Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
430/11.2TBMLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: PROCESSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
ADMOESTAÇÃO
Data do Acordão: 04/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA MEALHADA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 51º, N.º 1, DO REGIME GERAL DAS CONTRA-ORDENAÇÕES E COIMAS
Sumário: O Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (D.L. n.º 433/82, de 27/10) estabelece, no seu artigo 51º, n.º 1, que “Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.”

Pese embora a inserção sistemática do preceito em causa no Capítulo III, daquele Diploma Legal - “Da aplicação da coima pelas autoridades administrativas”, é de entender que a referência a “entidade competente” usada na redacção do referido normativo leva a que a admoestação possa ser aplicada, quer na fase administrativa, quer na fase judicial, ou seja, na fase de recurso judicial da decisão administrativa.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
No âmbito do processo de contra-ordenação n.º 123/2011/DSAJAL, do Ministério da Agricultura, do mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, Comissão de Coordenação e desenvolvimento Regional do Centro, a arguida “W..., Lda.”, foi condenada, por decisão de 26/5/2011, pela prática da infracção ao disposto no n.º 1 do artigo 19.º, e al. a), do n.º 2, do artigo 34.º, do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de Abril, a pagar uma coima no valor de 2.500,00 (metade do mínimo legal – artigo 34.º, n.º 3, do DL n.º 78/2004, de 3 de Abril, na redacção dada pelo DL n.º 126/2006, de 3 de Julho) e custas no montante de 51,00.
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A arguida, notificada da decisão administrativa, impugnou-a judicialmente, em 30/6/2011, ao abrigo do disposto nos artigos 59.º e seguintes do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, defendendo a sua absolvição ou a aplicação de uma simples censura.
O recurso foi admitido, em 9/9/2011, já no âmbito do Processo de Recurso (Contra-Ordenação) n.º 430/11.2TBMLD, do Tribunal Judicial da Mealhada, Secção Única, tendo sido designada data para audiência de julgamento.
Esta veio a ter lugar, com observância do formalismo legal.
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Na sequência, foi, em 3/10/2011, proferida decisão na qual foi decidido manter a decisão da CCDRC, julgando-se, assim, improcedente o recurso.
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Inconformada com a decisão judicial, dela recorreu a arguida, em 31/10/2011, ao abrigo dos artigos 73.º e seguintes do RGCO, pedindo que viesse a ser revogada a decisão recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que a absolva ou que, simplesmente, a admoeste, apresentando as seguintes conclusões:
1. A recorrente interpõe recurso da decisão que, pela prática de uma infracção, a condenou na coima de dois mil e quinhentos euros.
2. A questão surge quanto à qualificação jurídico-contraordenacional da obrigação de comunicar a dispensa de monitorização de emissões poluentes.
3. A douta sentença violou o princípio in dubio pro reo.
4. A apreciação da prova há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e controlo.
5. A livre ou íntima convicção do juiz não pode ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável.
6. A valoração e apreciação da factualidade são efectuadas segundo as regras da experiência comum e a livre convicção.
7. O tribunal a quo, na motivação, não indicou fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade da convicção positiva quanto à prática da infracção.
8. O tribunal a quo não fundamentou suficientemente a razão porque aderiu sem mais à aplicação da coima fixada pela autoridade administrativa, sem que tivesse entendido como suficiente a atenuação especial da pena ou a admoestação, o que tudo constitui nulidade da decisão, de harmonia com o preceituado nos artigos 374.º/2 e 3 e 379.º/1/a, do CPP.
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O Ministério Público junto da 1ª instãncia respondeu ao recurso, em 15/11/2011, defendendo a sua improcedência, com a consequente manutenção da sentença recorrida, apresentando as seguintes conclusões:
1. O Tribunal a quo apreciou correctamente as provas produzidas em audiência de discussão e julgamento, cabendo tal apreciação, de qualquer forma e de maneira absolutamente adequada, na margem de liberdade de que o julgador sempre dispõe na apreciação da matéria de facto e que o legislador processual penal expressamente consagrou no artigo 127.º, do CPP.
