Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
388/07.2PATNV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: INDICAÇÃO DE PROVA
APRECIAÇÃO DA PROVA
NULIDADE DE SENTENÇA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 01/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 205º DA CRP, 97º, Nº5, 374º E 379º DO CPP 109ºDO CP
Sumário: 1.A fundamentação e motivação dos actos decisórios destina-se a conferir força pública e inequívoca aos mesmos e a permitir a sua impugnação quando esta for legalmente admissível, ou, como refere Germano Marques da Silva " Permite o controlo da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autocontrolo”.
2.O exame crítico das provas deve indicar no mínimo, e não necessariamente por forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham, na perspectiva do tribunal sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal.
3 A motivação impede, por forma absoluta, o exame do processo lógico ou racional que esteve subjacente à decisão, ignorando assim este tribunal:
4.No caso é preciso que fique devidamente esclarecida a razão por que é que as declarações do ofendido mereceram credibilidade, sendo certo que a navalha em causa não foi avistada pela testemunha que separou os contendores.
5-No caso é preciso que fique devidamente esclarecida a razão por que o depoimento do agente GX não mereceu credibilidade, sendo certo que este, segundo essa mesma fundamentação, foi quem separou os arguidos, não tendo visto a tal navalha.
6.Uma tal fundamentação em que se faz um insuficiente exame crítico, viola o disposto no artº 374º nº 2 CPP e como tal, acarreta a nulidade do acórdão nos termos do disposto no artº 379º nº 1 a) CPP.
7.. A decisão que declare perdida arma a favor do Estado deve ser devidamente fundamentada.

(A identificação da doutrina e da jurisprudência constam no acórdão)
Decisão Texto Integral: RELATÓRIO

Em processo comum colectivo do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas, por acórdão de 09.07.07, foi, para além do mais, decidido:

a) Condenar o arguido J. como autor material de um crime de homicídio simples na forma tentada p p pelos artºs 131, 23 e 73 do CP a pena de 2 anos e 10 meses de prisão, cuja execução lhe foi suspensa pelo prazo de 2 anos e 10 meses com a condição de este pagar a indemnização arbitrada no prazo de 8 meses e documentar nos autos esse pagamento, em concurso com um crime de dano simples p p pelo artº 212 do CP a pena de 250 dias de multa à taxa diária de 6 €, o que perfaz a multa global de 1 500 €.
b) Absolver o arguido G. do crime de que vinha acusado.
c) Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização deduzido pelos demandantes G e A. e em consequência condenar o demandado civil/arguido a pagar a estes a quantia global de 5 145,16 € a que acrescem juros à taxa legal sobre a quantia de 145,16 € desde 27.10.08 e desde a sentença sobre o restante.
d) Julgar improcedente por não provado o pedido de indemnização deduzido por AZ e dele absolver a demandada …. Companhia de Seguros SA.
Inconformado, o arguido J. interpôs recurso do acórdão, em cuja motivação produziu as seguintes conclusões:
1. A douta decisão proferida no âmbito dos presentes autos impunha, no entendimento do recorrente, decisão diametralmente oposta, no que diz respeito à condenação pela prática do crime de homicídio simples na forma tentada p. p. pelos artigos 131°, 22°, 23° e 73°, todos do Código Penal, e uma outra decisão, no que diz respeito à dosimetria da pena de multa aplicada pela prática do crime de dano simples, ao montante indemnizatório e ainda, quanto à declaração de perda a favor do estado da arma apreendida e respectivo livrete.
No que diz respeito ao crime de homicídio na forma tentada:
2. Dos depoimentos supra transcritos - incorrectamente julgados e daí desde já se requer a este Venerando Tribunal, a reapreciação da matéria de facto de acordo com o disposto no artigo 412° nº 3 do Código do Processo Penal - resultam duas versões contraditórias, a que foi apresentada pelo ofendido G. ­- fazendo referência a uma navalha e ter conseguido desembaraçar do arguido J. sozinho - a versão do arguido J. - fazendo referência a um corta - unhas e o depoimento do Agente GX primeira pessoa a ter intervenção nos acontecimentos, dizendo que a primeira imagem que tem é dos dois arguidos virem agarrados um ao outro, pela roupa, que se intrometeu entre os dois com a finalidade de os apartar, segurou nas mãos do arguido J. e não se recorda deste trazer qualquer objecto relevante nas mãos e se o trouxesse imediatamente se teria apercebido.
3. Baseando-se o Colectivo em partes do depoimento do ofendido, em partes do depoimento do arguido e em parte dos depoimentos das testemunhas, depoimentos contraditórios entre si, para sustentar os factos dados como provados e não provados, deveria ter fundamentado criticamente porque concedeu credibilidade a umas das partes dos depoimentos e não a outras tendo violado o disposto no artigo 374° nº 2 do Código do Processo Penal, o que determina a nulidade da decisão nos termos do disposto no artigo 379°, nº 1, al. a), do mesmo diploma legal.
4. Na verdade, sobre os factos dados como provados e supra melhor indicados não é efectuada qualquer exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, e com total omissão da indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
5. Designadamente era fundamental (pois só assim se encontra cumprido o estipulado no artigo 374° nº 2 do Código do Processo Penal), no que concerne à matéria de facto dada como provada - cfr. artigo 3° supra - que se saiba é necessário, designadamente no que concerne à matéria de facto dada como provada, que se saiba porque é que o tribunal atribuiu credibilidade nesta parte às declarações do ofendido / arguido G e não a atribuiu aos depoimentos do arguido e da testemunha AG, testemunha presencial dos factos, pessoa que os apartou, sendo certo que não se recorda de ter visto o arguido J- com alguma coisa relevante nas mãos (cfr. transcrições supra).
6. E ainda, porque é que a versão do ofendido / arguido G., no que diz respeito à forma como se conseguiu desembaraçar do arguido J., sendo certo que após o agente AG os ter apartado e solicitado ao ofendido que se deslocasse para a esquadra, ambos os arguidos não mais tiveram contacto um com o outro (cfr. transcrições supra).
7. Na verdade, dispõe o artigo 374° nº 2 do Código do Processo Penal - "Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundaram a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal".
