Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3039/12.0TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO CARVALHO MARTINS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRESCRIÇÃO
SENTENÇA PENAL
CASO JULGADO
CONFISSÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 12/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 334, 355, 358, 498 CC, 623, 624 CPC
Sumário: 1.- O alongamento do prazo de prescrição, previsto no art. 498.°, n.º 3, do CC, depende apenas de o facto ilícito constituir crime - para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo - não obstando a esse alongamento o facto de já estar extinto o direito de queixa do crime.

2.- O disposto no n.º 3 do referido art. 498 do CC também se aplica aos responsáveis meramente civis, como o comitente e a seguradora.

3.- O que está em causa no art. 674.º-A, do CPC (623º NCPC), não é a eficácia do caso julgado penal, mas a definição da eficácia probatória legal extraprocessual da própria sentença penal condenatória transitada em julgado, com recurso ao estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos constitutivos em que se tenha baseado a condenação, invocável em relação a terceiros em qualquer acção de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infracção, independentemente das provas com base nas quais os factos tenham sido dados como assentes.

4.- A possibilidade de ilidir a presunção nunca é concedida ao arguido condenado mas, apenas, em homenagem ao princípio do contraditório, aos sujeitos processuais não intervenientes no processo penal, para lhes dar a oportunidade de demonstrar que, afinal, o arguido, não obstante ter sido condenado definitivamente não actuou com culpa e, portanto, não praticou os factos integradores da infracção porque foi condenado.

5.- A confissão judicial prestada num processo não vale fora dele, nem mesmo como confissão extrajudicial.

6.- O reconhecimento de uma litigância de má-fé tem de identificar-se com situações de clamoroso, chocante ou grosseiro uso dos meios processuais, por tal forma que se sinta que com a mesma conduta se ofendeu ou pôs em causa a imagem da justiça.

7.- Quando a parte se limita a litigar baseada na incerteza da lei, na dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, apresentando tese jurídica que está longe de se poder considerar manifestamente infundada, nada há a censurar ao respectivo comportamento processual.

8.- O fim último do abuso do direito não é o de que o direito não seja reconhecido ao seu titular, mas, tão só, a sua paralisação quando o seu exercício ofenda de forma clamorosa os princípios da boa fé que devem ser observados, quer no cumprimento da obrigação, quer no exercício do correlativo direito.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A Causa:

1.1 O autor, A (…), intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra a ré “(…) Companhia de Seguros de Vida, SA”, alegando, em síntese, ter sido vítima de acidente de viação integralmente imputável ao segurado da ré, (…), que não respeitou um sinal de STOP, dando origem a um embate entre o veículo que conduzia e o conduzido pelo autor.

Assim, concluiu o autor solicitando a condenação da ré no pagamento da quantia global de € 683.377,18, acrescida do valor que se vier a apurar a título de quantum doloris e dano estético, montante esse no qual computou os danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos em consequência do acidente descrito.

1.2. Regularmente citada para o efeito, a ré contestou, arguindo a exceção de prescrição e impugnando a matéria alegada, considerando que o embate ocorreu por força da conduta estradal do autor, que conduzia a velocidade excessiva e não se apercebeu da presença do ciclomotor na via, por ter ficado “encadeado” pelo sol. Mais alegou a ré que o autor não sofreu quaisquer danos com o embate, e que litiga com má fé, deduzindo pretensão com falta de fundamento e alterando a verdade dos factos..

Concluiu a ré considerando que a acção deveria ser julgada improcedentre e o réu condenado, como litigante de má fé, em multa e indemnização de € 4.000,00 a reverter a favor da Fundação “ X(...)”.

1.3 – A autora replicou, considerando ser aplicável o prazo de prescrição de cinco anos, por a conduta estradal do condutor do ciclomotor se reconduzir à prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. no artigo 291º, nº 1, b) Código Penal. O autor reiterou o já alegado quanto à dinâmica do embate e sua imputação à conduta do condutor do ciclomotor no mesmo interveniente, considerando ainda que quem litiga com má fé é a ré que altera a verdade dos factos após ter assumido, em 100% a responsabilidade pelo acidente de viação em análise.

*

2. Dispensada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, no qual foi afirmada a validade e regularidade da instância.

Foram seleccionados os factos assentes e elaborada a base instrutória, por despacho que não foi objecto de reclamação.

