Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
116/11.8T2VGS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: LEGITIMIDADE
CASO JULGADO
CONTRADIÇÃO DE JULGADOS
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
Data do Acordão: 04/17/2012
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE MÉDIA PEQ. INST. CÍVEL DE VAGOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 666º, 671º, 672º, 675º E 677º DO CPC
Sumário: I – A decisão interlocutória que declare a legitimidade de uma parte, não é susceptível de recurso autónomo imediato.

II - A contradição de casos julgados, seja material ou simplesmente formal, exige uma relação de identidade – ou ao menos de prejudicialidade – entre o objecto das decisões transitadas em julgado.

III - Da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão, decorre um efeito negativo, que é a insusceptibilidade de o próprio tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar, e um efeito positivo, que é a vinculação desse mesmo tribunal à decisão por ele proferida.

IV - A extinção ou esgotamento do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão restringe-se ao objecto sobre que estatuiu.

V - A decisão que, na providência cautelar de restituição provisória da posse absolve do pedido o requerido, declarado, por decisão anterior parte legítima, não viola, por ausência de identidade do objecto, o princípio da extinção ou do esgotamento do poder jurisdicional consequente ao proferimento desta última decisão.

Decisão Texto Integral: I. Forma de julgamento do recurso.

                Dado que a questão objecto recurso, por nem sequer ter sido oferecida resposta, é simples, declaro que aquele será julgado singular e sumariamente (artºs 700 nº 1 c) e 705 do CPC).

                II. Julgamento do recurso.

1. Relatório.

J… propôs, no Juízo de Pequena e Média Instância Cível de Vagos, Comarca do Baixo Vouga, contra a Junta de Freguesia de …, providência cautelar mista, pedindo o embargo das obras realizadas pela requerida, de compactação, pelo sul do campo de jogos, construído no topo poente dos seus prédios, com vista à construção de um parque de estacionamento, e autorização para remover os postes e redes, colocadas pela requerida, no espaço que medeia entre o campo de jogos e o parque de estacionamento em construção.

Fundamentou estas pretensões no facto de ser proprietário de quatro prédios, descritos na conservatório do registo predial de Vagos sob os nºs …, da freguesia de …, matricialmente inscritos nos artigos …, respectivamente, que confrontam… e de no topo daqueles prédios a requerida ter construído um campo de jogos, construção com que ficou vedado quase todo o acesso directo daqueles prédios, com excepção de uma pequena parte do prédio matricialmente inscrito no artigo …, que continuou a chegar ao caminho através de uma faixa de terreno com 6 metros de largura, e de a requerida ter vindo a proceder a obras de compactação, pelo sul do campo de jogos e daquela faixa de terreno, com vista à construção de um parque de estacionamento, tendo vedado, com postes e redes, a nascente e poente, aquele espaço, aberto valas e colocado manilhas.

Por despacho de 15 de Abril de 2011, decidiu-se que, face aos esclarecimentos prestados pelo requerente, na sequência de despacho anterior, a factualidade alegada se enquadrava no procedimento de restituição provisória da posse, e, sem audiência prévia da requerida, designou-se dia para a inquirição das testemunhas indicadas por aquele.

Porém, finda a inquirição destas testemunhas, determinou-se a citação da requerida para a providência.

                A requerida defendeu-se por excepção dilatória, invocando a sua ilegitimidade ad causam, por não ser proprietária do terreno nem responsável pelas obras que estão a ser realizadas – terreno que é propriedade da Câmara Municipal de …, que nele executa uma obra de implantação de parque de auto-caravanas – e a incompetência material do tribunal, e por impugnação, alegando que quem vedou o caminho pelo limite norte e nascente do polidesportivo, foi o confrontante norte dos terrenos do requerente, M...

Por despacho de 7 de Junho de 2011, proferido para a acta da inquirição de testemunhas, que não foi objecto de impugnação, decidiu-se que o presente juízo é materialmente competente para a apreciar a pertinência da pretensão “mista” formulada pelo requerente e que, do ponto de vista da configuração que o autor dá à acção, as partes têm, pois, a necessária legitimidade processual.

A sentença final do procedimento, com fundamento em que não resultou provado que as obras realizadas, a poente do polidesportivo, sejam da responsabilidade da requerida, Junta de Freguesia de …, e, assim, porque se não se provou que a requerida é a autora de qualquer esbulhojulgou a providência totalmente improcedente, por não provada, e absolveu a requerida do pedido.

