Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3/00.5TELSB-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: PENHORA DE BENS COMUNS DO CASAL
AÇÃO DE SEPARAÇÃO JUDICIAL DE BENS
ERRO NO MEIO PROCESSUAL
INVENTÁRIO PARA PARTILHA DOS BENS COMUNS
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
Data do Acordão: 06/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 3.º, N.º 3, 193.º, N.ºS 1 E 3, 740.º, N.º 1, 1082.º, AL.ª A), E 1135.º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – O meio processual próprio para requerer a separação de bens tida em vista pelo n.º 1 do art. 740.º do CPCiv. é o inventário para partilha dos bens comuns do casal e não a ação de separação judicial de bens, prevista no art. 1767.º do CCiv..

II – Porém, a instauração desta ação não é de considerar como erro na forma do processo (com as consequências invalidantes a que aludem os n.ºs 1 e 2 do art. 193.º do CPCiv.), mas sim como erro no meio processual, sujeito ao regime do n.º 3 daquele art. 193.º, que prevê a correção oficiosa e o seguimento dos termos processuais adequados [os do processo de inventário a que se referem os arts. 1082.º, al.ª a), e 1135.º, ambos do CPCiv.].

III – Todavia, impondo o princípio dispositivo o respeito pela vontade da parte, o tribunal não tem o poder de mandar seguir os termos processuais adequados, quando a parte não pretende que se sigam tais termos (mas outros, que não são os adequados).

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 3/00.5TELSB-C

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

O Ministério Público instaurou execução contra AA para pagamento da quantia de € 137 727,97.

No âmbito de tal execução, BB foi citada na qualidade de cônjuge do executado AA para, querendo, no prazo de 20 dias, deduzir oposição à execução mediante embargos e/ou à penhora, sem prejuízo de poder também requerer a separação de bens ou juntar certidão da pendência de outro processo em que aquela separação já tenha sido requerida.

BB propôs, por apenso ao processo de execução, acção de separação judicial de bens contra AA, pedindo a imediata suspensão do processo executivo até ao trânsito da partilha dos bens comuns, com a subsequente tramitação do processo e eventuais apensos.  Requereu ainda a citação do réu para se opor, querendo e sob as cominações legais, para, a final, vir a decretar-se a separação judicial de bens do casal.

Para o efeito alegou, em síntese:
· Que casou com o réu em 25 de Abril d 1965, sob o regime da comunhão geral de bens;
· Que na vigência do casamento, vieram à posse do casal diversos bens de elevado valor afectivo e patrimonial;
· Que o réu, alguns anos a esta parte, tem vindo a praticar actos de gestão danosa, alienando alguns móveis e imóveis desse património comum.

A Meritíssima juíza do tribunal a quo considerou que a acção proposta pela autora não era o meio processual próprio para requerer a separação de bens a que se referia o n.º 1 do artigo 740.º do CPC e que se estava perante uma situação de erro na forma do processo, que implicava a nulidade de todo o processo. Em consequência absolveu o réu da instância com fundamento em erro na forma do processo.

A autora imputou ao despacho várias nulidades e, para o caso de elas não serem atendidas, interpôs recurso de apelação.

A Meritíssima juíza do tribunal a quo anulou o despacho que havia proferido e ordenou a notificação da autora para se pronunciar quanto à eventual excepção dilatória de erro na forma do processo, não passível de correcção oficiosa pelo tribunal, por estarem em causa meios processuais claramente distintos e não dispor o tribunal de competência para o conhecimento da acção declarativa a que se refere o artigo 1767.º do Código Civil.

Na resposta, a autora, alegou em síntese:
· Que estava comprovada a pendência de acção de separação judicial de bens a que se reportava o artigo 740.º do CPC;
· Que requeria o envio do processo ao juízo de família e menores ..., por onde passaria a tramitar ulteriormente e por apenso o respectivo inventário, tudo por decorrência das disposições conjugadas nos artigos 1083.º, n.º 1, alínea b), e 1133.º, n.º 1, ambos do CPC, e 122.º, n.º 2, da LOS;
· Que antes do envio e porque os autos já continham a documentação e motivação atinentes a tal desiderato, requeria, mais uma vez, a imediata suspensão do apenso executivo até ao trânsito da respectiva partilha, no tocante, obviamente, aos prédios que ali foram objecto de penhora e de cuja propriedade também a suplicante era legítima co-titular, tudo com os ulteriores termos prescritos no art.º 740.º-2 do CPC.