*

Oportunamente, foi proferida decisão onde se consagrou que

«Pelo exposto, julgo improcedente, por não provada, a presente ação, instaurada pelo autor A (…) contra a ré “(…), SA” , absolvendo-a do pedido.

Custas pelo autor, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário com que litiga – artigo 527º, CPC».

*

A (…), Autor nos autos à margem referenciados, em que é Ré “(…) S.A.”, notificado da sentença proferida, e não concordando com a mesma, dela veio interpor recurso de apelação, alegando e concluindo que:

(…)

*

A recorrida (…)S.A, notificada das alegações do recorrente, veio apresentar as suas contra-alegações, que pugnaram pela improcedência do recurso interposto, alegando e concluindo, por sua vez, que:

(…)

A (…) Autor nos autos à margem referenciados e aí melhor identificado, tendo sido notificado das contra-alegações da recorrida (…) S.A., veio pronunciar-se, em resposta à requerida ampliação do recurso, o que faz nos seguintes termos:

(…)

II. Os Fundamentos:

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

Matéria de Facto assente na 1ª Instância e que consta da sentença recorrida:

- O acidente em causa ocorreu em 20/11/2008 e a acção foi instaurada em 17/10/2012, ou seja: mais de três anos depois, mas antes de, sobre ele, decorrerem cinco anos;

- Na decisão condenatória proferida no âmbito do referido processo nº 18/09.8GTVIS, foram dados como provados, entre outros, os seguintes factos:

“1. A (…) conduzia o seu ciclomotor, de matrícula (...) CQ, no sentido Coimbrões/variante da zona industrial, com vista a entrar nesta via e dirigir-se para a sua quinta sita em Ranhados, Viseu.

2. A (…) ao chegar ao entroncamento entre a via onde circulava e a citada variante da zona industrial de Coimbrões imobilizou o seu ciclomotor junto à sinalização horizontal existente no local, marca rodoviária M8, constituída por linha de paragem acrescida da inscrição “STOP” e olhou para os dois lados da via onde se propunha entrar a fim de se assegurar que o fazia em condições de segurança.

3. Nesta altura, o arguido que circulava na citada via ficou encadeado com o sol, tendo deixado de ver a via e os utentes da mesma, saiu da faixa de rodagem, ultrapassou o traço descontínuo delimitador da mesma, do lado direito, atento o seu sentido de marcha, tentou reduzir a velocidade imprimida ao veículo, tendo nessa sequência deixado marcas de travagem no pavimento, nomeadamente as raias oblíquas (Marcas M17a) que formam os ilhéus direccionais que delimitam o entroncamento (destinados a orientar o trânsito no entroncamento).

4. De seguida e naquelas condições, o arguido foi colidir com o seu veículo no ciclomotor de (…) que se encontrava parado no entroncamento, nas condições supra descritas.

(…) 15. O arguido naquelas circunstâncias de tempo e lugar conduzia o veículo de forma temerária, desatenta, sem ter tido os cuidados que se impunham atenta a hora e a posição solar que encadeava os condutores que circulavam naquele sentido de trânsito, como sucedeu”.

*

Nos termos do art. 635º do NCPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto no art. 608°, do mesmo Código.

Das conclusões, ressaltam as seguintes questões:

Questão Prévia:

A Ré invocou a excepção da prescrição, nada se tendo decidido sobre a mesma na douta sentença, o que, nesta medida, implica a sua nulidade (art. 615, nº 1 -d) C.P. C.)

12ª- A recorrente pretende ampliar o âmbito do recurso, nos termos do art. 636º do Código de Processo Civil arguindo, a titulo subsidiário, tal nulidade.

13ª- Na verdade, o acidente ocorreu em 20/11/2008 e a acção foi instaurada em 17/10/2012, ou seja: mais de três anos depois.

19ª- E sendo assim, inexoravelmente terá que ser julgada provada e procedente a excepção da prescrição, o que se requer expressamente, já que, como se disse atrás, o Tribunal recorrido, enveredando por uma solução diversa, acabou por não tomar conhecimento deste fundamento da defesa da ré, o que constitui nulidade da mesma decisão, em violação do disposto no art. 615º , nº 1- d) do C.P.Civil.