O requerente, alegando, que esta decisão concluiu pela ilegitimidade da requerida junta de freguesia, o que se deve a manifesto lapso decorrente de não se ter atentado que no douto despacho proferido na acta da audiência de julgamento realizada aos 07.06.2011, já se havia conhecido dessa excepção, tendo-se proferido decisão contrária, e que tal despacho transitou em julgado, pelo que, em obediência ao disposto no artº 795 do CPC, tem aquela prevalência sobre esta, pediu a correcção do apontado lapso.

                Já depois da interposição, pelo requerente, do recurso ordinário de apelação daquela sentença, por despacho de 4 de Janeiro de 2012, depois de se observar que o tribunal em momento algum concluiu pela ilegitimidade da Ré – aliás já decidida nos autos, como se fez constar na sentença, mas antes pela improcedência do procedimento, e que uma questão é a legitimidade, tal como configurada na acção, e outra, diversa, é a prova do alegado pelas partes, e que a este propósito, não obstante o tribunal considerar que a Ré era parte legítima, não foi feita prova de todos os requisitos para que o procedimento procedesse – decidiu-se que nada há rectificar, mantendo-se na íntegra a decisão proferida.

                O requerente declarou, de seguida, manter o recurso interposto, e requereu se considerassem de valor nulo as alegações apresentadas e que relevassem as que apresentou nesse momento.

                E dessas alegações, o recorrente extraiu estas conclusões:

...

                Não foi oferecida resposta.

2. Factos provados.

O Tribunal de que provêm o recurso julgou provados os factos seguintes:

                3. Fundamentos.

                3.1. Delimitação objectiva do recurso.

                Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Nestas condições, tendo em conta os parâmetros de delimitação da competência decisória deste Tribunal representados pelo conteúdo da decisão recorrida e da alegação do recorrente, a questão concreta controversa que há que resolver é só uma: a de saber se a sentença impugnada deve ser revogada e substituída por outra que ordene o proferimento de nova decisão que considere a recorrida parte legítima e se pronuncie sobre os pedidos formulados pelo recorrente.

A resolução deste problema vincula, naturalmente, ao exame dos efeitos processuais do caso julgado e do proferimento da decisão judicial.

                3.1. Efeitos processuais do caso julgado e do proferimento da decisão judicial.

O caso julgado é a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão – despacho, sentença ou acórdão – decorrente do seu trânsito em julgado, que torna indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo tribunal, ou seja, o conteúdo da decisão desse órgão jurisdicional (artº 677 do CPC).

O caso julgado constitui expressão dos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica.

O caso julgado é, realmente, uma exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que obsta a que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, evita que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a resolver.

O caso julgado resolve-se, assim, na inadmissibilidade da substituição ou modificação de uma decisão por qualquer tribunal – e, portanto, mesmo por aquele que a proferiu – resultante da insusceptibilidade da sua impugnação, tanto por reclamação como por recurso ordinário

O trânsito em julgado da decisão é, portanto, consequência, da insusceptibilidade da interposição recurso ordinário ou de reclamação, seja qual for a causa dessa insusceptibilidade – a extinção por caducidade do direito à impugnação, a renúncia ao recurso pelas partes da acção ou pela parte vencida, a inadmissibilidade do recurso ordinário, pelo valor da causa ou pela sucumbência do recorrente, etc.

                Perspectivado a partir do âmbito da sua eficácia, o caso julgado separa-se entre o caso julgado material e o caso julgado formal: o caso julgado formal possuiu um valor estritamente intraprocessual, dado que só é vinculativo no próprio processo em que a decisão foi proferida; o caso julgado material, além de uma eficácia intraprocessual, é susceptível de valer num processo diverso daquele em que foi proferida a decisão transitada. A eficácia do caso julgado material é, portanto, mais ampla, dado que além de vincular no processo em que foi proferida a decisão transitada, podem também ser vinculativo num processo distinto (artºs 671 nº 1 e 672 do CPC).

As diferentes modalidades de caso julgado relacionam-se com a diversidade do objecto sobre que estatuiu a decisão transitada.

Em regra, as decisões de forma – i.e., as decisões que incidem sobre aspectos processuais – apenas adquirem o valor de caso julgado formal, ao passo que as decisões de mérito – as decisões que apreciam, no todo ou em parte, a procedência ou improcedência da acção – são, em princípio, as únicas a adquirir a eficácia de caso julgado material (artºs 671 nº 1 e 672 do CPC).

