Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA DOMINGAS SIMÕES | ||
Descritores: | RECURSO COMPARTES INSOLVÊNCIA NÃO IMPUGNAÇÃO DA LISTA DE CREDORES EFEITO NÃO COMINATÓRIO COMUNHÃO CONJUGAL PATRIMÓNIO COLECTIVO PENHORA VENDA EXECUTIVA | ||
Data do Acordão: | 05/17/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE LEIRIA – ALCOBAÇA – INST. CENTRAL – 2ª SEC. COMÉRCIO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTºS 634º NCPC; 130º, Nº 3 CIRE; 1730º, Nº 1 DO C.CIVIL; 743º NCPC. | ||
Sumário: | I – Nos termos do artº 634º do nCPC, o recurso interposto por uma das partes aproveita aos seus compartes no caso de litisconsórcio necessário (vide n.º 1). Fora do caso de litisconsórcio necessário, o recurso interposto aproveita ainda aos outros “se estes, na parte em que o interesse seja comum, derem a sua adesão ao recorrente”. II - Dispõe o nº 3 do art.º 130º do CIRE, disposição legal que se ocupa da “impugnação da lista de credores reconhecidos”, que não havendo impugnações “é de imediato proferida sentença de verificação e graduação de créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista”. III - Não se discute que a letra da lei parece atribuir efeito cominatório à falta de impugnações, salvo o caso de erro manifesto. Todavia, cedo foi notada a inadequação da solução, quando entendida como redutora do papel do juiz a uma mera formalidade, competindo-lhe apenas apor a chancela à lista elaborada pelo Sr. AI, e isto desde logo face à constatação de que, tratando-se de matéria de enorme relevo e idêntica complexidade jurídica, a ausência de impugnações não dá quaisquer garantias de que a lista se encontre correctamente elaborada. IV – No nº 3 do artº 130º do CIRE deve interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar, para o que pode e deve solicitar ao administrador os elementos de que necessite, fazendo-se ainda notar que o erro de que aqui se fala pode respeitar “à indevida inclusão do crédito na lista, ao seu montante ou às suas qualidades”. V - A comunhão conjugal constitui um património de mão comum ou propriedade colectiva, dando origem a um único direito encabeçado pelos dois cônjuges: não se trata, portanto, de cada cônjuge ter direito a metade de cada bem concreto dos que integram o património comum do casal, mas antes do direito ao valor de metade deste património. “O direito a metade é (…) um direito ao valor de metade” (cf. art.º 1730.º, n.º 1 do CC). VI - É de admitir a realização da venda dos bens que compunham o património comum de um ex-casal de insolventes, com partilha do produto da venda por ambas as massas insolventes, a despeito de estas serem compostas, num e outro processo, pelo direito à meação nos bens comuns de cada um dos ex-cônjuges. VII - Recusando embora a atribuição da natureza exclusivamente executiva ao processo insolvencial, atendendo aos “importantes efeitos substantivos da declaração de insolvência”, e concluindo portanto pela sua natureza mista, é isento de dúvida que os “actos do processo relativos ao activo da massa insolvente têm natureza prevalentemente executiva”. VIII - Inexiste assim obstáculo à aplicação do disposto no art.º 743º do CPC, nomeadamente da solução consagrada no seu n.º 2, aos processos de insolvência nos quais foi arrolado o “direito à meação” de cada um dos ex-cônjuges (cf. art.º 17º do CIRE). IX - Tal solução não contraria as disposições do CIRE, que acolhe regime idêntico quando está em causa uma situação de insolvência envolvendo os dois cônjuges, prevendo a liquidação dos bens comuns - e não do direito de cada um à meação - ainda que separada da liquidação dos bens próprios de um e outro cônjuges, caso existam, sendo inegável a identidade entre esta situação e aquela outra em que o divórcio foi decretado antes da declaração de insolvência que atingiu ambos os membros do dissolvido casal, sendo comuns os credores e o património comum não tenha sido partilhado. X - Efectuada a venda dos bens comuns por escritura na qual intervieram ambos os administradores, deverá a mesma manter-se, e tendo o produto revertido a favor das massas insolventes na proporção de metade para cada uma, será sobre ele que será feita a graduação, mantendo a credora recorrente a garantia hipotecária nos termos do n.º 3 do artigo 823.º do CC e, consequentemente, o direito a ser paga com a preferência que a lei lhe atribui (cf. art.º 686º do mesmo diploma legal). | ||
