Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
141/12.1TBVZL-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO DOMINGOS PIRES ROBALO
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
PROCESSO URGENTE
CONTRATO
CONCESSÃO COMERCIAL
CONTRATO DE AGÊNCIA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Data do Acordão: 01/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – INST. CENTRAL – SEC. COMÉRCIO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 9º, Nº 1 E 85º, Nº 1, DO CIRE; 432º E 437º DO C. CIVIL. DL N.º 178/86, DE 3 DE JULHO.
Sumário: I – Preceitua o n.º 1 do art.º 9 da CIRE «O processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, tem carácter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal».

II - Referindo-se a lei a todos os apensos, não se vê razão para excluir destes as acções apensadas nos termos do art. 85º nº 1 do CIRE (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus).

III - Porém, sendo a ação processada como se não se tratasse de um processo urgente, em várias das suas fases processuais, sem que a questão da urgência fosse suscitada, (a não ser já após a prolação da sentença, onde a fls. 747 e segs. a recorrida solicitou certidão com nota de trânsito em julgado, invocando o carácter urgente, ao que se opôs a recorrente a fls. 750 e segs.) é razoável e perfeitamente plausível que a recorrente admitisse que o entendimento do tribunal fosse realmente aquele e que tivesse actuado em conformidade.

IV - O contrato de concessão comercial pode ser definido como sendo “o contrato pelo qual um empresário – o concedente – se obriga a vender a outro – o concessionário -, ficando este último, em contrapartida, obrigado a comprar ao primeiro certos produtos, para revenda em nome e por conta próprios numa determinada zona geográfica, bem assim como a observar determinados deveres emergentes da sua integração na rede distribuição do concedente.

V - A operação logística é um conceito próprio da gestão de empresas e que consiste na concatenação de actos variados com vista à optimização dos custos na fase que intercede entre o fim da produção e a entrega do produto acabado ao retalhista ou ao grossista.

VI - A lei define o contrato de agência no n.º 1 do artigo 1.º do DL n.º 178/86, de 3 de Julho, actualizado pelo DL 118/93, de 13 de Abril, como «o contrato pelo qual uma das partes se obriga a promover por conta da outra a celebração de contratos, de modo autónomo e estável e mediante retribuição, podendo ser-lhe atribuída certa zona ou determinado círculo de clientes».

VII - A resolução ocorre nos contratos bilaterais quando uma das partes o não cumpre, justificando-se, assim, que a contraparte o rompa (art. 432 do C. Civil) ou quando há uma alteração anormal da base negocial que atinge o equilíbrio das prestações (art. 437 do C. Civil que traz uma nova visão da antiga teoria da imprevisão elaborada na sequência das profundas mutações sócio-económicas ocorridas após a guerra de 1914-1918).

Decisão Texto Integral:         




Acordam na secção cível (3.ª secção) do Tribunal da Relação de Coimbra


1. Relatório

1.1. Autora: “V..., Lda.”, sociedade por quotas de responsabilidade limitada, com sede na ..., atualmente declarada insolvente sendo a sua massa insolvente representada pela Sra. Administradora da Insolvência, intentou contra a R. “D..., S.A.”, sociedade anónima, com sede na ..., pedindo a condenação desta:

- A pagar-lhe a quantia de €396.503,47 a título de indemnização de clientela;

- A pagar-lhe a quantia de €794.364,75 a título de danos patrimoniais;

- A pagar-lhe a quantia de €300.000,00 a título de danos não patrimoniais;

- A pagar-lhe a quantia que se vier a apurar ser devida aos trabalhadores da Autora a título de indemnização pela cessação dos respectivos contratos de trabalho por motivo de falta de pagamento pontual de salários, e quantias em dívida resultantes da cessação dos contratos de leasing e de aluguer de longa duração, e quaisquer outras quantias em dívida que se vier a liquidar na pendência da presente acção ou em execução de sentença, se for o caso.

- A pagar-lhe os juros de mora que se vencerem desde a propositura da acção até efectivo e integral pagamento.

- Condenar a R. a pagar as custas do processo e procuradoria condignas.

Para tanto alega, em síntese:

Em 1991 Autora e Ré celebraram um contrato verbal de concessão comercial com exclusividade, segundo o qual a primeira distribuía os produtos da marca “D...” na região de Viseu e até à fronteira, mediante uma comissão, a Autora sempre (desde a sua constituição) se dedicou, em exclusividade, à distribuição de produtos “D...” na região de Viseu, tendo adaptado a sua estrutura a essa realidade. Para esse efeito, adquiriu em 1993 um lote de terreno onde implantou um armazém para acondicionamento dos produtos “D...”, tendo contraído um empréstimo. Em 2003 constituiu uma garantia bancária junto da “C...” a favor da Ré. Em 2005 celebrou dois contrato de abertura de crédito (conta corrente caucionada) com a C... e o B... no valor de €100.000,00. Em 2007 celebrou um contrato de abertura de conta com o P... Em 2009 contraiu um empréstimo com o P... Os sócios avalizaram vários desses contratos. A Autora adquiriu viaturas necessárias à sua actividade. Todos os contratos supra referidos e aquisições foram efetuados por recomendação da Ré, já que era ela que definia ao pormenor o modelo de negócio e auditava regularmente a actividade da Autora, elaborando planos de acção para esta levar a cabo.

Em 2010 a Ré impôs à Autora que alargasse a comercialização dos seus produtos à região de Aveiro, o que se veio a revelar catastrófico. A Autora foi obrigada a investir elevados montantes, tendo sido obrigada a adquirir mais três viaturas, através da celebração de contratos de locação financeira; teve que fazer obras de ampliação do armazém e de adaptação da instalação eléctrica; teve que adaptar as viaturas com novos equipamentos de frio, tudo no montante de €142.707,43, o aumento das vendas e dos consequentes lucros não foi suficiente para compensar os investimentos realizados, o que vem demonstrado nas IES de 2009, 2010 e 2011. Em 2011 a Autora viu-se forçada pela Ré a adquirir mais 6 viaturas através da celebração de contratos de locação financeira. Este investimento teve que ser efectuado pois a Ré alterou o sistema de auto venda para o sistema de pré-venda. A isto ainda acresceu o facto de a Ré impor a eliminação de 340 clientes por entender que estes não geravam rentabilidade, o que se refletiu no volume de vendas de 2011.

Em 8 de Maio de 2012 a Ré enviou à Autora uma carta na qual descrimina as faturas vencidas e não pagas, interpela a Autora para o pagamento e ameaça a resolução do contrato. A Autora respondeu alegando não ter possibilidades de pagar as faturas em causa. A Ré suspendeu, então, os fornecimentos à Autora em Maio de 2012 e envia novas cartas à Autora, sendo que em 1 de Junho de 2012 resolveu o contrato entre ambas existente com efeitos a partir de 8 de Junho de 2012, comunicando que iria accionar a garantia bancária, não obstante a Autora lhe haver pago o valor garantido.

A Autora ficou impossibilitada de ter acesso ao sistema informático e sem fornecimentos toda a actividade da Autora ficou paralisada. Não tinha produtos para entregar, e não conseguia cobrar montantes em dívida.

Estes factos determinaram a asfixia financeira da Autora que se viu impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações para com as entidades financiadoras, o Estado e os trabalhadores. Treze destes trabalhadores resolveram os respectivos contratos de trabalho com justa causa. A Autora ponderava apresentar-se à insolvência.

