Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
423/10.7SAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Data do Acordão: 12/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS 410.º, N.º 2, AL. A), E 358.º, DO CPP
Sumário: I - O processo penal não impõe a coincidência entre a versão da acusação ou do despacho de pronúncia, e a versão trazida a julgamento por determinado ou determinados intervenientes e dada como provada na sentença, bastando para tanto atentar no disposto no art. 358º do CPP.

II - Perante duas versões dos acontecimentos que, pelo menos, coincidem quanto ao confronto físico e sendo plausível e razoável que a queda sofrida pelo recorrente tenha sido consequência de tal confronto, importava que o tribunal recorrido tivesse investigado devidamente esta possibilidade de verificação dos acontecimentos – mesmo que não coincidente com a do despacho de pronúncia – e a final, a fizesse constar da decisão de facto – como provada ou não provada – investigação que deveria ter abrangido todas as suas dimensões relevantes, designadamente, o eventual preenchimento de causas de justificação.

III - Como tal não aconteceu, não obstante as referências que são feitas a essa possibilidade, criou-se uma lacuna na matéria de facto que consta da decisão recorrida, que torna esta matéria insuficiente para assegurar o acerto da decisão de direito proferida.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No 3º Juízo do [já extinto] Tribunal Judicial da comarca da Guarda, mediante despacho de pronúncia, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o arguido B..., com os demais sinais nos autos, a quem era imputada a prática, em autoria material e concurso real, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º e 155º, nº 1, a) do C. Penal, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do C. Penal e de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1 do C. Penal.

            A... constituiu-se assistente.

 

Por sentença de 22 de Abril de 2014, foi o arguido absolvido da prática dos imputados crimes.


*

            Inconformado com a decisão recorreu o assistente, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

                1. A douta sentença recorrida apresenta erro notório na apreciação da prova.

2. Pela reapreciação da prova gravada, transcrita na integra, ligada à restante prova pericial de fls. 28, 235 a 237, 250 e 251 e 271 e 272, bem como prova documental de fls. 5, 58, 128, 129, 314, 322 a 324 impõem-se sejam dados como provados os factos constantes do despacho de pronúncia, e provados os constantes da douta sentença recorrida como não provados.

3. O depoimento prestado pelo arguido e pela sua esposa M..., não merecem qualquer credibilidade, por não terem apoio em indícios suficientes, excluídos pela sequência de eventos descritos pela testemunha C..., pelo assistente, pelo agente da PSP D..., pela gravidade das lesões sofridas pelo assistente e pela dinâmica dos acontecimentos relatados.

4. O assistente e a testemunha C... afirmam ter o arguido agredido o assistente a murro e pontapés, ter-lhe dito se chamas a policia mato-te e com murros e pontapés danificou o Mercedes do assistente no capot, pára-choques e estrela no valor de 350,00 €.

5. A gravidade das lesões sofridas, luxação no ombro e rotura da coifa de rotadores, evidenciam a violência do murro, queda e pontapés, causados pelo arguido, não são compatíveis com um simples empurrão.

6. As lesões sofridas pelo assistente demandaram 129 dias de doença, ficando com incapacidade, sem força no braço, com abdução e sem movimento superior a 90°.

7. Um simples empurrão pela frente não causava as lesões no ombro, na face e no joelho, que o assistente apresentava, eventualmente teria que apresentar lesões detrás e não pela frente.

8. O arguido confirma que houve agressões físicas violentas "não foi propriamente com meiguice".

9. A testemunha C... confirma ter presenciado todos os factos da pronúncia, por se encontrar a 3m de distância, onde parou a sua viatura quando passava no local.

10. Tal depoimento é credível, isento e imparcial, assertivo, relata com precisão pormenores da ocorrência, pelo que não deixa duvidas sobre a sua credibilidade.

11. Este depoimento ligado às declarações do assistente, ao agente da PSP D... e à filha do assistente E..., bem como os elementos clínicos dos autos, são de modo a confirmar todos os factos e matéria da pronúncia.

Nestes termos

Requer-se a reapreciação de toda a prova e a revogação da douta sentença recorrida, por não verificação das dúvidas que da mesma constam, e dar-se como provados os factos que constam da douta sentença como não provados e provados os factos da douta pronúncia, que aqui se dá por reproduzida e o arguido condenado nos crimes que vem pronunciado, crime de ameaça na forma agravada pp. pelo art.º 153º e 155º/1 al. a) do CP e um crime de ofensa à integridade física simples pp. pelo art.º 143º/1 do CP e um crime de dano pp. pelo art.º 212º/1 do CP.

Assim se decidindo far-se-á Justiça.