8. É pois manifesta a inexistência da indicação dos meios de prova que fundamentam a decisão sobre a matéria de facto esplanada no artigo 3° supra e o seu, suficiente, exame crítico.
9. Impõe-se pois, salvo o devido respeito, que essa indicação dos meios de prova e seu exame critico, faça referência, no mínimo, às razões de ciência e demais elementos de prova que tenham, na perspectiva do tribunal sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da sua convicção.
10. Ora do depoimento do arguido e da testemunha AG, não resulta qualquer prova que a conduta do arguido integre actos de execução, idóneos a produzir o resultado típico de crime de homicídio na forma tentada.
11. Os arguidos agarravam-se simultaneamente pela roupa, em agressões mútuas, o agente AG ao deparar-se com aquela situação de imediato foi em sua situação e apartou-os, pegando o arguido J. pelas mãos, não se recordando que este tivesse alguma coisa de relevante na mão, designadamente uma navalha. Após os ter apartado, transmitiu ao arguido G que se deslocasse para a esquadra, não ocorrendo mais contactos entre os dois arguidos. (cfr. transcrições supra).
12. O arguido J., negou que tivesse utilizado qualquer objecto (navalha ou corta-unhas), na tentativa de matar ou mesmo ferir o arguido G.. (cfr. transcrições supra).
13. O facto do arguido ter exibido a navalha no posto da PSP, foi no seguimento da pergunta que lhe foi dirigida, ou seja, se era portador de mais alguma arma.
14. Com o devido respeito, o facto de o arguido ter consigo a navalha, que a exibiu por solicitação das autoridades, não pode levar à conclusão da sua utilização, sustentada apenas na versão do ofendido. Resulta claro que o arguido não exibiu o corta ­unhas, uma vez que a pergunta que lhe foi dirigida era relativamente a armas e não a qualquer outro objecto. De tudo o que supra se disse, ocorreu erro de julgamento da matéria de facto, pelo que devia ter sido absolvido da prática do crime de homicídio da forma tentada.
15. E mesmo que se considere que o arguido / recorrente, naquela altura tinha na sua mão um corta - unhas a sua utilização não é um meio idóneo para a produção do resultado típico, pelo que, não sendo susceptível de produzir o resultado, a tentativa não é punível - artigo 22° nº 2 do Código Penal.
16. Para além disso, e sempre sem prescindir, resulta não só do depoimento do arguido / Ofendido G. como da sua esposa que aquele conseguiria facilmente repelir a tentativa de agressão que estava a ser alvo, tendo em consideração a idade de ambos os intervenientes dos factos e a robustez física de um em relação ao outro.
17. Assim o Tribunal, salvo sempre o devido respeito, errou na apreciação feita destes factos. A prova produzida era suficiente para evitar uma errada apreciação, redundando em face disso numa decisão sem fundamento, pelo que o Acórdão padece dos vícios previstos no artigo 410° nº 2 al. a) e c) do Código do Processo Penal.
18. Em último rácio devia o Tribunal a quo, aplicar o princípio constitucionalmente consagrado, que a dúvida beneficia o arguido - "in dubio pro reo" - artigo 32° da Constituição da Republica Portuguesa.
19. No entanto, sem prescindir, a conduta do arguido foi considerada enquadrável na prática de um crime de homicídio na forma tentada, cometido com dolo eventual, mas, não é por se tratar da teoria jurisprudencial dominante que aquele conceito é compatível com homicídio tentado, que a discussão deixa de ter acuidade, desde logo porque cada facto terá que ser aferido em face de cada caso concreto ou não fosse a diferença entre o conceito de dolo eventual e negligência consciente, feita por uma ténue e imperceptível linha divisória.
20. Não ficou provado que com a conduta descrita no Acórdão, por esta via colocado em crise, que o recorrente / arguido tenha querido tirar a vida ao ofendido G..., muito menos que se tivesse conformado com o próprio resultado.
21. Neste sentido refere Jorge Figueiredo Dias, in Comentários Conimbricenses do Código Penal, Parte Especial, Tomo I pág. 17 - "Importa todavia sublinhar - por ser este um campo em que situações desta ordem são frequentes - que, para se verificar dolo eventual relativamente a condutas objectivamente e mesmo extremamente perigosas, não basta que o agente preveja o perigo de resultado e se conforme com ele (. . .), tornando-se antes sempre necessário que aquele preveja e se conforme com o próprio resultado; e o mesmo se dirá para acções cometidas em estado de afecto". (sublinhado e negrito nosso).
22. Balizados os conceitos vertidos no artigo 33° supra, conclui-se, necessariamente, quanto ao caso vertente, que em nenhum momento resulta dos factos provados que o arguido tenha representado ou tido a vontade de retirar a vida ao ofendido G..., ou tão pouco de tal matéria factual se possa concluir pela sua conformação com tal evento.
23. Verifica-se assim, uma insuficiência de matéria de facto, para a condenação do arguido pela prática do crime de homicídio na forma tentada, sendo que por isso do douto Acórdão violou os artigos 131 ° e 22° ambos do Código Penal - artigo 410° nº 2 al. a) C.P.P.
Quanto ao crime de dano e sobre a medida concreta da pena
24. Se é certo que o arguido, ora recorrente, considera que bem decidiu o tribunal a quo, no que à aplicação do critério de escolha da pena diz respeito, quando optou pela aplicação da pena de não privativa da liberdade, já o mesmo não se pode dizer no que diz respeito, à aplicação dos critérios orientadores da determinação da medida da mediada concreta da pena, previstos no artigo 71° do Código Penal, relativamente à fixação dos dias, bem como ao seu quantitativo diário.
25. É pacífico, que a pena deve ser indispensável para que não ponha irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade da norma, e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico - penais (cfr. AC STJ de 21 de Setembro de 1994, Proc. 46290/3a).
26. O artigo 70° e ss. do Código Penal, define os critérios pelos quais o julgador deve orientar-se na determinação da medida da pena concreta da pena, onde se incluem as exigências decorrentes do fim preventivo especial ligadas à reinserção social do agente e do fim preventivo geral ligadas à contenção da criminalidade e à defesa da sociedade. Não podendo, em qualquer caso, a pena ultrapassar a medida da culpa.