A Autora foi a única responsável pela angariação e fidelização da clientela para a Ré na região de Viseu, desde 1991. O volume de vendas da Ré cresceu anualmente. Nos últimos 5 anos a média de vendas foi de €2.939.851,60. É altamente provável que a Ré venha a beneficiar da actividade da Autora. A Ré não tinha qualquer fundamento válido para resolver o contrato existente com a Autora.

A Autora entende que lhe é devida uma indemnização de clientela calculada segundo critérios de equidade a partir da média anual das remunerações recebidas pelo agente (Autora) no valor de €396.503,47. Mais considera que teve prejuízos patrimoniais (relacionados com a imposta expansão do negócio à região de Aveiro e a diminuição do volume de vendas após a estratégia comercial adoptada pela Ré em 2011) com a resolução ilícita do contrato celebrado com a Ré, no valor global de €794.364,75.

Acresce que também teve prejuízos não patrimoniais, designadamente pela necessidade de se apresentar à insolvência e pelos danos causados ao seu bom nome comercial, que avalia em €300.000,00.

1.2. A R. apresenta contestação e pede a improcedência da ação, referindo, em síntese:

A Autora foi declarada insolvente. Caducou o mandato outorgado pela Autora à sua ilustre advogada pelo que sendo obrigatória a constituição de advogado na presente acção a Sra. A.I. deverá ser notificada para constituir novo advogado.

Entre a Ré e a Autora nunca foi celebrado, por escrito ou verbalmente, nenhum contrato de concessão comercial, com ou sem exclusividade, tendo por objecto a comercialização de produtos “D...”, a Ré nunca impôs à Autora qualquer acto de gestão, nem o poderia fazer por não existir qualquer vínculo jurídico-societário entre ambas. Se a Autora quis invocar uma forma de coacção física ou moral não foi alegado qualquer facto neste sentido.

Em 2010 a Ré efectuou uma proposta à Autora para fornecimento de outros clientes, o que foi aceite por esta.

As auditorias levadas a cabo pela Ré à Autora visavam apenas averiguar da qualidade dos serviços prestados aos clientes da Ré. O sistema de distribuição adoptado seguia os melhores métodos internacionais em matéria de logística e transporte.

A resolução contratual foi lícita porque se baseou no incumprimento culposo da Autora. Desde Março de 2012 que a situação de incumprimento da Autora existia, tendo esta deixado de adquirir produtos à Ré.

Quando se iniciou a relação contratual entre as partes já os produtos “D...” estavam muito divulgados por força da aquisição, por fusão, da “I...” e a sua clientela.

Desde 1979 que a Ré vende produtos “D...” na região de Viseu.

Não tem a Autora qualquer direito a uma indemnização de clientela no âmbito de um contrato que não é de concessão comercial. Mesmo que assim fosse a Autora não teria direito á indemnização de clientela na medida em quer foi ela que deu causa à cessação do contrato.

Não se verificam também os demais requisitos previstos no n.º 1 do art.º 33.º do D.L. n.º178/86.

Não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil contratual ou extracontratual que gerem um dever de indemnizar quer pelos danos patrimoniais, quer não patrimoniais.

1.3. A A. apresentou réplica, referindo-se aos factos relativos à apresentação à insolvência da Autora e à caducidade do mandato, reportou-se aos documentos impugnados.

Foi a Autora convidada a aperfeiçoar a sua petição inicial nos termos do despacho de fls. 525 a 528. Correspondendo ao convite, veio a Autora aperfeiçoar a petição inicial nos termos constantes de fls. 537 a 550, tendo ampliado o pedido nos seguintes termos:

- Que a indemnização por clientela seja calculada e fixada equitativamente pelo Tribunal tendo em linha de conta os critérios definidos no art.º 34.º do DL n.º178/86, de 3 de Julho, alterado pelo DL n.º 108/93, de 13 de Abril, e liquidada em sede de execução de sentença.

1.4 A Ré exerceu o necessário contraditório conforme resulta de fls. 554 e seguintes.

1.5. Foi realizada audiência prévia. Identificou-se o objecto do litígio e enumeraram-se os temas da prova.

1.6. Foi realizada audiência de discussão e julgamento com observância dos legais formalismos, após proferida sentença onde foi decidido:

- Julgar parcialmente procedente por provada a presente acção.

- Condenar a Ré “D..., S.A.” a pagar à Massa Insolvente da Autora “V..., S.A.” a quantia de €566.822,82.

- Absolver a Ré do mais peticionado.

            1.7. Inconformado com tal decisão dela recorreu a R. terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:

...

            1.8. A recorrida contra alegou terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:

...

                                    2. Fundamentação

                                   2.1. Factos provados

...

                                                3. Apreciação

3.1. Antes de entrarmos na análise do recurso interposto cabe como questão previa saber se o recurso apresentado é extemporâneo como defende a recorrida.

3.2. Questão prévia saber se o recurso é extemporâneo

Segundo a recorrida o mesmo é extemporâneo por a recorrente D..., S.A. ter interposto o recurso de apelação com data de 26.04.2016, ou seja muito para além do prazo processualmente determinado o qual terminou em 07.04.2016.

 O presente apenso D assume a natureza de processo URGENTE, destarte a sua apensação posterior ao início do processo de insolvência – cfr. art.º 9.º, n.º 1 do CIRE.

Porque o prazo de quinze (15) ou vinte e cinco (25) dias de recurso – cfr. art.ºs 9.º, n.º 1 do CIRE e 638.º, n.º s 1 e 7, este NCPCivil - de que disporia a R. D..., S.A. se esgotou, irreversivelmente, em 07.04.2016, encontrando-se a decisão proferida no Apenso D cristalizada pelo respectivo trânsito em julgado e, consequentemente, tornando extemporânea a apresentação do recurso de apelação da R. entrado em juízo em 26.04.2016, declaração de extemporaneidade que expressamente se demanda e que conduzirá à não admissão do recurso.

Por sua vez a recorrente refere que o processo não foi tratado como urgente por qualquer das partes e sobretudo pelo Tribunal, razão pela qual o recurso foi oportunamente apresentado e, como tal, deverá ser admitido pela Mm.ª Juiz.

A Mm.ª Juiz entendeu que o recurso apresentado está em tempo, referindo « (…) no nosso caso, o processo passou a ter natureza urgente por conexão, a partir da apensação da acção a um processo de insolvência, nos termos do art.º 9 do CIRE.

(…)

Já o facto de o tribunal ter admitido a prática de atos pelas partes em prazos que considerou suspensos nas férias judiciais (o que não ocorre nos casos em que o processo é urgente) já é susceptível de criar nas partes a ideia errada de que o processo não é urgente.  E se a isto associarmos o facto de o processo não ter ab initio natureza urgente, então entendemos que merece protecção a confiança que a R. solidificou sobre a atuação do Tribunal de que o processo não tem natureza urgente».

Considerando o recurso tempestivo.

            Vejamos

            Preceitua o n.º 1 do art.º 9 da CIRE «O processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, tem carácter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal».

A primeira questão que se coloca é a de saber se o caráter urgente atribuído pelo art. 9.°, nº 1, do CIRE se estende igualmente à presente ação, considerando que a mesma foi apensada ao processo de insolvência ao abrigo do art. 85.º do CIRE.

            A preocupação com a celeridade dos processos relativos à insolvência e a consagração do carácter urgente destes não surgiu apenas com o CIRE. De modo limitado no CPC de 1961 (art. 1179º, nº 2 – … o pedido de falência é sempre considerado urgente e tem preferência sobre qualquer outro serviço), o âmbito da urgência foi alargado no CPEREF (art 10º, nº 1 – os processos de recuperação da empresa e de falência, incluindo os embargos e recursos a que houver lugar, têm carácter urgente e gozam de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal). E se este diploma não explicitava se a urgência era aplicável a todos os apensos do processo, o regime do CIRE é claramente mais abrangente, estendendo ainda mais, sem qualquer dúvida, o âmbito da urgência: têm carácter urgente o processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos.