Decisão Texto Integral: | Comarca de Leiria - Alcobaça – Instância Central – 2.ª Secção de Comércio – J1 I. Relatório Por sentença proferida nos autos principais foi declarada a insolvência de L... e fixado em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos. O Sr. AI fez juntar aos autos a lista de credores reconhecidos, a qual não foi objecto de qualquer impugnação. Foi de seguida proferida sentença na qual, partindo o Mm.º juiz da constatação de que se encontra apreendido nos autos o direito à meação do insolvente nos bens comuns do casal e não qualquer bem ou quota-parte desses bens, com apoio nos acórdãos da Relação de Lisboa de 13/2/2014 e de Coimbra de 24/9/2013, concluiu que os créditos reclamados pelas credoras C... e M..., reconhecidos pelo Sr. AI como garantidos por hipotecas incidentes sobre os imóveis que constituem o património comum do dissolvido casal formado pelo insolvente e seu ex-cônjuge, se encontravam afinal desprovidos de qualquer garantia, vindo em consequência a reconhecê-los como créditos comuns. E porque todos os créditos reconhecidos participavam desta mesma natureza, determinou que seriam pagos em igualdade pelo produto do bem apreendido, procedendo-se a rateio, se necessário. Inconformada, apelou a credora reclamante C... e, tendo desenvolvido nas alegações as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões: “1.ª- A credora ora apelante reclamou oportunamente os seus créditos, sendo parte dos créditos garantidos por hipotecas registadas sobre dois bens imóveis. 2.ª- A Lista de Créditos Reconhecidos (artigo 129.º do CIRE), reconheceu que parte dos seus créditos reclamados é garantida por hipotecas constituídas sobre os bens imóveis dados em garantia. 3.ª- No registo predial da insolvência sobre os bens imóveis vendidos não consta a menção ao direito à meação, mas apenas e somente que “Incide sobre a meação”. 4.ª- A Lista de Créditos não foi impugnada por qualquer dos intervenientes processuais e na mesma não foi cometido qualquer outro lapso manifesto na quantificação de valores ou relacionamento com as respectivas garantias reais, pelo que o Juiz do Tribunal recorrido violou o disposto no artigo 130º, nº 3 e 140º, nº 2 do CIRE. 5.ª- Foi errada a subsunção do direito aos factos, na correcção de um erro inexistente e no consequente juízo de ilegalidade que recaiu sobre a aplicação dos artigos 130º, nº 3º, e 140º do CIRE, e 686º, 690º, 696º do Código Civil. 6.ª- O Tribunal recorrido foi mal ao fazer depender as qualificações dos créditos da errada menção à apreensão de meações e não dos efectivos produtos das vendas de bens imóveis concretamente realizadas em momento anterior ao proferimento dessa decisão. 7.ª- Através da junção sucessiva das três escrituras de compra e venda dos três concretos bens imóveis que foram vendidos, livres de qualquer ónus e/ou encargo, bem como toda a demais documentação de suporte às vendas constante do apenso de Liquidação, intervieram nos actos formais de venda todos aqueles legalmente habilitados para as realizar, nos termos do disposto no artigo 1682º-A e 1730º do Código Civil e artigo 81º, nº 1, do CIRE, com a manifesta concordância de mais de 95% dos direitos de voto, o que se invoca nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 640º, nº 1, alínea b) do CPC. 8.ª- Dando-se provimento à presente apelação, a douta sentença proferida deverá ser revogada, com fundamento em erro de julgamento de direito e de facto, e substituída por outra onde se efectue uma correcta graduação de créditos, através da homologação da Lista de Créditos Reconhecidos, devendo ser especial para os créditos garantidos pelos produtos das três vendas concretamente realizadas, sem prejuízo da precipuidade das custas”. A credora M... veio posteriormente aderir ao recurso interposto, invocando o disposto no art.º 634.º, n.º 2, al. a) do CPC, requerendo a final que a sentença recorrida seja substituída por outra que “reconheça as hipotecas tituladas pela M... e C..., bem como sejam os seus créditos graduados como garantidos”. Questão prévia: Da adesão pela M... Nos termos do art.º 634.º do CPC, o recurso interposto por uma das partes aproveita aos seus compartes no caso de litisconsórcio necessário (vide n.