Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
71/07.9IDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 07/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 6.º; 7.º, N.º 3; 14º E 105.º, NºS 1, 2, 4, ALÍNEA A) E 7, TODOS DO RGIT E 50º DO CP
Sumário: 1.A norma do artigo 14º da Lei 15/2001 de 5 de Junho (RGIT) encontra-se em vigor, já que não foi revogada pela norma do artigo 50º,nº5 do CP, na redacção dada pela Lei 59/2007 de 4 de Setembro
Decisão Texto Integral: I – Relatório.

1.1. A. já mais devidamente identificado, submetido a julgamento porquanto acusado pelo Ministério Público da prática indiciária de factualidade consubstanciadora da autoria material consumada de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido através das disposições conjugadas dos artigos 6.º, 7.º, n.º 3; 105.º, n.ºs 1, 2, 4, alínea a), 5 e 7, todos do Regime Geral das Infracções Tributarias (doravante, vulgo RGIT), aprovado por intermédio da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e redacção decorrente das Leis n.ºs 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 64-A/2008, de 31 de Dezembro, findo o contraditório, acabou condenado enquanto agente da infracção assim assacada, na pena de um ano de prisão, suspensa, contudo, na respectiva execução, durante o período de cinco anos, sob a condição de pagamento à Administração Fiscal, até ao fim do período da suspensão, do montante global em dívida de € 65.737,98, a título de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), devido pela sociedade Construções--- Ld.ª, e acréscimos legais.

Pagamento a dever ser por si comprovado nos autos, e suspensão esta decretada com arrimo ao disposto nos artigos 50.º, n.ºs 1, 2 e 5, do Código Penal (redacção adveniente do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março), e 14.º do mencionado RGIT.

1.2. O Ministério Público, porque desavindo apenas com o segmento da decisão que facultou e enquadrou tal regime de suspensão de execução da pena, interpôs competente recurso, extraindo da motivação apresentada a seguinte ordem de conclusões:

1.2.1. Ao suspender a pena de prisão aplicada ao arguido, pelo prazo de cinco anos, sob a condição de o mesmo solver o montante tributário em dívida de € 65.737,98 e acréscimos legais, por aplicação do estatuído no artigo 50.º, n.ºs 1, 2 e 5, do Código Penal (redacção decorrente do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março), e 14.º, n.º 1, do RGIT,

1.2.2. Entendeu a sentença recorrida ser tal regime mais favorável ao arguido, quando em comparação com aquele que adviria da aplicação conjugada do artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal, mas redacção actual, e 14.º, n.º 1, do RGIT, pois este último implicaria um prazo mais curto para pagamento da indemnização devida.

1.2.3. Acontece, porém, que o regime mais favorável, e logo o aplicável, devia ter sido, na senda do sustentado, v.g., no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 7 de Novembro de 2007, o resultante da aplicação do citado artigo 50.º, n.º 5, redacção hodierna, sem recurso ao disposto no também já mencionado artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, que, aliás, se deve considerar como tacitamente revogado, por incompatibilidade com aquele artigo 50.º, n.º 5, perdendo pois razão de ser.

1.2.4. O que, todavia, não obstará ao apelo ao regime imposto pelo artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, impondo-se ao arguido que enverede esforços no sentido de pagar um montante do valor devido, a fixar segundo um critério de equidade, que tenha por suporte a sua capacidade de trabalho e conhecimentos adquiridos, sem prejuízo de uma ulterior reavaliação, em caso de incumprimento não culposo, ao abrigo do regime do artigo 55.º, do Código Penal.

Terminou pedindo a revogação parcelar da sentença recorrida e sua substituição, no que concerne, por outra que adira ao entendimento ora sufragado.

1.3. Cumprido o disposto no artigo 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, respondeu o arguido, sustentando a manutenção do sentenciado.

Proferido despacho de admissão do recurso, foram os autos remetidos a esta instância.

1.4. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente ao improvimento respectivo.