Portanto, a diferente eficácia, num caso e noutro, das decisões proferidas na acção pendente, decorrente do caso julgado que sobre elas se forma, explica-se pela diferença do seu objecto. Dado que as decisões de forma recaem sobre aspectos processuais – v.g. sobre a competência do tribunal ou a legitimidade das partes – a sua eficácia restringe-se ao processo onde foram proferidas; inversamente, as decisões de mérito declararam ou constituem situações jurídicas que, no caso de prejudicialidade entre objectos processuais, podem ser relevantes para a apreciação ou constituição de situações jurídicas e não podem ser contrariadas ou recusadas noutro processo.

Com o proferimento da decisão dá-se o imediato esgotamento – rectior, extinção – do poder jurisdicional do juiz (artº 666 nºs 1 e 3 do CPC). Dessa extinção decorre esta consequência irrecusável: o juiz não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada.

Da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem, assim, dois efeitos: um positivo – traduzido na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; um negativo – representado pela insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar.

Todavia, a intangibilidade, para o juiz, da decisão que proferiu, é, naturalmente limitada pelo objecto dela: a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às questões sobre incidiu a decisão. Por isso nada obsta, é claro, a que o juiz continue a exercer no processo o poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida: o juiz pode - e deve - resolver todas as questões que não tenham com o objecto da decisão proferida uma relação de identidade ou ao menos de prejudicialidade, e, portanto, que não exerçam qualquer influência da decisão que emitiu, relativamente à qual o seu poder jurisdicional se extinguiu e se esgotou.

É axiomático, porém, que a extinção do poder jurisdicional não impede que a parte interessada impugne a decisão proferida perante o tribunal que a proferiu – através de reclamação – ou perante um tribunal de recurso – por meio de recurso ordinário. Como é essa impugnação que é justamente impedida pelo trânsito em julgado da decisão, segue-se que são também dois os efeitos processuais característicos do caso julgado.

Um efeito negativo: que se traduz na insusceptibilidade de qualquer tribunal – mesmo aquele que proferiu a decisão – se voltar a pronunciar sobre essa mesma decisão; um efeito positivo: a vinculação do tribunal que proferiu a decisão e, eventualmente, de outros tribunais, ao que nela foi decidido ou estabelecido.

O desacatamento de qualquer destes efeitos processuais do caso julgado dá origem à situação patológica da existência de casos julgados contraditórios – seja no mesmo processo, seja em processo distinto. Para remover o conflito, a lei disponibiliza um critério, assente num princípio de prioridade: havendo duas decisões contraditórias vale aquela que primeiramente tiver passado em julgado (artº 675 nº 1 do CPC).

Este princípio da prioridade do trânsito em julgado vale igualmente para as decisões que, num mesmo processo, versem sobre a mesma decisão concreta (artº 675 nº 2 do CPC)[1].

Na espécie do recurso, de harmonia com a alegação do recorrente, por a decisão anterior, proferida no tocante à legitimidade ad causam da recorrida ter transitado em julgado, por não ter sido objecto de impugnação, à sentença recorrida não era lícito, sob pena de constituir caso julgado contraditório, decidir em sentido contrário.

Mas este argumento, por assentar em dois pressupostos de todo inexactos, deve ter-se por inteiramente improcedente.

É para o detalhe desta proposição e para o cumprimento do ónus da argumentação correspondente que se dirigem as considerações subsequentes.

3.2. Concretização.

A decisão que, no ver do recorrente, adquiriu o valor de caso julgado, é a proferida no dia 7 de Junho de 2011, que julgando improcedentes as excepções dilatórias impróprias da incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal e da ilegitimidade ad causam da recorrida, alegadas por esta, declarou aquela competência e a legitimidade ad causam da última (artº 288 nºs 2 a) e e), 483 nºs 1 e 2, 487 nºs 1 e 2), 494 a) e e) e 495 do CPC).

Todavia, aquela decisão só no tocante a um dos objectos sobre que estatuiu, ou apenas relativamente a uma das excepções dilatórias que apreciou - a da competência do tribunal - é que adquiriu, no prazo de 15 dias, contado da sua notificação às partes, por força do carácter urgente do procedimento em foi proferida, o valor de caso julgado, ainda que mera ou puramente formal (artºs 382 nº 1 691 nº 5 do CPC).