º 1). Fora do caso de litisconsórcio necessário, o recurso interposto aproveita ainda aos outros “se estes, na parte em que o interesse seja comum, derem a sua adesão ao recorrente”. Pela adesão o aderente, que não recorreu, beneficia do recurso interposto por uma comparte “na parte em que o interesse seja comum”. O recurso adesivo pressupõe portanto um interesse comum. Não se trata de uma total comunhão de interesses, como ocorre nas situações de litisconsórcio necessário, mas apesar da autonomia da situação de cada um dos compartes nos casos de litisconsórcio voluntário ou coligação, identifica-se um interesse que é, ainda que parcialmente, comum. “Em tais circunstâncias, os compartes podem aderir à iniciativa daquele ou daqueles que interpuserem recurso, a fim de extraírem proveito do que vier a ser decretado”[1]. Por outro lado, porque do que aqui se trata é de estender os efeitos do recurso oportunamente interposto, e não permitir à parte que viu precludido o direito de recorrer, designadamente pelo decurso do prazo, que venha, por esta via, introduzir em juízo um recurso autónomo, é de todo inadmissível que o aderente proceda à ampliação do objecto do recurso, já fixado pelas alegações do recorrente. Tendo presentes tais considerandos, e sem nos determos na questão de saber se aos credores no âmbito de um processo de insolvência é de reconhecer a qualidade de compartes, a verdade é que os interesses da recorrente C... e da aderente M..., não só não são comuns, como são até conflituantes[2]. Com efeito, a reconhecer os créditos da recorrente como garantidos, eles serão satisfeitos com preferência sobre os demais, nos quais se inclui o crédito desta última, qualificado e graduado como comum. Por outro lado, a mera procedência do recurso da C... em nada aproveita à aderente M..., que, reconhecendo isso mesmo, se viu na contingência de alargar o objecto do recurso, pedindo a este Tribunal que atribuísse ao seu crédito a natureza de garantido pela hipoteca que incide sobre um dos imóveis que constitui o património comum do casal antes formado pelo insolvente e pela sua ex-mulher, e como tal o reconhecesse e graduasse para ser pago pelo produto da venda respectiva. O que, todavia, teria que ter feito em recurso autónomo e não fez em tempo. Atento o exposto, e por não se verificarem os requisitos legais, declara-se que o presente recurso não aproveita à aderente M... Custas do incidente a cargo da aderente. * Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, a única questão submetida à apreciação deste Tribunal consiste em determinar se parte dos créditos reconhecidos à recorrente C... devem ser tidos como garantidos por hipoteca, devendo consequentemente ser satisfeitos pelo produto dos bens imóveis sobre os quais incidia e com a preferência que resulta de tal garantia. II Fundamentação De facto: Sendo embora a sentença completamente omissa quanto à indicação dos factos em que assenta, resultam demonstrados pelos elementos juntos a este apenso os seguintes: A recorrente defende terem sido violados na decisão apelada os artigos 130.º, n.º 3 e 140.º, n.º 2 do CIRE[3], porquanto, diz, deles resulta encontrar-se vedado ao juiz proceder à alteração da natureza atribuída aos créditos reconhecidos pelo Sr. AI se nenhuma impugnação foi deduzida contra a lista por este apresentada. Não lhe assiste todavia, e em nosso entender, razão. Dispõe o n.º 3 do art.º 130.º, disposição legal que se ocupa da “impugnação da lista de credores reconhecidos”, que, não havendo impugnações “é de imediato proferida sentença de verificação e graduação de créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista”. Não se discute que a letra da lei parece atribuir efeito cominatório à falta de impugnações, salvo o caso de erro manifesto. Todavia, cedo foi notada a inadequação da solução, quando entendida como redutora do papel do juiz a uma mera formalidade, competindo-lhe apenas apor a chancela à lista elaborada pelo Sr. AI, e isto desde logo face à constatação de que, tratando-se de matéria de enorme relevo e idêntica complexidade jurídica, a ausência de impugnações não dá quaisquer garantias de que a lista se encontre correctamente elaborada[4]. Conforme antes tivemos oportunidade de referir[5], não questionando que as soluções adoptadas pelo CIRE obedecem, em primeira linha, a preocupações de celeridade, orientando-se inequivocamente no sentido da desjudicialização e, nessa medida, subtraindo ao juiz matérias cuja apreciação tradicionalmente lhe era cometida, ensaiando consagrações do princípio do cominatório, neste âmbito se inscrevendo inequivocamente a solução consagrada neste n.º 3 do art.º 130.