2. O Tribunal indicou fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência comum, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção quanto aos factos dados como provados ou como não provados, sendo que é o julgador quem julga.
3. Não padece a sentença recorrida de contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, erro ou qualquer outro vício dos previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP.
4. Não enferma a sentença recorrida de qualquer nulidade, nomeadamente por alegada violação do artigo 379.º-1-a), do CPP, porquanto contém, além do mais, as menções referidas no artigo 374.º, n.ºs 2 e 3, al. b), do CPP.
5. A motivação da sentença é exaustivamente convincente, onde se mencionam as provas e as razões de ciência e todo o processo de formação da convicção do Tribunal.
6. Da motivação resulta que a convicção do Tribunal não é puramente subjectiva, intuitiva e imotivável, antes resultou da análise crítica e objectiva da prova. Em toda a sua motivação, há uma latente intenção de objectividade.
7. Não foram violadas quaisquer normas ou princípios, nomeadamente o artigo 32.º, n.º 2, da CRP, e os artigos 31.º e 32.º, do C. Penal.
8. Ao formar a sua convicção e posteriormente decidir, o Tribunal a quo não se deparou com qualquer dúvida insanável que o levasse a favorecer a a em obediência ao princípio in dubio pro reo.
9. Ponderando o quadro normativo e a factualidade apurada, é a pena aplicada à arguida justa e adequada.
10. Carece, de fundamento e relevância jurídica, o alegado pela recorrente, pelo que o mesmo é inócuo em sede de recurso.
11. Pelo que bem andou o Tribunal a quo, nenhuma censura merecendo a sentença recorrida que não violou qualquer preceito legal.
12. Deverá, assim, ser mantida a decisão agora em crise, considerando-se a não procedência do recurso interposto pela arguida.
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O recurso foi, em 24/11/2011, admitido.
Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, em 3/1/2012, no qual defendeu a procedência do recurso, embora por razões diversas das apontadas pelo recorrente, salientando o seguinte:
“(…)
2.1. – Assim, no parecer que nos cumpre emitir, importa, desde já, referir que nos parece correcta a decisão de direito, no que concerne à subsunção da factualidade provada à contra-ordenação, p. e p. pelos artigos 19.º, n.º 1, e 34.º, n.º 2, al. e), do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de Abril, por que foi sancionada a arguida.
Porém, insuficiente nos parece a materialidade fáctica para a aplicação da sanção e seu quantum, não obstante não descurarmos quão parca é, por vezes, a maleabilidade na aplicação de uma coima.
Mas, na realidade, neste caso concreto, nenhum facto acerca da situação económica e financeira da empresa se apurou.
Tal situação, na nossa perspectiva, traduz-se na insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, integradora do vício da alínea a), do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, vício este de conhecimento oficioso e insuprível neste Tribunal e que, consequentemente, a ser declarado, implicará a nulidade da decisão e importará o reenvio do processo para novo julgamento relativo apenas a esta questão de facto – situação económica e financeira da empresa – essencial para a concretização da pena (para além de muitos outros, cfr. Acórdão do S.T.J., de 6/11/2003, processo n.º 03P3370, http://www.dgsi.pt) – o que, pensamos, deverá determinar-se, nos termos do artigo 426.º, do CPP.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir. II. Decisão Recorrida:I. RELATÓRIO
1. Nos presentes autos de contra-ordenação vem W..., Lda, vem condenada na coima de 2.500 euros por haver infringido a disposição prevista no artigo 19º, nº1, do DL nº 78/2004, de 03.04, imputando-lhe a autoria dos factos descritos na decisão de fls. 90 ss.
2. A arguida apresentou a sua defesa, tendo sido o processo remetido a este tribunal para os efeitos dos artigos 62º e 63º do DL nº 433/82 de 27.10.
