Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
854/19.7PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
CONDUTOR NÃO HABILITADO PARA CONDUZIR
PENA ACESSÓRIA DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR
Data do Acordão: 03/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 292.º E 69.º, N.º 1, AL. A), DO CP
Sumário: Ocorrendo a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, o condutor, ainda que não habilitado para conduzir, deve ser também sancionado com a pena acessória prevista no art. 69.º, n.º 1, al. a), do CP.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra

1. RELATÓRIO

1.1. Nos autos de processo sumário em referência, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo Local Criminal de Coimbra - Juiz 3, realizado julgamento, o arguido A. foi condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, nº 1 do Código Penal, na pena de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros), o que perfaz o montante total de €510,00 (quinhentos e dez euros), pela prática de um crime de desobediência p. e p. pelo art.º 348º nº 1 al. b) do Código Penal, na pena de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros), o que perfaz o montante total de €510,00 (quinhentos e dez euros) e pela prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art.º 3º, nºs 1 e 2 do Dec. Lei nº 2/98 de 03/01 ex vi art.º 130º, n.º3 do Código da Estrada, na pena de 4 (quatro) meses de prisão a cumprir em regime de obrigação de permanência na habitação e com aplicação dos meios de vigilância electrónica.

Nos termos do art.º 77º, n.º 1 do Código Penal, em cúmulo jurídico de penas, o arguido A. foi condenado na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à razão diária de €6 (seis euros), o que perfaz o montante total de €840,00 (oitocentos e quarenta euros) e na pena de 4 (quatro) meses de prisão domiciliária, a cumprir em regime de obrigação de permanência na habitação e com aplicação dos meios de vigilância electrónica.


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1.2 Inconformado o Ministério Público interpôs recurso da sentença, extraindo da motivação as seguintes


conclusões:

“1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos autos à margem referenciados que, tendo condenado o arguido pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. pelo artigo 292º, nº 1 do CP (na pena de (oitenta e cinco dias de multa, à razão diária de seis euros), de um crime de desobediência p. e p. pelo art.º 348º nº 1 al. b) do CP (na pena oitenta e cinco dias de multa, à razão diária de seis euros) e de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal p. e p. pelo art.º 3º, nºs 1 e 2 do Dec. Lei nº 2/98 de 03/01 ex vi art.º 130º, n.º3 do CE, (na pena de quatro meses de prisão, a executar em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância), não o condenou na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artº 69º, nº 1, al. a), do mesmo código.

2. Porém, na acusação constava - no que concerne ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez - entre as disposições legais aplicáveis, a referência ao artº 69.º, nº 1, al. a), do CP;

3. Aquela norma legal impõe a obrigatoriedade de condenação na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, por um período fixado entre três meses e três anos, quem for punido pelo crime de previsto no artº 292º, do CP;

4. Nem o referido artº 69º, nem qualquer outra norma legal, estabelece qualquer exceção, designadamente para o caso de o arguido não ser titular de carta de condução;

5. No caso de o arguido não ser titular de carta de condução válida – como acontece in casu – o cumprimento da pena acessória inicia-se após o trânsito em julgado da sentença condenatória, como resulta do artº 69º, nº, 2, do CP e prolonga-se até ao termo do período fixado na sentença;

6. No decurso do período temporal em que o arguido se encontre a cumprir a pena acessória, encontra-se impedido de obter carta de condução, por força do disposto nos artºs 126º, do CE e 18º RHLC.

7. Daqui resulta que, por imperativo legal, o arguido está impedido de aceder à faculdade legal de conduzir e, assim, à capacidade de ser titular de tal direito, enquanto decorrer o período fixado como pena acessória de proibição de conduzir.

8. Acresce que, no caso de inexistência de título válido, caso o arguido exerça a condução automóvel durante o período de cumprimento da pena acessória, incorre também na prática de um crime de condução sem habilitação legal, p.p. pelo artº 3º, do DL 2/98, de 03-01 e de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p.p. pelo artº 353º, do CP.

9. A condenação do arguido na pena acessória justifica-se por aplicação do princípio constitucional da igualdade estabelecido no nº 1, do artº 13º da CRP.

10. Tal pena – em face da matéria de facto provada, dos critérios gerais de determinação das penas (constantes dos artºs 40º e 71º, do CP), das finalidades próprias da pena acessória (com função preventiva adjuvante da pena principal) e da moldura legal prevista no artº 69º, nº 1, do CP - não deverá ser inferior a cinco meses de proibição de condução de veículos com motor.

11. Do exposto resulta que, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artºs 69º, nº 1, al. a), do CP e 13º, da CRP. Termos em que, deverão Vªs Exas., dando provimento ao presente recurso, revogar a sentença recorrida e substituí-la por outra que condene o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artº 69º, nº 1, al. a), do CP, assim se fazendo, JUSTIÇA.”


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1.3 O recurso foi admitido.

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1.4 O arguido não apresentou resposta.

