Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
823/11.5TBVIS-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: EXECUÇÃO
AGENTE DE EXECUÇÃO
DESJUDICIALIZAÇÃO
VENDA
ABERTURA DE PROPOSTAS
Data do Acordão: 09/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.719, 720, 723, 754, 820, 826 CPC
Sumário: 1. A actual “estrutura” do processo executivo é marcada por uma acentuada desjudicialização, pela limitação dos poderes e da intervenção do juiz e pela ausência de uma relação hierárquica entre o juiz e o agente de execução.

2. Essa singular estrutura subjaz, v. g., aos procedimentos para designação de nova data para a diligência de abertura de propostas, com natural destaque para o impulso/iniciativa do exequente e a materialização dos (prévios) actos processuais por parte do agente de execução, podendo, sempre, os executados indagar e ver explicitadas as circunstâncias que determinem o impulsionar/retomar de tais diligências executivas (cf., nomeadamente, os art.ºs 754º, n.º 1 e 818º do CPC).

3. Se o proponente pediu a devolução de «cheque Bancário que juntou na sua proposta de 28/06/2016», que o tribunal atendeu, consignando «Oportunamente e tendo em consideração o prazo estatuído no n.º 4 do artigo 820º do CPC, diligencie-se como requerido», decisão transitada em julgado, sendo 29.6.2016 o primeiro dia designado e ocorrendo a abertura das propostas em 29.11.2016, tal proposta considera-se validamente “retirada”, ainda que não integralmente cumprido o dito despacho (maxime, quanto à devolução do cheque) antes da diligência de 29.11.2016 (cf. o art.º 820º, n.º 4 do CPC).

Decisão Texto Integral:      











      
            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


I. Na execução (para pagamento de quantia certa) que C (...) , S. A., instaurou, na Comarca de Viseu (Juízo de Execução), contra A (…) (1º executado), M (…) (2ª executada) e V (…) (3ª executada), aquando da abertura de propostas em carta fechada, realizada a 29.11.2016, os executados viram indeferido o seu requerimento de 25.11.2016 (onde se invocava a violação do princípio do contraditório e não ter sido aceite a proposta apresentada de maior valor).

            Inconformados, os executados apelaram formulando as seguintes conclusões:

            1ª - O presente recurso vem interposto de decisão que indeferiu o requerimento apresentado a 25.11.2016, onde se invocava a violação do princípio do contraditório, e também do facto de não ter sido aceite a proposta apresentada de maior valor.

            2ª - Os recorrentes foram surpreendidos pela apresentação por parte da exequente de um requerimento em que se pedia o levantamento da suspensão, sendo que desse requerimento não lhes foi feita a notificação.

            3ª - Assim, não foi concedido aos recorrentes o direito de contraditório.

            4ª - É evidente que a omissão em causa influi na decisão da causa, já que não possibilitou aos requerentes pronunciarem-se sobre o requerimento apresentado pela exequente.

            5ª - Em causa está o requerimento apresentado pela parte contrária que desencadeou a marcação da data para abertura de propostas, e não o despacho de marcação desta data em si.

            6ª - É sobre este requerimento que deveria ter incidido o direito de contraditório nos termos legais, e não sobre o despacho de marcação da data para venda, sendo que o Tribunal a quo ignorou que tinha de conceder tal faculdade aos recorrentes e deferiu o pedido contido no requerimento apresentado pela exequente, avançando e marcando a data para abertura das propostas.

            7ª - Deste requerimento, os recorrentes não tiveram conhecimento na data de 04.11.2016, pois nunca foram notificados daquele.

            8ª - A nulidade foi, deste modo, invocada tempestivamente, mal tiveram conhecimento da existência de tal requerimento.

            9ª - Foram violados os princípios do contraditório e da igualdade de partes, desencadeando a nulidade de tudo o que se tiver verificado posteriormente a essa violação.

