Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2677/12.5TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO CARVALHO MARTINS
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
CONTRATO MISTO
NULIDADE
Data do Acordão: 10/06/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 280, 294 CC, DL Nº 149/95 DE 24/6
Sumário: 1.- O contrato de locação financeira, previsto no art.1º do DL nº 149/95 de 24/6, contém os seguintes elementos constitutivos: (i)A indicação, pelo locatário ao locador, previamente à conclusão do contrato, da coisa a comprar ou a construir e do respectivo fornecedor;(ii) O dever do locador de adquirir a coisa ao fornecedor; (iii) O dever do locador de conceder temporariamente o gozo da coisa ao locatário; (iv) A obrigação do locatário de pagar uma renda; (v) A faculdade detida pelo locatário de adquirir a coisa locada no termo do contrato.

2.- Ao confrontar a figura da locação financeira com a da locação com opção de compra, a da locação-venda e a da venda a prestações com reserva de propriedade, reconhecem as similitudes, mas impressivamente dois aspectos diferenciadores: (i) A prevalência da função de financiamento na locação financeira, onde o lucro obtido emerge da remuneração desse financiamento e não da alienação do bem, que é eventual e feita por um valor residual mínimo e pré-fixado; (ii) A estrutura trilateral da relação jurídica de locação financeira oposta à estrutura bilateral das restantes.

3.- A locação financeira está reservada a determinadas pessoas jurídicas do sistema financeiro; o locador financeiro tem que ser um banco ou uma sociedade de locação financeira (SLF) constituída nos termos do Decreto-Lei n.º 72/95, entidades que estão sujeitas ao rigoroso e imperativo RGICSF (artigo 4º do Decreto-Lei n.º 72/95 e artigo 4º, n.º 1, alínea b) e 8º n. 2 do RGICSF ( DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro), que passa pela concessão de autorização pelo Banco de Portugal, tendo em conta a particular natureza da actividade financeira que tais entidades desenvolvem.

4.- Num contrato misto verifica-se a fusão, num só negócio, de elementos contratuais distintos que, além de perderem a sua autonomia no esquema negocial unitário, fazem simultaneamente parte do conteúdo deste, como no caso em que a um contrato- promessa de compra e venda bilateral se mostra acoplado um contrato de cedência do gozo no quadro de um financiamento para permitir a aquisição da fracção objecto daquele contrato.

5.- Em função do disposto no art. 280º Código Civil (requisitos do objecto negocial), vocacionado para a violação de princípios ou vectores fundamentais do ordenamento jurídico, visando a reprodução do sistema e vedando comportamentos que o contrariem, o princípio jurídico (aí ínsito), que faz apelo à ordem pública, tem sido utilizado, designadamente, para impedir negócios jurídicos que exijam esforços desmesurados ao devedor ou que restrinjam demasiado a sua liberdade pessoal ou económica.

6. - O objecto de um contrato será legalmente impossível, quando a lei lhe opuser um obstáculo insuperável, como o que as leis da natureza opõem aos fenómenos fisicamente impossíveis; haverá uma mera contrariedade à lei quando o objecto de um negócio violar uma disposição da lei, isto é, quando a lei não permita uma combinação negocial com aqueles efeitos (objecto imediato) ou sobre aquele objecto mediato.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A Causa:

H (…), LDª (anteriormente denominada C(…) & C(…), Lda.) (…) intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra:

L (…), residente (…) FIGUEIRA DA FOZ

Pede, a final, a procedência da acção e consequentemente, que se:

1) Declare resolvido o contrato promessa celebrado entre os ora Autora e Ré melhor identificado em 1º desta petição, por incumprimento definitivo da Ré com efeitos a partir de Setembro de 2005,

2) Declare a perda a favor da Autora de todas as quantias entregues pela Ré por conta do Contrato Promessa de Compra e Venda outorgado, a título de sinal e respectivos reforços/amortizações e de taxa de ocupação no montante global de 59.012,48 € (cinquenta e nove mil e doze euros e quarenta e oito cêntimos),

3) Condene a Ré a entregar à Autora a fracção livre de pessoas e bens;

4) Condene a Ré a pagar à Autora a quantia de 66.195,15 € (sessenta e seis mil, cento e noventa e cinco euros e quinze cêntimos) a título de indemnização por ocupação ilegítima da fracção objecto dos presentes autos desde Setembro de 2005 e que corresponde ao não pagamento das 85 mensalidades desde aquela data até Outubro de 2012;

5) Condene a Ré a pagar à Autora a quantia de 600,00 € (seiscentos euros) mensais por cada mês de ocupação ilegítima desde Novembro de 2012 – ou subsidiariamente desde a citação da Ré - até à efectiva entrega da fracção.

Alegou, para tanto, e em síntese, que autora e ré celebraram em 27.11.2006, um contrato nos termos do qual a autora prometeu vender e a ré prometeu comprar a fracção autónoma designada pela letra «JV», correspondente a escritório, sito no 1º Andar do Bloco B2, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua (...) , freguesia de (...) , concelho da Figueira da Foz, pelo preço total de 14.372.000$00 (catorze milhões, trezentos e setenta e dois mil escudos) – equivalente a 71.687,23 €, que seria pago da seguinte forma: a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de 100.000$00 entregue à ora A. em 19/07/1996, de reforço a quantia de 800.000$00 entregue à ora A. em 22/10/1996, a quantia de 540.000$00 contra a entrega das chaves da fracção prometida vender pagos em 30.11.96, sendo o remanescente do preço, ou seja, a quantia de 12.932.000$00 entregue pela promitente compradora em 300 mensalidades.

Mais se estipulou que a R. poderia ocupar a fracção, pagando a título de ocupação uma taxa de ocupação de 9,9% ao ano calculada mensalmente sobre o saldo em dívida até 1.1.98 e que a partir dessa data seria de acordo com a praticada na C.G.D. para empréstimos à habitação- cfr clª 3ª e) do contrato promessa).

As mensalidades no máximo de 300 seriam no valor de 107.900$00 equivalente a 538,20€ cada, até 30/12/97, e a partir dessa data seriam no valor de 113.350$00/565,39 € e destinavam-se ao pagamento da taxa de ocupação e amortização e deveriam ser entregues mensalmente até ao dia 30 de cada mês e até à data da escritura, vencendo-se a primeira mensalidade em 30/12/1996 e as restantes aos dias 30 dos meses subsequentes e depositadas mensalmente, na conta da Promitente Vendedora na C.G.D.

Desde o mês de Setembro de 2005 que a R. deixou de proceder ao pagamento das mensalidades a que estava obrigada, encontrando-se neste momento por liquidar as 85 mensalidades respeitantes ao período que decorreu entre Setembro de 2005 e Outubro de 2012, estando em dívida entre Setembro de 2005 e Fevereiro de 2011 o montante total de 36.750,36 €, correspondente a 65 mensalidades vencidas a 565,39 euros cada, a que acrescia em Fevereiro de 2011 o valor total em dívida do capital que se computava em 91.029,83€.

Em Fevereiro de 2011 e de forma a garantir que o prazo contratual de cumprimento integral do contrato promessa se mantivesse (300 mensalidades) foi necessário reformular o valor da mensalidade para que o valor em dívida naquela data fosse integralmente amortizado dentro do referido prazo (até Novembro de 2021), conforme documento nº 5 que junta, de que resultou o aumento da mensalidade para o valor de 1.039,11 € com efeitos a partir de Março de 2011.

Nessa medida, alega, que estando também por liquidar as prestações correspondentes ao período que decorreu entre Março de 2011 e Outubro de 2012 – 20 mensalidades vencidas x 1.039,11 €, teremos um valor global em dívida para aquele período de 20.782,20 € e assim, estão no total por liquidar 85 mensalidades respeitantes ao período que decorreu entre Setembro de 2005 e Outubro de 2012, num montante global de 57.532,56 € .

A R. foi sucessivas vezes interpelada para que procedesse ao pagamento das mensalidades vencidas, mormente por carta de 10.3.2011, nada tendo pago apesar de continuar a ocupar o imóvel, encontrando-se verificado o incumprimento contratual definitivo por parte da ora R. (de acordo com a cláusula quarta, nº 3 in fine e cláusula sétima do contrato promessa), o que confere à A. o direito a fazer seu o montante de 59.012,48 € (cinquenta e nove mil e doze euros e quarenta e oito cêntimos) a título de sinal prestado pela R. e da taxa de ocupação paga durante 105 meses a que acrescem os montantes dos sinais referidos na cláusula terceira –alíneas a) a c) de contrato promessa – doc. nº 1- (498,79 € + 3.990.38 € + 2.693.50 €) no montante de 7.182,67 €, num montante global de 66.195,15 €.