Foi dado acatamento ao disciplinado pelo artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

No exame preliminar a que alude o n.º 6 deste mesmo inciso, consignou-se não estarmos perante hipótese que acarretasse a prolação de decisão sumária, donde que, e por nada a tanto obstar, devesse conhecer-se de meritis.

Por isso que se determinou o prosseguimento do recurso com recolha de vistos, o que sucedeu, e submissão à presente conferência.

Urge agora ponderar e decidir.


*

II – Fundamentação de facto.

2.1. A decisão recorrida considerou como provados os factos seguintes:

1. A sociedade Construções ---- Ld.ª, com o NIPC 50345… constituída a 05/…/1995, teve o seu domicílio fiscal na…. concelho ao Figueira da Foz, área do serviço de Finanças da Figueira da Foz 2, e como objecto o «empreendimento e realização de trabalhos de construção civil, abrangendo estruturas, infra-estruturas e acabamentos».

2. Esta sociedade encontrava-se colectada, desde 1995, pelo exercício de «Construções de Edifícios Residenciais e Não Residenciais», a que corresponde o CAE principal 41200-R-3, estando enquadrada, no que tange ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, no regime normal trimestral.

3. Tratava-se de uma sociedade por quotas, com o capital social de Esc. 400.000$00 (quatrocentos mil escudos), o qual estava distribuído, desde 13/10/1998, por duas quotas – uma, no valor de Esc. 100.000$00, titulada pela sociedade «P…, Limited», NIF 980155.., com sede em Suite 7….  em Gibraltar, e sem actividade em Portugal, e outra, no valor de Esc. 300.000$00, igualmente titulada pela sociedade «P… Limited».

4. Durante a existência desta sociedade, e sem embargo de ter sido vendida à sobredita «P.., Limited», por escritura de cessão de quotas efectuada 13/…/1998, no Primeiro Cartório Notarial de Viseu, figuraram como respectivos sócios de direito I e J.

5. A sociedade Construções… Ld.ª foi declarada dissolvida por decisão proferida no âmbito de procedimento administrativo de dissolução e liquidação, decisão essa transitada em julgado a 15/…./2008 e averbada no registo a 18/…2008.

6. A sociedade Construções,…. Ld.ª exerceu a sua actividade no ano fiscal de 2003 e, bem assim, no primeiro semestre do ano fiscal de 2004.

7. Durante o ano de 2003 e o primeiro semestre de 2004, o arguido A actuou como gerente de facto da sociedade Construções,--- Ld.ª, sendo ele o emitente das respectivas facturas e vendas a dinheiro e o responsável pela realização dos trabalhos que a mesma contratava com terceiros.

8. Em todos os quatro trimestres de 2003, concretamente entre as datas de 10 de Janeiro e 31 de Dezembro inclusive, o arguido A…. na qualidade de gerente de facto da sociedade Construções….. Ld.ª, e no interesse desta, emitiu, por referência à actividade por esta desenvolvida, facturas e vendas a dinheiro para as suas clientes CEML – Montagens ….., Ld.ª. NIPC 503949.. e M… & MD, Ld.ª, tendo liquidado o IVA a que tais transacções se encontravam sujeitas e recebido o valor do imposto correspectivo às facturas e vendas a dinheiro.

9. O arguido A, na qualidade de gerente de facto da sociedade C, Ld.ª, não providenciou para que esta remetesse, ao Serviço de Administração do IVA, em Lisboa, as declarações periódicas referentes aos quatro primeiros trimestres de 2003.

10. Ora, a sociedade Construções…., Ld.ª, actuando através do seu gerente de facto A., liquidou e não entregou, nos períodos tributários abaixo especificados, supostas as transacções anteriormente referidas, os seguintes valores a título de IVA:

– 1.º Trimestre de 2003: € 11.038,05.

– 2.º Trimestre de 2003: € 14.366,85.

– 3.º Trimestre de 2003: € 9.428,64.

– 4.º Trimestre de 2003: € 30.994,44.

