelos respectivos órgãos de administração estatutariamente designados, das mencionadas sociedades não se confunde com a administração, pelo cabeça de casal, das quotas sociais de tais sociedades relacionadas no inventário, determino que a cabeça de casal venha esclarecer, no prazo de dez dias, a que actos/negócios incidentes sobre as aludidas quotas sociais, de per si, faz referência na p.i, dada a confusão evidenciada entre a administração das sociedades em causa e das quotas sociais relacionadas”.

Veio esclarecer a autora que, através da presente acção, pretende o esclarecimento de actos de disposição levados a cabo relativamente a bens imóveis que integram o património das sociedades em causa – fls. 89 e seg.

Em 05-09-2018, foi determinado que:

“ Segundo resulta da informação prestada pela requerente, esta pretende que sejam prestadas contas não propriamente sobre a administração das quotas sociais, de per si, arroladas nos autos apensos, mas sobre actos de administração/disposição levados a cabo sobre concretos bens que integram o património social das sociedades relativamente às quais foram arroladas as ditas quotas sociais.

Por entender que não se integra no objecto destes autos a prestação de contas relativamente à administração do património dessas sociedades, mas apenas relativamente às concretas quotas arroladas, determino a notificação das partes para se pronunciarem, querendo, em dez dias, acerca da possibilidade de não ser reconhecida a obrigação de prestar contas pelo réu relativamente ao concreto objecto enunciado, face aos fins visados, e agora esclarecidos, com a propositura da presente acção (art. 3º, nº 3 do CPC)”.

Veio a autora reiterar o pedido formulado – fls. 121 e seg.

O réu veio pugnar pelo indeferimento da pretensão formulada – fls. 123 e seg.

Conclusos os autos à M.ma Juiz a quo, foi proferido despacho saneador-sentença, no qual se procedeu ao saneamento dos autos, julgando-se improcedente a alegada excepção de ilegitimidade da autora; se fixou a factualidade dada como provada e respectiva fundamentação e a final, se decidiu o seguinte:

“Pelo exposto, declaro que o réu apenas está obrigado a prestar contas, na qualidade de depositário designado nos autos de arrolamento, pela administração das verbas referidas em 1), por referência ao período decorrido entre 28.01.2014 e 18-02-2014 e determino a notificação do réu para as apresentar dentro de 20 (vinte) dias, sob pena de não lhe ser permitido contestar as que a autora apresente, nos termos do art. 941º nº 5 do CPC.

No mais, declaro que o réu não está obrigado a prestar contas, na qualidade de depositário designado nos autos de arrolamento, pela administração das verbas referidas em 1) para além do período temporal atrás mencionado.

Custas a suportar pelas partes na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em dois terços para a autora e um terço para o réu (considerando o peso relativo das pretensões/posições sustentadas por cada um deles) - 527º do CPC.”.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso, a autora, M (…) , recurso, esse, admitido como de apelação, com subida, imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo (cf. despacho de fl.s 160), finalizando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

(…)

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.         

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se existe a obrigação do réu em prestar contas, para além do período temporal decorrido entre 28/01/2014 e 18/02/2014, em virtude de continuar a ser o depositário dos bens arrolados, não obstante ser a autora a exercer as funções de cabeça de casal no processo de inventário, de que os presentes autos constituem apenso, por tal não implicar a substituição daquele na administração dos bens arrolados.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1) Encontram-se relacionadas nos autos de inventário, entre outras, as seguintes verbas com os nº 24 e 25, anteriormente relacionadas sob os nº 28 e 29:

24º - quota no valor nominal de 5000€ da sociedade F (…) Unipessoal Lda (…), com o capital social de 5000€, sócio-gerente E (..)

25º - quotas no valor nominal de 14.250€ e 750€ da sociedade S (…), Lda com o capital social de 15.000€, sócios E (…) (gerente) com uma quota de 14.250€ e M (…) com uma quota de 750€ - fls. 1025 e seg dos autos de inventário.

2) Por decisão proferida em 22.03.2017 nos autos de inventário foi determinada a avaliação das quotas referidas em 1) reportada à data do divórcio – 19-03-2013 - e no momento actual - fls. 997 e seg dos autos de inventário.