*

            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1ª – Face à matéria de facto dada com provada, não merece qualquer reparo a decisão ora em recurso;

2ª – Adere-se, integral e plenamente à decisão ora em recurso, quer no que toca aos argumentos fácticos quer de ius nela explanados, a qual, na nossa opinião, não merece qualquer reparo, encontrando-se exemplarmente trabalhada e fundamentada, tendo ainda apreciado de forma justa e equitativa os factos e feito correcta aplicação do direito;

3ª – Acompanham-se as dúvidas que ressaltaram da prova produzida em julgamento e que resvalaram a favor da tese do arguido;

4ª – No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, tem-se ultimamente vindo a entender que o mesmo tem de ser de tal modo evidente que não possa passar despercebido ao comum dos observadores, ou seja quando não passa despercebido ao homem médio;

5ª – É que os vícios do nº 2 do artº 410º cit., têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum;

6ª – Ora, afigura-se-nos que o assistente recorrente confunde o vício em apreço com a apreciação e valoração que ele realiza da prova que foi produzida em audiência de julgamento;

7ª – Pois que, do texto da decisão ora posta em crise, não se nos afigura que resulte qualquer erro na apreciação da prova, quer perante a factualidade dada como provada e não provada, quer pela fundamentação que a decisão da mesma realizou;

8ª – Com efeito é plausível, aceitável, quer a interpretação da prova produzida realizada pelo tribunal "a quo", quer a efectuada pelo aqui recorrente. Mas não se aceita que se possa dizer que a decisão ora posta em crise incorre no vício de erro notório na apreciação da prova;

9ª – Pois que este erro tem que resultar do próprio texto da sentença, sem recurso a quaisquer outros elementos do processo;

10ª – E não vislumbramos que tal aconteça no presente caso;

11ª – Pois que o que vem contestado pelo recorrente não é o texto da decisão recorrida mas o modo como o tribunal "a quo" procedeu e alcançou quer a apreciação da prova quer a decisão;

12ª – Isto partindo do pressuposto, de que tivemos duas teses em confronto. Uma alicerçada na versão dos factos relatados pelo assistente, aqui recorrente e das testemunhas C..., D... e E...e a outra assente nos depoimentos M... e do próprio arguido;

                13ª – Pois que é patente que o recorrente pretende discutir a convicção do Tribunal, já que insistentemente revela a sua discordância com a matéria dada como provada e convicção do Tribunal;

14ª – Mas mais, se o recorrente pretende discutir, na sua motivação, a convicção do Tribunal, terá de mostrar à evidência a discrepância entre a matéria de facto dada como provada e a convicção do Tribunal, o que julgamos não ter sido feito;

15ª – É que, segundo o artº 127°: "Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente."

16ª – Atento carácter inatacável da decisão ora em recurso, afastado se encontra, já se vê, o pretenso vício apontado pelo recorrente, pois que, dada a matéria dada como assente nos autos, afigura-se-nos que nenhum reparo há que apontar-lhe, na parte em que absolveu o arguido;

17ª – O recorrente não transcreveu, na íntegra, os depoimentos do queixoso e arguido e das testemunhas que relatam os factos C..., D..., E... e M...;

18ª – Pois que há falhas, gralhas, nas denominadas "transcrições integrais", acima apontadas no texto;

19ª – No depoimento da testemunham C... não se entende como é que o mesmo, com a sua viatura em andamento, a trabalhar, ainda que a 3 metros dos contendores, tivesse possibilidade de ouvir, antes ou depois do murro, a ameaça imputada ao arguido, porque proferida em tom elevado e sério;

20ª – Razão porque se acompanha, nesta parte e bem assim na dos outros factos, a posição sufragada na motivação da decisão ora posta em crise quando refere que o princípio da presunção da inocência, impõe que a prova produzida se revele cabal, credível e esclarecedora, para além da dúvida razoável;

21ª – Acompanham-se, ainda, nesta parte, as dúvidas que ressaltaram ao pensamento do julgador, no que concerne ao que terá acontecido primeiro: se o murro se a ameaça, atentos os depoimento, contraditórios, do assistente, aqui recorrente e da testemunha C...;

22ª – A que acrescentamos a seguinte: o assistente não fala em agressão, seguida de empurrão. O Agente da PSP fala, pondo-o na boca do assistente;

23ª – E bem assim a omissão por parte da filha do assistente de ter visto no local a testemunha C...;

24ª – A tese da queda do arguido para a frente não é consentânea com a luxação anterior do ombro que sofreu;

25ª – Cremos que a decisão recorrida fez uma ponderada apreciação de todas as circunstâncias dos factos narrados em audiência de julgamento, tendo tido devidamente em conta a prova e tendo feito correcta aplicação do direito aos factos;

26ª – Inexiste o vício apontados pelo assistente na decisão ora em crise;

27ª – A sentença ora em recurso não violou quaisquer legais do CPenal ou do CPPenal.

Termos em que,

Deve ser mantida, nos seus precisos termos, a sentença ora em recurso, como é de JUSTIÇA E DIREITO.