            10ª - A notificação proferida é nula nos termos do art.º 195º do CPC, porquanto viola o disposto nos art.ºs 3º e 4º do mesmo diploma legal.

            11ª - Por outro lado, foi apresentada uma proposta por (…) com um valor mais elevado do que aquela que foi aceite.

            12ª - Posteriormente, a 29.6.2016, foi requerida a devolução do cheque por tal proponente, contudo este nunca declarou desistir de tal proposta – o que veio a ser deferido.

            13ª - Tal cheque nunca lhe foi efectivamente entregue, nem nunca foi dado cumprimento ao despacho proferido a 29.6.2016/referência 77632116.

            14ª - Pelo que, existindo essa proposta nos autos - da qual nunca o proponente declarou desistir, apenas solicitou a devolução do cheque, que não foi feita - e sendo essa de maior valor, deveria a mesma ter sido aceite.

            15ª - O despacho ao não aceitar a proposta apresentada por (…)violou ou deu errada interpretação ao disposto nos art.ºs 816º e 820º, do CPC.

Rematam dizendo que deve ser decretada a nulidade: a) do despacho que indeferiu o requerimento apresentado a 25.11.2016, invalidando-se o acto em causa e os que dele dependerem, com as demais consequências legais; b) do auto de abertura de propostas em carta fechada e ser aceite a proposta de maior valor apresentada por (…)

            Não houve resposta.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, há que apreciar e decidir se ocorrem as apontadas “nulidades”.


*

            II. 1. Para a decisão do recurso releva o que se descreve no antecedente relatório e ainda o seguinte:[1]

            a) Em 16.5.2016, o Mm.º Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:

            «Não tendo os executados comprovado o cumprimento integral do acordo, determina-se o prosseguimento dos autos.

            Assim sendo, e para abertura de propostas, designa-se o dia 29 de junho, às 14 horas.

            Notifique e dê conhecimento ao Exmo. Sr. Agente de Execução a fim de dar cumprimento ao preceituado no artigo 817º do Código de Processo Civil, na redação da Lei n.º41/2013, de 26 de Junho

            b) Por requerimento de 28.6.2016, a exequente veio expor e requerer o seguinte: «Foi abordada nesta data pelos executados no sentido de retomarem o princípio de acordo que existia e cumprirem uma das condições que faltava./Destarte, porque a realizar-se a diligência de venda pode ocorrer efectiva alienação do imóvel que constitui casa de morada de família dos executados, vem requerer a suspensão da venda para tentar culminar o acordo de pagamento./O presente terá subscrição múltipla do Ilustre Mandatário dos executados

            c) No dia seguinte, o Exmo. Mandatário dos 1ºs executados veio, “nos termos do art.º 12º, n.º 1 da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto” declarar “a sua adesão ao conteúdo material” da peça processual dita em II. 1. b).

            d) Em 29.6.2016, foram proferidos os seguintes despachos:

            - “Em face do requerido, dou sem efeito a diligência de abertura de propostas em carta fechada./Notifique.”

            - “Req. 29.06.16/Oportunamente e tendo em consideração o prazo estatuído no n.º 4 do artigo 820º do CPC, diligencie-se como requerido./Notifique.”

            e) Na mesma data dera entrada o seguinte requerimento [a que se reportou o 2º despacho referido em II. 1. d)]: «P (…), na qualidade de proponente comprador da fracção autónoma “D” sita na Rua x (...) , com o artigo 0 (...) descrita na Conservatória Registo Predial 00 (...) , vem requerer a devolução do cheque Bancário que juntou na sua proposta de 28/06/2016./Viseu 29 de Junho de 2016/O Requerente/ (Assinatura) /(BI/CC (...) )»

            f) Em 27.9.2016, o Agente de Execução (AE) veio informar aos autos (e requerer) que «(…) a exequente veio requerer o prosseguimento dos presentes autos, por não tendo sido possível almejar qualquer acordo com os executados, face ao incumprimento dos requisitos solicitados./Face ao ali exposto, vem, o aqui subscritor requerer a V. Exa. se digne designar dia e hora para abertura de propostas em carta fechada./Do teor deste requerimento deu já conhecimento ao Ilustre Mandatário da exequente./P.D.».