A A. pretende a resolução efectiva do contrato promessa, com efeitos retroactivos a Setembro de 2005, derivada de incumprimento do contrato promessa por parte da Ré, pelo que não detém esta, desde tal data, qualquer título que legitime a ocupação da fracção, impedindo a A. de obter da mesma qualquer tipo de rendimento, a qual, atentas as suas características poderia proporcionar à A. um rendimento mensal nunca inferior a, pelo menos, 600,00€/mês.

Conclui, que a A. tem o direito a exigir da R. o pagamento do montante global de 66.195,15 € a título de indemnização por ocupação ilegítima da R. e que corresponde às 85 mensalidades em falta e respeitantes ao período que decorreu entre Setembro de 2005 e Outubro de 2012.

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Apesar de regularmente citada a ré não deduziu contestação nos autos, nem nestes interveio, vindo a ser proferido o despacho de fls. 44 dos autos, que considerou confessados os factos articulados pela autora.

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Na sequência de despacho para o efeito formulado veio a autora prestar os esclarecimentos de fls. 72 a 74.

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Foi proferido despacho de fls. 77 e segs., datado 28.1.2015, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, no qual foi a autora convidada a esclarecer algumas questões quanto à exposição da matéria de facto que, efectuada a análise da causa subsistiam e se revelavam importantes à decisão a proferir.

A autora não acedeu ao convite formulado e nada disse a tal propósito.

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Oportunamente, foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, em conformidade com as supra referidas disposições legais, na parcial procedência da acção que «H (…)» intentou contra L (…):

a) Declara-se nulo o contrato celebrado pela autora e ré a que aludem os pontos 1º a 8º, da matéria de facto, em consequência do que se condena a ré a restituir à autora a fracção objecto do mesmo - identificada no ponto 1. dos factos -, livre de pessoas e bens;

b) Absolve-se a ré dos pedidos formulados pela autora nos pontos 1), 2), 4) e 5) do petitório.

c) Custas pela autora e ré em partes iguais».

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H (…) LDA. (anteriormente denominada (…).) Autora melhor identificada nos autos supra referidos, não se conformando com a sentença de fls…….da mesma veio interpor recurso de apelação, alegando e concluindo que:

(…)

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    L (…), (…) notificada das doutas alegações da parte contrária:

«veio informar V. Ex.ª que não pretende produzir contra-alegações, por concordar na íntegra com a douta sentença de fls.»

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II. Os Fundamentos:

Colhidos os Vistos legais, cumpre decidir:

Atendendo à falta de contestação da autora e consequente confissão dos factos (com excepção dos que exigem prova documental) e bem assim ao teor dos documentos juntos aos autos a fls. 15 a 42, consideram-se assentes os seguintes factos com pertinência à decisão a proferir:

1. Autora (A.) e Ré (R.) celebraram em 27 de Novembro de 1996, um contrato a que deram a designação de “contrato promessa de compra e venda”, junto a fls. 15 a 19 dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido e que tem como objecto a fracção autónoma designada pela letra “JV” correspondente a escritório, sito no 1º Andar do Bloco B2, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal designado por Bloco A1, A2, B1, B2, sito na Rua (...) , freguesia de (...) , concelho da Figueira da Foz, descrita na Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz sob o nº 2468/JV da freguesia de (...) e inscrita na respectiva Matriz Predial Urbana sob o artigo nº 6104 (cf. docs. de fls. 20 a 32).

2. No contrato a A. (Primeira Outorgante) prometeu vender e a R. (Segunda Outorgante) prometeu comprar a fracção tipo Escritório descrita em 1º, livre de ónus ou encargos (cf. cláusula segunda e terceira do contrato promessa).

3. Tendo sido ainda estipulado na cláusula terceira do contrato promessa que a referida compra e venda seria feita pelo preço total de 14.372.000$00 (catorze milhões, trezentos e setenta e dois mil escudos) - Equivalente a 71.687,23 € - setenta e um mil, seiscentos e oitenta e sete euros e vinte e três cêntimos.

4. Valor que a ora R. se obrigou a pagar, tendo ficado estabelecido que esse preço seria pago da seguinte forma:

a) - A título de sinal e princípio de pagamento a quantia de 100.000$00 (cem mil escudos - Equivalente a 498,79 € - quatrocentos e noventa e oito euros e setenta e nove cêntimos) que foi entregue à ora A. em 19/07/1996 (cf. cláusula terceira – alínea a) - de contrato promessa).

b) - A título de reforço a quantia de 800.000$00 (oitocentos mil escudos – Equivalente a 3.990.38 € - três mil, novecentos e noventa e nove euros e trinta e oito cêntimos) que foi entregue à ora A. em 22/10/1996 (cf. cláusula terceira - alínea b) – de contrato promessa – ).

c) - Até 30/11/1996 a ora R. entregaria à ora A. a quantia de 540.000$00 (quinhentos e quarenta mil escudos - Equivalente a 2.693.50 € - dois mil seiscentos e noventa e três euros e cinquenta cêntimos) contra a entrega das chaves da fracção prometida vender (cf. cláusula terceira - alínea c) - de contrato promessa – ), o que efectivamente veio a suceder.

d) - O remanescente do preço, ou seja a quantia de 12.932.000$00 (doze milhões novecentos e trinta e dois mil escudos – Equivalente a 64.504,54 € - sessenta e quatro mil, quinhentos e quatro euros e cinquenta e quatro cêntimos);

5. Mais se acordou que a promitente compradora pagará todos os meses uma taxa de ocupação, de 9,9% ao ano calculada mensalmente sobre o saldo em dívida até 01/01/1998 e que a partir dessa data seria alterada de acordo com a praticada na Caixa Geral de Depósitos para empréstimos à habitação - (cf. cláusula terceira - alínea e) - de contrato promessa –). As mensalidades no máximo 300 (trezentas). (cf. cláusula terceira - alínea e) - de contrato promessa As mensalidades no máximo de 300 (trezentas) seriam no valor de 107.900$00 (cento e sete mil e novecentos escudos - Equivalente a 538,20 € - quinhentos e trinta e oito euros e vinte cêntimos) cada, até 30/12/97, e a partir dessa data seriam no valor de 113.350$00 (cento e treze mil, trezentos e cinquenta escudos – Equivalente a 565,39 € - quinhentos e sessenta e cinco euros e trinta e nove cêntimos).

6. As referidas mensalidades destinam-se ao pagamento da taxa de ocupação e amortização já supra referidas - (cf. aliás cláusula quarta – número 1 – de contrato promessa – doc. nº 1) e deveriam ser entregues mensalmente até ao dia 30 de cada mês e até à data da escritura, vencendo-se a primeira mensalidade em 30/12/1996 e as restantes aos dias 30 dos meses subsequentes. - (cf. cláusula quarta – nº 1 - de contrato promessa –)

7. Ficou ainda convencionado pelas partes que as mensalidades deveriam ser depositadas mensalmente, dentro das datas estipuladas, na conta da Promitente Vendedora e ora Autora, com o nº 0321/037140/030 da CGD, agência da Figueira da Foz. - (cf. cláusula quarta – número 2 - de contrato promessa – ).

8. Mais se estipulou que a R. poderia ocupar a fracção (tendo sido entregues à ora R. as chaves da referida fracção – cf. também cláusula 5ª, nº 1 de contrato promessa –) pagando as despesas inerentes ao uso e fruição da dita fracção

9. Sucede que desde o mês de Setembro de 2005 que a R. deixou de proceder ao pagamento das mensalidades.

10. Encontrando-se neste momento por liquidar as 85 mensalidades respeitantes ao período que decorreu entre Setembro de 2005 e Outubro de 2012.

11. Entre Setembro de 2005 e Fevereiro de 2011 o montante total de mensalidades vencidas era de 36.750,36 € (trinta e seis mil, setecentos e cinquenta euros) que correspondia a 65 mensalidades vencidas x 565,39 €.

12. Naquela data (Fevereiro de 2011) o valor total em dívida do capital computava-se em 91.029,83 € (noventa e um mil e vinte e nove euros e oitenta e três cêntimos).

13. Em Fevereiro de 2011 e de forma a garantir que o prazo contratual de cumprimento integral do contrato promessa se mantivesse (300 mensalidades) foi reformulado o valor da mensalidade para que o valor em dívida naquela data fosse integralmente amortizado dentro do referido prazo (até Novembro de 2021).

14. O que resultou no aumento da mensalidade para o valor de 1.039,11 € (mil e trinta e nove euros e onze cêntimos) com efeitos a partir de Março de 2011.