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            Respondeu também o arguido ao recurso, alegando que deve ser mantida a decisão sobre a matéria de facto porque o recorrente não cumpriu as exigências previstas no art. 412º do C. Processo Penal, ao não identificar o erro de facto e ao não indicar as concretas provas que imporiam decisão diversa, que a decisão de facto proferida é a que resulta da prova proferida, que o non liquet só o poderia beneficiar, e concluiu pelo não provimento do recurso.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer acompanhando os fundamentos da contramotivação do Ministério Público, afirmando a inexistência do vício do erro notório, e concluiu pelo não provimento do recurso.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

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  Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A existência do vício do erro notório na apreciação da prova;

- O erro de julgamento e consequente condenação do arguido.

Oficiosamente – Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995 – haverá que conhecer do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.


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            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

                A) No dia 12 de Setembro de 2010, pelas 19:25, na via pública, na Av. Fernanda Ribeiro, São Miguel da Guarda, gerou-se uma discussão entre o arguido e o assistente A... motivada pelo facto de este último, na noite anterior, ter telefonado para a Polícia de Segurança Pública alegando que em casa do arguido B... existia excesso de ruído, o que determinou a deslocação de agentes da Polícia de Segurança Pública à casa do arguido, durante a noite.

B) Após esse momento, o assistente A... apresentou luxação no ombro direito, com arrancamento da coifa dos rotadores e a sua retracção, hematoma extenso fibrosado e factura do rebordo inferior da cavidade glenóide.

C) Devido a tais lesões, A... teve de ser submetido a uma cirurgia, com acromioplastia, reinserção da coifa dos rotadores com pontos transósseos, seguida de imobilização toraco-braquial em abdução.

D) As referidas lesões determinaram um período de doença de 129 dias, com afectação da capacidade de trabalho geral.

E) E as mesmas mais determinaram, para o assistente A..., as seguintes sequelas: cicatriz nacarada com vestígios de pontos no ombro direito, irregular, medindo 9cm de comprimento depois de rectificada; diminuição da força muscular ao nível do braço e antebraço contra resistência; em comparação com o contralateral; limitação das mobilidades do ombro (flexão e abudção até 90º).

F) E o mesmo assistente A... veio a apresentar ainda um hematoma e ligeira escoriação na região temporal esquerda e escoriações no joelho esquerdo, que deixaram as seguintes sequelas: várias cicatrizes na face anterior do joelho esquerdo, a maior medindo 1,5cmx1cm e a menor medindo 0,6cm de comprimento.

G) O arguido exerce a profissão de técnico de saúde ambiental, mediante o que aufere um rendimento de € 1.100,00 por mês. Vive com a esposa, que é funcionária judicial, e com dois filhos de ambos, com 33 e 30 anos de idade, ajudando um deles a pagar um empréstimo mensal em valores de € 200,00 a € 300,00 por mês. Suporta ainda a quantia de € 700,00 por mês para pagamento de empréstimo bancário que levou à aquisição da habitação onde reside, e despende ainda cerca de € 100,00 por mês em medicação.

H) O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais.

(…)”.

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

“ (…).

1) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na matéria provada, o arguido B..., em tom de voz elevado e sério, tenha dito para o assistente A...: “se voltas a chamar a polícia, mato-te”.

2) De seguida, o arguido B... tenha desferido um soco no ombro direito do assistente A..., tendo-o projectado ao solo.

3) Em seguida, com o assistente A... prostrado no chão, o arguido B... tenha desferido um pontapé no rosto do mesmo A....

4) Na mesma altura, o arguido B... tenha desferido socos e murros na chapa do veículo do assistente A..., da marca Mercedes, que se encontrava estacionado junto de ambos, tendo, com essa conduta, provocado algumas amolgadelas no capôt e no pára-choques do referido veículo.

5) As lesões e sequelas que são referidas na matéria provada e referidas em B) a F) tenham sido causadas ou provocadas pelo arguido da forma como se refere nos factos aqui dados como não provados em 2) e 3).

6) O arguido B... tenha actuado com intenção de ofender, como tenha ofendido, a integridade física do assistente A....

7) E mais tenha o arguido actuado com intenção de intimidar e de perturbar a liberdade de determinação do assistente A..., bem sabendo que a sua conduta era idónea a produzir esse resultado.

8) O arguido tenha pretendido danificar coisa que sabia não lhe pertencer, sabendo que actuava contra a vontade e sem o consentimento do dono do veículo automóvel referido em 4).

9) O arguido tenha agido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta fosse ilícita e punível por lei.

(…)”.

C) E dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

Logo à partida, antes de tudo o mais, diremos que toda a prova produzida foi unânime quanto à dinâmica dos factos constantes da pronúncia na restrita parte que se deu como provada, ou seja, quanto à existência de um confronto verbal e até físico entre o aqui arguido e o aqui assistente no dia, hora e local que se deram como provados, e pelo motivo e com o enquadramento que igualmente se deu como provado.

Por seu turno, as lesões e sequelas posteriormente apresentadas pelo assistente e que igualmente se dão como provadas resultam como tal com base no relatório de episódio de urgência hospitalar a que o assistente se submeteu no próprio dia dos factos, bem como na prova pericial médico-legal que foi profusamente efectuada e que consta ao longo dos autos.