27. Considerados os factos referidos no artigo 41 ° das alegações - supra, no que a esta parte diz respeito, as exigências de prevenção geral e especial não serão elevadas, reportando-nos ao vertente caso, as exigências de prevenção especial de socialização não são significativas, quando considerado o percurso pessoal do arguido, a sua idade, a ausência de antecedentes criminais, a significar respeito pelos valores comunitários com tutela penal, relevado pelo comportamento anterior, a sua integração no meio sócio - familiar, sendo que as exigências de prevenção geral também aqui não serão prementes atento ao que supra se referiu.
28. Pelo que, ao decidir como decidiu o Tribunal recorrido, violou o disposto nos artigos 70° e ss do Código Penal, no que diz respeito aos critérios orientadores da determinação da medida da pena, devendo considerar-se mais equilibrada e ajustada a sua fixação mais próxima do limiar mínimo da pena aplicável.
29. No que diz respeito ao quantitativo diário só há que considerar a situação económica - financeira do arguido. (cfr. Ac. RC de 27 de Junho de 1966, CJ, XXI; tomo 3).
30. Não podendo olvidar-se que o montante diário da multa deve ser fixado em termos de constituir um sacrifício real para o condenado, não podem, no entanto, deixar de lhe ser asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do seu respectivo agregado familiar.
(cfr. Ac STJ de 2 de Outubro de 1997, CJ, Acs STJ, V; tomo 3, 183).
31. Assim, e remetendo, no que aos rendimentos do arguido diz respeito, para as considerações neste texto referidas.
32. Conforme também já aqui referido, a pena de multa não deve banalizar-se e traduzir-se na fixação de montantes que se não traduzam num sacrifício real do responsável.
33. Também aqui se afigura ao recorrente que a pena é um pouco excessiva, pois que se traduz em mais de dois meses de rendimentos. (levando em consideração o montante de 500,00€ mensais).
34. Afigura-se mais ponderado ao recorrente que o montante diário da multa fosse fixado pelo mínimo (5,00€) e a fixação diária em 120 dias, ou seja, fazendo-se corresponder o sancionamento ligeiramente acima de um mês de rendimentos, encontrando-se por essa via o ponto de equilíbrio ínsito na sanção devida, pelo que, o quantitativo diário determinado na sentença recorrida, viola o disposto nos artigos 40° nº 2; 47° nº 2 e 71° nº 1 todos do Código do Processo Penal.
No que diz respeito ao pedido de indemnização civil:
35. Também aqui e sobre os factos dados como provados e supra melhor indicado (cfr. artigo 53° das alegações supra) não é efectuada qualquer exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, e com total omissão da indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
36. Designadamente era fundamental (pois só assim se encontra cumprido o estipulado no artigo 374° nº 2 do Código do Processo Penal), no que concerne à matéria de facto dada como provada - cfr. artigo 29° supra - que se saiba em que meios de prova é que o Tribunal a quo, sustentou a sua decisão e, bem ainda, a sua análise crítica.
37. Pelo que também aqui valem as considerações referidas nos artigos 1 ° a 7° das presentes alegações, para onde se remete sem mais considerações, por questões de economia processual, levando a que, e no que a esta matéria diz respeito, uma fundamentação em que não se faz a indicação das provas e o seu exame crítico de modo a permitir apreciar o fundamento racional da decisão, viola, manifestamente o disposto no artigo 374° nº 2 do Código do Processo Penal e como tal, acarreta a nulidade do Acórdão nos termos do disposto no artigo 379° nº 1 al. a) do Código do Processo Penal.
38. Caso não seja este o douto entendimento deste Venerando Tribunal, sem prescindir sempre se dirá que;
39. A indemnização fundada na prática de um crime, é regulada pela lei civil - artigo 129° do Código Penal, e o artigo 493° do Código Civil, incorpora os pressupostos cumulativos para que se encontre verificada a obrigação de indemnizar.
40. Assim, no seguimento do que supra se referiu - nomeadamente quanto ao Ofendido G., designadamente nos artigos 1 ° a 35° para onde se remete, sem necessidade de mais considerações - não se encontram verificados nem provados, o facto ilícito, a actuação culposa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, pelo que, não existe a obrigação de indemnizar.
41. E bem ainda, no que diz respeito à menor filha do demandante G..., não obstante a existência do agente e do facto ilícito, consubstanciado nos tiros efectuados no pneu, a verdade é que em nenhum momento do texto ora posto em crise, resulta a prova do dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
42. Ao decidir desta forma, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 483° do Código Civil, outrossim devia ter sido o seu entendimento ou seja, a absolvição do demandado civil do pedido efectuado, no que aos danos morais diz respeito, tudo com as legais consequências, mantendo-se o decidido em relação aos danos patrimoniais.
43. Ao decidir desta forma, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 483° do Código Civil, outrossim devia ter sido o seu entendimento ou seja, a absolvição do demandado civil do pedido efectuado, no que aos danos morais diz respeito, tudo com as legais consequências, mantendo-se o decidido em relação aos danos patrimoniais.
44. Caso assim não se entenda, sem prescindir, sempre se dirá, que a justiça no caso concreto, ponderado globalmente os circunstancialismos será alcançada com a fixação de uma indemnização inferior à determinada no Acórdão recorrido.
45. O artigo 496° do Código Civil, no que aos danos morais diz respeito, contempla uma indemnização que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
46. Referindo o nº 3 daquela norma, que o montante da indemnização será fixado com recurso à equidade, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494° do Código Civil.
47. O artigo 494º refere que: "Quando a responsabilidade se fundar em mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem" .
48. É sabido que os danos não patrimoniais não são susceptíveis de avaliação pecuniária, destinando-se a indemnização por eles devida, não a reconstituir a situação que existiria se não tivesse ocorrido o facto, mas antes a compensar o lesado, e de alguma forma sancionar o lesante.
49. Na fixação destes danos, dada a referida insusceptibilidade de avaliação pecuniária, há que encontrar a quantia que, idealmente, proporcione ao lesado momentos de alegria, de satisfação e de distracção, que atenuem a padecimento sofrido, sempre tendo em vista a justiça do caso concreto.