Apreciando, refira-se, desde logo, inquestionavelmente, que a ré, não obstante a improcedência da acção, que viu naufragar a excepção da prescrição do direito do autor por si invocada, pode/deve, em face da apelação do autor, requerer a ampliação do recurso em ordem a evitar o trânsito em julgado de tal parte da decisão que a prejudicou, sob pena de a mesma se cristalizar (art. 684.°, n.º 4, do CPC – 636º NCPC) (Ac. STJ, de 8.6.2010, Rev. n.º 1113/1996.P1.S1-2.ª: Sumários. Junho/2010, p. 28).

Com efeito, recai sobe a recorrida o ónus de, na respectiva contra-alegação e a título subsidiário, ampliar o âmbito do recurso interposto pela contraparte, não apenas quando haja decaído quanto a um dos fundamentos em que estruturava a defesa deduzida, mas também quando a decisão proferida haja omitido indevidamente a apreciação de um desses fundamentos plúrimos, incorrendo em omissão de pronúncia, que tem de ser suscitada pelo interessado em dela se prevalecer, nos termos previstos no n.º 2 do art. 684.º-A do CPC (636º NCPC) (Ac. STJ, de 9.2.2011: Proc. 202/08.1 TBACN-A.C I.S l.dgsi.Net).

Incontroverso é, do mesmo modo, que o art. 668.°. n.º 1. aI. d). do CPC (615º NCPC), diz respeito às questões a que alude o n." 2 do art. 660.° dessa lei (608º NCPC). Não devendo confundir-se questões com argumentos, trata-se aí do dever de conhecer por forma completa do objecto do processo, definido pelo(s) pedido(s) deduzido(s) e respectiva(s) causa(s) de pedir. Terão, pois, de ser apreciadas todas as pretensões processuais das partes - pedidos, excepções, reconvenção - e todos os factos em que assentam, bem como os pressupostos processuais desse conhecimento. sejam eles os gerais, sejam os específicos de qualquer acto processual. quando objecto de controvérsia das partes (Ac. STJ, de 13.1.2005: Proc. 04B425I.dgsi.Net).

Por sua vez, o art. 684.º-A do CPC (636º NCPC), sob a epígrafe, "ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido" permite, efectivamente, o conhecimento, pelo tribunal de recurso, do fundamento da acção ou da defesa em que a parte vencedora decaiu (n.º 1), bem como da nulidade da sentença ou da impugnação da matéria de facto (n.º 2), desde que o recorrido formule tal pretensão na respectiva alegação (Ac. RP, de 9.7.2007: JTRP00040507.dgsi.Net).

Se, perante o teor do n.º 1 do art. 684.º-A do CPC (636º NCPC), o seu âmbito aponta indubitavelmente no sentido de se aplicar às situações em que, havendo vários fundamentos (ou várias causas de pedir) e, vingando um deles, o Tribunal a quo deu por procedente a pretensão tão só relativamente a um desses fundamentos, obrigando o Tribunal ad quem a conhecer de um fundamento da acção (ou da defesa), caso venha a julgar procedente o recurso interposto por quem ficou vencido, a razão de ser de tal preceito não pode deixar de conduzir também à sua aplicação aos casos em que o Tribunal, tendo por procedente a pretensão com base num dos fundamentos, se escusou de analisar e decidir os demais. Mesmo que se sustente que existe diferença entre estes últimos casos e aqueles em que se coloque em causa, não fundamentos (ou causas de pedir) de uma única pretensão, mas sim uma pretensão principal e uma pretensão deduzida a título subsidiária, o que é certo é que, mesmo numa tal perspectiva, sempre incumbirá ao Tribunal ad quem curar da pretensão subsidiária no caso de vencimento do recurso interposto pela parte vencida, e isso em face do disposto no n.º 2 do art. 715.°, do CPC (665º NCPC) (Ac. STJ, de 6.2.2008: AD, 558.°-1304, e Proc. 07S2620.dgsi.Net).

Nesta conformidade, retenha-se, como emergência dos Autos e em função do que vem expresso em alegação/conclusão adrede, que

- o acidente ocorreu em 20/11/2008 e a acção foi instaurada em 17/10/2012, ou seja: mais de três anos depois, mas antes de, sobre ele, decorrerem cinco anos;

No caso de acidente de viação, o prazo de prescrição do procedimento criminal, para efeitos do disposto no n.º 3 do art. 498.° do CC (prescrição), será 5 anos. Isto porque, como aí se dispõe “se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável”.