A Meritíssima juíza do tribunal a quo voltou a entender que a acção que a requerente pretendia instaurar não era o meio processual próprio para requerer a separação de bens a que se referia o n.º 1 do artigo 740.º do CPC e que a situação em causa configurava um erro na forma de processo gerador a nulidade de todo o processo.

Quanto ao pedido de remessa do processo para o juízo de família e menores ..., indeferiu-o, dizendo que tal mecanismo, previsto no n.º 2 do artigo 99.º do CPC, valia apenas para a excepção de incompetência, quando, no caso, a situação era de erro na forma do processo.

Em relação ao pedido de suspensão do processo de execução, indeferiu-o também, dizendo que a suspensão só era de determinar com a comprovação da pendência de acção onde a separação de bens já tivesse sido requerida e que a requerente não havia providenciado até àquele momento pela instauração de tal acção.

A autora não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse a decisão recorrida e se determinasse o prosseguimento da acção - ali ou noutra instância, conforme superior entendimento do disposto no 99.º-2 do CPC - com vista a que a Meritíssima Juíza logo decretasse a suspensão do processo executivo até ao trânsito da atinente sentença homologatória da partilha, com os ulteriores termos prescritos no art.740º-2 do CPC.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões forma os seguintes:
1. São os juízes dos Tribunais por onde pendem as execuções que dispõem de competência material para apreciarem os fundamentos do pedido da separação de bens, tendo em consideração a natureza da dívida e a titularidade dos bens penhorados, e, por isso, para determinarem a suspensão do processo executivo.
2. Tendo a tramitação dos Inventários, em consequência da sua rejudicialização, passado a transitar de novo pelos tribunais, recai actualmente sobre os tribunais o poder/dever de decidirem do desiderato a que se reporta a petição inicial, em virtude de tal competência abranger ambas as pretensões da recorrente tanto no que respeita à separação patrimonial como na tramitação do processo judicial de separação de bens.
3. Caso os fundamentos aduzidos pela Meritíssima Juíza fossem irrebatíveis no tocante ao despacho em causa, ter-lhe-ia bastado determinar, com base no art.º 5º-3 do CPC, que os autos seguissem os termos que, segundo o seu critério, pudessem melhor adequar-se aos almejados fins, sendo esse o comando expresso no art.º 193º-3, do mesmo código, ao prescrever que o eventual erro na qualificação do meio processual utilizado pela recorrente fosse sanado ex oficio e determinando-se o prosseguimento dos autos nos termos que se julgassem mais adequados, uma vez que a nulidade, a existir, sempre poderia ter sido sanada por simples correcção, como previsto nos artigos 6.º-2 e 590.º-2, ambos do NCPC.
4. A decisão recorrida também não se coaduna com os fundamentos que a suportam, mostrando-se incursa nas nulidades previstas no art.º 615º-1, alíneas c) e d) do CPC. Ali, porque os aduzidos fundamentos se contrapõem à decisão tomada e aqui, por não ter a Meritíssima Juíza conhecido de questão de que poderia e até deveria ter conhecido.
5. De igual modo, a ser correcta a fundamentação ali aduzida, então, cumpriria à Meritíssima Juíza aventar o iter e o modus processandi que entendia ser o mais correcto e/ou a prática de acto que mais adequado julgasse à circunstância, postergando, assim, os princípios da economia e da celeridade processuais, bem como o da adequação formal previsto no art.º art.6º-2 do mesmo Código, sem necessidade de se interpor este recurso de apelação.