            g) Em 18.10.2016, o AE notificou os Exmo. Mandatário dos 1.ºs executados do seguinte: «Fica V. Exa. notificado(a), na qualidade de Mandatário(a) dos executados A (…) e M (…) que se encontram designados os dias 22 e 24 de novembro 2016, das 18h às 20h, para visita aos bens em venda nos presentes autos, a eventuais interessados./Fica, ainda, V. Exa. advertido(a) que nada dizendo, no prazo máximo de 5 (cinco) dias, se fixam as datas acima referenciadas.».

            h) Em 03.11.2016, o AE notificou o mesmo Mandatário do seguinte: «(…) serve a presente para notificar V. Exa., na qualidade de Mandatário(a) dos executados A (…) e M (…), que se encontra designado o próximo dia 29 de novembro de 2016, pelas 14:00 horas, no Tribunal da Comarca de Viseu, para a venda por carta fechada relativa aos imóveis penhorados, cuja identificação e condições de venda se encontram indicadas na cópia do edital que se junta. (Doc. 1)».

i) Idênticas notificações [às ditas em II. 1. g) e h)] foram dirigidas ao Exmo. Mandatário da 3ª executada.

 j) Na sequência da notificação aludida em II 1. h), os executados apresentaram o seguinte requerimento (de 25.11.2016):

                «Os executados foram notificados de que se encontrava designado dia para se proceder à venda dos bens penhorados.

                2º A 28.06.2016, foi apresentado um requerimento subscrito por ambas as partes em que era requerida a suspensão da venda.

                3º Assim, uma vez que tal requerimento foi subscrito por ambas as partes, também a cessação dos efeitos do mesmo, ou seja o levantamento dessa suspensão deveria ter respeitado o princípio do contraditório.

                4º O que não aconteceu.

                5º De facto, foi apresentado um requerimento em que se pedia o levantamento da suspensão e desse requerimento não foi feita a notificação à parte contrária, ora requerente.

                6º Na verdade, prevê o n.º 3 do art. 3º do CPC: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”

                7º Também, o art. 4º do mesmo diploma legal prescreve: “O tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.”

                8º Assim, foram violados os princípios do contraditório e da igualdade de partes, desencadeando a nulidade de tudo o que se tiver verificado posteriormente a essa violação.

                9º Tanto mais que existem negociações em curso, até à presente data, que nunca cessaram.

                10º Inclusive, têm vindo mensalmente a cumprir com o pagamento do montante que tinham acordado.

                11º O que torna incompreensível a marcação da venda.

                12º Dispõe o n.º 1 do artigo 195º do CPC, intitulado “Regras gerais sobre a nulidade dos atos”: “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”

                13º É evidente que a omissão em causa influi na decisão da causa, já que não possibilitou aos requerentes pronunciarem-se sobre o requerimento apresentado pela exequente.

                14º Assim, estamos perante uma nulidade, prevista no art. 195º do CPC.

Nestes termos (…) requer-se a V.ª Ex.ª se digne dar sem efeito a data agendada para a realização da venda e, em consequência, notificar os executados para se pronunciarem sobre o requerimento do levantamento da suspensão da venda, sendo notificados de uma cópia deste último

k) Sobre tal requerimento, recaiu o seguinte despacho (proferido no decurso da diligência de “Abertura de Propostas em Carta Fechada” de 29.11.2016):