O alongamento do prazo de prescrição, previsto no art. 498.°, n.º 3, do CC, depende apenas de o facto ilícito constituir crime - para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo - não obstando a esse alongamento o facto de já estar extinto o direito de queixa do crime. O disposto no n.º 3 do referido art. 498.° também se aplica aos responsáveis meramente civis, como o comitente e a seguradora (Ac. STJ, 22-2-1994: BMJ, 434.°-625).

Circunstancialmente, convocando, o art. 291º, nº1 do Código Penal (condução perigosa e veículo rodoviário), nos termos específicos da sua alínea b), “(…) é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. Sendo que em função do disposto no art. 118º, nº1, (prazos de prescrição), o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: [al. c)] cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos.  Por isso se não verificando, no contexto factual, de referência temporal, a prescrição, nos Autos.

Esta sendo a resposta à questão formulada como prévia.

 

I.

1.º O Tribunal a quo decidiu indeferir a presente acção sem realizar audiência de discussão e julgamento e consequente produção de prova, apenas fundamentando-se na sentença criminal proferida no âmbito do processo 18/09.8GTVIS, que correu termos pelo 1º Juízo Criminal do Tribunal de Viseu.

2.º Entende o Recorrente que não se verifica a excepção do caso julgado, conforme fundamentado pelo Tribunal a quo, uma vez que uma vez que ignora a regra da não eficácia extraprocessual dessa decisão, atento o regime de limites objectivos do caso julgado, que exclui a importação sem mais e de modo vinculativo de uma decisão probatória.

3.º Sendo diferentes os pedidos em causa, as responsabilidades em discussão e as partes envolvidas.

Na emergência do que se dispõe nos artigos 623º e 624º do NCPC, a lei procurou conciliar a força e autoridade do caso julgado da sentença penal com as acções civis conexas com elas, transformando-a em meras presunções iuris tantum em relação a terceiros, que se confrontam com a decisão penal condenatória - a do art. 674.-A do CPC (623º NCPC) - e aos ofendidos, partes principais na acção penal, que se confrontam com a decisão penal absolutória - a do art. 674.º-B do CPC (624º NCPC) (Ac. STJ, de 29.6.2000: BMJ, 498.°-195).

Designadamente não podendo, no processo penal, falar-se, em bom rigor, de partes, de pedido, e de causa de pedir, elementos em função dos quais no processo civil se desenha o instituto do caso julgado, não deve, em vista da sua distinta natureza, reduzir-se a eficácia do caso julgado penal nas acções civis conexas a parâmetros próprios do instituto processual civil correspondente. Fixada em processo-crime, de natureza publicística, a verdade dos factos, a eficácia dessa averiguação em relação a qualquer outro procedimento em que esses factos se controvertam não depende da identidade das partes, mas sim, e apenas, da identidade dos factos. Como expressamente notado no preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12-12, a reforma do processo civil operada em 1995/96 retomou o regime constante do CPP 29: mas, por exigências decorrentes do princípio do contraditório, corolário lógico da proibição da indefesa ínsita nos arts. 2.° e 20.° da Constituição, retirou à decisão penal condenatória a eficácia erga omnes que o art. 153.° do CPP 29 lhe atribuía. A definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado é actualmente feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, ou, simetricamente, em caso de absolvição, da inexistência dos factos imputados ao arguido (Ac. STJ, de 13.11.2003: Proc. 03B2998/ITlJ/Net).

-

Deste modo, o que está em causa no art. 674.º-A, do CPC (623º NCPC), não é a eficácia do caso julgado penal, mas a definição da eficácia probatória legal extraprocessual da própria sentença penal condenatória transitada em julgado, com recurso ao estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos constitutivos em que se tenha baseado a condenação, invocável em relação a terceiros em qualquer acção de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infracção, independentemente das provas com base nas quais os factos tenham sido dados como assentes. A possibilidade de ilidir a presunção nunca é concedida ao arguido condenado mas, apenas, em homenagem ao princípio do contraditório, aos sujeitos processuais não intervenientes no processo penal, para lhes dar a oportunidade de demonstrar que, afinal, o arguido, não obstante ter sido condenado definitivamente não actuou com culpa e, portanto, não praticou os factos integradores da infracção porque foi condenado (Ac. STJ, de 14.2.2002, Rev. n.º 3849/01-2.ª: Sumários, 2/2002).