15. Estão também por liquidar as prestações correspondentes ao período que decorreu entre Março de 2011 e Outubro de 2012, o que corresponde a 20 mensalidades vencidas x 1.039,11 €, num total de 20.782,20 € (vinte mil, setecentos e oitenta e dois euros e vinte cêntimos).

16. Encontram-se no total por liquidar as mensalidades respeitantes ao período que decorreu entre Setembro de 2005 e Outubro de 2012, num montante global de 57.532,56 € (cinquenta e sete mil, quinhentos e trinta e dois euros e vinte seis cêntimos) relativas a 65 mensalidades vencidas x 565,39 € (de Setembro de 2005 a Fevereiro de 2011) + 20 mensalidades vencidas x 1.039,11 € (de Março de 2011 a Outubro de 2012).

17. A R. foi sucessivas vezes interpelada para que procedesse ao pagamento das mensalidades vencidas decorrentes do incumprimento do pagamento acordado.

18. A R. se dignou responder às diversas interpelações efectuadas nem manifestou intenção de proceder ao pagamento em falta tendo estado a R. a ocupar a referida fracção sem proceder a qualquer tipo de pagamento desde Setembro de 2005.

19. Através de carta datada de 18/09/2009 (conforme carta junta como doc. nº 6 e se considera integralmente reproduzida para os devidos efeitos) foi a ora R. interpelada para que procedesse ao pagamento do montante em falta naquela data.

20. Não emitido qualquer tipo de resposta, nem tendo procedido ao pagamento de qualquer mensalidade vencida e permanecendo a ocupar o imóvel objecto do contrato promessa sem prestar qualquer tipo de esclarecimento quanto à sua actual intenção.

21. Posteriormente, por carta registada datada de 26 de Fevereiro de 2010, voltou a A. a interpelar a R. para o pagamento do montante em falta naquela data – conforme carta que junta como doc. nº 7 e doc. nº 8 e se considera integralmente reproduzida para os devidos efeitos.

22. Mais recentemente, foi a R. interpelada por carta registada com aviso de recepção e datada de 10 de Março de 2011 para o pagamento do montante em falta naquela data - conforme carta que junta como doc. nº 9 e docs. nº 10 e 11 e se considera integralmente reproduzida para os devidos efeitos).

23. Com a ocupação pela ré da fracção a A. não retira da mesma qualquer tipo de rendimento.

24. A A. é uma sociedade comercial cujo escopo é a comercialização de imóveis e por via de tal não pode dar o destino comercial àquela fracção.

25. Inúmeras pessoas estiveram interessadas na compra e no arrendamento da fracção em causa, dada a sua boa localização.

26. A fracção identificada é de boa construção.

27. Pelo que com estas características a A. poderia retirar dessa fracção um rendimento mensal nunca inferior a pelo menos 600,00€.

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Nos termos do art. 635º NCPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente, sem prejuízo do disposto no art. 608°, do mesmo Código.

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As questões suscitadas consistem em apreciar se:

1.

IV –Trata-se de um contrato promessa de compra e venda com uma cláusula, onde se acordou um valor mensal pela ocupação do imóvel até à aquisição definitiva, ou seja para além da obrigação principal de celebrar o contrato definitivo de compra e venda, as partes acordaram nesta obrigação, que podemos considerar secundária, de a autora antecipar a concessão do gozo do prédio com a correlativa obrigação para o réu de pagamento de uma compensação por tal gozo?

2.

V - Estamos perante um contrato misto sem dúvida, de promessa de compra e venda de imóvel com características de Locação mas uma Locação Imobiliária, dita Locação Civil, nunca uma Locação Financeira?

3.

XVI - Resulta assim claro que, contrariamente ao decidido na decisão recorrida, não nos encontramos perante uma Locação Financeira mas sim um contrato promessa com uma obrigação secundária de uma mera Locação (quando muito uma Locação Compra) de acordo com as regras do art. 1022.° do Código Civil:“Locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa mediante retribuição”.

Apreciando, diga-se - como proposição -, que os contratos devem ser analisados e qualificados, não apenas com base na sua configuração formal, mas também em função das circunstâncias em que se enquadram e dos objectivos que visam realizar.

Esta perspectiva é tanto mais relevante quanto as dinâmicas administrativa, económica e comercial têm determinado uma crescente evolução e atipicidade das fórmulas contratuais utilizadas (Cf. ACÓRDÃO do Tribunal de Contas N.º 2 /11 – 21.JAN -1ªS/PL, RECURSO ORDINÁRIO Nº 17/2010-R).

Convocando o seu referencial, refira-se, como aí, que Fernando de Gravato Morais, em Manual da Locação Financeira, Almedina, 2006, traça, de forma mais detalhada e impressiva, essas circunstâncias e vantagens, e salienta que os contornos e regime da figura, também por vezes designada como leasing, variam consoante os países e têm evoluído no tempo.

No mesmo manual, o autor aponta ainda a existência de várias modalidades e formas de locação financeira e um conjunto de figuras próximas, como a locação, a locação operacional, o renting, a locação com opção de compra, a locação-venda, a venda a prestações com reserva de propriedade e o aluguer de longa duração (ALD).

A actual definição de locação financeira no ordenamento jurídico português consta do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho:

Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.”

O autor que vimos referindo, Fernando de Gravato Morais, considera que da noção e do regime deste tipo contratual emergem os seguintes elementos constitutivos da locação financeira:

A indicação, pelo locatário ao locador, previamente à conclusão do contrato, da coisa a comprar ou a construir e do respectivo fornecedor;

O dever do locador de adquirir a coisa ao fornecedor;

O dever do locador de conceder temporariamente o gozo da coisa ao locatário;

A obrigação do locatário de pagar uma renda;

A faculdade detida pelo locatário de adquirir a coisa locada no termo do contrato.

Após analisar o conteúdo da locação financeira e referir as várias posições doutrinárias sobre a sua natureza, aquele autor conclui qualificando a locação financeira como um contrato de crédito com características específicas, em que a função creditícia se opera através da disponibilidade de um bem e em que o propósito fundamental do locador é o reembolso do valor mutuado.

É a prevalência da função creditícia que justifica que o locador financeiro não seja o proprietário económico da coisa, que não seja responsável pela entrega de uma coisa conforme e esteja isento de responsabilidade pela perda ou deterioração do bem.

Um dos autores italianos citados na obra em referência, Leo, realça de forma curial uma dupla função de financiamento realizada pela locação financeira: financiamento ao fornecedor e ao locatário. “A concessão do crédito não se destina assim só a financiar a aquisição, mas ainda a alienação correspondente.”

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O mesmo Autor destaca, ainda, que a faculdade de compra é um elemento caracterizador do contrato de locação financeira. No mesmo sentido vejam-se os Acórdãos da Relação do Porto, de 19 de Dezembro de 2000 (Mário Cruz), da Relação de Coimbra de 30 de Setembro de 1997 (Araújo Ferreira) e da Relação do Porto de 14 de Fevereiro de 2005 (Marques Pereira), por ele citados.

Deve, pois, considerar-se que, por força da lei, a opção de compra é típica e indissociável da locação financeira. Pode não ser accionada, mas não pode ser afastada.

Ao invés, noutras modalidades contratuais de locação, a opção de compra pode, ou não, ser consagrada.

Ao confrontar a figura da locação financeira com a da locação com opção de compra, a da locação-venda e a da venda a prestações com reserva de propriedade, aquele autor reconhece as similitudes, mas impressivamente chama a atenção para dois aspectos diferenciadores:

 - A prevalência da função de financiamento na locação financeira, onde o lucro obtido emerge da remuneração desse financiamento e não da alienação do bem, que é eventual e feita por um valor residual mínimo e pré-fixado;

 - A estrutura trilateral da relação jurídica de locação financeira oposta à estrutura bilateral das restantes.

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Sobre o contrato de locação e locação financeira, diga-se que a inclusão do contrato de locação financeira na locação propriamente dita compreende-se dado que nos países anglo-saxónicos não há uma distinção clara entre as duas figuras, tendo nascido a locação financeira da locação. “Leasing” reflecte bem esta origem, na medida em que “lease” significa locação.

Há que perguntar, pois, se a locação financeira não é, efectivamente, redutível ao contrato de locação.

Contrariamente aos contratos da alienação (compra e venda e análogos) que estão orientados para a transferência remunerada da propriedade das coisas ou outros direitos, a locação, aqui compreendida a locação financeira, permanece como a forma básica de cedência remunerada das coisas para uso do adquirente/utente.

O locador continua proprietário do bem; dado que o contrato de locação se caracteriza pela obrigação do locador de ceder temporariamente o gozo da coisa, tendo como contrapartida uma certa remuneração (artigo 1012.° do Código Civil).