11. A falta de entrega do IVA, relativo a todos os períodos do ano de 2003, ascende, assim, ao montante global de € 65.737,98 (sessenta e cinco mil setecentos e trinta e sete euros e noventa e oito cêntimos).

12. Das quantias em causa ainda não foi paga qualquer importância, sendo certo que há muito decorreram 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.

13. O arguido A, na qualidade gerente de facto da sociedade Construções…. Ld.ª, decidiu não entregar a Administração Fiscal as quantias supra mencionadas, antes as tendo utilizado para fazer face as necessidades correntes daquela sociedade, em cujo património integrou, em prejuízo do Estado.

14. O arguido A,… ao proceder como descrito, agiu de forma livre e com o propósito único e reiterado de prejudicar o Estado e obter vantagem patrimonial indevida, no valor dos montantes não entregues, para a sociedade Construções…. Ld.ª, no que actuou em nome e no interesse desta sociedade, bem como no seu próprio interesse, o que representou.

15. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. 

16. O arguido encontra-se desempregado, tendo trabalhado após ter saído da sociedade Construções…, Ld.ª, em 2006, como comissionista, e reside com a esposa, doméstica, numa casa doada pelo sogro a um filho do arguido.

17. O arguido é considerado, na comunidade em que se encontra inserido, uma pessoa trabalhadora e honesta.

18. O arguido foi condenado, em 17/…/2005, por sentença proferida no Processo n.º …/02.2 TAOAZ, do 1.º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Oliveira de Azeméis, transitada em julgado em 10/…/2005, na pena de 8 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 3 anos, pela prática, em 30/01/2002, de um crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob poder público, previsto e punido pelo artigo 355.º, do Código Penal.

2.2. Por seu turno, e relativamente a factos não provados, consignou-se na mesma decisão recorrida que:

Inexistem factos por provar.

2.3. Por fim é do teor que reproduzimos, a motivação probatória inserta na dita peça processual:

Para a formação da convicção quanto à factualidade dada como provada o Tribunal baseou-se nas declarações prestadas pelo arguido, na parte em que se revelaram coerentes e credíveis, nos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas na audiência de discussão e julgamento e ainda nos documentos juntos aos autos, tudo em conjugação com critérios de razoabilidade e regras da experiência comum, nos termos em seguida indicados.

Assim, a identificação e objecto da sociedade Construções…., Ld.ª, (ponto 1), a classificação da respectiva actividade económica (ponto 2) a constituição do capital social e a identidade dos sócios (pontos 3 e 4), bem como a decisão de dissolução da referida sociedade (ponto 5) resultam da cópia da matrícula na Conservatória do Registo Comercial e inscrições em vigor relativamente a mesma sociedade (fls. 52 a 54).

Por sua vez, o regime fiscal a que aquela sociedade se encontrava submetida, extrai-se da conjugação da referida cópia de matrícula, com o auto de notícia e o relatório da acção de inspecção elaborados pela Direcção-Geral dos Impostos (fls. 2 e 65 a 69), – os quais foram confirmados pela testemunha A, com conhecimento directo dos factos sobre os quais depôs, em virtude das funções que exerce como Inspectora da Direcção-Geral dos Impostos, e cujo depoimento se revelou isento e consistente – sendo a cessão de quotas comprovada pela certidão da respectiva escritura realizada em 13/10/1998 (fls. 109 a 112).

De igual modo, o exercício da actividade por parte da sociedade Construções Castro Leite, Ld.ª, (ponto 6) sustenta-se nesses elementos, assim como nas facturas e vendas a dinheiro emitidas por esta sociedade e remetidas às sociedades M.. & MD, Ld.ª e CEML – Ld.ª (fls. 70 a 106, 240 a 250, 312 a 324), nos extractos de contas e nas notas de pagamento emitidas por aquelas duas relativamente à sociedade Construções .., Ld.ª e (fls. 113 a 166 e 238 e 239), nas cópias dos cheques emitidos à ordem desta mesma sociedade por aquela e dos extractos de contas de deposito à ordem titulada pela sociedade M & MD Ld.ª onde consta a identificação daqueles cheques (fls. 220 a 237, 272 a 311) e nas cópias do extracto de conta de deposito à ordem titulada pela sociedade CEML –, Ld.ª onde consta a identificação dos cheques emitidos por essa sociedade à ordem de “SCL” (Sociedade de Construções.., Ld.ª) (fls. 122 a 166).