Quer isto dizer, pois, que as decisões penais, condenatórias ou absolutórias, constituem, relativamente a terceiros não directamente intervenientes, por si ou por mandatário, no processo em que as mesmas foram proferidas, simples presunções tantum iuris (ilidíveis) da existência ou inexistência dos factos imputados ao arguido, nada impedindo que terceiros ponham novamente esses factos à prova em acção cível, acontecendo apenas que ao autor cumprirá, então, ilidir essa presunção mediante prova em contrário. Só há caso julgado quando ocorra a repetição de uma causa depois de uma outra, idêntica quanto aos sujeitos, causa de pedir e pedido, ter sido decidida por sentença transitada em julgado (Ac. STJ, de 8.5.2002: AD, 493.°-148).

Após a reforma operada em 1995/96, em face do que se consignou no art. 674.º-A, do CPC (623º NCPC), a decisão penal condenatória, por exigências decorrentes do princípio do contraditório, deixou de ter eficácia erga omnes, tendo a absoluta e total indiscutibilidade dessa decisão sido transformada em mera presunção iuris tantum, ilidível por terceiro, da existência do facto e da sua autoria (Ac. STJ, de 19.9.2002, Rev. n.º 2170/02-7.ª: Sumários. 9/2002).

Delimitando a eficácia reflexa do caso julgado penal condenatório em subsequentes acções de natureza civil, o art. 674.º-A do CPC (623º NCPC) refere-se aos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como os respeitantes às formas do crime. Como assim, não obstante a condenação penal pressupor uma exaustiva e oficiosa indagação de toda a matéria de facto relevante, a eficácia probatória da sentença penal em subsequentes acções cíveis encontra-se, no mais, necessariamente limitada aos factos efectivamente apurados na acção penal (Ac. STJ, de 14.12.2006: Proc. 06B3487.dgsi.Net).

Daí que se considere processualmente compatível e adequada a circunstância de se haver fixado em decisório:

«Consequentemente, valendo o caso julgado na sua vertente positiva quanto ao autor e não tendo a aqui ré " (...) ", embora terceira relativamente ao decidido no dito processo crime, qualquer interesse em contraditar os factos legalmente presumidos que lhe são favoráveis (tanto mais que até já declarou expressamente pretender beneficiar de tal presunção), deverá ser proferida decisão que pondere os factos considerados provados na sentença proferida no processo comum singular nº 18/09.8GTVIS, que correu termos no 1 ° juízo do tribunal judicial da comarca de Viseu» (1º Juízo Criminal do Tribunal de Viseu).

O que responde negativamente às questões em I.

II.

4.º Por outro lado, andou mal o Tribunal a quo ao não ponderar a confissão irrectractável de responsabilidade feita pela Recorrida.

5.º A Recorrida, por diversas vezes assumiu a responsabilidade do acidente em 100%.

6.º A decisão proferida está em total contradição com os documentos 8 e 9 juntos em sede de Petição Inicial – onde expressamente a Recorrida assume tal responsabilidade.

7.º Assunção que se retira ainda dos documentos 6, 7, 10, 21 também da PI! Tais documentos não foram impugnados pela Recorrida!

8.º Pelo que valem como confissão: reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

9.º Nos termos do disposto no art.º 355º do CC, a confissão pode ser judicial ou extrajudicial.

10.º Nos termos do disposto no art.º 358º, n.º 2 do CC, a confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena.

12.º A decisão proferida viola o valor probatório da confissão - que tem força probatória plena!

13.º Violou assim o disposto nos art.ºs 355º e 358º do C.C.

A tal respeito, refira-se, desde logo, que a confissão judicial prestada num processo não vale fora dele, nem mesmo como confissão extrajudicial (Ac. RC.,23.07.1985: CJ, 85,4º-64). A limitação da força probatória especial de que goza a confissão judicial à instância em que foi produzida, ou seja, ao processo em que foi feita, explica-se porque a parte pode ter confessado (renunciado a discutir ou a contestar a realidade do facto, tendo apenas em vista os interesses que estão em jogo naquele processo. Mas poderia ter adoptado atitude diferente se outros valores estivessem em causa. Esta razão ajuda também a compreender o disposto na segunda parte do nº 3 do art. 355º do Código Civil (modalidades da confissão) (Pires de Lima Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 1967, pp. 231-232).