Daqui decorre que, o locador-proprietário é responsável pelos vícios da coisa (artigo 1032.° do Código Civil); deve mantê-la e repará-la (artigos 1031.° e 1036.°); correndo, nos termos gerais, por sua conta, o risco do perecimento da coisa.

Tanto numa figura como na outra a obrigação principal do locador está em ceder o gozo da coisa; enquanto que o locatário, também em ambas as figuras, está obrigado a usar a coisa de acordo com o fim a que se destina e a pagar uma certa retribuição (renda). Em termos de se afirmar que a locação permanece durante toda a relação de locação financeira o tipo básico normativo. O contrato, mesmo que tenha a causa remota do interesse do locatário em ser financiado pelo locador, só adquire significado jurídico através da concessão do uso. É esta que o caracteriza fundamentalmente.

A estrutura de locação mantém-se na locação financeira em tudo o que se refere à cedência do uso. As modificações (a este nível) são só introduzidas acessoriamente para ponderar o significado especial do financiamento da operação locativa.

Contudo existem algumas diferenças entre ambas as figuras.

Diferenças que são postas em evidência pelos textos do Código Civil que se referem à locação e pelas normas que se referem à locação financeira.

Assim, na locação, o risco de perecimento da coisa corre por conta do locador; enquanto que na locação financeira é o locatário que o suporta (artigo 15.° do DL n.° 149/95).

Também o dever de conservar e reparar a coisa incumbe, na locação financeira, ao locatário (artigo 10.°). Enquanto que na locação assiste ao locador.

Normalmente na locação financeira o locador-proprietário não tem a intenção de usar o bem, de correr os riscos próprios do proprietário, nomeadamente o risco económico de não rentabilidade de coisa e do seu perecimento. O locador-proprietário quer que o bem seja usado, com a assunção integral do risco, pelo utente.

O locatário/utente, não pretende obter o (simples) uso de um bem disponível no mercado de locação. Realiza verdadeiramente um investimento, traduzido em parte ou na totalidade do valor do bem, correndo o risco equivalente do seu perecimento ou da sua não rentabilidade.

Sendo assim, o locador desinteressa-se da coisa, sob o ponto de vista económico-financeiro que não sob o ponto de vista jurídico. Enquanto que, sob o ponto de vista económico-financeiro, o locatário tem uma “verdadeira” “propriedade útil” do bem.

O locador (financeiro) não escolhe o bem, não determina as suas características, não se preocupa com a sua rentabilidade. São tudo assuntos que dizem respeito ao utente.

Estamos nos antípodas da posição (do mero) do locador que escolhe o bem de acordo com o seu interesse económico, o oferece, o entrega e o mantém em estado de funcionamento; assumindo os riscos inerentes. Explora-o, em suma.

 

Pelo contrário, o utente escolhe o bem de acordo com as suas necessidades e assume o risco económico da sua utilização. Se esta não for rentável ou o bem não se adequar às suas necessidades, não pode cedê-lo ao fim de um período mais ou menos curto, como acontece na locação (vd. artigos 1.°, 10.°, 12.°, 13.°, 14.° e 15.° do referido DL).

Depois, na locação as rendas são prestações periódicas, correspondentes a períodos sucessivos, dependentes da duração do contrato, em termos de, desaparecido o bem, desaparecer a obrigação. Pelo contrário, na locação financeira há (“economicamente”) uma obrigação única do devedor, correspondente, “grosso modo”, ao custo do bem, com prestações “fraccionadas” no tempo.

O locatário aparece, pois, como “proprietário económico” do bem que paga integralmente, ou na sua maior parte, durante o período do contrato, e cujos riscos assume.

Continuamos, apesar disso, com alguma incerteza entre os limites de locação financeira e o contrato de locação. O que se compreende dada a génese do contrato de locação financeira, a grande proximidade dos fins de um e de outro.

Neste sentido, não basta fazer uma interpretação das normas da lei, com vista a criar conceitos e subdistinções. Há que aplicar estes conceitos e subdistinções aos casos concretos, no sentido de os subsumir nos quadros da locação ou da locação financeira. O que só se consegue através de um diálogo constante entre a norma e o caso.

(…)

Por sua vez, no que respeita à tipologia comparativa entre a locação financeira e compra e venda, refira-se que, economicamente, a compra e venda é um negócio de troca, pelo qual se trocam bens (coisas ou direitos) por dinheiro.

Esta base económica é estruturada juridicamente no artigo 879.° do Código Civil: a obrigação principal do vendedor é a entrega do objecto comprado; enquanto que o comprador tem de entregar o preço de venda; a transmissão da propriedade da coisa opera-se para efeito do contrato.

No tocante à repartição dos riscos, o artigo 796.°, 1 do Código Civil determina que o risco pelo perecimento ou deterioração da coisa corre por conta do adquirente.

Parece evidente que existem também muitas coincidências entre o contrato de locação financeira e o contrato de compra e venda, pelo menos o contrato da compra e venda a prestações.

O locatário, na locação financeira, procura obter, não o uso de um bem durante um período mais ou menos longo, mas obter o próprio bem durante a maior parte da sua vida útil ou durante a totalidade da sua vida útil. O utente vai obter todas as utilidades do bem correspondentes à sua vida útil; nesta medida está a adquirir o próprio bem. E, de qualquer modo, o contrato oferece a faculdade ao utente de aceder à propriedade do bem - faculdade que este exerce, normalmente.

O utente faz um investimento através do bem. Investimento de que suporta integralmente os riscos, como se de uma compra se tratasse.

É o utente que toma a iniciativa, escolhe a coisa de acordo com as suas necessidades e a negoceia com o vendedor.

O risco económico corre por conta do utente. Se a utilização da coisa não é rentável não se pode desfazer dela como o faria, por exemplo, o locatário. Suporta o risco da perda ou da deterioração da coisa, da sua obsolescência económica, do seu desgaste físico. Encontra-se na posição de proprietário comprador (a prazo…), não podendo desinteressar-se da coisa antes do reembolso integral do “locador”.

À prestação única do locador - entrega da coisa (do uso da coisa) -corresponde uma dívida única do locatário correspondente ao valor da coisa, pelo menos durante o período da sua utilização, acrescida de juros, lucros e outros encargos. Esta dívida existe desde a celebração do contrato, embora o seu reembolso seja fraccionado.

A perda da coisa não extingue a obrigação do devedor. Trata-se, pois, de uma obrigação de prestação “fraccionada” quanto ao cumprimento, mas unitária em si mesma, na medida em que o objecto da prestação se encontra pré-fixado sem dependência da duração da relação contratual - o que explica que a falta de cumprimento de uma das “fracções” implique o vencimento imediato das restantes (artigos 781.° e 984.° do Código Civil).

A cessão do bem é contratada por um período próximo do da sua vida útil.

No fim do contrato o “locador” receberá o equivalente do custo da coisa, enquanto que o “locatário” terá gozado o valor económico da coisa. Nestes termos, e quer haja ou não opção de compra, a locação financeira tem por objecto fins económicos muito próximos dos da compra e venda a prestações. O locador só “reserva” a propriedade da coisa a título de garantia, como reserva da propriedade.

Contudo, também a equiparação da locação financeira à compra e venda a prestações não parece possível. Pelo menos sob o ponto de vista jurídico.

Se abandonarmos a consideração dos interesses económicos das partes, muito variáveis e de qualquer modo externos à estrutura contratual, e analisarmos a estrutura contratual, ou seja, o quadro jurídico através do qual aqueles interesses são actuados, encontramos divergências entre a locação financeira e a compra e venda.

As partes não tiveram em vista a transferência da propriedade sobre a coisa que seria elemento essencial da compra e venda. Nenhuma transferência de propriedade se opera aqui “ipso iure”.

O “locatário” tem o direito contratual de exigir do “locador” que este celebre com ele, no fim do contrato, um contrato de compra e venda tendo como objecto o bem locado. Ou seja: a compra do bem realiza-se por contrato posterior ao contrato de locação financeira, não sendo, pois, um efeito deste operado pelo pagamento da última prestação.

De entre as objecções que se podem apontar à qualificação do contrato locação financeira como contrato de compra e venda, ainda podemos indicar outra.

Na compra e venda o vendedor fornece uma coisa conforme ao pedido do comprador e garante que não tem defeitos.

Na locação financeira não há qualquer prestação positiva do locador ou locatário em relação directa com o próprio bem. Em tudo o que se refere ao bem é o utente que trata com o fornecedor--produtor do bem e que se responsabiliza perante o locador e não o contrário. O locador limita-se a pagar o bem ao fornecedor Início (Cf. Diogo Leite Campos, Locação Financeira (Leasing) e Locação, ROA, Ano 2002, Ano 62 - Vol. III - Dez. 2002, Artigos Doutrinais; ainda, sobre esta matéria, e para maiores desenvolvimentos, vd. Diogo Leite de Campos, A Locação Financeira (Estudo preparatório de uma reforma legislativa), Lisboa, 1994. Este estudo contém os trabalhos preparatórios que levaram à publicação do Decreto--Lei n.° 149/95).