«Da análise dos autos, verifica-se que os executados foram notificados em 04/11/2016 da data para abertura de propostas (…), pelo que o requerimento em referência vai indeferido, por extemporâneo, na medida em que o prazo normal terminava em 17/11/2016, ou, com os 3 dias úteis a que alude o art.º 139º, n.º 5 do CPC, no dia 22/11/2016.//De todo o modo, e ainda que assim não se entenda, sempre a referida pretensão estaria condenada a improceder, uma vez que inexiste qualquer acordo com a exequente e a instância, contrariamente ao sustentado, não se encontrava suspensa.//Sem custas, atenta a simplicidade do incidente

l) Abertas as propostas apresentadas pela exequente (em 29.6.2016), as mesmas foram aceites, “uma vez que (…) são de montante superior ao mínimo de venda (art.º 816º, n.º 2 do CPC), bem como superiores às demais apresentadas.//São assim aceites: a proposta de € 2 800 quanto à verba n.º 1 e a proposta de € 84 000 quanto à verba n.º 2 [dita em II. 1. e)] (…)”.

m) Na sequência daquela decisão, foi ordenada “a entrega do cheque apresentado pelo credor reclamante (…)] (…)” e “que se notificasse a C (...) , S. A., nos termos requeridos pelo credor reclamante [“para vir informar aos autos qual o montante em dívida”] e se desse cumprimento ao ordenado no dia 29.6.2016 quanto ao proponente P (…).”

n) Consta dos autos que o 2º despacho mencionado em II. 1. d) foi cumprido em 24.8.2016 (cf. fls. 68).

o) Foi o requerimento (e a “informação”) aludido em II. 1. f) que despoletou o “despacho de 18.10.2016 com a designação da venda por abertura de propostas em carta fechada para o dia 29.11.2016”, não constando dos autos “qualquer requerimento apresentado pela exequente que tenha despoletado a marcação da diligência de 29.11.2016” (cf. fls. 83).

2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Aplica-se ao caso em análise o Código de Processo Civil/CPC de 2013[2] (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.6 – cf. o art.º 6º).

Relevam, entre outras, as seguintes disposições:

- Na falta de disposição especial, é de 10 dias o prazo para as partes requererem qualquer ato ou diligência, arguirem nulidades, deduzirem incidentes ou exercerem qualquer outro poder processual; e também é de 10 dias o prazo para a parte responder ao que for deduzido pela parte contrária (art.º 149º, n.º 1).

- “(…), a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa” (art.º 195º, n.º 1). Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes (n.º 2).

- Quanto às outras nulidades, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (art.º 199º, n.º 1, sob a epígrafe “regra geral sobre o prazo da arguição”).

- Cabe ao agente de execução efectuar todas as diligências do processo executivo que não estejam atribuídas à secretaria ou sejam da competência do juiz, incluindo, nomeadamente, citações, notificações, publicações, consultas de bases de dados, penhoras e seus registos, liquidações e pagamentos (art.º 719º, n.º 1).

- O agente de execução pode, sob sua responsabilidade e supervisão, promover a realização de quaisquer diligências materiais do processo executivo que não impliquem a apreensão material de bens, a venda ou o pagamento, por empregado ao seu serviço, devidamente credenciado pela entidade com competência para tal nos termos da lei (art.º 720º, n.º 6).

- Sem prejuízo de outras intervenções que a lei especificamente lhe atribui, compete ao juiz: (…) c) Julgar, sem possibilidade de recurso, as reclamações de atos e impugnações de decisões do agente de execução, no prazo de 10 dias; d) Decidir outras questões suscitadas pelo agente de execução, pelas partes ou por terceiros intervenientes, no prazo de cinco dias (art.º 723º, n.º 1).

- O agente de execução tem o dever de prestar todos os esclarecimentos que lhe sejam pedidos pelas partes, incumbindo-lhe, em especial: a) Informar o exequente de todas as diligências efectuadas, bem como dos motivos da frustração da penhora (art.º 754º, n.º 1).

       - Quando a penhora recaia sobre bens imóveis que não hajam de ser vendidos de outra forma, são os bens penhorados vendidos mediante propostas em carta fechada (art.º 816º, n.º 1).