50. De acordo com os factos referidos no artigo 73º das alegações supra, com o devido respeito, entende-se, como justa e equitativa a fixação da quantia de 600,00€ para cada um dos ofendidos, G e sua filha menor, num total de 1.200,00€, sendo por isso, excessivo a quantia fixada no Acórdão recorrido, tendo sido violado os artigos 494º e 496º ambos do Código Civil.
No que diz respeito à declaração de perda a favor do Estado da arma e do livrete:
51. Com o devido respeito, mal andou o Tribunal recorrido, ao decidir pela apreensão da arma e do livrete.
52. Objectivamente uma arma com as características da que se encontra apreendida nos autos, e tendo sido utilizada para a prática de um facto ilícito típico, pode considerar-se potencialmente perigosa, no entanto, não e esse o único critério sujeito a ponderação e avaliação para a tomada de decisão sobre os objectos em causa.
53. Subjectivamente, terá que se atender às circunstâncias do caso concreto. A saber;
- Todo o circunstancialismo supra referido, envolvente à acção ilícita típica, designadamente, estado emocional em que o arguido se encontrava.
- Confessou os factos em causa.
- Possui licença de uso de porte de arma há mais de 40 anos.
- Tinha bom comportamento e sem antecedentes criminais.
- Encontra-se socialmente inserido.
- A arma não é por natureza perigosa e não se encontra comprovado o seu sério risco de, pelo arguido, voltar a ser utilizada para o cometimento de novos crimes ­cfr. Fundamentação do Acórdão no que respeita à suspensão da execução da pena de prisão que aqui se aplicam com as devidas adaptações.
54. Não pode, por conseguinte, declarar-se perdida a favor do Estado a arma apreendida nos autos e bem ainda o livrete que a acompanha, devendo a mesma ser devolvida ao recorrente.
55. Ao não ter decidido desta forma o Tribunal recorrido, violou o disposto no artigo 109° nº 1 do Código Penal.
56. Além, do que, por omissão de fundamentação da decisão, no que a esta matéria diz respeito, violou o disposto no artigo 374° do Código do Processo Penal.”
Responderam o MP e o arguido G..., concluindo ambos que o recurso deve improceder.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto é de parecer que o recurso apenas deve proceder no segmento em que se invocou a falta de fundamentação quanto ao destino dos bens apreendidos, devendo ser elaborado novo acórdão que inclua a fundamentação em falta.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

A matéria de facto que foi dada como provada pelo tribunal colectivo foi a seguinte ( a numeração é nossa):
1. No dia …de… de 2007 pelas 17H50 nesta comarca, o arguido G. circulava no veículo de passageiros ligeiro, de marca … de matrícula …JH, pela Av dos Bombeiros Voluntários, em sentido Norte/Sul.
2. O arguido avistava a faixa de rodagem em toda a sua largura e extensão a uma distância bem superior a 50 metros de comprimento, possuindo boa visibilidade.
3. A dado momento, o menor F atravessou a faixa de rodagem, da esquerda para a direita, atendo ao sentido de trânsito Norte/Sul.
4. O arguido G. que conduzia o seu veículo a uma velocidade aproximada de 30/40 Km/h travou o seu veículo que parou, ficando com a parte traseira do veículo sobre a passadeira e a parte da frente fora dela.
5. O menor F que atravessou a estrada pelo seu pé, a correr, não se apercebendo da presença do veículo, foi de encontro ao mesmo, embatendo na parte da frente, lado esquerdo e junto à roda.
6. Como consequência directa e necessária desse embate, JF sofreu traumatismo no cotovelo direito, que determinaram ao menor um período de 10 dias de doença, sendo 4 dias com afectação da capacidade para o trabalho geral e todos com afectação da capacidade de trabalho profissional.
7. O embate ocorreu na hemifaixa direita de rodagem, atendendo ao sentido Norte/Sul.
8. A faixa de rodagem com uma largura total de 7 metros e 10 centímetros, era constituída por um piso asfaltado em bom estado de conservação, que se encontrava seco.
9. À data dos factos o tempo estava bom.
10. De imediato, o ofendido saiu do seu veículo e encaminhou-se para o menor com a intenção de o socorrer.
11. Ao presenciar o sucedido com o seu neto, a vítima F, o arguido J. dirigiu-se ao arguido G, proferindo as seguintes palavras: “malandro que atropelaste o miúdo na passadeira, tenho de te matar”, agarrou o ofendido pelo colarinho da sua camisa, empunhou uma navalha da marca “Nicul Inox” com uma lâmina de 8 cm de comprimento exposta e apontou-a na direcção do pescoço do ofendido, tentando golpeá-lo.
12. Em contrapartida, o arguido G. agarrou no braço do arguido J. que empunhava a navalha, empurrou-o e conseguiu soltar-se do mesmo, tendo abandonado o local.
13. De seguida o arguido J. empunhou uma arma de fogo Walther TPH cal 6,35 mm nº 280 628 que tinha em sua posse e efectuou três disparos contra o veículo de G. atingindo-o na zona dos pneus, onde provocou estragos.
14. Por altura da ocorrência dos factos, a filha do arguido G. encontrava-se no interior daquele veículo.
15. Até que o agente da PSP JC, que entretanto chegou ao local, acercou-se do arguido, agarrou-lhe no braço que empunhava a arma e retirou-a da sua mão.
16. De seguida o agente JC apreendeu a arma de fogo e a navalha supra referidas e ainda nove munições de fogo, três invólucros de munições dois carregadores de arma de fogo Walther 6,35 mm.
17. O arguido J é titular de licença de uso e porte de arma, estando a referida arma apreendida, registada e manifestada em seu nome.
18. O arguido G. conhecia as regras a que estava obrigado ao conduzir um veículo na via pública.
19. O arguido J. só não prosseguiu com os disparos devido à intervenção do agente da PSP que acorreu ao local, na sequência de gritos de socorro e conseguiu retirar-lhe a arma.
20. O arguido J. só não morreu por facto independente da vontade do arguido JB..., uma vez que foi impedido por aquele (que o agarrou na mão e empurrou-o) de o atingir no pescoço, zona vital do corpo, que provocasse logo morte imediata.