Realmente, aquela decisão só era imediata e autonomamente impugnável no segmento em que apreciou a competência do tribunal; na parte em que decidiu a excepção dilatória da ilegitimidade ad causam da recorrida para o procedimento, aquela decisão só era impugnável - e apenas pela recorrida, por só esta dispor de legitimidade formal e material ad recursum - no recurso que eventualmente interpusesse da decisão final, ou na falta da interposição desse recurso, no recurso único e autónomo, a interpor no prazo de 15 dias contado do trânsito em julgado da dessa mesma decisão final (artºs 690 nº 1 e 691 nº 2 b), 3, 4 e 5 do CPC).

Em boa verdade, na parte em que julgou improcedente aquela excepção, e concluiu, correspondentemente, pela legitimidade ad causam da recorrida para a providência, aquela decisão não pôs termo ao processo nem integra decisão a que lei confira a nota da recorribilidade autónoma imediata (artº 691 nºs e 2 do CPC).

Daqui decorre, irrecusavelmente, que no momento em que foi proferida a sentença final do procedimento, objecto da impugnação, a decisão proferida sobre a questão legitimidade ad causam da recorrida não havia ainda sequer passado em julgado, e consequentemente, não havia ainda adquirido o valor de res judicata, ainda que meramente formal.

Portanto, da probabilidade de colisão de casos julgados é coisa de que, com propriedade, se não pode falar.

Em qualquer caso, mesmo que, no momento em que foi proferida a decisão final da causa, a decisão que apreciou a legitimidade da recorrida para o procedimento tivesse transitado em julgado, sempre estaria inteiramente excluída, qualquer probabilidade de se constituírem casos julgados contraditórios. Por esta razão bem simples: a de, patentemente, uma e outra decisão não terem o mesmo objecto.

Efectivamente, a contradição de caso julgados, seja material ou simplesmente formal, exige uma relação de identidade – ou ao menos de prejudicialidade – entre o objecto das decisões passadas em julgado, Dito doutro modo: é necessário – no tocante especificamente aos casos julgados formais – que as duas decisões, proferidas no mesmo processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual (artº 675 nº 2 do CPC).

Não é esse, seguramente, o nosso caso.

Realmente, ao passo que a decisão proferida no dia 7 de Junho de 2011 constitui uma decisão de pura forma, dado que incidiu sobre as aspectos processuais – designadamente a excepção dilatória imprópria da ilegitimidade ad causam da recorrida para o procedimento, i.e., sobre um pressuposto processual geral relativo àquela parte – a sentença final da causa constitui uma decisão de mérito, dado que apreciou, na totalidade, as pretensões matérias do recorrente, e, por ter concluído pela sua improcedência, absolveu a requerida do pedido.

Decisão de mérito que se explica – ou também se explica – pelo sentido da decisão anterior, de simples forma, encontrada para o problema da competência do tribunal e da legitimidade ad causam, designadamente da recorrida. Foi justamente por ter julgado verificadas, na decisão anterior, aquelas condições de admissibilidade – ou na expressão mais comum, aqueles pressupostos processuais gerais, um relativo ao tribunal e outro referido às partes – para que pudesse proferir uma decisão de mérito, que a sentença final do procedimento, proferiu uma decisão de fundo de improcedência e absolveu a requerida do pedido.

É claro que, apesar de no momento em que foi proferida a sentença final do procedimento, a decisão anterior proferida sobre a questão da legitimidade ad causam ainda não haver passado em julgado, àquela sentença não seria lícito voltar a pronunciar-se sobre aquela mesma questão.

Todavia, o fundamento da proibição é a extinção do poder jurisdicional provocada pelo proferimento daquela decisão, extinção de que decorre - como se notou já - também um duplo efeito: um efeito negativo, que é a insusceptibilidade de o próprio tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar; um efeito positivo, que é a vinculação desse mesmo tribunal à decisão por ele proferida (artº 666 nºs 1 e 3 do CPC).

No entanto, depois de assentar, na decisão de 7 de Junho de 2011, em que excepção dilatória da ilegitimidade ad causam da recorrida não procedia e que, portanto, a requerida era dotada de legitimidade para o procedimento, a única coisa que era vedada à sentença impugnada era voltar a apreciar essa mesma questão e, eventualmente, decidir o contrário, i.e., que a requerida, afinal, era parte ilegítima.