No mesmo sentido, o próprio arguido confirmou que trabalhou na sociedade Construções…, Ld.ª no período entre 2001/2002 e 2005/2006, o que é corroborado pelos depoimentos das testemunhas A (gerente da sociedade M & MD Ld.ª), AR e ME (respectivamente, gerentes da sociedade CEML – .. Ld.ª e esposa deste), que relataram – com total descomprometimento, segurança e coerência – que no período de 2003, aquela sociedade se encontrava em actividade, atendendo aos negócios que com ela foram estabelecido nesse período.

A actuação como gerente de facto por parte do arguido AO no ano de 2003 e no primeiro semestre de 2004 (ponto 7), decorre, desde logo, do depoimento do próprio arguido.

Na verdade, pese embora o arguido tenha negado ser o “gerente de facto” da sociedade, admitiu uma série de comportamentos que consubstanciam a efectiva gestão da mesma.

Desde logo, não se afigura credível que o mesmo fosse “apenas” “um trabalhador”, que “trabalhava como outros” e que “cumpria ordens” de um indivíduo chamado “ÁD” que o contratou para aquela empresa.

Com efeito, ainda que de forma relutante, o arguido acabou por reconhecer que não recebia ordens nem prestava contas a ninguém na sociedade, esclarecendo que só lhe pediam “para trabalhar” – nomeadamente efectuando contactos e negócios com clientes – em face da difícil situação económica da empresa.

Mas, recorrendo à experiência comum, afigura-se, sobretudo, incongruente que o mesmo desconhecesse, em absoluto, os gerentes da sociedade e não soubesse precisar quem era o seu superior hierárquico ou a quem devia prestar contas, sendo que, em relação ao referido “Dr. ÁD”, referiu não saber “o que representava na empresa” e que, se durante um período contactava com aquele, o mesmo “desapareceu” não se lembrando quando tal ocorreu.

Por outro lado, o arguido admitiu que tinha autonomia para fazer contactos com eventuais clientes, realizar contratos com estes, emitir facturas e vendas a dinheiro das vendas efectuadas e dos serviços prestados, receber o respectivo pagamento, proceder ao pagamento de salários dos trabalhadores, pagar a sua própria remuneração, organizar a mão-de-obra, endossar cheques emitidos a favor da sociedade, adquirir matérias-primas.

No fundo, só não reconheceu ter competências para cumprir as obrigações fiscais da empresa, designadamente, entregar as declarações trimestrais respeitantes a IVA assim como os respectivos meios de pagamento à Administração Fiscal, que afirmou que “essa preocupação não era da sua responsabilidade”

Em consonância com a actividade que o arguido reconheceu que desempenhava na sociedade Construções…. Ld.ª, as testemunhas inquiridas A.. confirmaram que os contactos estabelecidos com aquela empresa eram efectuados através do arguido “que se apresentava como dono da empresa, gerente” uma vez que “se apresentava para vender mercadoria, acordavam preços, entregas…” (AC) ou como “representante da empresa” e “não como mero empregado” (A S), sendo com ele que eram estabelecidos os termos dos contratos.

Em face da prova produzida conclui-se que o arguido era, efectivamente, quem detinha os poderes de administração e gestão da sociedade Construções … Ld.ª, sendo, pois, o respectivo gerente de facto e não apenas “uma espécie de encarregado”.