21. Agiu o arguido J. ao utilizar a navalha, com uma lâmina de 8 cm de comprimento, sabendo que essa arma era possuidora de uma capacidade agressiva e letal para os tecidos humanos, portadora de uma acentuada eficácia corto-perfurante e particularmente perigosa para a vida ou integridade física daquele contra quem fosse usada, tinha de admitir que a mesma era adequada e idónea a provocar a morte do ofendido, sabendo ainda que no pescoço residem veias vitais.
22. Sabia o arguido J que o instrumento por si utilizado possuía a aptidão e a necessária idoneidade a provocar a morte de G e que tal resultado só não se verificou por circunstâncias independentes da sua vontade.
23. Sabia que esse instrumento era portador de uma capacidade agressiva para os tecidos humanos, particularmente perigoso para a vida e integridade física daquele contra quem foi usado.
24. O arguido J. agiu de forma livre, deliberada e consciente, querendo atingir o veículo do G. com os disparos da arma e nele provocar estragos, como provocou, e criando deste modo o perigo concreto de prejudicar aquele veículo e também o perigo efectivo de poder até lesar a integridade física e a vida da filha do arguido G.
25. Agiu ainda o arguido J., livre e lucidamente, com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
26. O menor deslocou-se a Tomar ao Instituto de Medicina Legal.
27. O menor sofreu dores.
28. O demandante G. adquiriu um pneu novo no que gastou 145,16 €.
29. Sentiu medo e insegurança pessoal e familiar com toda esta situação.
30. A menor filha do demandante G. ouviu os disparos dirigidos contra o pneu do veículo onde se encontrava.
31. Nesse momento encontrava-se sozinha no interior do veículo.
32. Toda a situação criada à sua volta pelo arguido J e o barulho dos três disparos causaram-lhe muito medo e aflição por estar só.
33. Mais se provou que o arguido J. faz os mercados de Santarém e Torres Novas.
34. Fruto da sua actividade recebe mensalmente pelo menos 250 €.
35. Vive com uma companheira há mais de 50 anos.
36. Tem quatro filhos sendo que dois deles já faleceram.
37. Vive em casa de renda pela qual paga mensalmente 325 €.
38. Recebe uma reforma mensal no quantitativo de 300 €.
39. A sua companheira é reformada.
40. Não frequentou qualquer estabelecimento de ensino.
41. Tem na sua companhia os netos filho de um filho pré-falecido.
42. Dedica-se ao trabalho.
43. É uma pessoa respeitada e considerada quer entre os elementos da sua etnia, quer na demais sociedade que o rodeia.
44. No dia dos factos estava muito nervoso, dado ter visto o seu neto prostrado no chão em virtude do acidente.
45. O arguido é delinquente primário.
46. Mais se provou que o arguido G. ganha por mês como mecânico 1 000 €.
47. É casado e a mulher é estudante.
48. Tem uma filha de 9 anos.
49. Vive em casa própria pela qual paga um crédito de 450 € por mês.
50. Tem o 9º ano de escolaridade.
51. O arguido é delinquente primário.
Factos não provados:
“Não se provou que o arguido G tenha visto o menor a atravessar a estrada; que o G. não tenha travado; que tenha sido o G. que embateu no menor; que o arguido J. soubesse que no interior do veículo ….JH estivesse a filha do G; que o arguido G não tenha previsto como lhe era exigido, que ao aproximar-se de uma passagem para peões, havia a possibilidade de uma pessoa estar a atravessar na mesma, podendo atingi-la no seu corpo e que conduzisse o veículo de matrícula …-JH sem adequar a velocidade à circunstância de se aproximar de local destinado à travessia de peões, não desacelerando, como era seu dever, ao aproximar-se de uma passagem para peões, não acatando as regras inerentes à condução de automóveis, que lhe eram exigidas e de que era capaz.”
Motivação de facto:
“ Os factos acima provados tiveram por fundamento os seguintes meios de prova, dia e hora dos factos local onde os factos ocorrerem e visibilidade da estrada, pelas declarações do arguido G; que o menor atravessou a estrada e pelo modo como o fez pelas declarações do G disse que estava sobre a passadeira quando foi embatido na parte da frente/esquerda do seu carro, de imediato parou, o menor ficou junto à porta do condutor e tentou logo socorrê-lo; estes factos foram confirmados pela sua mulher A sobre este facto depôs também a tia do menor AZ disse que vinha atrás do menor quando este atravessou a estrada; a velocidade a que o G atravessou a estrada pelas suas declarações, sendo que nos autos não há outro elemento de prova que permita conclusão diferente; que travou pelo que disseram a AZ, o G e o agente GX que no café ouviu um “chiar” próprio de travagem; que o embate se deu indo o menor de encontro ao veículo pelo facto de que se assim não fosse (ou seja o veículo de encontro ao menor) a uma velocidade de 30 Km/h, um embate frontal, causaria bem mais danos do que aqueles que o menor apresentou após o embate, que o menor ia a correr pelo que resulta das regras da experiência, ou seja, se fosse a passo normal veria o carro e teria tempo para nele não embater; não mereceram qualquer crédito aquelas testemunhas que disseram que o menor “deu 3 piruetas” no ar quando foi embatido, pois se assim fosse as consequências no seu corpo seriam bem mais gravosas; lesões do menor pelo exame médico de fls 115; local do embate em relação à faixa de rodagem e largura desta pelo doc fls 14; que o G. se tenha encaminhado para o menor para o ajudar pelas suas declarações confirmadas pela sua mulher; o encontra entre os dois arguidos após este acidente, pelo que ambos disseram sobre estes factos; as expressões, ditas pelo arguido JB... ao arguido G, pelo que disseram o G, a sua mulher que estava presente e pelo que disse a agente GXZ; que tenha sido utilizada a navalha pelo que disse o G e pelo facto de o J dela ser portador naquele momento e a mesma ter sido exibida na PSP, ao contrário do corta unhas que o J disse que trazia, mas que o não mostrou a ninguém; as fotografias de fls 8 e 9 mostram a navalha, a pistola e as munições desta, bem como o pneu para onde foram disparados os tiros; auto de apreensão de fls 4; registo da arma e licença pelos doc.s de fls 6 e 7; foram ainda elementos de prova os agentes da autoridade que comparecem no local em especial o agente AGX que se encontrava no café próximo e foi quem separou os arguidos e o agente SY disse que foram elementos da PSP que tiraram a arma da mão do arguido J preço do pneu doc. fls. 259; antecedentes criminais dos arguidos pelo RC de fls 291 e 292.