Simplesmente, quer o arguido, quer a sua esposa e testemunha M... (que afirmou ter presenciado os factos), negaram que o arguido tenha desferido quaisquer murros ou pontapés no corpo do assistente, que o arguido haja proferido a ameaça ao assistente que se lhe imputa, e que o arguido tenha desferido murros e pontapés no automóvel do assistente e causado danos no mesmo. Afirmaram apenas que o arguido e o assistente se agarraram, puxaram e empurraram mutuamente e que a dado momento o assistente caiu para a frente e para o solo, apenas assim se podendo explicar as lesões que apresentou, pelo menos em parte.

Perante tal negação por parte do arguido, embora corroborado apenas pela sua esposa, e também embora o arguido apenas haja prestado declarações no final de toda a audiência de julgamento e após haver assistido a toda a prova que aí se produziu (o que retira força à credibilidade das suas declarações), a verdade é que ainda assim, como em todos os casos semelhantes, o princípio da presunção de inocência do arguido impõe que a prova produzida se revele suficientemente cabal, credível e esclarecedora, para além da dúvida razoável, quanto aos factos que lhe são imputados, a fim de os mesmos então poderem ser dados como provados.

A este respeito, diríamos que se pode defender que seria neste caso suficiente o depoimento prestado pelo próprio assistente enquanto interveniente directo e ofendido, quando conjugado com o depoimento prestado pela testemunha C... (que afirmou ter presenciado os factos), e conjugado ainda com os elementos clínicos que constam dos autos quanto às lesões e sequelas apresentadas pelo assistente, quer no episódio de urgência hospitalar no dia dos factos, quer no âmbito das perícias médico-legais subsequentes que foram efectuadas nos autos. Por seu turno, refira-se que existe ainda o depoimento prestado pela testemunha E..., filha do assistente, que refere ter assistido e acompanhado o seu pai no dia dos factos, posteriormente aos mesmos (que não presenciou), bem como em tratamentos subsequentes, sobretudo ao nível de fisioterapia que se revelou necessária.

No entanto, ainda assim, a verdade é que nos assaltam diversas dúvidas e perplexidades perante tal prova produzida e que na mais absoluta e sã consciência nos impedem de formar uma convicção suficientemente segura sobre a dinâmica dos factos aqui em apreciação e que consta da pronúncia, de forma a que pudéssemos dar tais factos como suficientemente provados. Isto com a agravante que decorre do facto de a prova ser essencialmente testemunhal ou decorrente das declarações do arguido e do assistente, quanto o que é certo é que os factos decorreram já há mais de três anos e meio a esta parte, com a inevitável diluição da memória dos intervenientes a seu respeito e as consequentes lacunas e perigos de incorrecções de que podem sofrer tais depoimentos, ainda que de forma totalmente involuntária por parte dos declarantes.

Na verdade, e antes do mais, é óbvio tem de ser visto como incontornável o depoimento prestado pela testemunha C..., na medida em que o mesmo referiu que ia a passar de automóvel por casualidade no local e terá presenciado os factos conforme os relatou no seu depoimento. Não foi sequer estabelecida qualquer razão específica que nos leve a considerar que a testemunha em causa pretendesse prejudicar o aqui arguido ou que sequer o conhecesse mais do que de vista, embora mantenha relações profissionais e de amizade já de longos anos com o aqui assistente.

No entanto, a primeira das já aludidas dificuldades que se nos colocam decorre do facto de a testemunha ter claramente referido que em primeiro lugar o arguido teria desferido um murro no ombro direito do assistente, projectando este sobre o seu veículo automóvel, e só em seguida tenha o arguido dito “se voltas a chamar a polícia, mato-te”. No entanto, no seu depoimento, o assistente referiu claramente que o arguido logo se lhe dirigiu com a aludida ameaça verbal, e só em seguida é que lhe desferiu o referido murro no ombro. Os depoimentos são claramente contraditórios nesta parte, a qual é bastante relevante, tanto mais que na pronúncia também se estabelece uma relação temporal entre uns factos e outros, aí se referindo que primeiro se teria verificado a ameaça e apenas em seguida se tendo verificado a agressão com murro no ombro direito do assistente.

Por outro lado, em segundo lugar, não nos parece suficientemente crível que a testemunha tenha ouvido a ameaça aqui em causa quanto ia a passar no interior do seu veículo automóvel, na medida em que a própria deslocação e o ruído inerente ao próprio veículo sempre tornariam essa audição quase impossível ou pelo menos altamente duvidosa, a não ser que o arguido tivesse falado de forma especialmente alta, que não resultou, contudo, de qualquer da prova produzida.