Com tal tessitura institucional, e tendo em conta o elemento narrativo e documental a que se alude, exactamente - os documentos 8 e 9 juntos em sede de Petição Inicial -, não se poderá arredar, nesse preciso contexto (tal como vem contra-alegado e concluído), interpretativamente e por confronto, que

«5ª- As cartas que foram enviadas ao Autor, (uma em 9/12/2008 e outra em 31/12/2008) não contêm declaração confessória de quaisquer factos, mas tão só uma intenção (posição) sobre a responsabilidade do acidente, do próprio funcionário regularizador do sinistro, tomada com base no facto de se tratar de uma posição extrajudicial em que tudo indicava os danos se resumia à perda total do veículo do Autor e eventualmente algumas despesas que iriam ser analisadas e no pressuposto errado de que o que constava da participação policial, nomeadamente quanto ao ponto de embate, correspondia à realidade.

6ª- Não contêm nenhuma confissão sobre valores a pagar, nem sobre factos ou circunstâncias concretas sob a forma como ocorreu o acidente.

7ª- Tal intenção foi motivada, pelo croqui constante da participação elaborada pela autoridade policial onde expressamente aparecia o ponto de embate como tendo ocorrido dentro da faixa de rodagem por onde circulava o autor, a 1,90 metros do limite da via do lado direito considerando o sentido que este levava, demonstrando, como constava do mesmo auto que o outro interveniente e segurado da recorrida não tinha obedecido ao sinal de Stop, que o obrigava a parar, e que se tinha metido a obstruir a trajectória do primeiro.

8ª- Acontece que, já na pendência da presente acção veio a saber-se que a realidade era outra - com a prolação da sentença penal - e que afinal o autor é que saiu da via onde circulava e foi embater contra o segurado da ré que estava parado fora da faixa de rodagem onde circulava o autor, a aguardar que este passasse.

9ª- Portanto, mesmo para o funcionário regularizador do sinistro houve erro nos pressupostos da sua decisão, pois se tivesse sabido antes que a realidade foi a que veio depois na sentença penal, nunca teria enviado tais cartas».

Do mesmo modo, assim concedendo, se impõe reconhecer que

«tal funcionário não pode vincular a própria ré, que é uma pessoa colectiva (sociedade anónima), por ausência dos necessários poderes»,

uma vez que, em função do que se consagra no art. 287º NCPC (desistência, confissão ou transacção das pessoas colectivas, sociedades, incapazes ou ausentes), pois que, quando o representante careça de autorização para, em nome do representado, dispor de certo direito, está-lhe vedada a celebração de confissão do pedido, desistência do pedido ou transacção que implique a disposição desse direito, sem a prévia obtenção da autorização exigida.

(…)

O preceito constitui manifestação da natureza negocial da confissão do pedido, da desistência do pedido e da transacção, que, como negócios jurídicos, estão sujeitos às limitações materiais à disponibilidade subjectiva dos direitos civis. O critério para distinguir as situações jurídicas subjetivamente disponíveis daquelas cuja disponibilidade subjectiva conhece limitação é, pois, fornecido pelas normas do direito substantivo» (José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 2014, p. 565). O que configura naipe de pressupostos que impedem - na revelação dos Autos -, do mesmo modo, violação do disposto no art. 358º Código Civil (força probatória da confissão).

Sendo, por isso, negativa a resposta às questões em II.

III.

11.º Litiga a Recorrida com manifesta má-fé, num claro abuso de direito, atenta a assunção feita e a postura agora tida.

O reconhecimento de uma litigância de má-fé tem de identificar-se com situações de clamoroso, chocante ou grosseiro uso dos meios processuais, por tal forma que se sinta que com a mesma conduta se ofendeu ou pôs em causa a imagem da justiça. Quando a parte se limita - como nos Autos - a litigar baseada na incerteza da lei, na dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, apresentando tese jurídica que está longe de se poder considerar manifestamente infundada, nada há a censurar ao respectivo comportamento processual (Ac. RL, de 8.7.2004: Proc. 357112004-4.dgsi.Net).