Isto é, "tudo o que se relaciona com o processo é urgente, aí incluindo todos os incidentes, apensos e recursos" (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2ª ed., 113), ou seja, "o processo de insolvência e os processos que gravitam em torno deste” (cfr. Ana Prata, Morais Carvalho e Rui Simões, CIRE Anotado, 36).

Procurou-se, assim, potenciar a celeridade da tramitação do processo, estendendo o carácter urgente também aos apensos do processo de insolvência (cfr. Preâmbulo do DL 53/2004, de 18/3, ponto 15).

Por outro lado, essa intenção do legislador, de alargar o âmbito da urgência, está claramente reflectida no texto da norma: esta refere-se, com efeito, a todos os apensos, não fazendo qualquer distinção entre estes.

Apesar de a interpretação não dever cingir-se à letra da lei, tem de reconhecer-se que a fórmula utilizada aponta claramente no sentido de aí caberem todos os apensos do processo de insolvência, sem excepção, sendo esse sentido o que "melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento" (cfr. Baptista Machado, Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, 182 e 189 e art. 9º nº 3 do CC).

Aliás, referindo-se a lei a todos os apensos, não se vê razão para excluir destes as acções apensadas nos termos do art. 85º nº 1 do CIRE (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus).

A apensação das acções, determinada nos termos do citado art. 85º, nº 1, tem por fundamento a conveniência que daí advém para os fins do processo (parte final do preceito); sendo a mesma ordenada, isso significa e pressupõe, portanto, que há conveniência e interesse na apensação (que não é automática), o que dita, logicamente, que haja um correspondente interesse na sua celeridade e que a acção apensada seja processada com a urgência exigida e inerente aos processos relativos à insolvência (cfr. Ac. S.T.J. de 9 de Julho de 2014, relatado por Pinto de Almeida).

Porém, tem sido entendido, o legislador dispõe de ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, devendo, contudo, observar que "os regimes adjectivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade", não podendo "criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva” (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, CRP Anotada, Tomo I, 190; cfr. também Lopes do Rego, Comentários ao CPC, Vol. I, 2ª ed., 22).

Refere a recorrente que nem o tribunal nem as partes alguma vez trataram o processo como urgente, referindo para tanto « destacam-se os seguintes atos processuais pelo evidente caráter não urgente que imprimem à presente lide:

(i) Em 29.10.2013, cerca de 9 meses após o termo de apensação, a primeira audiência prévia é agendada para o dia 17.12.2013 (para cerca de 2 meses depois), quando o último requerimento probatório havia sido apresentado em 11.10.2013;

(ii) A continuação da audiência prévia é agendada apenas em 03.01.2014 (logo após o término das férias judiciais referentes ao período do Natal, o que não seria tido em conta caso o processo fosse considerado urgente), para o dia 23.01.2014, a qual acabou por não se realizar em virtude do convite do Mmo. Juiz às partes (em 21.01.2014, cerca de 1 ano após o termo de apensação) para o aperfeiçoamento dos seus articulados;

(iii) Posteriormente, em 02.04.2014, é agendada a continuação da audiência prévia para dia 12.05.2014 (cerca de 5 meses após a realização da primeira sessão da audiência prévia), tendo em atenção, uma vez mais, o período das férias judiciais, no caso referentes ao período da Páscoa;

(iv) Após a apresentação pelas partes dos seus segundos requerimentos probatórios, resultantes do aperfeiçoamento dos articulados, o que ocorreu em 22.05.2014 e 27.05.2014, o Tribunal só profere despacho a admitir os meios de prova apresentados em 29.10.2014, ou seja cerca de 5 meses depois das férias judiciais;

(v) Admitidos os meios de prova, o Tribunal profere despacho de notificação dos peritos para prestarem compromisso de honra e para iniciarem as diligências de prova requeridas apenas em 02.02.2015, ou seja cerca de 3 meses depois de tal admissão.

(vi) Existem ainda no processo 4 notificações com o mesmo teor dirigidas à Autora datadas de 06.03.2015, 23.04.2015, 15.05.2015, 15.06.2015), para que a mesma procedesse à junção dos documentos necessários à realização da perícia. Ou seja, o tribunal dirigiu a mesma solicitação quatro vezes, num lapso temporal de 3 meses, antes de se decidir pela condenação da Autora nas consequências jurídicas resultantes de tal falta de colaboração, resultando evidente desta sucessão de notificações que, para a própria Autora, o processo não podia ter carácter urgente;

(vii) Em matéria de condenação das partes em multas processuais, o Mmo. Juiz notificou cada uma das partes, a D... em 04.07.2013 e a V... em 03.07.2015, concedendo um prazo de 10 dias para que as mesmas procedessem aos pagamentos em falta, o qual terminou em 04.09.2013 e 01.09.2015, respetivamente. Ou seja, o Tribunal considerou tal prazo suspenso em férias judiciais, o que demonstra, com meridiana clareza, o caráter não urgente do processo;

(viii) Por fim, mas de “somais” importância, a sentença dos autos foi proferida cerca de 4 meses após a realização da última sessão da audiência de julgamento, o que, atento o disposto no artigo 607.º, n.º 1, do CPC, não se coaduna com a alegada urgência do processo. Por seu turno, a sentença foi proferida cerca de 3 anos após o termo de apensação».

 Por sua vez reconhece-se no próprio despacho da Mm.ª Juiz, que " o facto de o tribunal ter admitido a prática de atos pelas partes em prazos que considerou suspensos nas férias judiciais (o que não ocorre nos casos em que o processo é urgente) já é susceptível de criar nas partes a ideia errada de que o processo não é urgente.  E se a isto associarmos o facto de o processo não ter ab initio natureza urgente, então entendemos que merece protecção a confiança que a R. solidificou sobre a atuação do Tribunal de que o processo não tem natureza urgente».

E daí retira, como consequência, que o recurso é tempestivo.

Acompanhamos esta fundamentação, que se tem por adequada ante a concreta e muito longa tramitação da acção após a apensação ao processo de insolvência (ocorrida em 5/2/2013, cfr. fls. 469), com base no princípio da boa fé e considerando as expectativas legítimas e a confiança que essa situação foi capaz de gerar à Recorrente.

A forma como a acção foi tratada tem, pois, (pelo menos) implícito o entendimento de que o processo não era urgente.

Acresce que o referido entendimento não é, apesar do que acima se expôs, inteiramente descabido – no sentido de excluir manifestamente a sua aplicação –, considerando a natureza da acção, diferente da dos típicos apensos do processo de insolvência, especialmente previstos na lei, instaurados e processados na pendência desse processo.

Neste condicionalismo, sendo a acção processada nos termos referidos, sem que a questão da urgência fosse suscitada, (a não ser já após a prolação da sentença, onde a fls. 747 e segs. a recorrida solicitou certidão com nota de trânsito em julgado, invocando o carácter urgente, ao que se opôs a recorrente a fls. 750 e segs.) é razoável e perfeitamente plausível que a recorrente admitisse que o entendimento do tribunal fosse realmente aquele e que tivesse actuado em conformidade.

No caso em apreço, está em causa a admissibilidade de um acto particularmente importante, na perspectiva dos direitos da recorrente, sendo certo que para a contraparte "não há nem lesão das regras do contraditório, nem violação de quaisquer expectativas que se sobreponha à confiança gerada (na recorrente) por acto do juiz" ou pela forma como, sob a direcção deste, a acção foi processada durante um muito.