       - Determinada a venda mediante propostas em carta fechada, o juiz designa o dia e a hora para a abertura das propostas, devendo aquela ser publicitada, pelo agente de execução, com a antecipação de 10 dias: a) Mediante anúncio em página informática de acesso público, nos termos de portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça; e b) Mediante edital a afixar na porta dos prédios urbanos a vender (art.º 817º, n.º 1).

       - Até ao dia de abertura das propostas, o depositário é obrigado a mostrar os bens a quem pretenda examiná-los, podendo este fixar as horas em que, durante o dia, faculta a inspeção e devendo o agente de execução indicá-las no anúncio e no edital da venda (art.º 818º).

       - As propostas são entregues na secretaria do tribunal e abertas na presença do juiz, devendo assistir à abertura o agente de execução e podendo a ela assistir o executado, o exequente, os reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a vender e os proponentes (art.º 820º, n.º 1). As propostas, uma vez apresentadas, só podem ser retiradas se a sua abertura for adiada por mais de 90 dias depois do primeiro designado (n.º 4).

            3. Sabemos que no direito português anterior à reforma da acção executiva (operada pelo DL n.º 38/2003, de 08.3), cabia ao juiz a direcção de todo o processo executivo: cumpria-lhe providenciar pelo andamento regular e célere do processo, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao seu normal prosseguimento.

            Com a reforma de 2003, reduziu-se a intervenção do juiz no processo, cabendo-lhe ainda, inicialmente, por um lado, controlar a actividade do agente de execução e, por outro lado, decidir todas as questões suscitadas pelas partes ou terceiros intervenientes, inseridas na reserva constitucional de jurisdição, entre as quais a resolução de litígios entre as partes (cf., nomeadamente, o disposto no art.º 809º do CPC, nas redacções conferidas pelos DL n.ºs 38/2003, de 08.3 e 226/08, de 20.11).

            Actualmente (CPC de 2013) e no desenvolvimento de novas alterações ao processo executivo[3], os poderes do juiz foram drasticamente limitados.

            O juiz passou a exercer funções de tutela, intervindo em caso de litígio surgido na pendência da execução (art.º 723º, n.º 1, alínea b)), e de controlo, proferindo nalguns casos despacho liminar e intervindo para resolver dúvidas, garantir a protecção de direitos fundamentais ou matéria sigilosa (cf. os art.ºs 723º, n.º 1, alíneas a) e d), 726º, 738º, n.º 6, 749º, n.º 7, 757º, 764º, n.º 4 e 767º, n.º 1) ou assegurar a realização dos fins da execução (cf. os art.ºs 759º, 773º, n.º 6, 782º, n.ºs 2 a 4, 814º, n.º 1, 820º, n.º 1, 829º, n.ºs 1 e 2 e 833º, n.º 2), mas deixou de ter a seu cargo a promoção das diligências executivas, não lhe cabendo, nomeadamente, em regra, ordenar a penhora, a venda ou o pagamento, ou extinguir a instância executiva - a prática de tais actos, eminentemente executivos, bem como a realização de várias diligências do processo de execução, quando a lei não determine diversamente, passaram a caber ao agente de execução (art.ºs 719º, n.º 1 e 720º, n.º 6).

            Foi assim deslocado para um profissional liberal o desempenho dum conjunto de tarefas, exercidas em nome do tribunal, sem prejuízo da possibilidade de reclamação para o juiz dos actos ou omissões por ele praticados (art.º 723º, n.º 1), cabendo ao exequente proceder à sua designação e à sua destituição ou substituição, e criando-se um órgão disciplinar com o poder de destituição fundada (Comissão para a Eficácia das Execuções – cf., por último, o art.º 40º, n.º 1 da Portaria n.º 282/2013, de 29.8), regime mantido pelo CPC de 2013, ainda que o exequente deva, agora, expor o motivo da substituição (art.º 720º, n.º 4).