3. Os autos tiveram vista, o MP indicou testemunhas e o recurso foi recebido e foi designado dia para julgamento.
4. Após o despacho que designou data para julgamento não ocorreu qualquer nulidade.
5. Procedeu-se a julgamento em estrito cumprimento do formalismo legal.

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II PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Mantendo-se válidos os pressupostos, nada obsta à decisão do mérito da causa.

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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
a) - Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
1. A arguida W..., Lda. tem sede na Zona Industrial de … e tem como actividade indústria, comércio, importação e exportação de artigos sanitários de banho.
2. A arguida apresenta registo de horas de funcionamento de fontes de emissão gasosa “Estufa” e “Caldeira” reportadas ao ano de 2010.
3. Tais horas de funcionamento não atingem 500 horas anuais.
4. A arguida não remeteu à CCDRC nenhuma caracterização pontual das suas fontes de missões gasosas relativas a 2010.
5. Apenas em 14 de Abril de 2011 a arguida solicitou a dispensa de monitorização por ter fontes de emissão, no ano de 2010, com horas de funcionamento de montante inferior a 500 horas.
6. Ao actuar da forma descrita, a arguida não cuidou de actuar de acordo com a legislação vigente para a matéria, através da pessoa que a representava, bem sabendo esta dos deveres que lhe incumbiam, junto da administração.
7. Desconhecem-se quaisquer antecedentes contra-ordenacionais registados contra a arguida.
8. Desconhece-se a situação económica da arguida.

b) - Factos não provados com potencial interesse para a decisão da causa
Não se provou que:
- na sequência da actividade da arguida nenhum dano foi causado ao ambiente, sendo o funcionamento em causa inócuo para a qualidade do ar.

c) Motivação da decisão de facto
A convicção do tribunal formou-se com base nas declarações do representante legal da arguida, bem como nas declarações da testemunha W... , que trabalha na CCDRC e tramitou o respectivo processo contra-ordenacional. Considerou-se a documentação dos autos, designadamente, fls. 10 a 14, 17 a 81. Foi toda a prova conjugada e analisada à luz do normal acontecer, designadamente para dar como provado o que toca aos elementos subjectivos. Quanto a estes, apesar de não constarem da decisão administrativa, em factos provados, foram, ainda assim considerados na presente decisão, pois que:
- resulta do texto da decisão administrativa, genericamente, a qualificação da conduta como negligente;
-não tendo sido invocada qualquer invalidade da mesma quanto a tal matéria;
- a situação não resulta posta em causa pela arguida, que a parece ter compreendido e aceite;
- nem resultou problemática em sede de audiência, mas antes clara, à luz dos princípios que norteiam a apreciação da prova,
e, por tudo isso, se conheceu, dando lugar ao ponto 6. dos factos provados.