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Faça-se ressumar, do mesmo modo, e a tal respeito, que a locação financeira está, efectivamente, reservada a determinadas pessoas jurídicas do sistema financeiro; o locador financeiro tem que ser um banco ou uma sociedade de locação financeira (SLF) constituída nos termos do Decreto-Lei n.º 72/95, entidades que estão sujeitas ao rigoroso e imperativo RGICSF (artigo 4º do Decreto-Lei n.º 72/95 e artigo 4º, n.º 1, alínea b) e 8º n. 2 do RGICSF ( DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro), que passa pela concessão de autorização pelo Banco de Portugal, tendo em conta a particular natureza da actividade financeira que tais entidades desenvolvem.

Com efeito, por força das disposições conjugadas dos artigos 4º mormente da sua alínea b), 8º n.2 e 10º do DL 298/92, a actividade de financiamento mostra-se restrita às instituições de crédito e sociedades financeiras, tratando-se de uma norma de carácter imperativo.

Como já se deixou indiciado, e, agora se reitera, o que se pretende com a interpretação jurídica não é compreender, conhecer a norma em si, mas sim obter dela ou através dela o critério exigido pela problemática e adequada decisão justificativa do caso. O que significa que é o caso e não a norma o prius problemático - intencional e metódico» (do Assento STJ, 27 -9-1995: DR, IA, de 14-12-95, pág. 7878).

A situação dos autos assume, assim, perante a factualidade assente, o perfil esboçado e, como tal, considerado em decisório, de “contrato misto”. Como emergência do apontado:

«teor do contrato celebrado e bem assim do documento junto pela autora como doc.5 (epigrafado de mapa de taxa de ocupação), que efectivamente para além da promessa de compra e venda da fracção findo o pagamento das designadas «mensalidades», que ocorreria passados 25 anos da sua celebração ( 300 mensalidades) o que estava em causa era também a locação/ financiamento da aquisição do imóvel (mediante o pagamento de uma taxa de juro à financiadora/promitente vendedora, aliás evidenciado na al. e) da cláusula 3ª e no próprio mapa junto, para além de, concomitantemente, ter sido entregue a posse do imóvel para a sua utilização pela promitente compradora.

Por outro lado, a «promitente vendedora»/ora autora, ficava com a propriedade do imóvel - clara garantia- até ao pagamento integral do valor fixado, o qual, como se depreende da análise do mapa e das colunas neste apostas (junto a fls. 33 e segs.), era muito superior ao valor acordado de venda, porquanto conforme se extrai da sua análise, em cada mensalidade acordada havia um valor referente ao juro /taxa de ocupação e outro referente ao valor amortizado, evidenciando claramente que tais mensalidades foram calculadas por forma a fraccionar o preço de compra da coisa incluídos, os juros a pagar à autora, pelos meses pelos quais vigora o contrato, no caso 300, correspondentes a 25 anos.

A própria autora não logrou carrear aos autos - não tendo correspondido ao convite a tal propósito formulado - qualquer explicação para a sua alegação aposta no art. 13º da PI segundo a qual em Fevereiro de 2011 e após o pagamento de várias quantias a título de sinal e de mensalidade (alegadamente para amortização) o valor em dívida de capital era superior ao valor de venda do imóvel!! , sendo certo que a A. também não concretizou na petição inicial quais os concretos montantes mensais acordados (e pagos) a título de amortização de capital nas 300 rendas acordadas e qual o concreto valor da alegada taxa de ocupação e cujos valores, como a própria alega, foram por si unilateralmente recalculados face ao invocado incumprimento da autora por forma a garantir o pagamento do valor acordado (capital e juros) até ao final do prazo estabelecido – vide mapa de fls. 33 a 36».

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Um contrato misto, pois,

«em que se verifica “a fusão, num só negócio, de elementos contratuais distintos que, além de perderem a sua autonomia no esquema negocial unitário”[ Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 194 e 195], fazem simultaneamente parte do conteúdo deste, no caso, um contrato- promessa de compra e venda bilateral ao qual se mostra acoplado um contrato de cedência do gozo no quadro de um financiamento para permitir a aquisição da fracção objecto daquele contrato.

Na verdade e pese embora a autora não tenha adiantado o valor do preço do imóvel a qualquer entidade terceira (como normalmente sucede nos contratos de locação financeira), já que a mesma era a proprietária do imóvel, o que se verifica na prática e face aos termos do contrato celebrado, é que esta funcionou como verdadeira entidade financiadora, sendo remunerada mensalmente, e para além da amortização do capital, com o pagamento de juros, como sucede com as entidades bancárias e sociedades financeiras, acordando-se que a transferência da propriedade da fracção (celebração da escritura pública) apenas ocorreria findo o prazo do contrato (para o qual foi fixado um prazo específico e rígido /300 meses) cumprido que fosse o pagamento da totalidade das prestações acordadas (juros e capital, similarmente ao que sucede nos contratos de locação financeira). Evidenciando o quadro do valor em dívida no mapa junto pela autora que o valor total acordado para o contrato é não apenas o preço de compra da fracção, pelos meses pelos quais vigora o contrato, sendo aí também incluídos juros – note-se que este na prestação 195 é muito superior ao valor de venda do imóvel e vai decrescendo até chegar ao valor zero na última prestação.

Tais considerações levam-nos a concluir que não está apenas em causa um contrato promessa de compra e venda bilateral conjugado com um simples contrato de locação, já que a cedência do gozo funcionou como um mero instrumento de concretização do financiamento da utilização (e eventual aquisição) do imóvel.

(…)

Aqui chegados a questão que se coloca é a de saber se a interdependência ou dependência funcional entre as duas vertentes negociais (os dois tipos de negócios) assinaladas impede a autonomização e validação do contrato promessa de compra e venda celebrado. E quanto a esta questão não temos dúvidas em afirmar quer sim.

Com efeito louvando-nos em todo o supra exposto resulta claro que a dependência funcional entre ambos os contratos que estão substancialmente conexionados, mormente face ao teor das cláusulas neste apostas (modo / condições do preço / atribuição do gozo do locado) e pressupostos da sua celebração com consequências ao nível do seu cumprimento ou incumprimento, arrasta inevitavelmente a repercussão da nulidade de um sobre o outro quanto às consequências jurídicas a extrair mormente da sua nulidade».

Tudo visto, volte a convocar-se que, ao confrontar a figura da locação financeira com a da locação com opção de compra, a da locação-venda e a da venda a prestações com reserva de propriedade, Fernando de Gravato Morais, em Manual da Locação Financeira, Almedina, 2006, reconhece as similitudes, mas impressivamente chama a atenção para dois aspectos diferenciadores:

 - A prevalência da função de financiamento na locação financeira, onde o lucro obtido emerge da remuneração desse financiamento e não da alienação do bem, que é eventual e feita por um valor residual mínimo e pré-fixado;

 - A estrutura trilateral da relação jurídica de locação financeira oposta à estrutura bilateral das restantes;

que haverão de alumbrar, em termos de qualificação contratual, a emergência da factualidade que se consagrou em decisório.

 A saber, desde logo, que este último elemento - a estrutura trilateral da relação jurídica de locação financeira oposta à estrutura bilateral das restantes - não foi afastada, na circunstância. Antes subvertida, a pretexto de, por estruturação fusionista ou osmótica, a Recorrente, em si, as haver concentrado, mas sem que, por efeito prático, a sua repercussão, prestacionista e vinculadora, em termos de arquitectura contratual ou, mesmo, relativamente à recorrida, se haja alterado.

Por outro lado, a enorme “subtileza”, recte, a intensidade ou, mesmo, violência da dupla e miscigenada contratualização com que a recorrida houve de se confrontar com a regulamentação convencionada de uma promessa de compra e as obrigações decorrentes de uma locação financeira, também reciprocamente assumida. Assim se revelando inocultável a prevalência da função de financiamento na locação financeira, onde o lucro obtido emerge da remuneração desse financiamento e não da alienação do bem, que é eventual e feita por um valor residual mínimo e pré-fixado; Tanto mais que, numa perspectiva de direitos do consumidor e da sua tutela, como parte mais fraca (a recorrida), nesta relação também de verdadeira alternativa ou reforço de garantia financeira por banda da recorrente, haverá de se ver impossibilitada de efeitos deletérios para aquela, através da recondução à legalidade contratual permitida, sem qualquer tipo de tergiversação dela adulteradora.