Princípios como o da prevalência do fundo sobre a forma e a concepção do processo como mero instrumento para ser alcançada a verdade material e a justa composição do litígio não devem ser afastados "em nome da tutela de eventuais vantagens que (o Recorrido) pudesse alcançar" com a não consideração das alegações apresentadas.

Pode dizer-se -Transpondo conceitos do direito civil – cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, 186 e 187; Baptista Machado, Tutela da Confiança e "Venire contra Factum Proprium", em Obra Dispersa, Vol. I, 416 e segs), que estamos perante uma situação de confiança, assente na boa fé e gerada pela aparência – o modo como a acção foi processada até aí.

Existe justificação para essa confiança, uma vez que, como se disse, era razoável e plausível que a Recorrente aderisse a essa aparência, que tinha por legítima, por a referida tramitação ocorrer durante longo período e sob a direcção do Juiz.

E foi na sequência e em função dessa legítima convicção que a Recorrente definiu a sua actuação processual: sempre interveio nos autos e veio a apresentar as alegações, nos termos que seriam os devidos, de acordo com a tramitação até aí seguida (investimento de confiança).

A protecção dessa confiança conduz à "preservação da posição nela alicerçada" (cfr. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Vol. II, 1249. "A ordem jurídica preserva ou realiza a posição do confiante, atribuindo à situação de confiança ocorrida os efeitos jurídicos equivalentes ao objecto da representação", no que pode designar-se como protecção "positiva" da confiança – Carneiro da Frada, Tutela da Confiança e Responsabilidade Civil, 41.,

Ou seja, "à manutenção das vantagens que assistiriam ao confiante".

Num caso em tudo semelhante ao em apreço escreveu-se no Ac. S.T.J. de 9 de Julho de 2014, relatado por Pinto de Almeida: «Assim, a apresentação das alegações pela Recorrente em prazo apenas compatível com a não urgência do processo têm de ser consideradas tempestivas, apesar do que acima se expôs sobre a interpretação do art. 9º nº 1 do CIRE.

De facto, a tramitação coerente e unitária quanto às regras jurídicas aplicáveis que, em regra, se estabelece para o processo principal e seus apensos, visa a prossecução de razões de certeza e segurança jurídica, bem como de «tutela de legítimas expetativas determinantes de relevantes investimentos de confiança». Ora, nos presentes autos, como descreve extensamente a recorrente, até à presente data, a tramitação prosseguida nos presentes autos desde o seu início e após a apensação ao processo de insolvência não revestiu ou respeitou o carácter de urgência que vem agora invocado pela ré, diga-se, pela primeira vez, nos autos.

Consequentemente, face às especificidades da presente ação, julgar extemporâneas as alegações de recurso apresentadas pela recorrente com fundamento exclusivo no carácter urgente dos autos ao abrigo do art. 9.º, n.º 1 do CIRE, seria contrariar, de forma manifesta e ilegítima, a segurança jurídica do caso concreto e as legítimas expectativas criadas pelas partes, maxime, pela autora, ao longo da sua longa tramitação, as quais foram determinantes de relevantes investimentos de confiança nas normas jurídicas que vinham sendo aplicáveis nos autos (no caso concreto quanto à inaplicabilidade do art. 9.º n.º 1 do CIRE)».

Em face do exposto, temos para nós que o recurso apresentado é tempestivo.

Vista que foi a questão prévia cabe analisar o recurso interposto

3.3. É, em principio, pelo teor das conclusões do/a recorrente que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso (cfr. art.s 608, n.º 2, 635, n.º 4 e 639, todos do C.P.C.).

As questões a decidir resumem-se a saber:

I-Saber se a matéria de facto fixada em 1.ª instância deve ser alterada

            II-Saber se a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que absolva a recorrente do pedido, ou a título subsidiário, caso se entenda que a resolução contratual é ilícita, deverá a sentença recorrida ser substituída por outra que considere não verificados os pressupostos da responsabilidade civil em matéria de dano, absolvendo, em conformidade a recorrente do pedido.

            Tendo presente que são duas as questões a analisar iremos ver cada uma de per si.

            I – Saber se a matéria de facto fixada em 1ª instância deve ser alterada.

Segundo a recorrida A., o recurso da matéria de facto deve ser rejeitado por inobservância dos requisitos do art.º 640, do C.P.C., referindo «cabe à recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e bem assim os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão diversa da recorrida.

Não o fazendo, ou fazendo-o de forma minimalista, improcederão, por processualmente inadmissíveis – atenta a preterição de obrigação processual – as considerações impugnatórias contidas a respeito do que a R. considera ter sido ou não provado em sede de audiência de julgamento.

 É que incumbia à recorrente demonstrar a existência de pontos de facto incorrectamente julgados e a correspectiva remissão para os meios probatórios que, avaliados em sede de recurso, permitiriam a aplicação de decisão diversa da ora recorrida nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 640.º do NCPCivil. Ora, a apelante não se deu a tal tarefa de forma minimamente consentânea com as exigências processuais, preferindo, ao invés, colocar em causa os aspectos da sentença que se encontram determinados global e irreversivelmente por força da prova testemunhal realizada – cfr. decisão recorrida – de forma a enxertar na alegada discordância de direito os ramos que possam destruir a prova realizada.

Além disso, omitiu a obrigação de localizar os depoimentos nos suportes áudio da gravação, por referência ao assinalado na acta, sendo certo que não existe transcrição adequada dessa prova entendida pela recorrente enquanto negativa.

Neste contexto, a impugnação da matéria de facto relativamente aos FACTOS PROVADOS  n.ºs 53, 88, 89 e 92 e à pretensa adição do facto provado a partir do artigo 50.º da resposta ao aperfeiçoamento da petição inicial não pode ter-se como realizada, o que redunda na estabilização da matéria de facto julgada na 1ª instância».

A recorrente responde e refere « A este propósito, alega a Recorrida que a Recorrente não observou o ónus de impugnação da decisão relativa aos factos provados n.ºs 53, 88, 89 e 92, em claro desrespeito pelo disposto no Art. 640.º do CPC.

 Semelhante conclusão é extraída pela Recorida no que toca à posição da Recorrente quanto ao aditamento do seguinte facto no leque dos factos dados como provados:

“O acesso ao referido Software foi impedido na sequência da resolução do contrato ocorrido em 01-06- 2012. (proveniente do artigo 50º da resposta ao requerimento de aperfeiçoamento da petição inicial)”.

Nos termos do Art. 640.º do CPC impende sobre o Recorrente que pretenda apresentar recurso quanto à matéria de facto (i) a identificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (ii) os concretos meios probatórios que imporiam decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnados e (iii) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto às questões de facto impugnadas.

Ora, contrariamente ao alegado pela Recorrida, a Recorrente procedeu à identificação concreta dos pontos que considera incorretamente julgados, transcrevendo para o efeito o teor dos factos provados n.os 53, 88, 89 e 92 (cfr. alínea a) do n.º 1 do Art. 640.º do CPC).

Por seu turno, a Recorrente procedeu à identificação clara do fundamento da impugnação de tais pontos da matéria de facto, materializado na existência de contradições insanáveis na matéria dada como provada, na medida em que no seu âmbito coexistem factos perfeitamente antagónicos no que diz respeito ao papel desempenhado pelo sistema informático ... na atividade diária da Recorrida, em particular no registo de encomendas, na faturação, na emissão de recibos, entre outras atividades (cfr. alínea b) do n.º 1 do Art. 640.º do CPC).