O elemento subjectivo pelo que resulta das regras da experiência e o facto de se não ter dado por provado o dolo directo, pelo facto de o arguido J. ter arma consigo e se quisesse de facto tirar a vida ao G., teria usado a arma e não a navalha.
Os não provados, ou por se ter provado facto contrário, ou porque nenhuma testemunha credível se pronunciou sobre esses factos e não há nos autos qualquer outro elemento de prova que permita resposta diferente.”

*
Em face das conclusões da motivação do recorrente, que, como é sabido, delimitam o objecto do recurso, as questões suscitadas são as seguintes:
- Verificar se existe nulidade do acórdão por deficiente fundamentação;
- Saber se se verificam os vícios previstos no artº 410º nº 2 a) e c) CPP;
- Impugnação da matéria de facto;
- Saber se houve violação do princípio in dubio pro reo;
- Apreciar a medida da pena relativamente ao crime de dano;
- Indemnização civil;
- Perda da arma a favor do Estado.
Passemos então à sua apreciação.
No sentido da insuficiente fundamentação da motivação de facto argumenta o arguido que, havendo duas versões contraditórias sobre os factos, não se sabe porque é que foi atribuída credibilidade às declarações do ofendido G. no que concerne ao facto do arguido ter empunhado uma navalha com uma lâmina de 8 cm de comprimento, exposta e de a ter apontado na direcção do pescoço do ofendido tentando golpeá-lo, sendo certo que o arguido o negou e a testemunha GX, pessoa que os apartou, não o viu com qualquer coisa relevante nas mãos.
Vejamos:
Nos termos do disposto no artº 374º nº 2 CPP “ Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.
Significa isto que, para além da indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este tenha ainda que expressar o respectivo exame crítico das mesmas, isto é o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das provas.
Como escreve Marques Ferreira Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 229. “ Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência”.
Também a propósito da fundamentação das sentenças refere Eduardo Correia "só assim racionalizada, motivada, a decisão judicial realiza aquela altíssima função de procurar, ao menos, “convencer” as partes e a sociedade da sua justiça, função que em matéria penal a própria designação do condenado por “convencido” sugere" Parecer da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra sobre o artigo 653º do Projecto, em 1ª Revisão Ministerial, de alteração do Código de Processo Civil, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XXXVII (1961), pág. 184..
Impõe-se pois, a nosso ver, que esse exame crítico, indique, no mínimo, e não necessariamente por forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham, na perspectiva do tribunal sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal.
Pois bem no caso dos autos, e concretamente quanto a este ponto, o tribunal limitou-se a fazer referências genéricas às declarações do ofendido (“ pelo que disse o G”) e ao depoimento do agente GX ( “foi quem separou os arguidos”), associadas ao facto do arguido ter exibido na PSP uma navalha.
Ora como é que é possível a este tribunal de recurso com base em tal argumentação poder concluir pela bondade da decisão ?
Significa isto que a fundamentação que apresentou impede, por forma absoluta, o exame do processo lógico ou racional que esteve subjacente à decisão, ignorando assim este tribunal:
- o motivo da credibilidade e valoração conferida às declarações do ofendido G.;
- a razão por que o depoimento do agente GX não mereceu credibilidade, sendo certo que este, segundo essa mesma fundamentação, foi quem separou os arguidos, não tendo visto a tal navalha.
É preciso pois que fique devidamente esclarecida a razão porque é que as declarações do ofendido mereceram credibilidade, sendo certo que a navalha em causa não foi avistada pela testemunha que separou os contendores.
É que não é pelo facto do arguido ser portador da navalha que se pode concluir que o mesmo a terá utilizado na refrega.
Por outro lado não se compreende como é que sendo o arguido portador de uma pistola, a qual, face à matéria de facto provada foi utilizada para fazer disparos contra o veículo do ofendido, este tenha usado inicialmente uma navalha para cometer o crime de homicídio, sendo certo que a pistola seria mais eficaz para um tal objectivo.
Uma tal fundamentação em que se faz um insuficiente exame crítico, viola manifestamente o disposto no artº 374º nº 2 CPP e como tal, acarreta a nulidade do acórdão nos termos do disposto no artº 379º nº 1 a) CPP.
Mais refere o arguido ser o acórdão igualmente deficiente em sede de fundamentação de facto no que concerne à matéria dada como provada nos pontos 13, 14 e 28 a 32.
Recordemos esses factos:
“13. De seguida o arguido J empunhou uma arma de fogo Walther TPH cal 6,35 mm nº 280 628 que tinha em sua posse e efectuou três disparos contra o veículo de G atingindo-o na zona dos pneus, onde provocou estragos.
14. Por altura da ocorrência dos factos, a filha do arguido G encontrava-se no interior daquele veículo.
28. O demandante G adquiriu um pneu novo no que gastou 145,16 €.
29. Sentiu medo e insegurança pessoal e familiar com toda esta situação.
30. A menor filha do demandante G ouviu os disparos dirigidos contra o pneu do veículo onde se encontrava.
31. Nesse momento encontrava-se sozinha no interior do veículo.
32. Toda a situação criada à sua volta pelo arguido J e o barulho dos três disparos causaram-lhe muito medo e aflição por estar só.”.
Pois bem quanto a esta matéria não poderemos deixar de reconhecer parcial razão ao arguido.
Na verdade o acórdão, em matéria de motivação nada nos diz em que assentou o facto de se ter dado como provado que foram três os disparos efectuados e que a filha do arguido G se encontrava na altura no interior do veículo, pelo que o diagnóstico anterior é igualmente aqui aplicável.
Omissão total !
Há que fundamentar tal prova !
Já o mesmo não se dirá quanto ao medo, insegurança e aflição causados pelos disparos, pois, a terem-se verificado, tratam-se de factos públicos e notórios, cuja fundamentação, e perante uma tal realidade, é dispensável.