6. Ao redigir o cabeçalho da petição inicial a recorrente incorreu em notório mas inofensivo lapsus calami de que só tardiamente se deu conta, ao declarar na petição inicial que a mesma ia interposta “nos termos do art. 740º-1 do CPC, e para os efeitos do seu nº 2”, quando queria e deveria ter dito “nos termos do art. 1767º do CC, e para os efeitos do 740º-2 do NCPC.”
7. Lapso que fora ali tão manifesto, que a Meritíssima juíza dele logo se apercebeu, compreendendo perfeitamente qual era o verdadeiro sentido das preocupações da recorrente, pelo que, sabendo bem que a autora mais não pretendera senão requerer a separação judicial de bens seguida de inventário, como previsto no art.º 1767º do C. Civil, cumprir-lhe-ia ter lançado mão, oficiosamente, do disposto nos artigos 193.º-3, 6.º-2 e 590.º do NCPC,
8. Tudo ocorreu, pois, à revelia dos artigos 130.º e 547.º do NCPC, apenas se baseando a Meritíssima juíza num Aresto prolatado no TRG em 2010 para ao final absolver o réu com base em erro inexistente na forma do processo e à revelia do entendimento maioritário e actualizado da nossa jurisprudência sobre as questões essenciais que giram à volta de tal desiderato.
9. Quando podiam e deveriam ter-se aproveitado os actos praticados que, segundo a Meritíssima juíza, estariam inquinados do vício que lhes imputa, mandando seguir o processo nos termos e pela forma que se entendesse serem os mais indicados, e não como sucedeu, anulando tudo e deixando as dúvidas apontadas sem qualquer resposta e destruindo apenas sem nada ter construído.
10. Decisão, portanto, incompatível com a letra dos normativos a que se atém, apenas fundamentada no citado aresto e pretensamente apoiada numa interpretação dos ensinamentos de Lopes Cardoso, in Part.Jud. vol.III, 3ª ed.Liv.Alm.1980, pág. 418 e 419, que no caso dos autos, não procede, pois a conjugação dos artigos 740.º-1 e 1135.º-1 do NCPC só colhem uníssono acolhimento no tocante às situações conjugadas dos artigos 10º do C.Com. e do 1696º do Código Civil, quando reportadas à penhora nos processos de insolvência e de falência.
11. Se o actual legislador, ao inserir no 740º do NCPC o conceito jurídico da “separação de bens,” quisesse restringi-lo à mera instauração de um inventário, tê-lo-ia dito de forma a que a sua leitura e interpretação não deixassem, como deixam, lugar a dúvidas e, muito menos, de modo a dar azo à estrita dimensão que a Meritíssima Juiz lhe inculca no despacho recorrido, quando, afinal, se a recorrente apenas pretendesse proceder à partilha dos bens comuns, ter-se-ia limitado à instauração de um simples inventário.
12. Mas não foi isso que a recorrente quis e fez, de contrário, não teria o cuidado de alegar apenas os factos levados aos itens 3º, 4º, 5º e 6º da p.i., sendo, pois, injusto que a Meritíssima juíza julgasse a petição inicial inepta por erro na forma do processo e o desse por integralmente anulado, sem ter sopesado que a recorrente lhe requerera, bem dentro dos 20 dias após citada, a separação judicial de bens e, sobretudo, a imediata suspensão da respectiva instância executiva.
13. A Meritíssima juíza dispunha de competência material para apreciar os fundamentos desse pedido e logo decretar a suspensão do processo executivo no que ao pedido respeita, mandando juntar aos autos certidão da petição inicial para, só depois, se razão lhe assistisse em decidir como decidiu, determinar o envio do processo à instância cível competente, Trib. de Fam. e Menores, como lhe fora requerido expressamente após prolação do 2º despacho rectificativo, tudo com os ulteriores termos até ao trânsito da sentença homologatória da partilha, anulando ou mantendo depois as penhoras, como fora decidido em processo idênticos no Ac. TRL de 11.12.2014, in Proc.658/10.2PDFUN-E.L1-2.