Por outro lado, sem controvérsia, os recursos visam o reestudo, por um Tribunal Superior, de questões já vistas e resolvidas pelo tribunal a quo, e não a pronúncia do tribunal ad quem sobre questões novas. Esta regra, que decorre, e designadamente, dos arts. 676.º, n.º1, e 684.°, n.º 3, do Cód. Proc. Civil (627º e 635º NCPC), comporta duas excepções: 1.ª - situações em que a lei expressamente determina o contrário; 2.ª - situações cm que em causa está matéria de conhecimento oficioso. O abuso de direito constitui matéria de conhecimento oficioso do tribunal (Ac. STJ, 7-1-1993: BMJ, 423.º-540, e CJ/STJ, 1993,1.º-5).

Nos termos do art. 334.º do Cód. Civil, há abuso de direito e é, portanto, ilegítimo o seu exercício «quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.» Agir de boa fé - tanto no contexto deste artigo, como no do art. 762.º, n.º 2, é «agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, urna linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte, e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar.» Os bons costumes entendem-se, por seu turno, como um «conjunto de regras de conveniência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente, contrários a laivos ou conotações, imoralidade ou indecoro social». Finalmente, o fim social ou económico do direito, no âmbito dos direitos de crédito - o conteúdo da obrigação desdobra-se no direito à prestação e no dever de prestar - consiste, precisamente, na satisfação do interesse do credor medi~nle a realização da prestação por banda do devedor (art. 397.º do Cód. Civil). Todavia, porque o Cód. Civil consagrou a concepção objectivista do abuso do direito, não é necessária a consciência malévola, a consciência de se ultrapassarem manifestamente, no exercício do direito, os parâmetros apontados, meramente «bastando que se excedam os seus limites, se bem que a intenção com que o titular do direito agiu não deixe de contribuir para a questão de saber se há ou não abuso de direito». O abuso do direito é de conhecimento oficioso por ser ofensivo do princípio de interesse e ordem pública (Ac. STJ. 10-12-1991: BMJ, 412°- 460).

Em todo o caso, o fim último do abuso do direito não é o de que o direito não seja reconhecido ao seu titular, mas, tão só, a sua paralisação quando o seu exercício ofenda de forma clamorosa os princípios da boa fé que devem ser observados, quer no cumprimento da obrigação, quer no exercício do correlativo direito (Ac. RL, 12-6-1997: CJ, 1997,3.°-110). O que, na situação sub judice, tendo em conta o que se apreciou, não acontece.

Termos em que se configura como negativa a resposta às questões em II.

Pode, assim, concluir-se, sumariando (art. 663º, nº7 NCPC) que:

1.

O alongamento do prazo de prescrição, previsto no art. 498.°, n.º 3, do CC, depende apenas de o facto ilícito constituir crime - para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo - não obstando a esse alongamento o facto de já estar extinto o direito de queixa do crime. O disposto no n.º 3 do referido art. 498.° também se aplica aos responsáveis meramente civis, como o comitente e a seguradora.

2.

Circunstancialmente, convocando, o art. 291º, nº1 do Código Penal (condução perigosa e veículo rodoviário), nos termos específicos da sua alínea b), “(…) é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. Sendo que em função do disposto no art. 118º, nº1, (prazos de prescrição), o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: [al. c)] cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos.  Por isso se não verificando, no contexto factual, de referência temporal, a prescrição, nos Autos.

3.

Não podendo, no processo penal, falar-se, em bom rigor, de partes, de pedido, e de causa de pedir, elementos em função dos quais no processo civil se desenha o instituto do caso julgado, não deve, em vista da sua distinta natureza, reduzir-se a eficácia do caso julgado penal nas acções civis conexas a parâmetros próprios do instituto processual civil correspondente. Fixada em processo-crime, de natureza publicística, a verdade dos factos, a eficácia dessa averiguação em relação a qualquer outro procedimento em que esses factos se controvertam não depende da identidade das partes, mas sim, e apenas, da identidade dos factos. Como expressamente notado no preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12-12, a reforma do processo civil operada em 1995/96 retomou o regime constante do CPP 29: mas, por exigências decorrentes do princípio do contraditório, corolário lógico da proibição da indefesa ínsita nos arts. 2.° e 20.° da Constituição, retirou à decisão penal condenatória a eficácia erga omnes que o art. 153.° do CPP 29 lhe atribuía. A definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado é actualmente feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, ou, simetricamente, em caso de absolvição, da inexistência dos factos imputados ao arguido.