O que atribui - na dimensão aqui referenciada - resposta negativa às questões com os nºs 1, 2 e 3.

4.

XVIII - Não nos encontramos no caso dos autos perante um tipo de negócio que seja exclusivo das entidades financeiras e de crédito, simplesmente porque não configura qualquer Financiamento no âmbito de uma Locação Financeira, essa sim reservada àquelas entidades, incorrendo a presente decisão recorrida numa clara violação do disposto no invocado artigo 280°, nº1 do CC por se entender que o negócio (contrato) não é contrário à lei e como tal não é nulo?

5.

XIX - E bem assim incorre numa violação do artigo 294º do CC, porquanto o negócio (contrato) não contraria qualquer tipo de norma imperativa, no caso a contida no artigo 4º mormente da sua alínea b), 8º nº2 e 10º do DL 298/92 e art. 23º do D.L. 149/95 de 25/06?

Incontornavelmente, já supra se deixou explícito - e a decisão em causa disso faz pressuposto -, a locação financeira está, efectivamente reservada a determinadas pessoas jurídicas do sistema financeiro; o locador financeiro tem que ser um banco ou uma sociedade de locação financeira (SLF) constituída nos termos do Decreto-Lei n.º 72/95, entidades que estão sujeitas ao rigoroso e imperativo RGICSF (artigo 4º do Decreto-Lei n.º 72/95 e artigo 4º, n.º 1, alínea b) e 8º n. 2 do RGICSF ( DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro), que passa pela concessão de autorização pelo Banco de Portugal, tendo em conta a particular natureza da actividade financeira que tais entidades desenvolvem.

Com efeito, por força das disposições conjugadas dos artigos 4º mormente da sua alínea b), 8º n.2 e 10º do DL 298/92, a actividade de financiamento mostra-se, deste modo, restrita às instituições de crédito e sociedades financeiras, tratando-se de uma norma de carácter imperativo.

Por sua vez, em função do disposto no art. 280º Código Civil (requisitos do objecto negocial), vocacionado para a violação de princípios ou vectores fundamentais do ordenamento jurídico, visando a reprodução do sistema e vedando comportamentos que o contrariem, o princípio jurídico (aí ínsito), que faz apelo à ordem pública, tem sido utilizado, designadamente, para impedir negócios jurídicos que exijam esforços desmesurados ao devedor ou que restrinjam demasiado a sua liberdade pessoal ou económica (G. MACHADO DRAY, O ideal de justiça contratual e a tutela do contraente mais débil, em Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Inocêncio Gaivão Telles, vol. I, 2002. p. 101).

Tal determinando que o objecto de um contrato será legalmente impossível, quando a lei lhe opuser um obstáculo insuperável, como o que as leis da natureza opõem aos fenómenos fisicamente impossíveis; haverá uma mera contrariedade à lei quando o objecto de um negócio violar uma disposição da lei, isto é, quando a lei não permita uma combinação negocial com aqueles efeitos (objecto imediato) ou sobre aquele objecto mediato (Mota Pinto, RDES, XVH-86).

Assim, pois que se infere do artigo 280º Código Civil serem condições de validade do negócio jurídico: a) a possibilidade física ou legal; b) a não contrariedade à lei (licitude); c) a determinabilidade; d) a não contrariedade à ordem pública; e) e a conformidade com os bons costumes, sempre do objecto negocial, seja o objecto imediato, seja o mediato (Mota Pinto, Teoria Geral. 3.ª ed., 547). A infracção de qualquer das exigências formuladas neste artigo acerca dos requisitos do objecto negocial, implica a nulidade do negócio jurídico. Esta consequência terá lugar, independentemente de as partes conhecerem ou deverem conhecer o vício de que padece o objecto negocial. Também poderá ter lugar, verificados os requisitos do art. 227.° a responsabilidade civil pré-negocial da parte culpada (ob. cit., 553).

Com o objecto de um negócio jurídico a consubstanciar-se no fim a que tende a respectiva declaração de vontade, sendo por aí que tem de aferir-se da possibilidade ou impossibilidade legal do objecto do negócio, ou da sua contrariedade ou conformidade à lei, nos termos em que se alude no art. 280.° do Código Civil (Ac. RC, 9-S-2000: CJ, 2000, 3.º-5).

Ou seja, na hipostasiação conceitual de NEGÓCIOS CONTRA A LEI E NEGÓCIOS EM FRAUDE À LEI, é clássica esta dualidade, sem que todavia constitua matéria pacífica a exacta determinação do seu sentido e alcance. Por nossa parte, entendemo-la nos seguintes termos, que correspondem, aliás, à doutrina dominante: são negócios contra a lei os que ofendem aberta ou declaradamente uma proibição legal; são negócios em fraude à lei (in fraudem legis; Umgehungsgeschafte ; Schleichgeschafte) aqueles que procuram contornar ou circunvir uma proibição legal, tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos dos que a lei designadamente previu e proibiu - aqueles que por essa forma pretendem burlar a lei.

Os primeiros são directamente visados pela proibição legal; os segundos só indirectamente podem considerar-se abrangidos por ela. Estes, se vão contra a lei, é de modo disfarçado e oblíquo; aqueles atacam-na de frente e sem rebuço. Os negócios contra legem ofendem por assim dizer a própria letra da lei; os negócios in fraudem legis como que só ofendem o seu espírito. São aproximadamente estas ideias as que se encontram expressas em dois famosos passos das fontes romanas. O primeiro é o D., 1, 3, 29 (Paulo): contra legem facit, qui id facit quod lex prohibet; in fraudem cero, qui salvis verbis legis sententiam eius circunvenit. O segundo é o D., 1, 3, 30 (Ulpiano): fraus enim legi fit, ubi quod fieri noluit, fieri autem non oetuit, id fit.

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Neste condicionalismo, não há, pois, como contrariar o enunciado final decisório, segundo o qual,

«(…) no caso, a restituição da fracção por parte da autora não viola o princípio do pedido, ínsito na figura estruturante do princípio dispositivo tanto mais que esse era um dos efeitos pretendidos pela autora através da presente acção.

Sendo outrossim o negócio celebrado inválido, não se poderão deste extrair quaisquer consequências quanto ao seu cumprimento ou incumprimento, improcedendo necessariamente todas as pretensões da autora quanto ao pedido formulado relativamente ao incumprimento de tal contrato ou decorrentes da violação das obrigações assumidas pelas partes, soçobrando desse modo os pedidos formulados nos pontos 1), 2), 4) e 5), pois de outro modo estaríamos a reconhecer ao contrato efeitos que a sua nulidade, de todo em todo, não admite».

Deste modo - também convocando tudo o que, anteriormente, se disse -, a determinar que um negócio jurídico nulo por ter sido celebrado contra disposição legal de carácter imperativo, exige que, no próprio acto da celebração do negócio, os respectivos outorgantes estejam a atentar contra uma disposição legal de carácter imperativo, com base no disposto no art. 294.° do Cód. Civil (Cf. Ac. RP, 31 -1-2002: CJ, 2002, 1.°-195). Como, circunstancialmente, aconteceu.

Quer isto dizer que, em função do disposto no art. 294.° Código Civil (negócios celebrados contra a lei), os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei. Têm, portanto, natureza excepcional as disposições que fixam as sanções da ineficácia stricto sensu ou da simples anulabilidade, tratando-se da violação de normas de interesse e ordem pública. Na expressão disposições de carácter imperativo cabem tanto as normas de natureza preceptiva como as de carácter proibitivo (Pires de Lima, Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 1967, p. 294).

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Circunstancialismo que, do mesmo modo, se intensifica no entendimento de conformidade atribuído a tal figura no próprio Parecer do MP nº 41/94, in DR, II Série, nº242, de 19.10.1994, onde se reconhece que:

«a locação financeira é, segundo um autor, um contrato a médio ou a longo prazo dirigido a «financiar» alguém, não através da prestação de uma quantia em dinheiro, mas através do uso de um bem. Está-lhe subjacente a intenção de proporcionar ao «locatário» não tanto a propriedade de determinados bens, mas a sua posse e utilização para certos fins (Diogo Leite de Campos, «Ensaio de Análise Tipológica do Contrato de Locação Financeira, Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXIII, 1987, pp.1 a 73, maxime, p.10, citando K. Feinen e W. Goldman).

No processo constitutivo da locação financeíra surgem normalmente três sujeitos: o produtor ou fornecedor do bem; o locador (sociedade de locação financeira); e o locatário. Razão por que há que distinguir três relações: a relação «locador-locatário»; a relação «locatário-fornecedor ou fabricante do bem»; a relação «locador-fornecedor ou fabricante do bem».