Mas não foi essa questão que a sentença final decidiu, não foi sobre um tal objecto que aquela decisão se voltou a debruçar. Aquela sentença não voltou a apreciar a questão da ilegitimidade da recorrida – mas o mérito das pretensões materiais deduzidas pelo recorrente.

Ora, uma coisa é a legitimidade ad causam de uma parte – que é uma simples condição de admissibilidade ou um pressuposto processual ordenado para o acautelamento do interesse dessa parte, visando assegurar que não é desnecessariamente incomodada quanto a uma questão que lhe não respeita, i.e., uma condição necessária para que num procedimento cautelar, possa ser proferida uma decisão sobre o mérito da causa – outra, bem diversa, é a verificação, no caso concreto, das condições que, segundo a lei substantiva aplicável, permitem o proferimento de uma decisão de procedência ou improcedência, i.e., uma decisão de condenação ou de absolvição do pedido.

A legitimidade ad causam constitui um pressuposto processual positivo, i.e., um condição que deve estar preenchida para que possa ser proferida a decisão de mérito.

                É ao autor que compete assegurar o preenchimento dos pressupostos processuais, tanto daqueles que lhe respeitam directamente, como daqueles que se referem quer ao tribunal quer à contraparte. É isso que justifica que o não preenchimento do pressuposto processual importe uma consequência desfavorável para o autor: a falta dele constitui uma excepção dilatória e impede que o autor possa obter a tutela pretendida (artºs 288 nº d), 487 nºs 1 e 2, 493 nºs 1 e 2, 494 e) e 495 do CPC).

                A ilegitimidade ad causam constitui uma excepção dilatória nominada imprópria, dado que se limita a impugnar um pressuposto processual positivo que o autor considera preenchido. Por essa razão, o regime da prova desta excepção é aquele que se encontra estabelecido para os factos alegados pelo autor e impugnados pelo réu: não é o réu que tem de provar que o pressuposto não está preenchido, mas o autor que deve provar que o pressuposto está satisfeito (artº 342 nº 1 do Código Civil).

                Daí que o risco da falta de prova do pressuposto positivo recai sobre o autor, porque é ele a parte onerada com a sua prova (artºs 516 do CPC e 342 do Código Civil).

                Um ponto que, actualmente, não oferece dúvida relevante é o do critério aferidor da legitimidade singular.

                A explicitação conceitual da ideia de legitimidade processual deu dado azo a conhecida e larga controvérsia[2].

Quando se entenda que o objecto do processo é um litígio, têm legitimidade os titulares dos interesses em litígio; se se vir no objecto do processo uma relação jurídica, têm legitimidade os titulares dessa relação (Alberto Dos Reis) ou os que se apresentem como tal (Barbosa de Magalhães). O Código de Processo Civil optou por uma fórmula prática: ao falar em relação material controvertida aponta para aquilo que o autor tenha querido apresentar em juízo (artº 26 nº 3 do CPC)[3].

Ou seja: tem legitimidade, por exemplo, como réu ou requerido, a parte que, segundo o autor ou requerente é, titular do dever ou da posição jurídica passiva alegada. Compreende-se, pois, o regime: se nem isso sucede, não vale a pena o tribunal prosseguir na sua análise, cabendo a absolvição da instância (artº 288 nº 1 d) do CPC).

                Maneira que, com o declarado propósito de por termo a uma discussão acesa, já clássica, iniciada entre os Professores José Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães acerca dos critérios de aferição da legitimidade processual singular, a lei, aderindo à solução proposta pela jurisprudência dominante, declara que o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer, interesse que se exprime pelo prejuízo decorrente da procedência da acção e que, na falta de indicação contrária, consideram-se, para efeitos de legitimidade, titulares do interesse relevante, os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor (artº 26 nºs 1 a 3 do CPC).

O pensamento da lei foi, nitidamente, o de desvalorizar a legitimidade enquanto pressuposto processual com o propósito de dar prevalência à decisão de mérito relativamente à decisão de pura forma, circunscrevendo as situações de ilegitimidade àqueles casos em que da própria exposição da situação da situação de facto controvertida, cuja existência tem de pressupor, se exclui a individualização por parte de alguns dos sujeitos presentes na causa[4].

Agora, nos termos gerais, é de toda a conveniência não confundir legitimidade para pedir ou requerer ou para contradizer – com a procedência ou mérito do pedido ou do requerimento (artº 26 nºs 1 e 3 do CPC)[5].