14. Daí que nem a decisão em mérito nem a interpretação que a suporta se compaginem com a ratio legis subjacente à revogação do art.º 825º do CPC e à sua substituição pelo 740.º do NCPC, que não podem aplicar-se indistintamente a qualquer tipo de penhora, mas sim, e apenas, à dos bens comuns de casais em sede de execução movida contra um só dos cônjuges.
15. Ao tempo do Acórdão do TRG de 2010 citado Meritíssima juíza, vigorava o regime jurídico do art.º 66º do RGPI, sendo acometida aos Notários a competência relativa à tramitação material das peças que integravam o inventário e cabendo aos tribunais a tramitação do processo de separação judicial de bens, razão porque a tramitação processual dos Inventários, em sequência da sua rejudicialização, voltou aos tribunais, recaindo agora de novo sobre a instância a quo, segundo uns, e sobre o Tribunal cível, segundo outros, o poder de decidir de tal desiderato.
16. Se a decisão recorrida fosse irrefragável, e não é, mais justo teria sido que a Meritíssima juíza - por via das múltiplas razões subjacentes aos princípios da economia e da celeridade processuais, e vendo que a intenção da recorrente era apenas a partilha prevista no 1767º do CC,v.d fls 3, antepen.§ - lançasse mão do disposto no art. 5.º-3 do CPC, determinando que a tramitação deste processo fosse mais célere e, formalmente, mais adequada às circunstâncias a que se reporta a situação sub judicio, o que não fez.
17. A decisão recorrida está inquinada pelas nulidades das alíneas c) e d) do art.º 615º-1 do CPC, com referência aos artigos 193.º-1 e 195.º do CPC, por inexistência de erro na forma do processo, não se tendo a recorrente afastado da qualificação seguida pelo legislador quanto ao meio processual de que lançou mão para almejar os mesmos fins visados na lei.
18. Razão porque o douto raciocínio da Meritíssima juíza, com isolado suporte no referido Ac. TRG de 14.12.2010, Proc.3798/.09.7TBBRG-A.G1, perde toda a firmeza, não só por a sua vertente argumentativa ter vindo ao longo dos anos a ser objecto de leitura diversa, mas também por se reportar a situação que nada tem a ver com esta, assumindo aí inegável relevância o douto Ac TRC de 23.02.2021, in Proc. 435/20.2 T 8PBL-A.C1, itens V e VI do respectivo Sumário, ao dispor com clareza e sem deixar lugar a dúvidas que “o inventário para separação de meações é dependente do processo de divórcio”, (ou de separação judicial de bens, como é o caso), em consequência do que nele vier a ser decidido”.
19. O que nos permite manter que a separação judicial de bens terá que ser - nada obsta a que o seja - previamente requerida pela parte e decretada judicialmente, por se tratar de uma excepção ao princípio da impossibilidade de alterar o regime de casamento, pelo que, se outras razões não houvesse, sempre tal apontaria para a solução preconizada no 193º-1 e 3 do CPC, pois seria o próprio requerimento que vem de ser rejeitado a comprovar a pendência da acção de separação judicial de bens comuns, não se coadunando a apelada decisão com os fundamentos que a suportam, incorrendo, assim, nas nulidades prescritas no 615.º-1, als c) e d) do NCPC, quer porque os aduzidos fundamentos se lhe contrapõem quer por não ter conhecido de questão de que cumpria ter-se conhecido.
20. São, pois, inconstitucionais os artigos 193º e 195º do NCPC na interpretação que se lhes inculca no despacho recorrido - por violação concomitante dos princípios plasmados nos artigos 18.º-2, 20.º 62.º, 202.º-2 e 205.º-1 da CRP - quando reportados às circunstâncias previstas nos seus itens 1 e 3, pois o erro na forma do processo, a ocorrer, só daria azo à anulação dos actos de todo inaproveitáveis, devendo manter-se os demais necessários à adaptação do formalismo processual exigido por lei