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IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A arguida vem acusada de uma contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 19º, nº1, do DL nº 78/2004, de 03.04. Conforme vem escrito no preâmbulo do dito diploma, “consagrar a reforma das normas vigentes em matéria de emissões constantes da legislação e institui um novo regime legal de protecção e controlo da poluição atmosférica. Com este diploma pretende-se, com efeito, possibilitar uma resposta mais eficaz e ajustada às necessidades de actualização de conceitos, metodologias, princípios e objectivos e, de um modo geral, definir os traços fundamentais de uma verdadeira política de prevenção e controlo da poluição atmosférica, estabelecendo um adequado regime sancionatório.” O regime legal assim instituído, a par do regime das normas constantes do Decreto-Lei n.º 276/99, de 23 de Julho, constitui o enquadramento legislativo da política de gestão do ar em Portugal, na dupla vertente, respectivamente, da prevenção e controlo das emissões de poluentes atmosféricos e da avaliação e gestão da qualidade do ar. Estão abrangidas pelo presente diploma todas as fontes de emissão de poluentes atmosféricos associadas a, entre outros, actividades de carácter industrial (al. a) do artigo 3º do citado diploma). Ora, de acordo com o que se deu por provado em 1., certo é que a arguida se encontra no campo de aplicação deste decreto-lei. Dispõe este normativo legal: “Estão sujeitas a monitorização pontual, a realizar duas vezes em cada ano civil, com um intervalo mínimo de dois meses entre medições, as emissões de poluentes que possam estar presentes no efluente gasoso, para os quais esteja fixado um VLE nos termos do n.o 1 do artigo 17.o, e cujo caudal mássico de emissão se situe entre o limiar mássico máximo e o limiar mássico mínimo fixados nas portarias a que se refere o mesmo artigo.” Casos há em que em vez de monitorização pontual, tem que haver monitorização contínua e outros casos há em que a mesma está de todo dispensada (vd., respectivamente, 20º e 21º do mesmo DL). Nada indicando que a monitorização a levar a cabo tivesse que ser contínua (artigo 20º, nº1), temos também por seguro que as emissões respeitantes ao ano de 2010 também não estão cobertas pelo regime de dispensa a que alude o artigo 21º do mesmo diploma. No que respeita à dispensa de monitorização, rege o artigo 21º, nº 1 que monitorização é dispensada nas fontes pontuais associadas a instalações que funcionem menos de 25 dias por ano ou por um período anual inferior a quinhentas horas. Rege ainda, sob o nº 2 que a dispensa de monitorização prevista no número anterior só produz efeitos após a comunicação à CCDR competente, efectuada pelo operador, de que as fontes pontuais se encontram nas condições aí fixadas. Assim, apesar de se ter por provado que houve registo das emissões e que as mesmas ocorreram em períodos cujo total é inferior a 500 horas (ponto 3.), certo é também que apenas em 2011 foi comunicada à CCDRC (ponto 5.). Como se disse, dispõe a lei, de forma inequívoca, que a dispensa de monitorização prevista no número anterior só produz efeitos após a comunicação à CCDR competente. Este normativo é directo e simples. Não pode pois a arguida prevalecer-se em 2010 de uma comunicação realizada apenas em 2011, mesmo que já em 2010 estivesse em condições de ser dispensada da monitorização. Assim, não o tendo feito quanto a nenhum poluente (ponto 4.), temos por verificada a infracção, não havendo, pois, por esta via, que obstar à condenação levada a cabo pela entidade administrativa. Nos termos do artigo 34º, nº2, al. e) do mesmo diploma, constitui contra-ordenação grave, punível com coima de 5.000 a 44.800 euros, no caso de pessoas colectivas, a violação da obrigação de realização da monitorização pontual, nos termos do nº 1 do artigo 19º. De acordo com o disposto no artigo 34º, nº 3 do mesmo diploma (na redacção que lhe foi dada pelo DL 126/2006, de 03.07), a tentativa e a negligência são puníveis, sendo, nesse caso, reduzidos para metade os limites mínimos e máximos das coimas referidos no presente artigo. De acordo com o que resultou provado, designadamente em 6., a arguida terá agido apenas com negligência. A coima terá como mínimo 2.500 euros. A coima aplicada não ultrapassou este mínimo legal, razão pela qual não poderá ser inferior, sendo que nada resultou provado que nos faça ponderar elevá-la.
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V - DECISÃO
Nestes termos o tribunal decide:
1. Manter a decisão proferida pela CCDRC, e, consequentemente, manter a condenação da arguida W..., Lda., pela prática da contra-ordenação prevista no artigo 19º, nº1, do DL nº 78/2004, de 03.04, na coima de 2.500 euros.
2. Condenar a arguida nas custas, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.
Comunique a presente decisão nos termos do artigo 70º, nº 4 do DL nº 433/82. Notifique.”
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III. Apreciação do Recurso:
Nos termos do artigo 75.º do Decreto-Lei 433/82, de 27.12, nos processos de contra-ordenação, a segunda instância conhece apenas, por regra, da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões. Isto é, este Tribunal, no caso, funcionará, como tribunal de revista.