Poderá dizer-se, começando pelas «relações locador/fornecedor» e «locatário/fornecedor», que a primeira se analisa normalmente num contrato de compra e venda. O locador conclui o contrato, já negociado pelo locatário, com o fornecedor ou produtor, comprando o bem escolhido pelo locatário.

(…)

A relação «locador-locatário» consubstancia o contrato de locação financeira. Nesta relação encontram-se integrados os direitos e deveres caracterizantes do contrato: a obrigação do locador ceder o bem ao locatário para seu uso e o direito correspectivo do locatário; o dever do locatário de pagar a renda e o correlativo direito do locador; o direito do locatário comprar a coisa no fim do contrato.

(…)

Compreende-se agora que um autor tenha distinguido, na estrutura obrigacional do leasing financeiro, cinco relações juridicamente distintas e cronologicamente fixadas no tempo com carácter sucessivo, a saber:

Promessa sinalagmática de locação do locador ao locatário;

Mandato para a compra do bem;

Locação do bem entre locador e locatário por prazo determinado; 

Promessa unilateral (do locador) de venda do bem;

Eventual venda do mesmo ao locatário

(Cf. Claude Champaud, Estudo Sobre o Contrato de Leasing, Semaine Juridique, 1968, nº 195, 1 Vol. I, Paris, citado por Pedro Rebelo de Sousa, «Do Contrato de Leasing – Breve Roteiro para seu Estudo», Boletim da Ordem dos Advogados, «Especial Leasing», nº 25, Abril/1984, pp. 11 e ss.).

(…)

O afastamento do regime contido nos artigos 934º a 936º do Código Civil é consequência de o mesmo ter sido pensado pelo legislador para uma realidade distinta da imanente do leasing financeiro, que tem objectivos e função diferentes dos visados pela venda a prestações com reserva de propriedade ou mesmo por outros tipos de contratos, como será o caso da «locação-venda» (ou «venda-aluguer»), que pretendem alcançar resultados equivalentes à espécie negocial ora em causa (cf. artigo 936. º, n. º. 1 e 2, do Código Civil).

Efectivamente, a «locação-venda», tal como configurada no n. º 2 do artigo 936.º, parece desempenhar a mesma função social típica que a reserva de propriedade.

Não há, pois, lugar à sua identificação com o leasing financeiro, posto que, neste, não existe a automaticidade do efeito translativo próprio da compra e venda a prestações.

Como se conclui no Acórdão da Relação de Lisboa de 4 de Julho de 1991, a locação financeira distingue-se, além do mais, da compra e venda a prestações porque o locador conserva sempre a propriedade plena da coisa, sendo a compra pelo locatário apenas opcional».

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Por sua vez, funciona, ainda como referencial vinculador colocar ênfase específica na circunstância de, na locação com opção de compra, o proprietário de uma coisa concede a outrem o seu gozo temporário e remunerado, facultando-lhe, no fim do prazo de duração, a possibilidade da sua aquisição, por efeito do cumprimento do contrato - ou seja, do pagamento integral das prestações -, e do pagamento de um valor "nominal", tendo, porém, o locatário que exercer o seu "direito de compra".

Este negócio encontra de alguma forma uma certa proximidade no direito inglês, na figura do hire-purchase.

Repare-se que, na nossa ordem jurídica, o art. 7.° DL 135/91, de 4 de Abril, ao estabelecer o regime jurídico das sociedades de gestão e de investimento imobiliário, dispôs expressamente acerca do arrendamento com opção de compra.

Deve ainda assinalar-se que o instituto em causa se considerava previsto no art. 3.°, al. a), parte final DL 359/91. Esta disposição integrava no seu âmbito de aplicação os contratos de locação, maxime os que têm por objecto bens de consumo duradouros), quaisquer que eles sejam, desde que haja a possibilidade de o locatário adquirir a coisa no termo do contrato. Na verdade, sem se fazer alusão expressa, pode ele entender-se contido naquele diploma.

 

Retomando a caracterização da figura, cabe afirmar que o devedor não se encontra obrigado a adquirir o bem, apenas dispondo da "opção de compra", na sequência do cumprimento integral das prestações. Por isso, os contratos prevêem a possibilidade da sua cessação no decurso do período de vigência ou até um acordo com o locatário quanto ao prazo de pré-aviso para exercer o seu direito de aquisição.

No decurso do contrato, o locador permanece o proprietário da coisa, sendo que nesse período percebe uma quantia que corresponde ao preço do custo do bem e aos juros.

Confrontando este negócio com a locação financeira, pode afirmar--se, em breves traços, a prevalência, nesta, da função de financiamento, ao invés do que ocorre na locação com opção de compra, onde o lucro obtido emerge da alienação do bem.

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Valendo por insistir que, na locação-venda um dos contraentes proporciona o gozo temporário de uma coisa a outrem, mediante retribuição, sendo que no seu termo, com o pagamento da última prestação, o utilizador adquire, de modo imediato e automático, a sua propriedade.

Realcem-se algumas das suas notas distintivas: a remuneração do  locador-vendedor excede a retribuição que resultaria do mero gozo da coisa; findo o contrato, a propriedade transfere-se para o locatário com o pagamento de todas as rendas; acresce que tal transmissão não necessita de novas declarações negociais-contratuais.

Do ponto de vista legal, o negócio em causa é tratado em várias normas, sempre em paralelo com a venda a prestações (cfr., v.g., o art. 936.° CC e o art. 104.°, n.º 2 CIRE).

A locação-venda apresenta semelhanças, a nível prático, com a venda a prestações com reserva de propriedade, mas a admissibilidade posterior desta figura tornou aquela menos apetecível e menos usada na vida negocial.

A doutrina parece concordar, de resto, que a sua finalidade é a obtenção de um resultado equivalente ao da venda a prestações.

Já no tocante à natureza jurídica as opiniões divergem. Uns reconduzem-no à união alternativa de contratos. Outros configuram-no como uma "compra e venda a prestações com reserva de propriedade por o seu resultado e a sua causa-função serem idênticos". Outros ainda afirmam que se trata de uma modalidade específica de venda.

A locação-venda não se confunde com a locação financeira. À transferência imediata e automática da propriedade no termo do período de vigência contrapõe-se a sua mera transmissão eventual, já que esta transmissão está dependente da vontade (potestativa) do locatário financeiro. Da mesma sorte, o conjunto das prestações, no quadro da locação-venda, corresponde ao pagamento da transferência da propriedade, ao passo que o valor total das rendas a pagar pelo locatário financeiro contempla, entre outros aspectos, o lucro do locador. Aduza-se ainda que à desnecessidade de novas declarações contratuais tendo em vista a aquisição do bem se opõe uma ulterior manifestação do locatário financeiro visando a aceitação do negócio" (Na jurisprudência, distinguindo a locação-venda da locação financeira, o Ac. Rel. Lisboa, de 25.1.1990 – Mora do Vale, CJ, 1990, I, p.150) – Fernando de Gravato Morais, Manual da Locação Financeira, 2006, pp. 47-50).

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Refira-se, ainda, que, «para além da obrigação principal de celebrar o contrato definitivo de compra e venda, as partes acordaram nesta obrigação, que podemos considerar secundária, de a autora antecipar a concessão do gozo do prédio com a correlativa obrigação para o réu de pagamento de uma compensação por tal gozo.

É legalmente admissível a estipulação de tais obrigações secundárias, face ao princípio da liberdade contratual consagrado no art. 405° nºs 1 e 2 do CC, que envolve, numa das suas vertentes, a faculdade de os contraentes modelarem, de acordo com os seus interesses, o conteúdo concreto da espécie negocial eleita (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª ed.., 230).

Por outro lado, como sublinha Ana Prata (O Contrato Promessa e o Seu Regime Civil, 655), do contrato-promessa podem emergir várias obrigações, além da obrigação principal de celebrar o contrato final e qualquer dessas obrigações pode vir a não ser cumprida; qualquer desses incumprimentos desencadeia a aplicabilidade do respectivo regime geral pertinente; o que está excluído é que o inadimplemento de uma obrigação secundária que não se reflicta no incumprimento da obrigação de concluir o contrato principal desencadeie a aplicação dos instrumentos de tutela desta última obrigação. Isto é, se, por exemplo, for incumprida a obrigação de antecipar a entrega da coisa objecto do contrato definitivo (...) pode o credor reagir a tais incumprimentos através dos mecanismos reconstitutivos e/ou reparatórios que lhe assistem, mas não pode considerar não cumprido o contrato-promessa para efeitos de accionar o respectivo sinal ou execução específica, pois estes são instrumentos de tutela da obrigação principal, só utilizáveis quando do incumprimento dela se trate.