Não se compreende, pois, o alcance da afirmação da Recorrida, quando a mesma afirma que “[a Recorrente] omitiu a obrigação de localizar os depoimentos nos suportes áudio da gravação, por referência ao assinalado na acta”, porquanto não foram apreciados nenhuns depoimentos neste âmbito e, portanto, tal obrigação não seria aplicável.

Por fim, quanto à concreta decisão que a Recorrente entende dever ser proferida relativamente a tais pontos da matéria de facto, resulta óbvio que a Recorrida a alcançou perfeitamente, tanto mais que a reproduz no artigo K das suas contra-alegações (cfr. alínea c) do n.º 1 do Art. 640.º do CPC).

Assim, e conforme é referido expressamente pela própria Recorrida, a Recorrente requereu ao Mmo. Tribunal ad quem que os factos dados como provados sob os n.os 53, 88, 89 e 92 fossem, pelo contrário, dados como não provados.

Por seu turno, a inclusão do facto relativo à data a partir da qual foi vedado o acesso ao Danoneline no elenco dos factos dados como provados foi corretamente identificada, cumprindo a Recorrente o ónus que sobre si impendia a esse propósito (cfr. alínea a) do n.º 1 do Art. 640.º do CPC).

Foram igualmente identificados os concretos meios probatórios que imporiam decisão diversa da recorrida quanto a este aspeto, quais sejam as evidências documentais juntas ao processo como Docs. n.ºs 19 e 22 juntos à petição inicial – fls. 127 a 138 (cfr. alínea b) do n.º 1 do Art. 640.º do CPC).

Não se compreende, uma vez mais, o alcance da afirmação da Recorrida, quando a mesma afirma que “[a Recorrente] omitiu a obrigação de localizar os depoimentos nos suportes áudio da gravação, por referência ao assinalado na acta”, porquanto o recurso da matéria de facto, neste concreto ponto, baseou-se exclusivamente na errada valoração de prova documental, não incluindo a análise de qualquer prova testemunhal gravada, tornando inaplicável tal obrigação.

Sendo que, em qualquer caso, quanto à concreta decisão que a Recorrente entende dever ser proferida relativamente a tal facto, resulta claro da alegação que o mesmo deveria ser dado como provado (cfr. alínea c) do n.º 1 do Art. 640.º do CPC).

Face ao exposto, forçoso é concluir que a Recorrente observou o disposto no Art. 640.º do CPC quanto ao recurso da matéria de facto ínsita na decisão recorrida, motivo pelo qual deverá o mesmo ser admitido nos exatos termos em que foi apresentado».

                        Vejamos

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido art.º 607, n.º 5, do C.P.C.

Perante o estatuído neste artigo exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação – cfr. J. Rodrigues Basto, Notas ao C.P.C. 3º, 3ªed. 2001, p.175.

            O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo

julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente; mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed. III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pelo que: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005 e de 23-04-2009 dgsi.pt., p.09P0114.

Nesta conformidade constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

Ademais, urge atentar que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto não se destina a que o tribunal da Relação reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, ainda que apenas se pretenda discutir parte da decisão - Cfr. entre outros, os Acs. do STJ de 9.07.2015, p.405/09.1TMCBR.C1.S1 e de 01.10.2015, p. 6626/09.0TVLSB.L1.S1 in dgsi.pt.

Na verdade, e como dimana do preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 (…), «a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.».

Como corolário deste princípio: «impôs-se ao recorrente um “especial ónus de alegação”, no que respeita “à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”, em decorrência “dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º [actual 662º]) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.»

«A reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis…mas teve a preocupação de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto”, como se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República…Essa maior eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação, no que toca ao julgamento do recurso da decisão de facto; mas não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995. Com efeito, o nº 1 do artigo 640º vigente, aplicável ao recurso de apelação que agora nos interessa:

– manteve a indicação obrigatória “dos concretos pontos de facto” que o recorrente “considera incorrectamente julgados” (al. a),

– manteve o ónus da especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida” (al. b), – exigiu ao recorrente que especificasse “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (al. c), sob pena de rejeição do recurso de facto. E à mesma rejeição imediata conduz a falta de indicação exacta “das passagens da gravação em que se funda” o recurso, se for o caso, sem prejuízo de poder optar pela apresentação da “transcrição dos excertos” relevantes.» - Ac. do STJ de 01.10.2015, sup. cit.

Assim, preceitua o artº 640º do CPC:

“1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 — No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

A - Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

B - Perante o estatuído neste ultimo segmento normativo tem-se entendido, por um lado, que: «A exacta indicação das passagens da gravação…não se identifica com a mera indicação do local, no suporte de registo áudio disponibilizado ao Tribunal de recurso, onde começa e termina cada um dos depoimentos em causa…Daí que ao recorrente…seja mister indicar, por referência ao suporte em que se encontra gravado o depoimento que pretende utilizar, o início e o termo da passagem ou das passagens, desse depoimento, em que se funda o seu recurso.» - Ac. da RC de 17-12-2014, p. 6213/08.0TBLRA.C1 in dgsi pt, bem como indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, cfr. Ac.s do STJ de 14/7/2016 e 7/7/216, onde foram relatores os Conselheiros António Joaquim Piçarra e Gonçalves Rocha, respectivamente, in www.dgsi.pt.

Ou, noutra nuance:

«Sempre que o recorrente impugne a decisão sobre a matéria de facto, deve observar o ónus de impugnação previsto no artº 640º do nCPC, nomeadamente deve indicar as exatas passagens da gravação dos depoimentos testemunhais em que se baseia para discordar do decidido, sob pena de rejeição do recurso quanto à reapreciação da prova.» - Ac. da RC de 16.03.2016, p. 1598/14.1T8LRA.C1.

Na verdade, ainda que o tribunal da Relação tenha de fundar a sua própria convicção, tal não significa que tenha de realizar um novo julgamento com total reapreciação de todos os meios probatórios produzidos.

Como se viu, a letra da lei não permite tal eventual entendimento.

E nem tal perspetiva se compadeceria com a índole e natureza deste tribunal ad quem, a qual exige uma tendencial depuração das questões, aliás, sempre necessaria a uma desejável celeridade decisoria que, obviamente, sairia prejudicada.

Por outro lado, como dimana do já supra referido, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genéricamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

A lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.

Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua subjetiva convicção sobre a prova.

Porque, afinal, quem tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.

Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve ele efetivar uma análise concreta, discriminada, objetiva, crítica, logica e racional, de todo o acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas ou das objetivas evidencias e emanações probatórias, e para além da margem de álea em direito permitida e que lhe é concedida.

E só quando se concluir que a natureza e a força da prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção, se podem censurar as respostas dadas.

Tudo, aliás, para se poder cumprir a exigência de o recorrente transmitir à parte contrária os seus argumentos, concretos e devidamente delimitados, de sorte a que esta possa exercer cabalmente o contraditório – cfr. neste sentido, os Acs. da RC de 29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 16.06.2015, p. nº48/11.0TBTND.C2, ainda inédito; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos in dgsi.pt;

Finalmente:

«. No âmbito do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto, não cabe despacho de convite ao aperfeiçoamento das respectivas alegações.» - Acs. do STJ 15.09.2011, p. 455/07.2TBCCH.E1.S1 de 09.02.2012, 1858/06.5TBMFR.L1.S1, aquele citando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, pg. 157, nota 333, de 14/7/2016 e de 7/7/216 , in www.dgsi.pt».

Dito isto vejamos o caso concreto.