Finalmente no que concerne à fundamentação relativamente ao custo suportado pelo ofendido com a aquisição do pneu novo está a factura de fls. 259, como se refere expressamente na motivação de facto.
Daí que só relativamente aos pontos 13, 14 e 31, é que ficou este tribunal de recurso impedido de acompanhar o respectivo processo lógico que foi seguido para tomar essa decisão, bem como para demonstrar o acerto da mesma, como aliás se viu no ponto anterior, pelo que também aqui procede a nulidade invocada, mas apenas neste segmento.
Por último invoca ainda o arguido a nulidade do acórdão traduzida na falta de fundamentação quanto à declaração da perda da arma e respectivo livrete.
Também aqui tem o recorrente total razão!
Na verdade conforme se alcança da sua leitura, foi decidido declarar perdida a favor do Estado, a arma apreendida nos autos e respectivo livrete.
Percorrido todo o acórdão, verifica-se a inexistência de qualquer referência, seja ela factual, seja legal que possa fundamentar uma tal decisão.
Mais uma vez – omissão total de fundamentação !
Ora como é sabido, os actos decisórios são sempre fundamentados, constituindo um imperativo constitucional (art° 205°, n° 1, da CRP), com consagração no artº 97º, nº 5, do CPP.
A decisão assenta no chamado silogismo judiciário, o qual tem como premissa maior as razões de direito, como premissa menor os elementos de facto e como conclusão a decisão.
A necessidade de fundamentação e motivação dos actos decisórios destina-se a conferir força pública e inequívoca aos mesmos e a permitir a sua impugnação quando esta for legalmente admissível, ou, como refere Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, II, pág. 19. " Permite o controlo da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autocontrolo".
Desprovido de qualquer fundamentação, como é o caso vertente, a decisão de declarar perdida a arma, dificulta não só ao recorrente a sua impugnação, como ao tribunal superior, a apreciação da sua bondade.
Na verdade nos termos do disposto no artº 109º nº 1 CP “ São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.”.
É que como resulta claramente do referido preceito, para que possam ser declarados perdidos a favor do Estado os objectos nela referidos, é necessário que se verifique o seguinte condicionalismo:
– que tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico;
- que pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
O texto deste artigo é resultante da revisão do Código Penal concretizada pelo Dec.Lei nº 48/95, de 15 de Março, correspondendo, sem especiais divergências de fundo, ao artº 107º.
E como entendia Figueiredo Dias Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 618 e ss., já à luz da versão originária”O primeiro dos pressupostos a que obedece a perda, por um lado, dos instrumentos e, por outro lado, do produto do crime, é que os instrumentos tenham sido utilizados numa actividade criminosa ou o produto resulte desta. Segundo lei expressa não se torna, porém, necessário nem que o crime se haja consumado (art. 107º-1: estavam destinados a servir...»), nem sequer que alguma pessoa determinada possa ser perseguida ou condenada ou aquela actividade criminosa (art. 107º-2).
Quais os requisitos que conformam a referida actividade criminosa é a questão de mais complexa e duvidosa solução. O art. 107. ° - 1 fala em «prática de um crime», parecendo assim que a perda só pode ser decretada se no caso se verificar a totalidade dos pressupostos de que depende a existência de um crime. Logo o art. 107º - 2, porém, desmente radicalmente esta asserção, ao estabelecer que o instituto funciona mesmo quando ninguém possa ser perseguido ou condenado. Nesta medida, dir-se-ia que, de acordo com o pensamento da lei, a qualidade e as características do agente seriam indiferentes para a aplicação da providência em causa.
Na hipótese do art. 107. °-1, isto é, quando o processo penal corra contra pessoa determinada, a melhor doutrina parece ser, a de considerar que pressuposto da perda não é necessariamente a prática de um «crime», mas a «simples verificação de um facto ilícito-típico». No sentido seguinte: de que a perda deve ser decretada desde que no facto se verifiquem os requisitos que atrás (§ 800 ss.) vimos serem exigidos para o facto que é pressuposto de aplicação de uma medida de segurança privativa de liberdade. Ou, dito de forma explícita: torna-se necessária a verificação de todos os elementos de que depende a existência de um crime, com ressalva dos requisitos relativos à culpa do agente. Sujeitos à perda estão, deste modo, tanto agentes imputáveis, como inimputáveis.
Diversa é a situação contemplada no art. 107. °-2, em que «nenhuma pessoa determinada... [pode] ser criminalmente perseguida ou condenada». Aqui cabem seguramente os casos em que o agente do facto está determinado, mas o processo deve ser arquivado por qualquer causa de extinção da responsabilidade ou por falta de pressupostos processuais. Mas pode pensar-se que cabem igualmente as hipóteses em que não possa sequer ser determinado o agente ou agentes do facto: v. g., aparecendo uma pessoa morta a tiro com uma arma perto de si, provando-se que foi assassinada, mas sendo impossível determinar quem é o agente, a arma seria declarada perdida, nos termos do art. 107.º-2. Na primeira hipótese, os requisitos parece deverem ser os mesmos anteriormente expostos. Na segunda parece que tem de bastar a verificação de um tipo objectivo de ilícito... quando tal for possível mantendo-se desconhecida a pessoa do agente.
O fundamento da doutrina decorrente do art. 107°-2 é por demais duvidoso, por isso que, nestes casos, à providência não pode atribuir-se qualquer finalidade político-criminalmente válida; o que significa que ela não constitui uma consequência jurídica de natureza criminal. O mais que ela pode constituir é uma medida de polícia administrativa, tendente a apreender coisas ilícitas, proibidas, ou que a lei exclui do comércio jurídico. Mas o seu regime deveria ser então ditado por outros ramos do direito, que não pelo direito penal, nomeadamente através da medida de apreensão jurídico-administrativa e do respectivo processo. E a prova de que é como dizemos reside em que, para estas hipóteses, não existe (como, de outro modo, seria indispensável) um processo penal especial. Como reside na circunstância de, tanto quanto pudemos investigar, casos desta natureza nunca terem sido entre nós tratados na jurisdição penal.