3) Do relatório de avaliação junto a fls. 1090 e seg dos autos de inventário, que foi aceite pelos interessados, resulta que a verba nº 28 tinha, em 19-03-2013, o valor de 247.862€ e, em 31.12.2016, o valor de 59.821€.

4) Do relatório de avaliação junto a fls. 1090 e seg dos autos de inventário, que foi aceite pelos interessados, resulta que a verba nº 29 tinha, em 19-03-2013, quanto à quota de E (…) o valor de 172.434€ e, quanto à quota de M (…), o valor de 9.075€ e, em 31.12.2016, os valores de 118.551€ e 6240€, respectivamente.

5) Na conferência de interessados realizada a 13.12.2017 nos autos de inventário, os interessados fixaram por acordo às quotas referidas em 1) os valores que constam da avaliação – fls. 1221 e seg. dos autos de inventário.

6) Por despacho de 2/07/2013 nos autos de inventário, foi nomeado, para exercer as funções de cabeça-de-casal, E (…) tendo sido, por despacho de 28.01.2014, deferido o pedido de escusa do cabeça de casal e nomeado, em substituição do mesmo, a interessada M (…), a qual tem vindo a exercer tais funções nos aludidos autos desde 18-02-2014, altura em que prestou compromisso de honra.

7) Por acordo judicialmente homologado nos autos de procedimento cautelar apensos em 29 de Janeiro de 2014, ficou o ora requerido depositário das verbas referidas em 1).

Se existe a obrigação do réu em prestar contas, para além do período temporal decorrido entre 28/01/2014 e 18/02/2014, em virtude de continuar a ser o depositário dos bens arrolados, não obstante ser a autora a exercer as funções de cabeça de casal no processo de inventário, de que os presentes autos constituem apenso, por tal não implicar a substituição daquele na administração dos bens arrolados.

Como resulta do anteriormente exposto, a recorrente defende que o réu deve prestar contas, para além do período em que exerceu as funções de cabeça de casal, com fundamento em ser o depositário dos bens arrolados e ter sido ele a negociar e transaccionar os bens que fazem/faziam parte do património das sociedades, cujas quotas se encontram relacionadas no processo de inventário de que os presentes constituem apenso.

Desde já, cumpre salientar, como, também, referido na decisão recorrida, que a prestação de contas aqui requerida, versa (e apenas pode versar) sobre as quotas societárias acima referidas, descritas na relação de bens, e não sobre os concretos bens, que fazem parte do património da sociedade.

Efectivamente, no domínio do actual Código das Sociedades Comerciais (cf. seu artigo 67.º), o processo próprio de obter judicialmente a prestação de contas, relativamente à actividade societária, é através do inquérito a que se alude no seu artigo 67.º - neste sentido, entre outros, o Acórdão do STJ, de 07 de Janeiro de 2010, Processo n.º 642/06.0YXLSB-A.C1, disponível no respectivo sítio do itij.

Assim e como se considerou na sentença recorrida, aqui, está apenas em causa a administração das quotas em si mesmas consideradas e não dos bens das referidas sociedades, cuja administração, nos termos legais, incumbe aos órgãos societários para tal incumbidos, a sindicar, nos moldes previstos no Código das Sociedades Comerciais.

Sociedades e sócios são entidades distintas (embora, amiúde, se esqueça tal diferença), sendo que os bens da sociedade pertencem a esta e não aos sócios.

O que, desde logo, por inexistência de bens em concreto, pertença ou comuns, das ora partes, afasta a aplicabilidade do disposto no artigo 1789.º, n.º 1, do Código Civil. Aqui não se trata de bens comuns das partes, mas bens pertença da sociedade, pelo que, como acima já referido, só podem ser objecto de prestação de contas judicialmente requerida, nos moldes constantes do artigo 67.º do CSC.

Cingindo-se, assim, a questão à administração das quotas das sociedades, arroladas nos autos de inventário, tem a mesma de ser decidida por reporte aos poderes conferidos à cabeça de casal.

Como decorre do disposto no artigo 2079.º do CC, é à cabeça de casal que incumbe a administração da herança, até à sua liquidação e partilha.

Regendo o seu artigo 2087.º, quanto ao acervo dos bens sujeitos à administração do cabeça de casal, dali se concluindo que administra todos os que constituem os bens da herança a partilhar, conferindo-se-lhe, ainda, o direito de requerer a entrega de bens que estejam em poder de terceiro ou de outro herdeiro (artigo 2088.º), cobrar dívidas (artigo 2089.º) e proceder à venda de bens e satisfazer encargos da administração (cf. artigo 2090.º).