                Sendo o objecto inicial do processo constituído pelo pedido e pela respectiva fundamentação, mas conferindo-se a esta, em sede de objecto do processo, apenas uma função individualizadora daquele, será aquele pedido a realidade aferidora da legitimidade de qualquer parte. Assim, a ilegitimidade de qualquer das partes só se verificará quando em juízo se não encontrar o titular ou titulares da relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação. Entendimento diverso conduz a uma lastimável confusão entre legitimidade e procedência.

Para a legitimidade processual ter algum conteúdo, deve entender-se que ele não se resume a uma questão de palavras: não chega, para que ela se tenha por verificada, que o autor diga, vocabularmente, que o réu ou requerido tem interesse em contradizer por ser titular da relação jurídica material objecto da controvérsia. Há que ponderar, do conjunto da pretensão deduzida - pedido e causa de pedir - se o autor apresenta o demandado ou requerido como titular da posição controvertida ou se, tudo somado, ele não alega, sequer, uma posição consistente.

Segundo o tribunal recorrido – e de harmonia com decisão expressa que não vem impugnada no recurso - estamos face à providência cautelar de restituição provisória da posse.

                O possuidor que for esbulhado com violência, quer dizer, que for violentamente privado do exercício, da retenção ou da fruição do objecto possuído, tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, desde que alegue e prova factos que constituem a posse, o esbulho e a violência (artºs 393 do CPC e 1279 do Código Civil).

A providência especificada de restituição provisória da posse é, nitidamente, uma providência de regulação[6] e a restituição provisória da posse tem, portanto, lugar quando haja posse, seguida de esbulho, com violência.

                Discute-se se a restituição provisória da posse só é admissível no caso de violência ou ameaças contra as pessoas ou também quando a violência é exercida sobre coisas, ao menos quando estejam ligadas à pessoa do esbulhado ou dela resulte uma situação de constrangimento físico ou moral. Tendo em conta, de um aspecto, a noção de violência disponibilizada pela lei a propósito precisamente da posse e, de outro, a inadmissibilidade da transigência, pelo Direito, com qualquer forma de violência, a doutrina que deve ter-se por exacta, é, portanto, que a providência pode também justificar-se quando a violência seja dirigida contra coisas (artº 255 nºs 1 e 2, ex-vi artº 1261 nº 2 do Código Civil)[7].

A restituição provisória da posse é feita à custa do esbulhador e no lugar do esbulho (artº 1284 nº 2 do Código Civil).

Nestas condições, relativamente à providência cautelar de restituição provisória da posse é dotado de legitimidade ad causam passiva, i.e., como requerido, aquele que segundo o requerente, é o autor do esbulho e da violência. Concluindo-se que o requerido não é, realmente, o esbulhador violento, a consequência não é a sua absolvição da instância do procedimento – mas a sua absolvição do pedido de restituição provisória da posse deduzido pelo requerente.

 A sentença final da causa depois de analisar os factos adquiridos durante a tramitação da causa, designadamente os factos julgados provados pelo tribunal na fase da audiência e o cumprimento do ónus da prova, concluiu que não estavam adquiridos para o processo todos os factos que permitiam o proferimento de uma decisão de mérito favorável ao requerente e, em coerência, proferiu uma decisão absolutória contra o recorrente, parte onerada com a prova (artºs 342 nº 1 e 346, 2ª parte, do Código Civil e 516 do CPC). Decisão absolutória quanto ao mérito e não decisão de absolvição da instância, por julgar não verificado um pressuposto processual que não possa ser dispensado – que em decisão anterior julgara preenchido.

A sentença impugnada observou, com exactidão, que da matéria de facto – cujo julgamento não vem impugnado no recurso – não resultava a prova de que a requerida, a Junta de Freguesia de …, fosse a autora do esbulho alegado pelo recorrente, já que não tinha resultado provado que as obras que o requerente reputava lesivas da sua posse, fossem da responsabilidade daquela. Em coerência – e com inteiro respeito com a decisão anterior que, por aplicação irrepreensível do critério aferidor da legitimidade ad causam, julgara essa mesma requerida parte legítima - absolveu-a não do instância, mas do pedido.

Em absoluto remate: a sentença final da causa não voltou a pronunciar-se sobre qualquer objecto processual, designadamente sobre a legitimidade ad causam da recorrida, sobre que tenha recaído decisão anterior – e muito menos decisão anterior que, no momento em que foi proferida aquela sentença, tenha adquirido a força de caso julgado, ainda que meramente formal.