Em terceiro lugar, parece-nos no mínimo curioso que a real presença da testemunha C... no local não haja sido confirmada por mais quem quer que seja para além, como é óbvio, do seu próprio depoimento. Nem sequer o próprio assistente foi claro e assertivo no sentido de que a testemunha em causa teria presenciado os factos e estado presente no local, pois apenas lhe “parece” que tal pessoa teria presenciado os factos, sem o afirmar de forma directa e cabal. Aliás, a própria testemunha aqui em causa fez questão de referir que, embora se tenha dirigido verbalmente ao aqui assistente naquele momento, ainda assim o assistente estaria no entanto de tal forma atordoado que nem sequer lhe respondeu. Embora não o possamos afirmar, parece-nos perfeitamente possível que tais declarações por parte da testemunha C... possam ter sido engendradas dessa forma, de maneira a não “forçar” o assistente a eventualmente faltar claramente à verdade ao ter de afirmar que a testemunha em causa esteve no local.

Mais, e ainda a este respeito, diremos que a testemunha C... declarou que se ausentou do local mais ou menos na altura em que a polícia lá chegou, mas ainda assim, repita-se, sem revelar claramente a sua presença a mais quem quer que seja, tendo-se ausentado, como se disse, na medida em que o assistente já estaria a ser assistido pela respectiva esposa no local. Esposa esta que, de forma no mínimo estranha e curiosa, nem sequer depôs nem foi indicada como testemunha nos presentes autos.

Em quarto lugar, verificamos que o assistente fez questão de afirmar no seu depoimento que sofreu vários pontapés na face (embora sem saber quantificar quantos) por parte do aqui arguido, quando na própria pronúncia se refere apenas um pontapé, não existem lesões que suportem de forma alguma mais do que um pontapé, e na própria queixa terá referido um só pontapé, pois apenas assim se explica que na pronúncia apenas um pontapé se referisse, e não vários.

Em quinto lugar, temos que se refere na pronúncia que o assistente teria sido projectado ao solo após sofrer o alegado murro no ombro por parte do assistente, facto este que nunca poderia sem mais ser dado como provado, na medida em que até o assistente e a testemunha C... referem que primeiro o assistente teria sido projectado sobre o seu próprio automóvel, e apenas em seguida teria sido puxado para o solo por parte do arguido.

Em sexto lugar, tendo presente a dinâmica dos factos que é narrada na pronúncia e mesmo a que foi narrada pelo assistente, pensamos que é difícil compreender como pode o assistente ter embatido com o ombro direito no solo (assim tendo deslocado tal ombro e sido causadas as lesões e sequelas relevantes que sofreu), e ao mesmo tempo sofrido escoriações no joelho do lado oposto e esquerdo, como resulta dos elementos clínicos e periciais obtidos.

Em sétimo lugar, pensamos que será de referir ainda o depoimento prestado pela testemunha D..., na qualidade de agente da PSP que se deslocou ao local no dia da ocorrência e após a mesma. Embora o seu depoimento se tenha revelado quase totalmente imprestável por não demonstrar quase qualquer memória do que terá sucedido para além daquilo que consignou por escrito nos autos (e que aqui não podemos valorar para além daquilo que já decorra do seu depoimento em audiência), ainda assim tal testemunha aludiu ao facto de o assistente lhe ter dito naquele momento que teria sido “empurrado” num ombro pelo alegado agressor, que seria o aqui arguido, algo que não se confunde com o facto de ter sofrido um murro como se refere na pronúncia. Este suposto “empurrão” até se coaduna de alguma forma com a versão do arguido e sua esposa no sentido de que apenas teriam existido empurrões e puxões mútuos entre o aqui arguido e o aqui assistente.

Aqui chegados, em face de tudo o que foi dito, pretende-se deixar claro que, quanto a nós, é perfeitamente possível que os factos tenham ocorrido, pelo menos grosso modo, da forma como se narra na pronúncia e como o assistente aqui o defende. No entanto, conforme já anteriormente o dissemos, em face dos motivos que acabámos de expor, ficamos com insuperáveis dúvidas e perplexidades em face da prova que foi produzida, o que nos impediu de formar uma convicção suficientemente segura acerca da sua ocorrência, e por isso não pudemos em consciência dar tais factos como provados.

Por seu turno, também não pretendemos aqui dizer que tenhamos concedido por sua vez especial credibilidade à versão dos factos trazida pelo arguido (apenas no final da audiência) e pela sua esposa (a qual em si mesma, e como é natural, quase em nada reforça a credibilidade que haja de ser dada ao seu marido em face dos laços muito próximos que os unem), tanto mais que esta versão de todo não explica as lesões que foram apresentadas pelo assistente e que resultam dos elementos clínicos e periciais médico-legais que constam dos autos. Quanto a estes, é verdade que ficamos sem uma cabal explicação para a sua inegável verificação, mas esta última, por si só e em face das demais dúvidas que já expusemos, é que nunca poderia ser tida como suficiente para que os factos aqui em apreço fossem dados como suficientemente provados.

Finalmente, e já concluindo, quanto aos factos alusivos à condição social, pessoal, familiar e sócio-económica do arguido, foram relevantes as suas declarações, não existindo elementos para delas duvidar nesta parte, e quanto aos antecedentes criminais do arguido (que não existem), foi relevante o respectivo CRC que consta dos autos.