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1.5. Na Relação o Exmo. Procurador da República emitiu o seguinte parecer:

“1. Manifestando concordância com as perspetivas jurídicas e conclusões pugnadas pela Exma. Magistrada do Mº Pº, consideramos também que a decisão recorrida enferma de nulidade, por omissão de pronúncia, por não nada dizer sobre a aplicabilidade ou não da pena acessória de inibição de conduzir, matéria que necessariamente devia apreciar.

2. Com efeito se o julgador condena o arguido pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artº 292º, mas omite a aplicação de sanção acessória de proibição de conduzir e a consequente falta de fundamentação sobre a mesma (o que constitui aliás imperativo constitucional, a douta sentença mostra-se inquinada, impedindo assim a sua fundada impugnação.

3.Analisada a douta sentença recorrida, verificamos que dela não consta qualquer justificação para a não aplicação ao arguido da pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados, ficando-se sem saber a que se deve tal omissão se a mero lapso da Mmº Juíza “a quo” ou a sua posição jurídica sobre a matéria.

4.Constitui entendimento da doutrina e jurisprudência de que a condenação em sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados não esta submetida à vontade do julgador, que tem sempre de a aplicar desde que cometa um dos crimes previstos no artigo 69º do Código Penal.

5. Destarte, atenta a omissão de pronúncia sobre tal sanção e a não fundamentação da não aplicabilidade, a decisão recorrida incorreu na nulidade prevista nos artigos 374º, nº2 e 3, al. b) e 379º, nº1 c) do CPP, devendo a mesma ser declarada nula e ordenada a sua substituição por outra que tenha em conta a sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados

Termos em que, somos de parecer no sentido de provimento do recurso.”


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1.6. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, nenhum dos sujeitos processuais interessados reagiu.

1.7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objecto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no presente caso importa decidir se é de condenar também na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, o arguido sem habilitação legal para o efeito.


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2. No que ora releva, resulta da sentença recorrida:

2.1 Factos provados:

1. No dia 2 de Setembro de 2019, cerca das 03H30, o arguido conduziu o motociclo de matrícula   (...) , na via pública, nomeadamente na Rua (…), sem ser titular de carta de condução e com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos 2,289 g/l.

2. Aquele motociclo encontrava-se, nesta data, apreendido.

3. Tal apreensão, efectuada pela PSP, ocorrera no dia 19 de Novembro de 2018 por falta de seguro de responsabilidade civil.

4. Naquela data, foi o arguido nomeado fiel depositário com a obrigação de o entregar quando lhe fosse exigido e advertido de que não poderia remover, alterar, utilizar, alienar destruir ou inutilizar ou por qualquer forma subtrair ao poder público o referido motociclo.

5. O arguido ficou ciente daquelas obrigações e proibições nomeadamente de que não poderia conduzir o veículo enquanto a apreensão se mantivesse.

6. O arguido não regularizou a situação e a apreensão não fora levantada.

7. Estava ciente que se encontrava sob influência do álcool, sendo portador de uma taxa superior a 1,289 g/l, e que a condução de veículos em estado de embriaguez não lhe era permitida, nomeadamente em vias de trânsito públicas.

8. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.


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9. O arguido nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas não teve intervenção em acidente de viação.

10. Confessou os factos integralmente e sem reservas e manifestou arrependimento.

11. É cozinheiro, vive com as duas filhas, de 21 anos de idade e aufere o salário mensal de 800,00 euros.

12. Frequente consultas de psiquiatria no CHUC - Polo Sobral Cid. Está medicado com anti depressivos.

13. Foi condenado no âmbito do Proc nº 212/18.0PFCBR, na pena de um ano de prisão, substituída por 360 dias de trabalho a favor da comunidade, por sentença transitada em julgado em 19-12-2018. Tem ainda as restantes condenações constantes do seu CRC junto aos autos a fls 21 a 25.


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3. Decidindo:

O Tribunal a quo não se pronunciou sobre a aplicabilidade da pena acessória de proibição de conduzir não obstante a respectiva indicação na acusação.

Alguma jurisprudência entende que a pena prevista no art. 69º, nº 1, do CP não deve ser aplicada a arguidos não habilitados para a condução de veículos motorizados, por a entender desnecessária, dado que por lei já se encontram proibidos de conduzir.

Tese que em teoria se apresentaria lógica não fora o facto de as penas acessórias serem verdadeiras penas e como tal sujeitas ao princípio da legalidade - art 1º do CP.

No caso dos autos, o arguido para além da condenação pela prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3º, nºs 1 e 2 do Dec.Lei nº 2/98 de 03/01 ex vi art. 130º nº 3, do Código da Estrada e de um crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º nº 1 al. b) do Código Penal, foi ainda condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. pelo art.º 292º, nº1 e 69º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.