            Dúvidas não restam, assim, de que, sem retirar a natureza jurisdicional ao processo executivo, encontra-se hoje plenamente implantado um sistema caracterizado pela larga desjudicialização (entendida como menor intervenção do juiz nos actos processuais) e a diminuição dos actos praticados pela secretaria.[4]

            4. E nesta linha de entendimento conclui-se, ainda, que não há nenhuma relação hierárquica entre o juiz e o agente de execução - apesar de ser possível reclamar para o juiz de execução das decisões e dos actos do agente de execução (art.º 723.º, n.º 1, al. c)), cada um destes órgãos da execução tem uma competência funcional própria: se é evidente que o agente de execução não pode invadir a esfera de competência do juiz de execução (se isso suceder em actos de carácter jurisdicional, a consequência não pode deixar de ser mesmo a inexistência do acto ou da decisão daquele agente), também é claro que o juiz de execução não pode praticar, sob pena de nulidade, actos que pertencem à competência do agente de execução.[5]

            O agente de execução “tem o dever de prestar todos os esclarecimentos que lhe sejam pedidos pelas partes, incumbindo-lhe, em especial, informar o exequente de todas as diligências efectuadas, bem como dos motivos da frustração da penhora” [art.º 754º, n.º 1, a)] e esse dever de informação e comunicação do agente de execução perante as partes, garante da transparência na condução de cada processo, foi, por último, especialmente regulado pelo art.º 42º da Portaria n.º 282/2013, de 29.8 (na redacção introduzida pela Portaria n.º 233/2014, de 14.11 – cf. art.º 62º, n.º 1).[6]

            Assim, haverá, necessariamente, que levar em conta a actual “estrutura” do processo executivo, marcada por uma acentuada desjudicialização, pela limitação dos poderes e da intervenção do juiz e pela ausência de uma relação hierárquica entre o juiz e o agente de execução.[7]

            5. Sendo esta a actual estrutura dinâmica do processo executivo e tendo presente a factualidade apurada, dúvidas não restam de que a diligência de abertura de propostas em carta fechada foi dada sem efeito na sequência da comunicação da actuação (informal) levada a cabo pelas partes, porventura em ligação com o AE [cf. II. 1. b) e d), 1ª parte, supra].

            Essa singular estrutura subjaz, v. g., aos procedimentos tendo em vista a designação de nova data para a diligência de abertura de propostas, com natural destaque para o impulso (iniciativa) da exequente e a materialização dos (prévios) actos processuais por parte do agente de execução, podendo, sempre, os executados indagar e ver explicitadas as circunstâncias que determinem o impulsionar/retomar de tais diligências executivas [cf., nomeadamente, os art.ºs 754º, n.º 1 e 818º do CPC e, na situação em apreço, II. 1. f), g) e h), supra].

            Assim, ao contrário do que, agora, os executados/recorrentes pretendem fazer crer, nenhum espanto lhes poderia advir da marcação da nova data notificada a 03.11.2016/04.11.2016 [cf. II. 1. h), supra].

            Ademais, ao invés do aduzido no requerimento de 25.11.2016 [cf. II. 1. j), supra], a instância não se encontrava suspensa (por acordo das partes) e não se impunha o “assentimento” dos executados para aquela nova marcação, sem prejuízo, naturalmente, de virem a suscitar em tempo oportuno, e sendo caso disso, a prestação dos esclarecimentos tidos por necessários ou adequados. 

Foi o requerimento (e a “informação”) aludido em II. 1. f), supra, que despoletou o “despacho de 18.10.2016 com a designação da venda por abertura de propostas em carta fechada para o dia 29.11.2016”, não constando dos autos “qualquer requerimento apresentado pela exequente que tenha despoletado a marcação da diligência de 29.11.2016” [cf. II. 1. o), supra], pelo que não corresponde à verdade que a exequente tenha formalizado um qualquer requerimento para esse efeito, além de que, seja qual for a perspectiva…, não vemos como se possa afirmar ter ocorrido “omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva” (art.º 195º, n.º 1).