º, a verdade é que o normativo em causa desde cedo suscitou larga controvérsia doutrinária e jurisprudencial, inexistindo consenso quanto à amplitude dos poderes que, nesta sede, podem ser exercidos pelo juiz. Assim, enquanto uns defendem uma interpretação literal do preceito, restringindo a intervenção oficiosa do juiz aos casos em que a lista apresentada pelo administrador revele um erro -nessa medida manifesto ou aparente- de facto ou de direito na qualificação e/ou quantificação dos créditos[6], não lhe cabendo pois realizar quaisquer indagações oficiosas tendentes a confirmar a natureza, montante e qualidade dos créditos relacionados e não impugnados, outros entendem que “o juiz não deve abrir mão dos poderes inquisitórios, enquanto garante da legalidade, devendo acautelar uma correcta verificação e graduação dos créditos, com respeito pelos pressupostos formais e substanciais”. Tal é a solução que vem obtendo acolhimento por banda do STJ[7], devendo “interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar, para o que pode [deve, dizemos nós][8], solicitar ao administrador os elementos de que necessite, fazendo-se ainda notar que o erro de que aqui se fala pode respeitar “à indevida inclusão do crédito na lista, ao seu montante ou às suas qualidades[9]. Sendo esta, cremos, a boa doutrina, não estava vedado ao Mm.º juiz proceder à diversa qualificação dos créditos reconhecidos - que, no caso vertente, e segundo o entendimento que veio a ser perfilhado na sentença proferida, decorreria até de erro manifesto, uma vez que pressupunha a apreensão de bens que na verdade não haviam sido apreendidos - ainda que, para tanto, tivesse que promover a obtenção de esclarecimentos tidos por necessários. Improcedem assim os primeiros argumentos recursivos invocados pela recorrente, cumprindo indagar agora da existência do também invocado erro de julgamento. Nos termos do art.º 46.º/1 a massa insolvente é constituída por todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, integrando ainda os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. Trata-se, ao fim e ao cabo, de todos os bens susceptíveis de penhora capazes de responderem pelo cumprimento das obrigações, na formulação do art.º 601.º do CC, podendo ainda integrar bens isentos de penhora, apreensão aqui condicionada a um duplo requisito: terem sido voluntariamente apresentados pelo insolvente e a impenhorabilidade não ser absoluta (cf. n.º 2 do referido art.º 46.º). E são estes mesmos bens que, decretada a insolvência, deverão ser de imediato apreendidos, conforme decorre do disposto nos artigos 36.º, n.º 1, al. g) e 149.º. Nos presentes autos, e conforme consta do auto de apreensão/arrolamento, a massa é composta por três verbas, correspondentes “à meação do insolvente” em cada um dos três prédios nelas identificados, o que veio a ser interpretado pelo Mm.º juiz como correspondendo ao “direito à meação” do insolvente no património comum do casal que formou com o ex-cônjuge. E assim tendo considerado, foi meramente consequente a qualificação dos créditos da recorrente como comuns, desprovidos da invocada garantia hipotecária atento o disposto no art.º 690.º do CC, na esteira aliás daquela que é a jurisprudência dominante[10]. A comunhão conjugal constitui um património de mão comum ou propriedade colectiva, dando origem a um único direito encabeçado pelos dois cônjuges: não se trata, portanto, de cada cônjuge ter direito a metade de cada bem concreto dos que integram o património comum do casal, mas antes do direito ao valor de metade deste património[11]. “O direito a metade é (…) um direito ao valor de metade”[12] (cf. art.º 1730.º, n.º 1 do CC). No caso em apreço, à data da declaração de insolvência já o casamento do insolvente se encontrava dissolvido por divórcio, sendo que, nos termos do art.º 1689.º, n.º 1 do CC “Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum”. Todavia, sabe-se que não tinha ocorrido partilha, mantendo-se portanto a situação de comunhão (ou indivisão pós-comunhão, o que para o caso não releva). Parece assim evidente a incorrecção da identificação do “bem” – único - que teria integrado a massa insolvente nos presentes autos, a saber, o direito do declarado insolvente L... à meação dos bens comuns que constituíam o património do dissolvido casal (posto que, ao que se apurou, não era titular de quaisquer bens ou direitos próprios), e não uma qualquer quota nos mesmos bens, concretamente considerados. Com efeito, “na comunhão conjugal não é admissível a penhora ou a apreensão do “direito à meação” em cada um dos concretos bens que façam parte do património comum, por tal direito não existir, enquanto tal, no património de cada um dos cônjuges” [13]. Dados os referidos termos do auto de arrolamento não interessará muito discutir aqui se poderão (ou mesmo deverão[14]) ser apreendidos para a massa insolvente os bens comuns, dando oportunidade ao cônjuge (ou ex-cônjuge no caso de não ter ocorrido partilha) de requerer a separação, citando-o nos termos do art.