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), as questões que vêm colocadas pela recorrente são as seguintes:
1) Saber se há violação do princípio in dubio pro reo;
2) Saber se há nulidade da decisão, nos termos dos artigos 374.º/2 e 3 e 379.º/1/a), do CPP;
3) Saber se a sanção aplicada é adequada.
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1) Da violação do princípio in dubio pro reo:
De acordo com Cavaleiro Ferreira, «Lições de Direito Penal», I, pág. 86, este princípio respeita ao direito probatório, implicando a presunção de inocência do arguido que, sendo incerta a prova, se não use um critério formal como resultante do ónus legal de prova para decidir da condenação do arguido que terá sempre de assentar na certeza dos factos probandos. O julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto. Como todos sabem, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, conforme ensina Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, pág. 213 – já Ulpiano dizia “é melhor um crime impune do que um inocente castigado”. Ora, o alegado processo não pode ser uma válvula de escape para um “buraco negro”, devendo assentar em alicerces bem precisos e fundamentados. Todavia, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido. Na realidade, a dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida – cfr., a este propósito, Cristina Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora, 1997. Lendo a fundamentação da decisão ora em crise, facilmente é constatado que o tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida sobre a matéria de facto, ao que não será alheia a própria singeleza dos factos em apreciação.
Podemos afirmar, sem receio de errar, que não existe qualquer incerteza quanto aos factos apurados.
O princípio geral do processo penal ora em análise é aplicável apenas nos casos em que, apesar de toda a prova recolhida, continuam os factos relevantes para a decisão a não poderem considerar-se como provados por continuar a subsistir dúvida razoável do Tribunal.
O princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.
No caso vertente, o Tribunal “a quo” não se quedou por um non liquet de facto, ou seja, não permaneceu na dúvida razoável sobre os factos relevantes à decisão, pelo que não há lugar a qualquer aplicação do princípio in dubio pro reo (a dúvida reside apenas na recorrente e não no Tribunal). A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (19966), p. 25. Assim, para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido.
**** Se bem reparamos, a recorrente nada trouxe aos autos que pudesse justificar qualquer dúvida razoável sobre a matéria de facto em discussão.
Quanto muito, a sua posição, em boa verdade, acaba por se situar ao nível da qualificação jurídica dos factos, nomeadamente quanto à obrigação de comunicar a dispensa de monitorização de emissões poluentes.
Mas tal não pode ser visto à luz da violação de um princípio que respeita, como já vimos, apenas ao direito probatório.
E, mesmo nessa matéria, sendo certo que está provado que as horas de funcionamento, reportadas ao ano de 2010, não atingem as 500 horas anuais, não é menos verdade que, apenas em 14/4/2011, a arguida solicitou a respectiva dispensa de monitorização.
Não se esqueça que o artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de Abril dispõe o seguinte: 1 - A monitorização é dispensada nas fontes pontuais associadas a instalações que funcionem menos de 25 dias por ano ou por um período anual inferior a quinhentas horas. 2 - A dispensa de monitorização prevista no número anterior só produz efeitos após a comunicação à CCDR competente, efectuada pelo operador, de que as fontes pontuais se encontram nas condições aí fixadas. 3 - O disposto no número anterior obriga o operador à realização de pelo menos uma medição pontual, nos termos do n.º 1 do artigo 19.º do presente diploma, que demonstre o cumprimento dos VLE aplicáveis nos termos do n.º 1 do artigo 17.º e do n.º 3 do artigo 24.º. 4 - O operador está obrigado a possuir o registo actualizado do número de horas de funcionamento e consumo de combustível anuais para todas as instalações abrangidas pelo presente artigo.