Operando à leitura do recurso da recorrente, temos para nós, que ainda que algo deficiente o art.º 640, do C.P.C. foi cumprido, na medida em que, se consegue saber quais os factos que a mesma pretende ver alterados e onde assenta essa sua convicção, e qual a resposta, que em sua, opinião os mesmos deveriam ter obtido.

...

            Visto que foi o recurso sobre a matéria de facto, cabe apreciar o recurso sobre a matéria de direito.

A sentença recorrida afastou a classificação do contrato como identificado quer pela A. quer pela R.

A primeira entendia estar-se perante um contrato de concessão comercial e a segunda perante um contrato de operação logística.

 Referindo: o primeiro «é definido por José A. José A. Engrácia Antunes, in Direito dos Contratos Comerciais, pag. 446, como “o contrato pelo qual um empresário – o concedente – se obriga a vender a outro – o concessionário -, ficando este último, em contrapartida, obrigado a comprar ao primeiro, certos produtos, para revenda em nome e por conta próprios numa determinada zona geográfica, bem assim como a observar determinados deveres emergentes da sua integração na rede distribuição do concedente.” É um negócio comum na prática comercial mas que não tem uma regulação jurídica própria que permita classificá-lo como contrato típico. Ainda de acordo com o Autor supra referido são quatro as características essenciais desta figura contratual: a) O contrato envolve obrigações de venda e de compra para revenda; b) O concessionário actua em nome e por conta própria; c) O concessionário goza de autonomia, sem prejuízo das obrigações decorrentes da integração na rede de distribuição do concedente; e d) Trata-se de uma relação contratual estável.

O segundo a operação logística é um conceito próprio da gestão de empresas e que consiste na concatenação de actos variados com vista à optimização dos custos na fase que intercede entre o fim da produção e a entrega do produto acabado ao retalhista ou ao grossista.

A operação logística importa quase sempre uma relação contratual entre a sociedade (ou o comerciante) que, produzindo determinados produtos, os pretende colocar no mercado, e outra sociedade (ou comerciante) que, mediante o pagamento de uma retribuição, os coloca aí. Esta obrigação não se reduz ao mero transporte dos produtos mas envolve outras prestações verdadeiramente essenciais como sejam o transporte em rotas definidas por acordo e funcionando como meio de publicidade aos produtos em causa, a obrigação de armazenamento, e de entrega dos produtos e recebimento do preço nas condições previamente fixadas entre o vendedor e os compradores».

  Apontando, para o efeito, «que no caso em apreço em 1991 a Autora e Ré estabeleceram um acordo verbal cujas cláusulas, estipulando os respectivos direitos e deveres, só se foram conhecendo pela prática reiterada ao longo dos mais de 20 anos em que se manteve esta relação comercial (ponto 11 dos factos provados).

A Ré, produtora de produtos lácteos da marca “D...”, obrigava-se a entregar à “V...” os seus produtos que pretendia que fossem comercializados nos “pontos de venda” (mercearias, supermercados – e antes de 2005 grandes superfícies – e instituições – escolas, lares, hospitais, etc) por si identificados e que se situassem primeiro apenas na região de Viseu, e depois de 2010 em Viseu e Aveiro (pontos 11, 13 e 54 dos factos provados).

A Autora obrigava-se a entregar os produtos da Ré nos “pontos de venda” por esta identificados e que se situassem primeiro apenas na região de Viseu, e depois de 2010, em Viseu e Aveiro (pontos 11, 13 e 54 dos factos provados), nas condições comerciais que a “D...” havia previamente acordado com os adquirentes dos produtos (ponto 44 dos factos provados), mediante definição conjunta de rotas de entrega (ponto 29 dos factos provados), e utilização de veículos exclusivamente afectos à entrega de produtos “D...” e ostentando publicidade a essa marca (ponto 34 e 35 dos factos provados). A Autora obrigava-se, ainda, a receber o preço dos produtos entregues relativamente a alguns clientes e a remeter esse preço à Ré, após dedução da comissão acordada (ponto 12 dos factos provado.

Por seu turno, a Ré obrigava-se a remunerar a Autora de acordo com uma percentagem calculada sobre o valor dos produtos entregues (ponto 12 dos factos provados)».

E continua « Desta factualidade caracterizadora do acordo comercial existente entre a “V...” e a Ré podemos, em primeiro lugar, concluir, de forma excludente, que o acordo não pode ser classificado como um contrato de concessão comercial. Com efeito, ele não participa de uma das notas mais distintivas desse contrato: o das obrigações de venda e de compra para revenda. No nosso caso, nem a “V...” comprava à Ré os produtos desta, nem esta lhos vendida. A “V...” recebia da Ré os produtos “D...” apenas para serem entregues nas condições acima referidas aos compradores dos mesmos e a quem a Ré os havia previamente vendido.

O contrato celebrado participa, porém, de características típicas do contrato de concessão comercial. Trata-se de uma relação jurídica que envolve prestações duradouras tornando a relação comercial estável; em que o distribuidor goza de reduzida autonomia (mas ainda assim autonomia), por força das obrigações assumidas perante o produtor. Tem atinências também com a distribuição selectiva no sentido de que produtor se obriga a utilizar apenas os serviços daquele distribuidor em determinada área geográfica. Todavia, não se trata, como dissemos, de um contrato de concessão comercial porque a obrigação central deste tipo contratual (obrigação de compra para revenda do concessionário e obrigação do concedente de vender ao concessionário) não se verifica no contrato em apreço.

O contrato em causa é, portanto, um contrato que não se reconduz a um contrato típico e com um regime jurídico próprio, nem é um dos contratos que a prática comercial reiterada tem tornado típico. É um contrato cujas cláusulas se estabeleceram ao abrigo da liberdade contratual prevista no art.º 405.º, do C. Civil, a que não repugna epitetar de contrato de operação logística, sendo que, basicamente, se trata de um contrato quadro de prestação de serviços, densificado com obrigações típicas do contrato de concessão comercial, de transporte, e de agência».

Quanto a esta matéria a recorrente aceita apenas em parte a classificação do contrato como aludido na sentença recorrida, referindo « (…) aceita a Recorrente que o Contrato consubstancia um contrato misto e atípico, cujas cláusulas se estabeleceram ao abrigo da liberdade contratual prevista no artigo 405º do C. Civil, enquadrável na figura de um contrato quadro de prestação de serviços que integra prestações típicas do contrato de transporte, podendo designar-se por contrato de operação logística.

É o resulta inequivocamente dos pontos 11, 12, 13, 29, 34, 35 e 44 dos factos provados.

Não se aceita, porém, que o Contrato integre prestações típicas e essenciais de um contrato de concessão comercial (…) e agência».

E por discordar da classificação dada ao contrato na sentença recorrida, afirma que ao mesmo não pode ser aplicado o regime do D.L. n.º 178/86, de 3 de Julho.

A sentença recorrida para aplicação do mesmo afirma «que o contrato celebrado entre as partes contém características típicas do contrato de concessão comercial e/ou de agência, desde logo, por se tratar de uma relação jurídica que envolve prestações duradouras tornando a relação comercial estável, em que o distribuidor goza de reduzida autonomia (mas ainda assim autonomia), por força das obrigações assumidas perante o produtor, pelo que, embora não se possa concluir que lhe é aplicável, em bloco, que é aplicado aos contratos de agência, mas com as devidas adaptações, aos contratos de concessão comercial, por ser de facto o regime jurídico especifico com mais afinidades com os contratos de concessão comercial (art.º 10, n.º 1 e 2, do C.Civil) e, sendo o  contrato de que tratamos constituído por obrigações idênticas às do contrato de concessão comercial, embora sem existência de identidade no seu núcleo caracterizador por (obrigação de vender e de comprar para revenda), o que afasta a sua aplicabilidade plena do regime jurídico do contrato de agência, mormente quanto a um aspecto fundamental da sua regulação, a indemnização de clientela, sendo-o no entanto quanto à extinção da relação jurídica, na medida em que estas normas são especificas relativamente ao regime geral por se dirigirem a uma relação contratual estável e que é composta por prestações duradouras, sendo esta, precisamente, uma característica do contrato sub judice, que se manteve durante mais de 20 anos».