A emissão de factura e vendas a dinheiro para as clientes daquela empresa (CEML – …, Ld.ª e M & MD Ld.ª), assim como a liquidação do IVA a que tais transacções se encontravam sujeitas e o recebimento do valor do imposto correspectivo (ponto 8) decorre dos elementos probatórios já enunciados, nomeadamente, das cópias das facturas e vendas a dinheiro respeitantes às vendas efectuadas (designadamente, venda de prensas e cinchos) e serviços prestados (nomeadamente, recuperação de paletes, transporte de materiais, colocação de redes, tubos e grades, portões, fornecimento de madeiras ou artigos construídos com esse material, limpeza ou assistência técnica a máquinas), dos cheques, dos extractos de conta, das notas de pagamento do extracto de conta de deposito à ordem titulada pela sociedade CEML –, Ld.ª, documentação que se encontra nos autos juntas aos autos (fls. 70 a 106, 113 a 166, 220 a 250, 272 a 324), dos depoimentos das testemunhas A. A. e AS, a que acresce o testemunho de AA (também ela depondo com isenção sobre os factos de que tinha conhecimento, por ter prestado serviços de contabilidade para a sociedade CEML…. Ld.ª e que confirmou a emissão de facturas e o respectivo pagamento), e o relatório da acção de inspecção elaborado pela Direcção-Geral dos Impostos (fls. 65 a 69).

A falta de entrega das declarações periódicas de IVA (ponto 9), dos montantes do imposto devidos e dos períodos respeitantes (pontos 10 e 11) e a não entrega desses montantes (ponto 12) constatam-se no mesmo relatório, corroborado pelo depoimento da testemunha A Técnica da Direcção-Geral de Impostos, sendo certo que o arguido admitiu que não providenciou pela entrega, quer das declarações, quer dos meios de pagamento, à Administração Fiscal.

O destino dado aos montantes de IVA apropriados (ponto 13) sustenta-se nas declarações do próprio arguido, não existindo qualquer elemento de prova nos autos que invalide a afirmação de que os mesmos visavam o pagamento de despesas correntes da empresa.

O conhecimento e vontade de praticar os factos acima descritos e a consciência da respectiva ilicitude (pontos 14 e 15) foi tida em consideração a experiência comum, atenta a repercussão social que vem assumindo o cumprimento de obrigações fiscais e a condenação de condutas integradoras do crime de abuso de confiança fiscal, e considerando ainda a idade e experiência profissional do arguido.

As condições pessoais, profissionais e económicas deste, assim como a composição do respectivo agregado familiar (pontos 16) sustentam-se, essencialmente, nas declarações do arguido, ressalvando, no entanto, que não se afigurou credível que o arguido, bem assim como a sua esposa, durante o período de dois anos, não tenham tido qualquer rendimento, sobrevivendo apenas com o recurso ao cultivo de terras cedidas por familiares, e suportando igualmente a totalidade das despesas do agregado familiar com a ajuda da família. Com efeito, ao relatar as suas condições económicas, o arguido revelou-se pouco seguro, corrigindo o seu depoimento quando confrontado com a total ausência de rendimentos durante um período de dois anos, momento em que informou que nesse lapso temporal fez alguns trabalhos como comissionista.

Os factos reportados à personalidade de carácter do arguido (ponto 17) assentam nos depoimentos das testemunhas M e MC que sobre os mesmos depuseram de forma séria e coerente.

Os antecedentes criminais do arguido (ponto 18) constataram-se através do certificado do respectivo registo criminal (fls. 428).


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III – Fundamentação de Direito.

3.1. Como é consabido, o âmbito dos recursos define-se através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (cfr. artigos 412.º, n.º 1 e 403.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal), mas isto sem prejuízo do conhecimento, inclusive oficioso, dos vícios e nulidades previstos (as) nos n.ºs 2 e 3, do artigo 410.º, do mesmo diploma adjectivo (cfr. Acórdão do STJ n.º 7/95, em interpretação obrigatória).

In casu, não emerge dos autos qualquer fundamento que determine esta intervenção oficiosa.