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2) Da nulidade da decisão:
No que tange a esta questão, a recorrente entende que:
a) O tribunal a quo, na motivação, não indicou fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade da convicção positiva quanto à prática da infracção.
b) O tribunal a quo não fundamentou suficientemente a razão porque aderiu sem mais à aplicação da coima fixada pela autoridade administrativa, sem que tivesse entendido como suficiente a atenuação especial da pena ou a admoestação, o que tudo constitui nulidade da decisão, de harmonia com o preceituado nos artigos 374.º/2 e 3 e 379.º/1/a, do CPP.
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Afigura-se-nos que a decisão recorrida não padece da nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, por referência ao n.º 2 e ao n.º 3, do art. 374.º, do mesmo diploma.
Todos sabemos que, por força do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
E determina o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, sobre os requisitos da sentença que: ao relatório, segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se, portanto, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, e tudo segundo critérios de razoabilidade, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 14/6/2007, Processo n.º 1387/07, 5ª Secção.
Podemos afirmar, em resumo, que a fundamentação decisória tem que deixar claro o processo de raciocínio que conduziu o juiz a proferir a decisão.
**** Enunciados estes princípios e analisada a exposição dos motivos probatórios exarada na sentença recorrida, afigura-se-nos suficiente a fundamentação que a mesma contém, quanto ao processo de raciocínio levado a cabo pelo Tribunal.
Estamos perante uma prova que se circunscreve às declarações do representante legal da arguida, ao depoimento da testemunha Resende Póvoas e à documentação dos autos , sendo certo que os factos em discussão são escassos e de fácil apreensão. Assim sendo, sem prejuízo de se discordar da mesma, não é de exigir uma fundamentação mais extensa do que aquela que consta da sentença recorrida, revelando-se esta clara e concisa, quer quanto aos factos quer quanto ao direito a aplicar.
Dissertar sobre algo que não merece discussão (na motivação, consta que “a situação não resulta posta em causa pela arguida que a parece ter compreendido e aceite)” só pode levar por raciocínios tautológicos que, enquanto tal, devem ser evitados.
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3) Da sanção aplicada:
O Regime Geral das Contra-Ordenações, no seu artigo 51.º, n.º 1, estabelece o seguinte:
1 – Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.” Pese embora a inserção sistemática do preceito em causa no capítulo III “aplicação da coima pelas autoridades administrativas”, é de entender que a referência a “entidade competente” usada na redacção do referido normativo leva a que a admoestação possa ser aplicada quer na fase administrativa quer na fase judicial, ou seja, na fase de recurso judicial da decisão administrativa (cfr. M. Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa “in” Contra Ordenações, anotações ao regime geral, 3º edição, 20006, págª 363.
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A referência à culpa tem como objectivo aludir aos casos em que o grau de culpa seja reduzido, nomeadamente aqueles em que há actuação por negligência.
Ora, no caso presente, ficou demonstrada a conduta negligente da ora recorrente.
Acresce que, perante os factos provados, estamos perante uma infracção de reduzida gravidade, em termos práticos, e é isso que deve ser determinante, não obstante a qualificação que decorre do artigo 34.º, n.º 2, al. e), do DL n.º 78/2004, de 3 de Abril.
Na realidade, as horas de funcionamento de fontes de emissão gasosa não atingiram, em 2010, as 500 horas anuais, o que significa que, se tivesse actuado atempadamente e conforme a lei, teria obtido, necessariamente, a dispensa de monitorização.
Logo, não está demonstrado qualquer dano efectivo para o ambiente.
Assim sendo, e também porque estamos na presença de uma empresa que não apresenta qualquer condenação anterior, sendo certo que não está, de igual modo, quantificado qualquer benefício económico, entendemos ser adequada à situação descrita, em vez da coima, uma admoestação.
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IV. Decisão:
Desta sorte, e pelos fundamentos expostos, decidem os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra conceder provimento ao recurso, indo, por conseguinte, a arguida condenada numa sanção de admoestação, a ser proferida por escrito (artigo 51.º, n.º 2, do RGCOC).
Sem tributação.
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José Eduardo Martins (Relator)
Maria José Nogueira