 A esta posição contrapõe a recorrente, para a não aplicabilidade do citado decreto-lei, « que no caso em apreço não se verifica a autónima aludida na sentença recorrida, desde logo, por a autonomia no contrato de concessão comercial ser total e absoluta, sem prejuízo de um certo controlo e fiscalização por parte do produtor (assumindo estes últimos natureza comercial no caso da concessão comercial e natureza exclusiva operacional no caso dos autos, já que a recorrida não revendia produtos, transportava-os), pelo que, a recorrida não goza dessa autonomia na relação contratual estabelecida com a recorrente. 

No que concerne ao elemento exclusividade dos serviços prestados pelo “distribuidor” em determinada área geográfica, embora possa ser convencionado pelas partes, ao abrigo do art.º 4 do D.L. 178/86 (aplicado analogicamente ao contrato de concessão comercial), tal traço não se afigura como característico do contrato de concessão comercial, sendo apenas um elemento meramente acidental.

No que concerne ao elemento de carácter duradouro do contrato (estabilidade do vínculo), trata-se efectivamente de uma característica típica de contratos de execução continuada ou duradoura, dos quais os contratos de distribuição (no âmbito dos quais se insere a concessão comercial) são apenas um ínfimo exemplo), pelo que, também aqui é incorrecto considerar-se que estamos perante um elemento típico essencial e caracterizador da concessão comercial. Trata-se de um elemento coincidente em vários outros tipos contratuais e que não é distintivo da concessão comercial, pelo que não podia a sentença recorrida invocar tal argumento para fundamentar a aplicação analógica do regime da agência ao caso dos autos.

Sublinha a recorrente que relativamente à concessão comercial são seus elementos típicos e caracterizadores (i) compra para revenda e a (ii) autonomia do concessionário no que respeita ao facto de este não agir por conta do cedente, comprando por conta própria os produtos vendidos pelo concedente e revendendo-os no mercado, assumindo os riscos da sua comercialização, na certeza de que nenhum destes elementos se verifica no contrato.

Por outro lado, refere a recorrente que o tribunal recorrido não apontou na sentença em crise um único elemento típico essencial e caracterizador do contrato de agência para que pudesse alcançar a conclusão de que o contrato integra características típicas da agência.

O que ficou demonstrado foi que o contrato consubstancia um contrato de operação logística, caracterizado pela entrega, por parte da recorrida, de produtos da recorrente aos clientes desta, nos pontos de venda indicados pela recorrente, mediante definição conjunta de rotas e nas condições comerciais que esta havia previamente acordado com os adquirentes dos produtos, e mediante o pagamento de determinada comissão sobre o valor dos produtos entregues, inexistindo quaisquer operações de compra e venda entre as partes, pelo que, é incorrecto afirmar-se que o contrato integra “prestações típicas e essenciais de um contrato de concessão comercial (…) e agência”, pelo que, não podia o tribunal “a quo” aplicar a analogia, nos termos do art.º 10, do C.C), ao regime do contrato de agência, pela simples razão, de tal não se verificar.   

Tendo ficado demonstrado nos autos que relativamente à comercialização dos produtos da recorrente, a recorrida se limitava, no essencial, a proceder à receção, transporte e entrega de mercadorias, sendo que quanto a alguns clientes da recorrente, procedia ainda à receção e entrega a esta do preço dos produtos vendidos pela mesma, recebendo uma percentagem calculada sobre o valor da mercadoria transportada.

Assim, afirma a recorrente estarmos perante prestações típicas do contrato de transporte, regulado pelo D.L. 239/2003, de 4 de Outubro, por não ter ficado demonstrado que que a recorrida, relativamente à comercialização dos produtos da recorrente, atuasse em nome e por conta própria no cumprimento da obrigação de proceder à revenda dos mesmos, mediante uma margem de lucro, ou que incidisse sobre a recorrente o dever de vender esses produtos à recorrida, porque se assim fosse estaríamos perante prestações típicas do contrato de concessão comercial, ao qual são aplicáveis, porquanto juridicamente atípico, as regras do regime do contrato de agência, por ser aquele que, dispondo de uma regulamentação especifica, lhe é mais próximo, por último, não ficou demonstrado que a recorrida, relativamente à comercialização dos produtos da recorrente, promovesse a celebração de contratos por conta da recorrente, fazendo prospecção de mercado e angariando clientela para aquela, mediante retribuição, pois se tal acontecesse, estaríamos perante as prestações típicas do contrato de agência».

Expostas as razões supra aludidas, cabe-nos verificar se o contrato em causa deve ser classificado como entendido na sentença recorria ou se pelo contrário, como aludido pela recorrente.

Ou seja, saber se «É um contrato cujas cláusulas se estabeleceram ao abrigo da liberdade contratual prevista no art.º 405.º, do C. Civil, a que não repugna epitetar de contrato de operação logística, sendo que, basicamente, se trata de um contrato quadro de prestação de serviços, densificado com obrigações típicas do contrato de concessão comercial, de transporte, e de agência», como definido na sentença recorrida, ou se pelo contrário será um contrato que «consubstancia um contrato misto e atípico, cujas cláusulas se estabeleceram ao abrigo da liberdade contratual prevista no artigo 405º do C. Civil, enquadrável na figura de um contrato quadro de prestação de serviços que integra prestações típicas do contrato de transporte, podendo designar-se por contrato de operação logística», como parece defender a recorrente.

E após saber se ao caso em apreço se aplica o D.L. 178/86, ainda que não na sua plenitude.

 Com interesse para a questão resulta « que em 1991 a Autora e Ré estabeleceram um acordo verbal cujas cláusulas, estipulando os respectivos direitos e deveres, só se foram conhecendo pela prática reiterada ao longo dos mais de 20 anos em que se manteve esta relação comercial (ponto 11 dos factos provados).

A Ré, produtora de produtos lácteos da marca “D...”, obrigava-se a entregar à “V...” os seus produtos que pretendia que fossem comercializados nos “pontos de venda” (mercearias, supermercados – e antes de 2005 grandes superfícies – e instituições – escolas, lares, hospitais, etc) por si identificados e que se situassem primeiro apenas na região de Viseu, e depois de 2010 em Viseu e Aveiro (pontos 11, 13 e 54 dos factos provados).

A Autora obrigava-se a entregar os produtos da Ré nos “pontos de venda” por esta identificados e que se situassem primeiro apenas na região de Viseu, e depois de 2010, em Viseu e Aveiro (pontos 11, 13 e 54 dos factos provados), nas condições comerciais que a “D...” havia previamente acordado com os adquirentes dos produtos (ponto 44 dos factos provados), mediante definição conjunta de rotas de entrega (ponto 29 dos factos provados), e utilização de veículos exclusivamente afectos à entrega de produtos “D...” e ostentando publicidade a essa marca (ponto 34 e 35 dos factos provados). A Autora obrigava-se, ainda, a receber o preço dos produtos entregues relativamente a alguns clientes e a remeter esse preço à Ré, após dedução da comissão acordada (ponto 12 dos factos provado).