(…)”.


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            Do vício do erro notório na apreciação da prova 

            1. Alega o recorrente – conclusão 1 – que a sentença incorreu em erro notório na apreciação da prova, passando de imediato à reapreciação da prova gravada e à crítica à valoração probatória feita na sentença recorrida. No corpo da motivação faz idêntica afirmação quanto ao vício da decisão, invocando agora o art. 410º, nº 2, c) do C. Processo Penal, mas sem mais desenvolvimentos. Vejamos pois, se a sentença em crise padece do apontado vício.

           

Os vícios da decisão, entre os quais, se inclui o erro notório na apreciação do prova, previstos no nº 2, do art. 410º do C. Processo Penal, são vícios intrínsecos da sentença penal, pois respeitam à sua estrutura interna. Por tal motivo, a lei exige que a sua demonstração resulte do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum, não sendo admissível tal demonstração com recurso a elementos alheios à decisão, ainda que constem do processo.

Neste âmbito, na designada revista alargada, o tribunal ad quem não conhece da matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova, nos termos regulados no art. 412º do C. Processo Penal –, apenas detecta os vícios que a sentença, por si só e nos seus precisos termos, evidencia e, não podendo saná-los, reenvia o processo para novo julgamento. 

            Ocorre o erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, pág. 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74).

2. Balizado o vício invocado, cumpre desde já dizer que a sentença recorrida dele não enferma. 

Com efeito, para além de o recorrente afirmar a existência de erro notório na apreciação da prova sem indicar qualquer específica razão, contida nos parâmetros de relevância do vício supra referidos, o que efectivamente faz, discorrendo sobre a reapreciação da prova gravada e sobre a valoração que entende deve ser dada a cada meio de prova que menciona, é ensaiar a sua demonstração através da prova por declarações, não se limitando, portanto, ao texto da decisão recorrida e à sua conjugação com as regras da experiência comum. Por outro lado, não vemos, e nem o recorrente o afirma, que o tribunal a quo tenha valorado um qualquer meio de prova com desrespeito por critério legal estabelecido.  

O que o recorrente faz, a coberto da invocação do vício, é discordar da decisão de facto proferida, discordância que sendo legítima, se prende com eventuais erros de julgamento – a analisar, se disso for caso, no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, mecanismo processual de que também o recorrente lançou mão – que nada têm a ver com o vício de que cuidamos, pela simples razão de que não reúnem as características exigidas para a sua qualificação como notórios.

Em conclusão, a sentença não enferma do vício erro notório na apreciação da prova.


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            Do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

3. Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto]. Dito de outra forma, ocorre o vício quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria de facto contida no objecto do processo relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, pág. 69).

Pois bem.

3.1. No despacho de pronúncia, e na parte em que agora releva, ao arguido era imputada a prática de uma agressão física na pessoa do recorrente, assim objectivamente descrita:

“ (…)

3) De seguida, o arguido B... desferiu um soco no ombro direito do arguido A..., tendo-o projectado ao solo.

4) Em seguida, com o arguido A... estatelado no chão, o arguido B...desferiu um pontapé no rosto do mesmo A....

6) Com a actuação acima descrita, o arguido B... provocou luxação no ombro direito do A..., com arrancamento da coifa dos rotadores e a sua retracção, hematoma extenso fibrosado e fractura do rebordo inferior da cavidade glenóide.

7) Com a actuação descrita em 3) e 4), o arguido B... provocou ainda a A... um hematoma e ligeira escoriação na região temporal esquerda e escoriações no joelho esquerdo, que deixaram as seguintes sequelas: várias cicatrizes na face anterior do joelho esquerdo, a maior medindo 1,5 cm x 1 cm e a menor medindo 0,6 cm de comprimento.  

(…)”.     

Esta dinâmica dos acontecimentos exclui, desde logo, como causa da luxação do ombro do recorrente o pontapé referido no ponto 4 supra transcrito e será a eventual causa do hematoma e ligeira escoriação na região temporal esquerda referida no ponto 7, também transcrito.

Por outro lado, embora nesta descrição dos acontecimentos a luxação pareça, à primeira vista, ter sido causada pelo murro, a referência feita no despacho ao depoimento do médico assistente do recorrente, segundo o qual um soco não é, em regra, susceptível de provocar esta lesão, já o sendo, porém, a queda [cfr. fls. 334], conduz a conclusão de que, afinal, tal luxação terá sido causada pela queda.

E deve reconhecer-se que para esta conclusão aponta a prova pericial. Explicando.

No relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 235 a 237 verso, em B. Dados Documentais, lê-se, além do mais, que «Em 19/10/2010 [o recorrente] realizou TAC do ombro direito que revelou: sinais sugestivos de luxação anterior do ombro, com fractura de grandes dimensões da glenóide, correspondendo a lesão de Bankart ósseo, com destacamento anterior de aproximadamente 12 mm; lesão de Hill-Sachs com fractura por impactação dos planos mais superiores e posteriores da cabeça umeral, com traço adicional sagital da grande tuberosidade, (…)».   