Daí que, como refere Augusto Lopes Cardoso, in Partilhas Litigiosas, Vol. II, Almedina, 2018, a pág.s 250 e 251, se pode concluir que: “A prestação de contas alcança os bens que o cabeça-de-casal efectivamente administrou como tal, desde que iniciou funções com a abertura da herança e, com reforço, depois que prestou juramento em inventário de bem exercer as respectivas funções.

Isto é, por princípio abrange todo o acervo hereditário”.

Incumbe ao cabeça de casal, a prestação de contas, nos termos previstos no artigo 2093.º do CC, como “garantia de que essa administração será exercida com diligência, competência e honestidade e que o administrador se não afastará das regras que a prudência indica e a probidade impõe” – cf. autor e ob. cit., pág. 243.

Reiterando a pág.s 268/9 que “o cabeça-de-casal só é obrigado a prestar as contas dos bens cuja administração efectivamente exerceu e não daqueles que outrem deteve e administrou”, o que se prende com a questão da obrigatoriedade de prestação de bens em poder de terceiro, que persistiu na respectiva administração, caso em que se manterá a obrigatoriedade de prestação de contas “mas sem se poder afirmar que se mantém uma situação correspondente à de cabeça-de-casal. Basta considerar que não lhe incumbem deveres processuais alguns nem está sujeito às penalidades que são próprias do incumprimento do cabeçalato” – ob. cit., pág.s 269/70.

Ou seja, o cabeça de casal é que está obrigado a prestar contas dos bens cuja administração exerceu e, em processo de inventário, as contas a prestar, só podem respeitar ao período temporal em que, após a nomeação para o cargo, administrou os bens da herança – neste sentido, para além do Aresto do STJ, já acima referido, o de 09 de Junho de 2009, Processo n.º 225-A/2000.S1, disponível no mesmo sítio do anterior.

Assim, impõe-se concluir que fazendo as referidas quotas societárias, parte dos bens relacionados nos autos de inventário, de que os presentes constituem apenso, a respectiva administração incumbe ao cabeça-de-casal e, por isso, nos termos expostos, é a este que incumbe a respectiva administração.

Uma vez que o réu só exerceu as funções de cabeça-de-casal, de 28 de Janeiro a 18 de Fevereiro de 2014, só lhe incumbe a prestação de contas, nesse período temporal, estando a cargo da autora, na qualidade de cabeça-de-casal, a prestação de contas, no período em que exerceu tais funções.

E nem a tal obsta o facto de o réu ter sido nomeado depositário das referidas quotas no âmbito do processo de arrolamento e nos termos do disposto no artigo 760.º, n.º 1, in fine, ex vi artigo artigo 406.º, n.º 5, ambos do CPC, também estar obrigado a prestar contas.

Estamos no domínio de inventário incidental da acção de divórcio, em que o arrolamento apenas tem em vista a descrição dos bens próprios ou comuns que estejam sob a administração do outro – cf. artigo 409.º, n.º 1, do CPC.

Do que decorre que a cabeça de casal não perde a possibilidade de administrar tais bens, uma vez que, como acima já exposto, lhe incumbe a administração de todos os bens que constituem a herança, podendo, até, requerer a entrega dos que estejam em poder de terceiro ou de outro herdeiro.

Assim, as funções de cabeça de casal sobrepõem-se às do depositário dos bens arrolados e em caso de impossibilidade – não alegada – de exercer, de facto, a administração de tais bens, poderia a cabeça de casal, reagir contra tal situação.

Sem esquecer, como inicialmente se referiu, que, o que verdadeiramente pretende a autora – a prestação de contas sobre as vendas e fruição dos bens que fazem parte do acervo das sociedades a que se referem as ditas quotas – não pode ser feito no âmbito dos presentes autos, mas apenas e tão só, através do recurso ao inquérito judicial a que se alude no artigo 67.º do CSC.

Consequentemente, não vislumbramos razões para alterar a decisão recorrida.

Pelo que, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Coimbra, 26 de Fevereiro de 2019.

Arlindo Oliveira  ( Relator )

Emídio Santos

Catarina Gonçalves