O Ministério Público respondeu, pedindo se revogasse e substituísse a decisão recorrida por outra que declarasse a incompetência material do tribunal e absolvesse o réu da instância da nova acção instaurada e, se estivessem verificados os requisitos previstos no artigo 99, nº2 do CPC, se determinasse a remessa da nova acção instaurada ao juízo materialmente competente.


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Questões suscitadas pelo recurso:
1. Saber se a decisão recorrida enferma das causas de nulidade previstas nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
2. Saber se a decisão recorrida é de revogar e substituir por outra com o seguinte sentido:
· Que determine o prosseguimento da acção de separação judicial de bens, no tribunal recorrido ou noutro tribunal;
· Que suspenda o processo executivo até ao trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha.
3. Saber se os artigos 193.º e 195.º do CPC na interpretação que segundo a recorrente lhes foi dada pela decisão recorrida são inconstitucionais.

A resposta suscita a questão de saber se a decisão a proferir por este tribunal é a de absolver o réu da instância com fundamento na incompetência do tribunal em razão da matéria para conhecer da acção proposta pela ora recorrente e a de, se estiverem verificados os requisitos previstos no artigo 99.º, n.º 2, do CPC, determinar a remessa a acção ao juízo materialmente competente.


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Os factos relevantes para a decisão do recurso são constituídos pelos antecedentes processuais da decisão recorrida narrados no relatório do acórdão.

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Nulidade da decisão recorrida:

Nas conclusões do recurso, a recorrente acusa 3 vezes a decisão de incorrer nas causas de nulidade previstas nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.   Concretamente:
· Num primeiro momento alegou que a decisão não se coadunava com os fundamentos que a suportavam e que não conheceu de questão que poderia e deveria ter conhecido [4.ª conclusão];
· Num segundo momento alegou que a decisão de incorreu em tais causas de nulidade por não existir erro na forma do processo e por, ela recorrente, não se afastar da qualificação seguida pelo legislador quanto ao meio processual de que lançou mão para almejar os fins visados na lei [conclusão 17.ª];
· Por último, voltou a alegar que a decisão não se coadunava com os fundamentos que a suportavam e não conheceu de questão de que devia ter conhecido [19.ª conclusão].

Este fundamento do recurso é de julgar improcedente.

Em primeiro lugar, a decisão não enferma da causa de nulidade prevista na 1.ª parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, ou seja, os fundamentos da decisão recorrida não estão em contradição com o que foi decidido.

Vejamos. Dado que a decisão proferida foi a de julgar verificada a excepção dilatória de erro na forma do processo e a de absolver o réu da instância, os fundamentos desta decisão estariam em contradição com ela se eles apontassem num sentido oposto ou pelo menos num sentido diferente. E apontar num sentido oposto era apontar no sentido de que não havia erro na forma do processo ou no sentido de que havia erro na forma do processo, mas que a consequência não seria a anulação de todo o processo. Ora, os fundamentos consistiram precisamente na afirmação expressa e clara de que havia erro na forma do processo e que tal erro dava origem à nulidade de todo o processado.

Em segundo lugar, o despacho sob recurso também não incorreu na causa de nulidade prevista na 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (omissão de pronúncia).

Segundo a recorrente, a decisão incorreu nesta causa de nulidade por não ter mandado seguir os autos nos termos que julgasse mais adequados e por não existir erro na forma do processo. 

Se, como alega o recorrente, o tribunal a quo tivesse o dever de mandar seguir os termos processuais adequados, em vez de anular todo o processo e absolver o réu da instância e se não existisse erro na forma do processo, tal significaria que a decisão errou quando afirmou que havia erro na forma do processo e quando anulou todo o processado. Sucede que uma decisão errada não cabe em nenhuma das causas de nulidade apontadas à decisão recorrida.


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Revogação da decisão recorrida e substituição dela por decisão que determine o prosseguimento da acção de separação judicial de bens e que suspenda o processo de execução

A recorrente pediu a revogação da decisão recorrida e a substituição dela por outra que determinasse o prosseguimento da acção que ela propôs - acção de separação judicial de bens –, fosse no tribunal onde pende a execução, fosse noutro tribunal, e que suspendesse o processo executivo até ao trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha, com os ulteriores termos prescritos no artigo 740.º, n.º 2, do CPC.