4.

Deste modo, o que está em causa no art. 674.º-A, do CPC (623º NCPC), não é a eficácia do caso julgado penal, mas a definição da eficácia probatória legal extraprocessual da própria sentença penal condenatória transitada em julgado, com recurso ao estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos constitutivos em que se tenha baseado a condenação, invocável em relação a terceiros em qualquer acção de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infracção, independentemente das provas com base nas quais os factos tenham sido dados como assentes. A possibilidade de ilidir a presunção nunca é concedida ao arguido condenado mas, apenas, em homenagem ao princípio do contraditório, aos sujeitos processuais não intervenientes no processo penal, para lhes dar a oportunidade de demonstrar que, afinal, o arguido, não obstante ter sido condenado definitivamente não actuou com culpa e, portanto, não praticou os factos integradores da infracção porque foi condenado.

5.

A confissão judicial prestada num processo não vale fora dele, nem mesmo como confissão extrajudicial. A limitação da força probatória especial de que goza a confissão judicial à instância em que foi produzida, ou seja, ao processo em que foi feita, explica-se porque a parte pode ter confessado (renunciado a discutir ou a contestar a realidade do facto, tendo apenas em vista os interesses que estão em jogo naquele processo. Mas poderia ter adoptado atitude diferente se outros valores estivessem em causa. Esta razão ajuda também a compreender o disposto na segunda parte do nº 3 do art. 355º do Código Civil (modalidades da confissão).

6.

Em função do que se consagra no art. 287º NCPC (desistência, confissão ou transacção das pessoas colectivas, sociedades, incapazes ou ausentes), pois que, quando o representante careça de autorização para, em nome do representado, dispor de certo direito, está-lhe vedada a celebração de confissão do pedido, desistência do pedido ou transacção que implique a disposição desse direito, sem a prévia obtenção da autorização exigida.

7.

O preceito constitui manifestação da natureza negocial da confissão do pedido, da desistência do pedido e da transacção, que, como negócios jurídicos, estão sujeitos às limitações materiais à disponibilidade subjectiva dos direitos civis. O critério para distinguir as situações jurídicas subjetivamente disponíveis daquelas cuja disponibilidade subjectiva conhece limitação é, pois, fornecido pelas normas do direito substantivo»). O que configura naipe de pressupostos que impedem - na revelação dos Autos -, do mesmo modo, violação do disposto no art. 358º Código Civil (força probatória da confissão).

8.

O reconhecimento de uma litigância de má-fé tem de identificar-se com situações de clamoroso, chocante ou grosseiro uso dos meios processuais, por tal forma que se sinta que com a mesma conduta se ofendeu ou pôs em causa a imagem da justiça. Quando a parte se limita - como nos Autos - a litigar baseada na incerteza da lei, na dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, apresentando tese jurídica que está longe de se poder considerar manifestamente infundada, nada há a censurar ao respectivo comportamento processual.

9.

Os recursos visam o reestudo, por um Tribunal Superior, de questões já vistas e resolvidas pelo tribunal a quo, e não a pronúncia do tribunal ad quem sobre questões novas. Esta regra, que decorre, e designadamente, dos arts. 676.º, n.º1, e 684.°, n.º 3, do Cód. Proc. Civil (627º e 635º NCPC), comporta duas excepções: 1.ª - situações em que a lei expressamente determina o contrário; 2.ª - situações cm que em causa está matéria de conhecimento oficioso. O abuso de direito constitui matéria de conhecimento oficioso do tribunal.

10.

O fim último do abuso do direito não é o de que o direito não seja reconhecido ao seu titular, mas, tão só, a sua paralisação quando o seu exercício ofenda de forma clamorosa os princípios da boa fé que devem ser observados, quer no cumprimento da obrigação, quer no exercício do correlativo direito. O que, na situação sub judice, tendo em conta o que se apreciou, não acontece.

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III. A Decisão:

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

 

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António Carvalho Martins ( Relator )

Carlos Moreira

João Moreira do Carmo