º 740.º do CPC[15], aplicável ex vi do disposto no art.º 17.º do CIRE (ou ainda, dispensando a norma remissiva, por aplicação prática “duma norma geral implícita, de acordo com a qual o regime da penhora é subsidiariamente aplicável às outras figuras de apreensão judicial”[16]), isto no caso deste não usar, por sua iniciativa, da faculdade conferida pela al. b) do n.º 1 do art.º 141.º ou não haver lugar à sua determinação oficiosa nos termos do n.º 3 do mesmo preceito[17]. No caso em apreço, não desencadeou o ex-cônjuge do insolvente o direito à separação das meações, afigurando-se até que, tendo sido ele próprio declarado insolvente poucos dias depois da sentença proferida nestes autos, não teria já poderes para o fazer (cf. art.º 81.º, n.ºs 1 e 4). Por outro lado, integrando a massa insolvente o direito à meação, a verdade é que os termos equívocos do auto de arrolamento/apreensão deram origem a uma inscrição registral igualmente equívoca, que permitiu a realização da venda de cada um dos bens concretos e determinados ali identificados, e que vieram a ser objecto das escrituras especificadas nos autos. Não se vem furtando a críticas a solução legal conducente à apreensão a favor da massa do “direito à meação”, dado que não só torna mais difícil o surgimento de potenciais interessados, como o valor realizado pela alienação do direito sofre considerável depreciação quando em confronto com o produto da venda do bem em si mesmo considerado, revertendo portanto em prejuízo para os credores e para o próprio insolvente[18]. Tendo seguramente presente tal realidade, e porque o ex-cônjuge do aqui declarado insolvente L... havia sido, também ele, declarado insolvente por sentença proferida dias depois em processo autónomo, sendo comuns os credores e sendo a massa insolvente igualmente constituída pelo direito daquele outro à meação nos bens comuns, foi deliberada em ambos os processos a venda dos bens, intervindo nas respectivas escrituras os administradores de uma e outra massas[19]. Tal é, pois, a situação com que nos deparamos nos autos: realização da venda dos bens que compunham o património comum do ex-casal de insolventes, com partilha do produto da venda por ambas as massas insolventes, a despeito de estas serem compostas, num e outro processo, pelo direito à meação nos bens comuns de cada um dos ex-cônjuges. O art.º 1.º do CIRE afirma ser o processo de insolvência um processo de execução universal, tendo como finalidade a satisfação dos credores “pela forma prevista num plano de insolvência, baseada, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor e repartição do produto obtido pelos credores”. Não obstante a definição legal, não tem sido aceite sem reserva a atribuição da natureza executiva ao processo insolvencial. Na consideração de que tais concepções “menosprezam a fase declarativa do processo de insolvência”, e fazendo relevar os “importantes efeitos substantivos da declaração de insolvência”, vem sendo entendido que tais traços são quanto basta para que lhe seja atribuída a natureza mista de acção declarativa e executiva. Todavia, é, em qualquer caso, isento de dúvida que os “actos do processo relativos ao activo da massa insolvente têm natureza prevalentemente executiva”[20]. Nos termos do disposto no art.º 743.º do CPC, que se ocupa da penhora em caso de comunhão ou compropriedade, ressalvado o disposto no n.º 4 do art.º 781.º[21] “(…) na execução movida apenas contra alguns dos contitulares de património autónomo ou bem indiviso, não podem ser penhorados os bens compreendidos no património comum ou uma fracção de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso” (n.º 1). Todavia, logo se prevê no n.º 2 que “Quando, em execuções diversas, sejam penhorados todos os quinhões no património autónomo ou todos os direitos sobre o bem indiviso, realiza-se uma única venda, no âmbito do processo em que se tenha efectuado a primeira penhora, com posterior divisão do produto obtido”. Embora o n.