Daí que o thema decidendum, fixado então em função das conclusões do recorrente, consista em verificarmos se por virtude da revogação tácita do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, deve alterar-se, nos moldes pretendidos, o regime de suspensão de execução da pena de prisão cominado na decisão recorrida ao arguido.

Assim:

3.2. Os factos que acarretaram à condenação deste, ocorreram no período compreendido entre o primeiro e o quarto trimestres de 2003 (ponto 10 da matéria de facto assente), ou seja, antes das alterações introduzidas no Código Penal por intermédio da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.

Com efeito, estabelecia, então, o artigo 50.º, n.º 5, deste diploma substantivo que, quando se verificassem as condições concretas para suspender a execução da pena de prisão, “o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos a contar do trânsito em julgado da decisão”, referindo, ademais, e ao que concerne, o controvertido artigo 14.º, n.º 1, que, quando a infracção tiver natureza fiscal a suspensão da execução da pena de prisão aplicada seja sempre condicionada “ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.”

Porém, a apontada Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que entrou em vigor no dia 15 de Setembro de 2007 – ou seja, a coeva à data da prolação da sentença recorrida (12 de Fevereiro de 2010) –, veio estabelecer a seguinte redacção para o indicado artigo 50.º, n.º 5: “O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.”

O recorrido, mostra-se condenado, sem qualquer controvérsia, a propósito, pela prática de um crime de crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 6.º; 7.º, n.º 3; 105.º, nºs 1, 2, 4, alínea a) e 7, todos do RGIT, na pena de 1 (um) ano de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 5 (cinco) anos, na condição de efectuar e comprovar nos autos, o pagamento ao Estado do montante em dívida e respectivos acréscimos legais, no mesmo prazo da suspensão.

A argumentação do Ministério Público vai no sentido em que, por incompatibilidade entre o mencionado artigo 14.º, n.º 1, e a novel redacção atribuída ao artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal, deveria aquele ter-se por implicitamente revogado, abrindo assim caminho à ponderação do artigo 51.º, mormente no segmento em que preceitua: “1. A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a repara o mal do crime, nomeadamente: a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado (…).”

A primeira nota que se nos afigura curial fazer é a de que a solução adoptada na sentença recorrida se mostra destituída de qualquer adequação às realidades, já que levaria a que o condenado pudesse ignorar completamente a condição, que se tornaria de completa letra morta, uma vez que a extinção da pena que foi condenado ocorreria antes do prazo para o cumprimento da condição, não lhe advindo qualquer consequência pela falta de cumprimento desta última.

Nesta perspectiva, mais curial seria, v.g., não condicionar a suspensão da execução a qualquer condição como pretende o arguido e decidiu o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão prolatado com data de 7 de Novembro de 2007, no âmbito do Processo n.º 0743150.

Segunda nota a referir, contudo, a de que tal solução violaria frontalmente o supra citado artigo 14.º, n.º 1 que, entendemos, tem antes de ser harmonizado com as alterações da Lei n.º 59/2007 de 4 de Setembro, e não poderá ser completa e simplesmente desconsiderado.

Aliás, esta a resposta oferecida de forma quase unânime pela jurisprudência, pois pese embora duas ou três manifestações de discordância expressas em votos de vencido, reportando-se já ao normativo do anterior RJIFNA, quanto ao normativo do artigo 14.º, n.º 1, decorrente do RGIT, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 256/03, de 21 de Maio [Conselheira Helena Brito] decidiu não julgar inconstitucionais tais normas. Integra esta decisão o voto de vencido da Conselheira Maria Fernanda Palma, expondo as razões segundo as quais a obrigatoriedade fixada pelo artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao condicionar, sempre, a suspensão da execução da pena ao pagamento das prestações tributárias e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos, sem admitir a ponderação casuística do julgador viola os princípios constitucionais da igualdade, da culpa, da necessidade e da proporcionalidade da pena.