Por último, ainda que de algum modo desrespeitados os princípios do contraditório e da igualdade de partes - o que não se verifica (verificando-se, sim, porventura, deliberado “alheamento” por parte dos executados…) -, a arguição da pretensa nulidade sempre seria intempestiva [cf. os art.ºs 139º; 149º, n.º 1 e 199º, n.º 1 e II. 1. k), supra].

            6. Decorre dos autos que o pedido do proponente P (…) no sentido de lhe ser devolvido o «cheque Bancário que juntou na sua proposta de 28/06/2016», foi deferido pelo tribunal a quo, em 29.6.2016, nos seguintes termos: “Req. 29.06.16/Oportunamente e tendo em consideração o prazo estatuído no n.º 4 do artigo 820º do CPC, diligencie-se como requerido.” [cf. II. 1. d) e e), supra].

Ou seja, aquele proponente viu deferida a sua pretensão de “retirar” a proposta, se (logo que) transcorrido o prazo de 90 dias a contar de 29.6.2016 (o primeiro dia - a primeira data - designado), sem ocorrer entretanto diligência de abertura das propostas (cf. o art.º 820º, n.º 4).

Admitindo que o mesmo foi notificado desse despacho em 24.8.2016 e porque a abertura das propostas ocorreu em 29.11.2016 [cf. II. 1. h), k) e n), supra], antolha-se evidente que a dita proposta de 28.6.2016 se deverá considerar validamente “retirada”, ainda que tudo quanto se determinou em 29.6.2016 não tenha sido integralmente cumprido (inclusive, a devolução do cheque) antes da diligência de 29.11.2016 [cf. II. 1. m), in fine, supra].

Independentemente do “valor” (que se desconhece) da dita proposta, será assim de concluir que a mesma deixou de existir nos autos (para os autos); que é insubsistente a argumentação dos recorrentes quando afirmam, referenciando-a, “da qual nunca o proponente declarou desistir, apenas solicitou a devolução do cheque, que não foi feita”; e, em derradeira análise, que não foram desrespeitadas as disposições dos art.ºs. 816º e 820º.

            7. Improcedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

            III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se as decisões recorridas.

            Custas pelos apelantes, sem prejuízo do apoio judiciário concedido a fls. 69.

                                                                    *


26.9.2017

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Alberto Ruço


[1] Atendendo aos documentos de fls. 19, 20/73, 22 a 24, 30/84, 32 a 37, 43/52, 68, 71 e 83 (os de fls. 68 e seguintes, juntos na sequência do despacho do relator de fls. 66). 
[2] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[3] Por exemplo, com o DL n.º 226/08, de 20.11, o juiz perdeu o poder geral de controlo (que o anterior art.º 809º do CPC lhe conferia) e o poder de destituir, fundadamente, o agente de execução (cf. a redacção introduzida ao art.º 808º do CPC).
[4] Vide, neste sentido, J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 6ª edição, Coimbra Editora, 2014, págs. 29 a 34.

[5] Cf. Professor Teixeira de Sousa no “blogue do IPPC.

[6] Cf. o preâmbulo da Portaria n.º 282/2013, de 29.8 e o n.º 1 do art.º 62º (sob a epígrafe “conteúdo do dever de informação e comunicação” e referente ao processo electrónico), que preceitua: O sistema informático de suporte à actividade dos agentes de execução assegura a disponibilização ao exequente, através do sistema informático de suporte à actividade dos tribunais, no endereço http://citius.tribunaisnet.mj.pt, de informação sobre: a) O resultado das diligências prévias à penhora, previstas nos artigos 748º e 749º do CPC; b) Todas as demais diligências efectuadas pelo agente de execução ou sob sua responsabilidade; c) O motivo de frustração da penhora (n.º 1).

[7] Sobre os pontos II. 3. e II. 4., cf. o acórdão da RC de 21.02.2017-processo 1361/10.9TJCBR-A.C1, (subscrito pelo relator e pela 1ª adjunta), publicado no “site” da dgsi.