Recorde-se que o despacho sob recurso julgou verificado o erro na forma do processo e anulou todo o processado por considerar que a acção instaurada pela autora, ora recorrente – acção de separação judicial de bens - não era o meio processual próprio para requerer a separação de bens a que se referia o n.º 1 do artigo 740.º do CPC e que a situação em causa configurava um erro na forma de processo gerador da nulidade de todo o processo.

A recorrente contesta a decisão com a seguinte linha argumentativa:
· O inventário para separação de meações só constitui o meio adequado para requerer a separação de bens a que se refere o n.º 1 do artigo 740.º do CPC no tocante às situações conjugadas dos artigos 10.º do Código Comercial e do 1696.º do CC, quando reportadas à penhora dos processos de insolência e de falência;
· Se o legislador, ao inserir, no artigo 740.º do CPC, o conceito jurídico de separação de bens quisesse restringi-lo à mera instauração de um inventário, tê-lo-ia dito de forma a que a sua leitura e interpretação não deixasse, como deixam, lugar a dúvidas;
· Que o artigo 740.º do CPC não pode aplicar-se a qualquer tipo de penhora, mas apenas à dos bens comuns de casais em sede de execução movida contra um só dos cônjuges;
· Que a separação judicial de bens teria que ser previamente requerida pela parte e decretada judicialmente.

Apreciação do tribunal

Pelas razões a seguir expostas, é de entender que a acção de separação judicial de bens prevista no artigo 1767.º do Código Civil não é o meio processual próprio para requerer a separação de bens tida em vista pelo n.º 1 do artigo 740.º do CPC. Porém, ao contrário do que decidiu o despacho recorrido, a propositura de tal acção pela ora recorrente não é de considerar como erro na forma do processo. É de tratar como erro no meio processual, sujeito ao regime do n.º 3 do artigo 193.º do CPC.

Vejamos.

A alegação da recorrente remete-nos para a interpretação do n.º 1 do artigo 740.º do CPC na parte em que se refere à separação de bens.  E a questão interpretativa a que importa dar resposta é a de saber se “a separação de bens” a que se refere o preceito é a que é levada a cabo mediante inventário para separação de bens comuns (alínea d) do artigo 1082.º do CPC) ou é a separação judicial de bens a que se refere o artigo 1767.º do Código Civil.

Na letra do preceito cabe, sem grande esforço interpretativo, tanto a separação de bens efectuada por inventário, como a acção judicial de separação de bens.

Sucede que, na interpretação da lei não deve atender-se apenas à respectiva letra, mas reconstituir o seu pensamento legislativo, tendo em conta, entre outras circunstâncias, a “unidade do sistema jurídico” (n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil).

Ter em conta a unidade do sistema jurídico significa, socorrendo-nos das palavras de Manuel Domingues de Andrade, que “….cada texto legal deva ser relacionado com aqueles que lhes estão conexos por contiguidade ou por outra causa, tomando o seu lugar no encadeamento de que faz parte. É o cânone hermenêutico da coerência e da totalidade.” (Sentido e Valor da Jurisprudência, Coimbra 1973, página 28).

Um dos textos da lei que está directamente conexionado com o n.º 1 do artigo 740.º do CPC é o artigo 1135.º do CPC, pois diz-se nele qual o regime a seguir se for requerida a separação de bens nos casos de penhora de bens comuns do casal. E o regime a seguir é o do processo de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, com as especificidades previstas nos números seguintes.

Segue-se do exposto que a conjugação do n.º 1 do artigo 740.º do CPC com o n.º 1 do artigo 1135.º do mesmo diploma aponta no sentido de que o meio processual próprio para requerer a separação de bens tida em vista por aquele preceito é o inventário para partilhar bens comuns do casal.

Depõe também neste sentido a circunstância de a separação prevista no artigo 1767.º do CC ter razões diferentes das da separação prevista no n.º 1 do artigo 740.º do CPC. A separação prevista naquele preceito é uma providência a favor do cônjuge que está em perigo de perder o que é seu pela má administração do outro cônjuge.  Neste, a separação visa concretizar a responsabilidade da meação nos bens comuns pelas dívidas que impendem apenas sobre um dos cônjuges (2.ª parte do n.º 1 do artigo 1696.º do Código Civil).  Socorrendo-nos das palavras de Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, a separação judicial de bens é uma “separação judicial autónoma”, que se distingue da separação judicial de bens não autónoma, em que se visa outro fim e em que a separação de bens é meramente reflexa, como é o caso da separação de bens decretada no âmbito de uma execução por dívida da responsabilidade de um dos cônjuges (Curso de Direito de Família, Volume I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, página 552). 