º 1 do preceito se afigure hoje destituído de interesse prático no âmbito dos processos executivos no que se refere à comunhão conjugal, dada a possibilidade conferida ao credor pelo artigo 740.º do CPC (e, antes deste, pelo art.º 825.º do CPC cessante) de, na execução movida contra apenas um dos cônjuges, e na insuficiência de bens próprios do devedor, nomear à penhora bens comuns do casal - caso em que se procederá à citação do outro cônjuge para, em 20 dias, requerer a separação de bens ou fazer prova de a já ter requerido - nada obsta, em nosso entender, à sua aplicação, designadamente da solução consagrada no n.º 2, ao processo de insolvência no qual se procedeu à apreensão do “direito à meação” (cf. art.º 17.º do CIRE). Trata-se de solução que não contraria as disposições deste diploma, que acolhe regime idêntico quando está em causa uma situação de insolvência envolvendo os dois cônjuges, prevendo a liquidação dos bens comuns (e não do direito de cada um à meação), ainda que separada da liquidação dos bens próprios de um e outro cônjuges, caso existam. E é inegável a identidade de situações, ainda que nos presentes autos o divórcio tenha sido decretado antes da declaração de insolvência que atingiu ambos os membros do dissolvido casal. Resulta do exposto que a venda realizada deverá manter-se[22] e, tendo o produto revertido a favor das massas insolventes na proporção de metade para cada uma, será sobre ele que será feita a graduação, mantendo a credora recorrente a garantia hipotecária nos termos do n.º 3 do artigo 823.º do CC e, consequentemente, o direito a ser paga com a preferência que a lei lhe atribui (cf. art.º 686.º do mesmo diploma legal). Deste modo, reconhecendo como garantidos pela hipoteca registada os créditos de que é titular a recorrente C... identificados em ba), bb) e bc) do ponto 4. da matéria de facto, os créditos em concurso serão graduados do seguinte modo: i. pela metade do produto da venda do prédio inscrito na matriz sob o artigo 1692 e descrito na Conservatória do Registo Predial do ..., identificado na escritura referida no ponto 8: 1.º o crédito da C... reconhecido e verificado em ba); 2.º sobre o remanescente, havendo-o, os restantes créditos, procedendo-se a rateio, se necessário; ii. pela metade do produto da venda do prédio inscrito na matriz sob o art.º 1624, descrito na Conservatória do Registo Predial do ..., identificado na escritura referida no ponto 7: 1.º os créditos da C... reconhecidos e verificados em ba) e bc), com a ordem que resulte da anterioridade do registo; 2.º sobre o remanescente, havendo-o, os restantes créditos, procedendo-se a rateio, se necessário. III. Decisão Acordam os juízes da 3.º secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso interposto pela C... e, consequentemente: a) reconhecem como garantidos pela hipoteca registada os créditos de que é titular a recorrente identificados em ba), bb) e bc) do ponto 4. da matéria de facto; b) graduam os créditos em concurso pelo seguinte modo: i. pela metade do produto da venda do prédio inscrito na matriz sob o artigo 1692 e descrito na Conservatória do Registo Predial do ..., identificado na escritura referida no ponto 8: 1.º o crédito da C... reconhecido e verificado em ba); 2.º sobre o remanescente, havendo-o, os restantes créditos, procedendo-se a rateio, se necessário; ii. pela metade do produto da venda do prédio inscrito na matriz sob o art.º 1624, descrito na Conservatória do Registo Predial do ..., identificado na escritura referida no ponto 7: 1.º os créditos da C... reconhecidos e verificados em ba) e bc) pela ordem que resulte da anterioridade do registo; 2.º sobre o remanescente, havendo-o, os restantes créditos, procedendo-se a rateio, se necessário, mantendo-se quanto ao mais a sentença apelada. Custas do recurso a cargo da massa. *
Relatora: Maria Domingas Simões Adjuntos: 1º - Jaime Ferreira 2º - Jorge Arcanjo
[11] Nisso se distinguindo claramente da compropriedade, uma vez que aos titulares do património colectivo não pertencem direitos específicos, designadamente uma quota, sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito dispor desses bens ou onerá-los, total ou parcialmente - trata-se antes de um direito único sobre todo o património. Cf., neste preciso sentido, Eva Costa, “Breves considerações acerca do regime transitório aplicável às relações patrimoniais dos ex-cônjuges entre a dissolução do casamento e a liquidação do património do casal” disponível em http://repositorio.uportu.pt/jspui/bitstream/11328/665/1/Eva_Dias_Costa.1.pdf. |