A decisão impugnada não ofendeu, pois, as normas contidas nos artºs 671 e 675 nº 2 do CPC.

O recurso não dispõe, assim, de bom fundamento. Cumpre julgá-lo improcedente.

Expostos todos os argumentos, afirma-se, em síntese, que:

a) A decisão interlocutória que declare a legitimidade de uma parte, não é susceptível de recurso autónomo imediato;

b) A contradição de caso julgados, seja material ou simplesmente formal, exige uma relação de identidade – ou ao menos de prejudicialidade – entre o objecto das decisões transitadas em julgado;

c) Da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão, decorre um efeito negativo, que é a insusceptibilidade de o próprio tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar, e um efeito positivo, que é a vinculação desse mesmo tribunal à decisão por ele proferida;

d) A extinção ou esgotamento do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão restringe-se ao objecto sobre que estatuiu;

e) A decisão que, na providência cautelar de restituição provisória da posse absolve do pedido o requerido, declarado, por decisão anterior parte legítima, não viola, por ausência de identidade do objecto, o princípio da extinção ou do esgotamento do poder jurisdicional consequente ao proferimento desta última decisão.

As custas do recurso serão satisfeitas pelo sucumbente: o apelante (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

 Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6 nº 2).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nego provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-B integrante do RCP.


Henrique Antunes (Relator)


[1] Acs. do STJ de 27.07.92, BMJ nº 419, pág. 626, e de 10.11.95, CJ, STJ, I, pág. 24.

[2] Cfr. João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, 2º vol, revisto e actualizado por Armindo Ribeiro Mendes (1987), pág. 185, José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 1.º (1944), pág. 39 ss., Manuel de Andrade, Lições de Processo Civil, por T. Moreno, Sousa Seco e P. Augusto Junqueiro (1945), pág. 100 e Miguel Teixeira de Sousa, A legitimidade singular em processo declarativo, BMJ 292 (1982), págs. 53-116, entre outros.

[3] Nas palavras do Supremo – Acórdão e 03.04.76 BMJ nº 256 (1976), pág. 112 – “a legitimidade é uma posição do autor e de réu em relação ao objecto do processo e tem de aferir-se, antes de mais, pelos termos em que o demandante configura o direito invocado e a ofensa que lhe foi feita”. Ou, como queria Manuel de Andrade, Lições de Processo Civil cit., pág. 100: “... não haverá interesse, pelo menos, quando as partes não são sujeitos da relação jurídica controvertida (direito e correspondente obrigação) tal como ela é apresentada no requerimento inicial”. 
[4] Maria José de Oliveira Capelo, Interesse Processual e Legitimidade Singular nas Acções de Filiação, BFC, Studia Iuridica, 15, pág. 179.
[5] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, A Legitimidade Singular em Processo Declarativo, BMJ nº 292, pág. 102.
[6] Esta providência pode constituir dependência, tanto de uma acção possessória como – se a posse for causal – de uma acção de reivindicação, dado que esta também comporta como efeito jurídico a restituição da coisa (artº 1311 do Código Civil). Cfr. Acs. da RC de 05.01.93, BMJ nº 423, pág. 617 e da RP de 22.10.91, CJ, IV, 270.
[7] No sentido da admissibilidade da providência com base na violência contra coisas, cfr., v.g., António Menezes Cordeiro, A Posse, Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 142, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pág. 238, L.P. Moitinho de Almeida, Restituição de Posse e Ocupações de Imóveis, 5ª edição, Coimbra Editora, pág. 123 e António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. IV, Procedimentos Cautelares Especificados, 3ª edição, Almedina, 2000, págs. 273 e 274. e Acs. da RE de 30.01.86, BMJ nº 355, pág. 459 e da RC de 24.05.88, BMJ nº 377, pág. 568; contra Orlando de Carvalho, RLJ, Ano 122, pág. 125 e Dias Marques, Prescrição Aquisitiva, I, págs. 272 e 278 e Acs. da RP de 25.01.90, BMJ nº 393, pág. 66 e da RE de 26.04.90. Em qualquer caso, deve exigir-se a violência do próprio esbulho; a violência superveniente não pode justificar a restituição provisória. Cfr. Ac. da RE de 11.04.85, CJ, X, II, pág. 290.