Pelo exposto, interpreta-se o n.º 1 do artigo 740.º do CPC, na parte em que se refere à separação de bens, no sentido de que o meio processual próprio para requerer a separação de bens é o inventário para partilha dos bens comuns do casal, que segue o regime do processo de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, com as especificidades previstas no artigo 1135.º do CPC.

Interpretado o n.º 1 do artigo 1740.º do CPC com este sentido é de concluir que o meio que a ora recorrente usou para requerer a separação dos bens comuns - a separação judicial de bens com o fundamento previsto no artigo 1767.º do CPC – não era o meio processual próprio para o efeito.

Vejamos, de seguida, as razões pelas quais entendemos que o desajustamento entre o meio processual utilizado e o apropriado não é de caracterizar, no entanto, como erro na forma do processo.

Ocorre erro na forma do processo quando a forma indicada pelo autor na petição não corresponde àquela que a lei prevê para a pretensão deduzida. Tal sucederá, servindo-nos dos exemplos dados por Miguel Teixeira de Sousa, em CPC online, quando é aplicada: (i) a forma errada do processo comum; (ii) a forma comum em vez da forma especial, ou vice-versa; (iii) a forma errada do processo especial; (iv) a forma errada de procedimento cautelar em vez de processo comum”.

Não foi neste erro que incorreu a autora, ora recorrente.  O erro da autora, ora recorrente, foi o de socorrer-se de um meio errado para requerer a separação de bens a que se refere o n.º 1 do artigo 740.º do CPC.

A situação dos autos é semelhante à que acontece quando a parte interpõe recurso de um despacho do relator em vez de reclamar para a conferência ou quando a parte se opõe à execução por meio de requerimento em vez de o fazer por meio de embargos de executado. Estas situações configuram erros na qualificação do meio processual utilizado pela parte, sujeitos ao regime do n.º 3 do artigo 193.º do CPC e não ao do erro na forma do processo previsto nos números 1 e 2 do mesmo preceito.

Daqui não segue, no entanto, que seja de atender à pretensão da recorrente, consistente no prosseguimento da acção de separação judicial de bens – no tribunal recorrido ou noutro tribunal - e na suspensão do processo executivo até ao trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha.

E não é de atender porque, segundo o n.º 3 do artigo 193.º do CPC, o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte, que é corrigido oficiosamente pelo juiz, determina que se sigam os termos processuais adequados e, no caso, os termos processuais adequados são os do processo de inventário para separação de bens comuns a que se refere a alínea a) do artigo 1082.º do CPC e o artigo 1135.º do Código de Processo Civil.

Sucede que, apesar de, nalguns passos do recurso, sustentar que, na hipótese de a situação ser a de erro na forma do processo, a Meríssima juíza do tribunal a quo tinha o dever de mandar seguir os termos que segundo ela seriam os adequados, a verdade é que o meio processual que a recorrente quer que prossiga é a acção judicial de separação de bens prevista no artigo 1767.º do Código Civil. É o que resulta com clareza da parte final das alegações e das conclusões formuladas sob os números 12, 16. e 19.

Esta pretensão suscita a questão de saber se, em caso de erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte, o tribunal tem o poder de mandar seguir os termos processuais adequados, quando a parte não pretende que se sigam tais termos, mas outros, que não são os adequados.