Esta consideração crítica convida a que, iure dato, se interprete o disposto no art. 107-2 nos termos mais restritivos que se tornem viáveis, nomeadamente restringindo o seu âmbito de aplicação aos casos em que o agente está determinado, mas não pode, por falta de pressupostos de punibilidade, ser perseguido e (ou) condenado. O que implicaria que, nestes casos, pressuposto da perda seria somente a verificação de um facto ilícito-típico no preciso sentido da doutrina do crime; em lodo o caso, portanto, um ilícito onde estivesse presente não só o tipo de ilícito objectivo, como o tipo de ilícito subjectivo, doloso ou negligente.”
E escreve ainda o referido autor, a propósito da perigosidade. “A finalidade atribuída pela lei vigente à perda dos instrumentos e do produto do crime é exclusivamente preventiva. Isso se revela pela circunstância de, nos termos do art. 107. °-1, nem todos os objectos que constituam instrumentos ou produto do facto deverem ser declarados perdidos, mas apenas aqueles que, «pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a mora ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos crimes»: numa fórmula mais simples (mas de certo não menos rigorosa, uma vez que a «segurança das pessoas» e a «moral ou a ordem pública» não podem deixar de relevar apenas enquanto valores jurídico-penalmente protegidos, nessa veste e medida) aqueles instrumentos ou produto que, atenta a sua natureza intrínseca, isto é, a sua específica e co-natural utilidade social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa e devam por isso considerar-se, nesta acepção, objectos perigosos.
Com base no critério apontado parece de afastar - porque desprovida de fundamento legal -, por exemplo, a perda da caneta com que foi falsificado um documento, ou do automóvel (ou da residência!) onde foi praticada uma violação. Mas já deverá ser declarada perdida a arma com que foi praticado o homicídio, os cunhos com que foi contrafeita moeda ou a própria moeda contrafeita.
Questão é saber sob que ponto de vista deve ser avaliada a perigosidade referida: se sob o ponto de vista objectivo da coisa em si mesma considerada, ou antes sob o ponto de vista subjectivo, mais rigorosamente, sob o ponto de vista do relacionamento entre a coisa e um determinado sujeito.
O ponto de vista objectivo parece dever impor-se como ponto de partida. Não é fácil, com efeito, determinar com a indispensável clareza os critérios em função dos quais um objecto, em si insignificativo do ponto de vista da sua perigosidade, se torna em «objecto perigoso» em função da pessoa que o detém. O objecto mais anodino (um lençol, uma meia de seda, um lápis ou uma caneta; pode tornar-se em objecto hoc sensu «perigoso» quando detido por um indivíduo perigoso. Declarar a perda nestes casos, porém, significaria procurar atalhar a perigosidade do agente, não - como é finalidade do instituto - a perigosidade do objecto: para atalhar a perigosidade do agente dispõe a lei de outros recursos e de outros institutos que nada têm a ver com a perda dos instrumentos e dos producta sceleris. Em primeira linha, por conseguinte, deve ser a perigosidade do objecto em si mesmo considerado, independentemente da pessoa que o detém - o tratar-se de uma arma, de um explosivo, de moeda contrafeita ou de cunhos para a fabricar, etc. – que justificam a perspectiva político-criminal, a perda.
Sem prejuízo do que fica dito, a referida perigosidade do objecto não deve ser avaliada em abstracto, mas em concreto, isto é, nas concretas condições em que ele possa ser utilizado (às «circunstâncias do caso» se refere expressamente o art. 107. °-1). Um revólver, p. ex., é um objecto «em si» perigoso; mas que terá deixado de o ser se, após o tiro que constituiu meio de cometimento do ilícito-típico, a engrenagem tiver ficado danificada por forma irreparável. Esta conexão entre a perigosidade do objecto e as concretas circunstâncias do caso pode acabar por «implicar uma referência ao próprio agente» (ponto de vista subjectivo). Por exemplo, uma liga de um metal corrente, que qualquer pessoa possa deter, pode tornar-se em coisa perigosa se for detida por alguém conhecedor de uma fórmula que a transforme em substância explosiva. Esta «referência ao agente» não deixa, de resto, de apoiar a interpretação restritiva, feita no § 987, do disposto no art. 107. °-2”.
Como escreve Maia Gonçalves Código Penal Português Anotado, 18ª ed., pág. 424. “ a revisão orientou-se no sentido de ficar clarificado que a perda é uma espécie de medida de segurança, operando somente naqueles casos em que existe o perigo de repetição de cometimento de novos factos ilícitos através do mesmo instrumento……. O fundamento da perda dos instrumentos que servem para a prática de factos ilícitos típicos é a sua perigosidade, e esta afere-se pela natureza dos mesmos instrumentos e pelas circunstâncias do caso”.
É pois fundamental a existência de um perigo típico, de repetição da prática de novos factos ilícitos, o qual não pode ser aferido em abstracto, sob pena de se colocar mesmo em causa o princípio constitucional da presunção de inocência.
Há pois que em concreto analisar as circunstâncias que rodearam a prática do facto, bem como a personalidade do arguido.
Como se escreveu no AcSTJ 07.02.28 CJSTJ 1/07, 198. “ O fundamento da perda não é, assim, uma qualquer relação instrumental com o facto, mas a natureza da coisa e as condições de perigosidade que tal natureza revele”.
Dito isto, não tendo o tribunal recorrido fundamentado a sua decisão nos termos anteriormente expostos, ficou mais uma vez o acórdão ferido de nulidade – artºs 379º nº 1 a) e 374º CPP.
Estas nulidades do acórdão, que determinarão a elaboração de novo acórdão, afectam a apreciação de todas as restantes questões suscitadas no recurso, razão pela qual se torna inútil prosseguir no seu conhecimento.


DECISÃO

Nestes termos, os Juízes desta Relação acordam em declarar parcialmente nulo o acórdão recorrido por inobservância do disposto no artº 374º nº 2 CPP conjugado com o artº 379º nº 1 a) do mesmo Código, o qual deve ser reformado pelo mesmo tribunal, proferindo novo acórdão onde se supram as deficiências apontadas na fundamentação.
Sem tributação.
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP).
Coimbra