A aridez dos termos médicos utilizados impõe um esforço para a sua compreensão, de forma a melhor se entender o que segue.

Na luxação anterior do ombro a cabeça do úmero desloca -se da glenóide [zona da omoplata onde aquela cabeça ‘encaixa’] para diante, sendo este tipo de lesão comummente causada por uma força indirecta, geralmente uma rotação externa com o ombro em abdução [o braço é forçado para trás], mas podendo mais raramente ser causada por um traumatismo directo posterior sobre o úmero proximal. A lesão de Bankart, associada aquela, ocorre quando a deslocação anterior do úmero causa a desinserção do labrum [tecido fibrocartilaginoso que cobre a glenóide] enquanto a lesão de Hill-Sachs, igualmente associada à primeira, é uma fractura da superfície articular posterolateral da cabeça do úmero, causada pelo impacto desta com a glenóide anterior.

Daqui resulta que a luxação do ombro do recorrente, porque foi uma luxação anterior, não terá sido causado pelo murro mencionado no despacho de pronúncia mas pela queda dada e, independentemente de ter ocorrido para a frente ou para trás, da posição no braço direito do recorrente quando impacta com uma superfície fixa, seja o solo, seja qualquer outra.

Deste modo, o fulcro da questão desloca-se do murro desferido no ombro direito do recorrente, para a projecção do recorrente contra uma superfície fixa, seja o solo, seja qualquer outra.

3.2. Realizada a audiência de julgamento, a sentença recorrida considerou provado, na parte em que agora releva, que:

“ (…)

A) No dia 12 de Setembro de 2010, pelas 19:25, na via pública, na Av. Fernanda Ribeiro, São Miguel da Guarda, gerou-se uma discussão entre o arguido e o assistente A... motivada pelo facto de este último, na noite anterior, ter telefonado para a Polícia de Segurança Pública alegando que em casa do arguido B... existia excesso de ruído, o que determinou a deslocação de agentes da Polícia de Segurança Pública à casa do arguido, durante a noite.

B) Após esse momento, o assistente A... apresentou luxação no ombro direito, com arrancamento da coifa dos rotadores e a sua retracção, hematoma extenso fibrosado e factura do rebordo inferior da cavidade glenóide.

F) E o mesmo assistente A... veio a apresentar ainda um hematoma e ligeira escoriação na região temporal esquerda e escoriações no joelho esquerdo, que deixaram as seguintes sequelas: várias cicatrizes na face anterior do joelho esquerdo, a maior medindo 1,5cmx1cm e a menor medindo 0,6cm de comprimento.

(…)”

E não provado, na parte relevante, que: 

“ (…).

2) De seguida, o arguido B... tenha desferido um soco no ombro direito do assistente A..., tendo-o projectado ao solo.

3) Em seguida, com o assistente A... prostrado no chão, o arguido B... tenha desferido um pontapé no rosto do mesmo A....

5) As lesões e sequelas que são referidas na matéria provada e referidas em B) a F) tenham sido causadas ou provocadas pelo arguido da forma como se refere nos factos aqui dados como não provados em 2) e 3).

6) O arguido B... tenha actuado com intenção de ofender, como tenha ofendido, a integridade física do assistente A....

9) O arguido tenha agido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta fosse ilícita e punível por lei.   

(…)”.

Em suma, o tribunal a quo considerou provada a existência de uma discussão na via pública, ao fim da tarde do dia 12 de Setembro de 2010, na Guarda, entre o arguido e o recorrente, motivada por este, na noite anterior, ter chamado a PSP por causa de ruído excessivo quer dizia estar a ser produzido na residência do primeiro, e também considerou provado que, após esse momento – subentendemos que se pretendeu significar que após essa discussão – o recorrente apresentou uma luxação do ombro direito – com as especificidades supra transcritas – e ainda o hematoma e escoriação na região temporal e as escoriações no joelho esquerdo também transcritas. Por outro lado, o tribunal a quo considerou não provadas as acções que no despacho de pronúncia eram imputadas ao arguido – murro e pontapé – e, consequentemente, não provado o nexo de causalidade entre tais acções e as lesões verificadas, o que determina a existência de um vazio completo entre aquela discussão e o aparecimento das lesões no recorrente.

Todavia, na motivação de facto, o Mmo. Juiz começa por dizer que a prova produzida foi unânime quanto à existência de um confronto verbal e até físico entre o aqui arguido e o aqui assistente, no dia, hora e local que se deram como provados, e pelo motivo e com o enquadramento que igualmente se deu como provado.

Ora, se a prova produzida – entenda-se, a prova por declarações – foi unânime quanto à existência de um confronto verbal e de um confronto físico entre o arguido e o recorrente, então esse confronto físico, dentro dos limites tidos por provados, deveria incluído nos factos provados ou explicada a razão pela qual o não foi.