Da mesma forma, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Outubro de 2006 [Conselheiro Santos Monteiro, em cujo sumário se lê: “ (…) III - A exigência de pagamento da prestação tributária como condição da suspensão da execução da pena, à margem da condição económica do responsável tributário, e do princípio da razoabilidade, previsto para a suspensão nos termos do art. 51.º, n.º 2, do CP, nada tem de desmedida, justificando-se pela necessidade da eficácia do sistema penal tributário e o tratamento diferenciado pelo interesse preponderantemente público a acautelar” – processo 06P2935, in http://www.dgsi.pt/jstj, acedido em Janeiro de 2009] conta com o voto de vencido do Conselheiro Santos Cabral que acompanha, de perto, a posição tomada naquele outro voto de vencido.

Mais recentemente, de novo o Tribunal Constitucional chamado a pronunciar-se sobre a questão, e agora já à luz das alterações introduzidas pela dita Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que indexaram a duração do período de suspensão à duração da pena de prisão determinada na sentença [artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal], reafirmou o juízo de não inconstitucionalidade de tal norma [Acórdão n.º 327/2008, de 18 de Junho, Conselheiro Vítor Gomes, que decidiu: “Não julgar inconstitucional a norma que se extrai do artigo 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, em conjugação com o n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal, interpretada no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de duração da pena de prisão concretamente determinada, a contar do trânsito em julgado da decisão, da prestação tributária e acréscimos legais.”].

Argumentação essencial, e que as conclusões não elidem, segundo esta jurisprudência do Tribunal Constitucional, as de que é pois seguro continuarem a ser válidas as três razões pelas quais se afasta a objecção de que se está a impor ao arguido um dever que se sabe de cumprimento impossível e, com isso, a violar os princípios da proporcionalidade e da culpa: (i) o juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão; (ii) sempre pode haver regresso de melhor fortuna; (iii) e a revogação não é automática, dependendo de uma avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição [do último acórdão citado].[1]

A compatibilização prática entre os dois normativos em questão (50.º, n.º 5 e 14.º, n.º 1), devendo operar em termos a facultar a determinação do regime que concretamente se mostra mais favorável ao arguido (ut artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal), poderá então conceber-se numa destas duas soluções possíveis: encurtar o prazo de cumprimento da condição fixada na sentença recorrida para que o mesmo coincida com o prazo de suspensão da execução da pena; ou, alargar o período de suspensão da execução da pena de forma a fazê-lo coincidir com o prazo estabelecido para o cumprimento da condição de pagar o montante ainda em divida e respectivos acréscimos legais.

Tudo porque assim se respeitam dois elementos relevantes: o elemento penalizador da decisão condenatória é o prazo de suspensão, pois, enquanto perdurar a suspensão, existe a possibilidade da sua revogação e com o seu decurso o condenado liberta-se desse ónus considerando-se extinta a pena imposta – artigo 57.º, n.º 1, do Código Penal; por outro lado, a circunstância de o condenado dispor de menos tempo para pagar, pode até mostrar-se-lhe mais favorável, porquanto, a falta de cumprimento da condição não acarreta automaticamente a revogação da suspensão da execução da pena, mas apenas se o incumprimento se mostrar culposo, e depois de esgotadas todas as providências previstas no artigo 55.º, do Código Penal.

In casu, a decisão recorrida tendo embora enveredado neste entendimento de necessidade de compatibilização de regimes, fê-lo, começámos por consignar, em termos que se nos não mostram ajustados.

Porém, o sentido em que o Ministério Público entende que devia ser fixado não tem cobertura legal, porquanto assente num pressuposto que não ocorre (o da revogação tácita do artigo 14.º, n.º 1).

Tudo conjugado, cabe tão-somente manter o decidido.


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IV – Decisão.

São termos em que se nega provimento ao recurso interposto, e, consequentemente, mantemos a decisão recorrida.

Sem custas, atenta a isenção processual do recorrente.

Notifique.


*

Coimbra, 7 de Julho de 2010



[1] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18 de Fevereiro de 2009, sendo Relator o Ex.mo Desembargador Artur Oliveira, acessível in www.dgsi.pt.