E é relativamente a este crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. pelo art.º 292º, nº1 do CP que a acusação indica o art 69º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

Dispõe o referido preceito legal:

Artigo 69.º

Proibição de conduzir veículos com motor

1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:

a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º;

Conforme assinala o Ac Rel Lisboa, de 15 de Janeiro de 2019, relator Des Agostinho Torres, “Aquando da revisão do Código Penal de 1982, que deu lugar às alterações do DL n. 48/95, de 15 de Março, perante uma redacção idêntica à que ora existe no n.º 3 do art.69.° do Código Penal - pese embora a alínea a) do art. 68.°-A do projecto de revisão do Código Penal fosse mais abrangente cominando com a proibição de conduzir quem tiver cometido, com grave violação das regras do trânsito rodoviário, um crime no exercício daquela condução, como veio a constar do C.P. após a Revisão de 1995 - a questão da aplicação da inibição de conduzir a quem não tinha licença de condução foi abordada e sobre ela foi tomada posição.

Refere-se na acta n.º 8 da Comissão de Revisão que o Ex.mo Procurador Geral da República anteviu uma dificuldade lógica no n.º 3 para os não titulares de licença de condução, tendo então perguntado se vai proibir-se com pena acessória quem não tem licença de condução.

A necessidade de tal pena acessória, mesmo para os não titulares de licença de condução foi justificada pelo Prof. Figueiredo Dias, para obviar a um tratamento desigual que adviria da sua não punição. O que foi aceite pela Comissão - Cfr. Código Penal - Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993, páginas 75 e 76.

Assim, sob pena de tratamento desigual, os condutores que conduzem sob estado de embriaguez, estejam ou não habilitados com título legal de condução, devem ser inibidos da faculdade de conduzir.”

Sobre a questão referem Leal-Henriques/Simas Santos, - in “Código Penal Anotado”, Rei dos Livros, 1995, pág. 541, - que “Na Comissão Revisora a consagração da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, desconhecida do texto de 1982, foi referida como correspondendo a uma necessidade de política criminal. A sua necessidade mesmo para os não titulares de licença de condução foi justificada para obviar a um tratamento desigual que adviria da sua não punição, tendo-se procurado abranger essa hipótese com a redacção dada ao n.º 3 (desse art. 69.º) (acta n.º 8, pág. 75-76)”.

No mesmo sentido Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários, Pena Acessória e Medidas de Segurança, pág. 32 e nota 54.

Sobre as razões de ordem histórica e teleológica que justificam a tese de que no caso de punição por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, o condutor, ainda que não habilitado para conduzir, deva ser também sancionado com a pena acessória de proibição de conduzir, cfr Ac R.Évora, de 5 de Junho de 2018, relator Des Carlos Berguete.

Afigura-se-nos aliás que a jurisprudência mais recente - publicada - defende a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir a quem não possua habilitação legal e cometa os crimes prevenidos nos arts. 291.º e 292.º do CPP - cfr Ac da Relação de Coimbra de 3-07-2012 de 11-09-2013, de 07.06.2017, de 12.04.2018, ac. TRE de 7-04-2015, Ac. TRG de 11-06-2012 e de 4-05-2015.

Importa por fim realçar que do disposto no art. 126.°, n.º 1, al. d), do Código da Estrada, resulta estar o condenado impedido de obter carta de condução durante o período da pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados.

E lembrar a possibilidade de, entre a condenação e o trânsito em julgado da sentença, o arguido que foi condenado por crime de condução em estado de embriaguez, vir a obter carta ou licença de condução para veículos com motor, verificando-se também quanto a ele as finalidades de prevenção que estão na base da pena acessória.

Em conclusão, o tribunal a quo omitiu uma condenação em pena acessória prevista em lei substantiva, que deveria ter aplicado. O que constitui uma nulidade de sentença, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 379º, n.º 1, al. c) do CPP. ". O que constitui uma nulidade de sentença, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 379º, n.º 1, al. c) do CPP, que passamos a suprir nos termos do disposto no art 379º, nº 2, do CPP."

Importa então determinar a medida da pena acessória de proibição de conduzir, tendo em conta que a mesma obedece aos critérios definidos no artigo 71.º do Código Penal.

Ponderando-se para o efeito os factos provados, de que importa realçar a actuação do arguido com dolo directo e a de álcool no sangue, com reflexos no grau de ilicitude, além da confissão integral e do arrependimento, além da sua inserção profissional, consideram-se as elevadas exigências de prevenção geral e, no âmbito da prevenção especial, a existência de antecedentes, consubstanciados em anteriores condenações, a última das quais em 19-12 2018 (FP nº 13).

Da ponderação de todos estes elementos, considera-se ajustado fixar a proibição de conduzir nos cinco meses propostos pelo recorrente.

III - Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra em dar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em conformidade, decidem condenar o arguido, enquanto autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292.º do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses.

Sem tributação.

Coimbra, 18 de Março de 2020               

Processado e revisto pela relatora



Isabel Valongo (relatora)


Jorge França (adjunto)