Depois, o Mmo. Juiz considera, e bem, como assentes as lesões e sequelas posteriormente apresentadas pelo recorrente, com base no documento relativo ao episódio de urgência hospitalar e nos subsequentes relatórios periciais e entra, de seguida, na apreciação da causa de tais lesões e sequelas, passando a referir-se às declarações do arguido e ao depoimento da testemunha M... realçando a sua concordância quanto a não ter o primeiro, além do mais, agredido a murro e pontapé o recorrente e ainda que o arguido e o assistente se agarraram, puxaram e empurraram mutuamente e que a dado momento o assistente caiu para a frente e para o solo, apenas assim se podendo explicar as lesões que apresentou, pelo menos em parte, para no passo seguinte, depois de sublinhar a diminuição do grau de credibilidade das declarações do arguido por terem sido prestadas após ter sido produzida toda a demais prova, e de elas apenas terem sido corroboradas pelo depoimento do seu cônjuge, afirmar que o princípio da presunção de inocência impõe que a prova dos factos incriminadores seja cabal, credível e esclarecedora, para além da dúvida razoável.

E passa então a enunciar as suas reservas quanto à aptidão das declarações do recorrente e do depoimento da testemunha C..., ainda que conjugados com os elementos clínicos existentes para a comprovação da versão dos factos que consta do despacho de pronúncia, através da enunciação de sete argumentos, a saber: a falta de concordância entre as declarações do recorrente e o depoimento da testemunha, quanto à ordem cronológica dos acontecimentos; a improbabilidade de a testemunha ouvir o que diziam arguido e recorrente; a circunstância de nenhum interveniente processual assegurar a presença da testemunha C... no local dos acontecimentos, para além do próprio; a desconformidade entre as declarações do recorrente e o auto de denúncia no que respeita ao número de pontapés desferidos; a impossibilidade de comprovação dos factos constantes da pronúncia – agressão a murro no ombro e consequente projecção do recorrente para o solo – pela versão do recorrente e da testemunha C...; a dificuldade de harmonização da versão do despacho de pronúncia e mesmo, da versão apresentada pelo recorrente, com a verificação simultânea da luxação anterior do ombro direito e das escoriações sofridas no joelho esquerdo e; a circunstância de a testemunha D..., agente da PSP, apesar de só recordar o que escreveu no expediente por si elaborado, ter mencionado o facto de o recorrente lhe ter dito que tinha sido empurrado no ombro pelo arguido.

Não se justificando, pelo menos agora, a análise de cada um destes argumentos, limitamo-nos a dizer que o processo penal não impõe a coincidência entre a versão da acusação ou do despacho de pronúncia, e a versão trazida a julgamento por determinado ou determinados intervenientes e dada como provada na sentença, bastando para tanto atentar no disposto no art. 358º do C. Processo Penal.

Queremos com isto significar que, perante duas versões dos acontecimentos que, pelo menos, coincidem quanto ao confronto físico – na motivação de facto lê-se que o arguido admitiu que ele e o recorrente se agarraram, puxaram e empurraram reciprocamente e que a dado momento este caiu para o chão – e sendo plausível e razoável que a queda sofrida pelo recorrente tenha sido consequência de tal confronto, importava que o tribunal recorrido tivesse investigado devidamente esta possibilidade de verificação dos acontecimentos – mesmo que não coincidente com a do despacho de pronúncia – e a final, a fizesse constar da decisão de facto – como provada ou não provada – investigação que deveria ter abrangido todas as suas dimensões relevantes, designadamente, o eventual preenchimento de causas de justificação.

Como tal não aconteceu, não obstante as referências que são feitas a essa possibilidade, criou-se uma lacuna na matéria de facto que consta da decisão recorrida, que torna esta matéria insuficiente para assegurar o acerto da decisão de direito proferida.

Padece pois a sentença recorrida do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na alínea a), do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal.

3.3. A existência deste vício da decisão e a impossibilidade de decidir a causa – apesar de o assistente ter também recorrido à impugnação ampla da matéria de facto, o objecto e os limites por si foram estabelecidos [a incorrecta decisão proferida relativamente a todos os factos não provados portanto, o incorrecto julgamento dos pontos 1 a 9 dos factos não provados, que deveriam passar a factos provados] impede o conhecimento da matéria não investigada supra indicada – determina que o processo seja enviado para novo julgamento, relativamente à questão identificada e portanto, exclusivamente com reflexo nos pontos 2), 5), 6) e 9) – este apenas com referência à ofensa à integridade física – dos factos não provados da sentença recorrida, tudo sem prejuízo do cumprimento do disposto no art. 358º do C. Processo Penal, se tanto se vier a considerar necessário.     


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A decisão de reenvio do processo prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

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            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação, ainda que por razões não integralmente coincidentes, em conceder provimento ao recurso.

Em consequência, revogam a sentença recorrida e determinam o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à questão que supra se deixou identificada e delimitada.


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Recurso sem tributação (art. 515º, nº 1, b) do C. Processo Penal).

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Coimbra, 10 de Dezembro de 2014


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves - adjunto)