Acrescenta a mesma Autora que para determinar os efeitos de um qualquer incumprimento, questão essencial é, desde logo, qualificar a obrigação secundária não cumprida em função da obrigação principal, isto é, determinar a autonomia ou instrumentalidade dessa obrigação relativamente à obrigação de contratar.

Se a obrigação não cumprida for insusceptível de se reflectir na viabilidade e funcionalidade jurídicas ou económicas do negócio principal, esse inadimplemento gerará os efeitos próprios de qualquer incumprimento do seu tipo, mas não se repercutirá no regime da obrigação principal.

Sendo o interesse creditório autónomo, é indiscutível que tem o credor então ao seu dispor os meios de tutela de qualquer direito de crédito, sendo o regime aplicável aquele de que o incumprimento verificado for desencadeador» (do Ac. RP., de 29.11.2007, Relator Pinto de Almeida).

Pretendendo com tal significar, pois, que, para determinar os efeitos de um qualquer incumprimento, questão essencial é, desde logo, qualificar a obrigação secundária não cumprida em função da obrigação principal, isto é, determinar a autonomia ou instrumentalidade dessa obrigação relativamente à obrigação de contratar. Se a obrigação não cumprida for insusceptivel de se reflectir na viabilidade e funcionalidade jurídicas ou económicas do negócio principal, esse inadimplemento gerará os efeitos próprios de qualquer incumprimento do seu tipo, mas não se repercutirá no regime da obrigação principal.

Sendo que, através do preceituado, também, no art. 665° do CPC (607º NCPC), se visa evitar o desvio da função processual da sua adequação originária.

O que, por tal forma, conjugadamente, determina resposta negativa para as questões com os nºs 4 e 5.

*

Podendo, deste modo, concluir-se, sumariando (art. 663º, nº7 NCPC), que:

1.

A actual definição de locação financeira no ordenamento jurídico português consta do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho:“Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.”

2.

Da noção e do regime deste tipo contratual emergem os seguintes elementos constitutivos da locação financeira:

 A indicação, pelo locatário ao locador, previamente à conclusão do contrato, da coisa a comprar ou a construir e do respectivo fornecedor;

 O dever do locador de adquirir a coisa ao fornecedor;

 O dever do locador de conceder temporariamente o gozo da coisa

ao locatário;

 A obrigação do locatário de pagar uma renda;

 A faculdade detida pelo locatário de adquirir a coisa locada no termo do contrato.

3.

Ao confrontar a figura da locação financeira com a da locação com opção de compra, a da locação-venda e a da venda a prestações com reserva de propriedade, reconhecem as similitudes, mas impressivamente dois aspectos diferenciadores:

 - A prevalência da função de financiamento na locação financeira, onde o lucro obtido emerge da remuneração desse financiamento e não da alienação do bem, que é eventual e feita por um valor residual mínimo e pré-fixado;

 - A estrutura trilateral da relação jurídica de locação financeira oposta à estrutura bilateral das restantes.

4.

Continuamos, apesar disso, com alguma incerteza entre os limites de locação financeira e o contrato de locação. O que se compreende dada a génese do contrato de locação financeira, a grande proximidade dos fins de um e de outro. Neste sentido, não basta fazer uma interpretação das normas da lei, com vista a criar conceitos e subdistinções. Há que aplicar estes conceitos e subdistinções aos casos concretos, no sentido de os subsumir nos quadros da locação ou da locação financeira. O que só se consegue através de um diálogo constante entre a norma e o caso.

5.

A locação financeira está, efectivamente reservada a determinadas pessoas jurídicas do sistema financeiro; o locador financeiro tem que ser um banco ou uma sociedade de locação financeira (SLF) constituída nos termos do Decreto-Lei n.º 72/95, entidades que estão sujeitas ao rigoroso e imperativo RGICSF (artigo 4º do Decreto-Lei n.º 72/95 e artigo 4º, n.º 1, alínea b) e 8º n. 2 do RGICSF ( DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro), que passa pela concessão de autorização pelo Banco de Portugal, tendo em conta a particular natureza da actividade financeira que tais entidades desenvolvem. Com efeito, por força das disposições conjugadas dos artigos 4º mormente da sua alínea b), 8º n.2 e 10º do DL 298/92, a actividade de financiamento mostra-se restrita às instituições de crédito e sociedades financeiras, tratando-se de uma norma de carácter imperativo.

6.

A situação dos autos assume, assim, perante a factualidade assente, o perfil esboçado e, como tal, considerado em decisório de “contrato misto”. Como emergência do teor do contrato celebrado e bem assim dos documentos junto pela autora.

7.

Um contrato misto, pois, em que se verifica “a fusão, num só negócio, de elementos contratuais distintos que, além de perderem a sua autonomia no esquema negocial unitário, fazem simultaneamente parte do conteúdo deste, no caso, um contrato- promessa de compra e venda bilateral ao qual se mostra acoplado um contrato de cedência do gozo no quadro de um financiamento para permitir a aquisição da fracção objecto daquele contrato.

8.

Não está apenas em causa um contrato promessa de compra e venda bilateral conjugado com um simples contrato de locação, já que a cedência do gozo funcionou como um mero instrumento de concretização do financiamento da utilização (e eventual aquisição) do imóvel. Louvando-nos em todo o supra exposto resulta que a dependência funcional entre ambos os contratos que estão substancialmente conexionados, mormente face ao teor das cláusulas neste apostas (modo / condições do preço / atribuição do gozo do locado) e pressupostos da sua celebração com consequências ao nível do seu cumprimento ou incumprimento, arrasta inevitavelmente a repercussão da nulidade de um sobre o outro quanto às consequências jurídicas a extrair mormente da sua nulidade.

9.

A estrutura trilateral da relação jurídica de locação financeira oposta à estrutura bilateral das restantes, não foi afastada, na circunstância. Antes subvertida, a pretexto de, por estruturação fusionista ou osmótica, a Recorrente, em si, as haver concentrado, mas sem que, por efeito prático, a sua repercussão, prestacionista e vinculadora, na recorrida, se haja alterado.

10.

Por outro lado, a enorme “subtileza”, recte, a intensidade ou, mesmo, violência da dupla e miscisgenada contratualização com que a recorrida houve de se confrontar com a regulamentação convencionada de uma promessa de compra e as obrigações decorrentes de uma locação financeira, também reciprocamente assumida. Assim se revelando inocultável a prevalência da função de financiamento na locação financeira, onde o lucro obtido emerge da remuneração desse financiamento e não da alienação do bem, que é eventual e feita por um valor residual mínimo e pré-fixado; Tanto mais que, numa perspectiva de direitos do consumidor e da sua tutela, como parte mais fraca (a recorrida), nesta relação também de verdadeira alternativa ou reforço de garantia financeira por banda da recorrente, haverá de se ver impossibilitada de efeitos deletérios para aquela, através da recondução à legalidade contratual permitida.

11.

Em função do disposto no art. 280º Código Civil (requisitos do objecto negocial), vocacionado para a violação de princípios ou vectores fundamentais do ordenamento jurídico, visando a reprodução do sistema e vedando comportamentos que o contrariem, o princípio jurídico (aí ínsito), que faz apelo à ordem pública, tem sido utilizado, designadamente, para impedir negócios jurídicos que exijam esforços desmesurados ao devedor ou que restrinjam demasiado a sua liberdade pessoal ou económica.

12.

Tal determinando que o objecto de um contrato será legalmente impossível, quando a lei lhe opuser um obstáculo insuperável, como o que as leis da natureza opõem aos fenómenos fisicamente impossíveis; haverá uma mera contrariedade à lei quando o objecto de um negócio violar uma disposição da lei, isto é, quando a lei não permita uma combinação negocial com aqueles efeitos (objecto imediato) ou sobre aquele objecto mediato.

13.

Deste modo a determinar que um negócio jurídico nulo por ter sido celebrado contra disposição legal de carácter imperativo, exige que, no próprio acto da celebração do negócio, os respectivos outorgantes estejam a atentar contra uma disposição legal de carácter imperativo, com base no disposto no art. 294.° do Cód. Civil. Como, circunstancialmente, aconteceu.

14.

Quer isto dizer que, em função do disposto no art. 294.° Código Civil (negócios celebrados contra a lei), os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei. Têm, portanto, natureza excepcional as disposições que fixam as sanções da ineficácia stricto sensu ou da simples anulabilidade, tratando-se da violação de normas de interesse e ordem pública. Na expressão disposições de carácter imperativo cabem tanto as normas de natureza preceptiva como as de carácter proibitivo.

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III. A Decisão:

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao recurso interposto, mantendo a decisão recorrida, na conformidade ao que se explana.

 Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC..

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António Carvalho Martins - Relator

Carlos Moreira - 1º Adjunto

Anabela Luna de Carvalho - 2º Adjunto