A resposta a esta questão é negativa. Na verdade, apesar de a letra do n.º 3 do artigo 193.º do CPC não subordinar a correcção do erro ao respeito pela vontade da parte que praticou o acto, tal respeito é imposto pelo princípio dispositivo enunciado na 1.ª parte do n.º 3 do artigo 3.º do CPC.  Cita-se em abono desta interpretação, Miguel Teixeira de Sousa que, em anotação ao Acórdão Uniformizador n.º 2/2010, de 20-01-2010 – que se pronunciou sobre a convolação de um requerimento de interposição de recurso para um requerimento para a conferência – entendeu que a convolação seja admissível é necessário que estejam preenchidos, além de outros requisitos, “o respeito da vontade da parte que praticou o acto”. [Cadernos de Direito Privado, n.º 33, Janeiro/Março 2011, página 38].

E assim sendo, se a ora recorrente não quer que o acto que praticou – pedido de separação judicial e bens previsto no artigo 1767.º do Código Civil - seja aproveitado como requerimento inicial de processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal formado por ela e pelo executado, não pode este tribunal determinar que se sigam os termos do inventário.

Em consequência do exposto é de julgar improcedente a pretensão da ora recorrente no sentido do prosseguimento da acção de separação judicial de bens prevista no artigo 1767.º do Código Civil, bem como o pedido de suspensão da execução.

Quanto ao conhecimento da questão suscitada na resposta pelo Ministério Público, ele está prejudicado. Na verdade, uma vez que se considerou que o meio processual próprio para requerer a separação de bens prevista no n.º 1 do artigo 740.º do CPC é o inventário para partilha dos bens comuns do casal e não a acção judicial de separação de bens, não cabe a este tribunal pronunciar-se sobre a competência do tribunal, em razão da matéria, para tal acção.


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Inconstitucionalidade dos artigos 193.º e 195.º do CPC,

Por último, a recorrente invoca a inconstitucionalidade destes preceitos na interpretação que, segundo ela, lhes foi dada no despacho recorrido, sob a alegação de que tal interpretação violou os princípios plasmados nos artigos 18.º, n.º 2, 20.º, 62.º, 202.º, e 205.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, quando reportados às circunstâncias previstas nos seus números 1 e 3, pois o erro na forma do processo, a ocorrer,  só daria lugar à anulação dos actos de todo inaproveitáveis, devendo manter-se os demais necessários à adaptação do formalismo processual exigido por lei.

Pelas razões a seguir expostas, não cabe a este tribunal conhecer da alegada inconstitucionalidade.

O tribunal da Relação só tem o dever de conhecer das questões de constitucionalidade suscitadas pelas partes, em relação aos preceitos que tenham sido aplicados pela decisão recorrida como fundamento jurídico do que foi decidido e aplicados com o sentido que o recorrente reputa de inconstitucional. Se o preceito que o recorrente reputa contrário à Constituição da República Portuguesa não foi aplicado ou se foi aplicado com um sentido diferente daquele que lhe é imputado pelo recorrente é inútil conhecer da sua constitucionalidade, pois ainda que o tribunal o declarasse inconstitucional nenhum efeito teria na decisão do recurso e não é lícito realizar no processo actos inúteis (artigo 130.º do CPC).

O que se acaba de expor aplica-se aos artigos 193.º e 195.º do CPC.  Concretizando:
· O n.º 1 do artigo 193.º foi aplicado como fundamento da decisão recorrida, mas com o sentido que, segundo a recorrente, respeita o direito constitucional, ou seja, com o sentido de que o erro na forma do processo gera a nulidade de todo o processo quando os actos praticados não puderem ser validamente aproveitados;
· O artigo 195.º, que diz respeito às regras gerais sobre a nulidade dos actos, não foi aplicado como fundamento da decisão recorrida.

Diga-se, por fim, em relação ao artigo 193.º, n.º 1, do CPC, que sempre seria inútil conhecer da sua constitucionalidade visto que este tribunal considerou que ele não era aplicável à resolução do litígio. 


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Decisão:

Revoga-se a decisão que julgou verificada a excepção de erro na forma do processo e que absolveu o réu da instância, mas indefere-se a pretensão da recorrente no sentido de prosseguir a acção de separação judicial de bens prevista no artigo 1767.º do CPC e a e se suspender o processo executivo.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 2.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a recorrente ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas.

Coimbra, 28 de Junho de 2022