Por seu turno, a Ré obrigava-se a remunerar a Autora de acordo com uma percentagem calculada sobre o valor dos produtos entregues (ponto 12 dos factos provados)».

Refere a recorrente que relativamente à comercialização dos produtos da recorrente, a recorrida se limitava, no essencial, a proceder à receção, transporte e entrega de mercadorias, sendo que, porquanto a alguns clientes da recorrente, procedia ainda à receção e entrega a esta do preço dos produtos vendidos pela mesma, recebendo uma percentagem sobre o valor da mercadoria transportada, pelo que estaríamos perante prestações típicas do contrato de transporte, efetivamente dos factos provados resulta que assim era.

O contrato de transporte encontra-se regulado pelo D.L. n.º 239/2003, de 4 de Outubro, sendo definido pelo n.º 1 do art.º 2 como um contrato celebrado entre

transportador e expedidor nos termos do qual o primeiro se obriga a deslocar mercadorias, por meio de veículos rodoviários, entre locais situados no território nacional e a entrega-los ao destinatário.

Tendo presente os factos supra provados, o contrato existente entre recorrente e recorrida embora fosse um pouco além do mero transporte, assentava muito na vertente do transporte. Na verdade a A. obrigava-se a entregar os produtos da Ré nos “pontos de venda” por esta identificados e que se situassem primeiro apenas na região de Viseu, e depois de 2010 em Viseu e Aveiro (pontos 11, 13 e 54 dos factos provados), nas condições comerciais que a “D...” havia previamente acordado com os adquirentes dos produtos (ponto 44 dos factos provados), mediante definição conjunta de rotas de entrega (ponto 29 dos factos provados), e utilização de veículos exclusivamente afectos à entrega de produtos “D...” e ostentando publicidade a essa marca (ponto 34 e 35 dos factos provados). A Autora obrigava-se, ainda, a receber o preço dos produtos entregues relativamente a alguns clientes e a remeter esse preço à Ré, após dedução da comissão acordada (ponto 12 dos factos provado), por seu turno, a Ré obrigava-se a remunerar a Autora de acordo com uma percentagem calculada sobre o valor dos produtos entregues.

Afirma a recorrente que a sentença recorrida, sobre a aplicabilidade do D.L. 178/86, de 3 de Julho, no caso da agência não indica quaisquer elementos típicos essenciais caracterizadores deste tipo contratual, e no caso da concessão comercial os elementos caracterizadores indicados não são essenciais e/ou distintivos.

A lei define o contrato de agência, no n.º 1 do artigo 1.º do DL n.º 178/86, de 3 de Julho, actualizado pelo DL 118/93, de 13 de Abril, como «o contrato pelo qual uma das partes se obriga a promover por conta da outra a celebração de contratos, de modo autónomo e estável e mediante retribuição, podendo ser-lhe atribuída certa zona ou determinado círculo de clientes».

A definição legal consagrada no normativo citado, há muito que era pacífica na doutrina e na jurisprudência.

Januário Gomes, in Contrato de Mandato, 1983/84, Apontamentos, edição AAFDL, pág. 3 e 4., define o contrato de agência como «o negócio oneroso em que uma das partes (o agente), actuando por conta e em nome de outrem (o proponente), em regime de colaboração estável, não necessariamente exclusiva, desenvolve autonomamente, em determinada(s) zona(s) uma actividade de prospecção do mercado, conquista de clientes e promoção do(s) produto(s), celebrando eventualmente negócios, quando para tal tenha especiais poderes», colocando a sua tónica no “desbravamento do mercado”, mais do que na conclusão de negócios (cfr. no mesmo sentido acórdão do STJ de 09.11.1999, proferido no Processo n.º 99A413, e acórdão de 23.02.2010, proferido no Processo n.º1407/04.0TBBRG-A.C1.S1, ambos acessíveis em http://www.dgsi.pt.).

Normalmente, a retribuição auferida pelo agente corresponde a uma comissão definida por percentagem sobre as vendas, que se determina, como refere António Pinto Monteiro, in Contratos de Distribuição Comercial, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 84 e 85«… fundamentalmente, com base no volume de negócios conseguido pelo agente, revestindo assim um carácter variável, sob a forma de comissão ou percentagem calculada sobre o valor dos negócios, podendo cumular-se, no entanto com qualquer importância fixa acordada entre as partes».

Por sua vez a doutrina e a jurisprudência têm entendido o contrato de concessão comercial como “o contrato pelo qual um empresário – o concedente – se obriga a vender a outro – o concessionário -, ficando este último, em contrapartida, obrigado a comprar ao primeiro, certos produtos, para revenda em nome e por conta próprios numa determinada zona geográfica, bem assim como a observar determinados deveres emergentes da sua integração na rede distribuição do concedente” – cfr. « José A. Engrácia Antunes, in Direito dos Contratos Comerciais, pag. 446.

Referindo o Dr.º António Pinto Monteiro, no seu parecer junto aos autos a fls. 817 a 857, mormente a fls. 824, « Como contrato-quadro, o contrato de concessão comercial funda uma relação de colaboração estável, duradoura, de conteúdo múltiplo, cuja execução implica, designadamente, a celebração de futuros contratos entre as

partes, pelos quais o concedente vende ao concessionário, para revenda, nos termos previamente estabelecidos, os bens que este se obrigou a distribuir».

Tendo presente as noções doutrinais a respeito de cada um dos contratos e tendo por base, os factos provados, como não pode deixar de ser, afigura-se-nos que o contrato celebrado entre as partes se pode definir como um contrato que consubstancia um contrato misto e atípico, cujas cláusulas se estabeleceram ao abrigo da liberdade contratual prevista no artigo 405º do C. Civil, enquadrável na figura de um contrato quadro de prestação de serviços que integra prestações típicas do contrato de transporte.

Tendo presente ao supra referido ao contrato em causa não se aplica o regime do D.L. 178/86, de 3 de Julho.

Chegados aqui cabe apreciar a licitude ou não resolução do contrato.

A sentença recorrida faz alusões à resolução do contrato «referindo que é uma das formas de extinção dos contratos que consiste numa declaração unilateral à contraparte com vista a essa finalidade, baseada num facto ocorrido posteriormente à celebração do contrato, sendo o facto mais comum de resolução, nos contratos bilaterais, o incumprimento definitivo de uma das partes (cfr. art.º 801, n.º 2, do C.C.).

Porém, refere que sendo um contrato misto que participa dos regimes jurídicos dos contratos cujas características o integram, há que considerar a aplicação do regime da resolução para o contrato de concessão comercial e de agência, pois a especificidade da resolução nestes tipos contratuais tem a ver com a estabilidade contratual.

(…)

Termina referindo que a resolução é ilícita porquanto o incumprimento da A. não era de tal forma grave que pusesse em causa a subsistência do contrato celebrado com a A. (…)».

  Opinião diversa tem a recorrente, desde logo, no que concerne ao montante da dívida, sendo que na sentença recorrida se afirma « o montante da dívida da recorrida para com a recorrente “em 8 de Maio de 2012 era de €146.337,08, sendo que mesmo após o pagamento de €75.000,00 ela subiu para €179.711,83 em 1 de Junho.” “ O valor da dívida era significativo só tinha ocorrido no pior dos casos em Março de 2012, O valor da dívida não era de molde a perturbar o normal funcionamento da R.”

Contra argumentando a recorrente que o valor em dívida da recorrida perante a recorrente advinha não de fornecimentos realizados por esta àquela, mas do incumprimento pela recorrida da sua sacra obrigação de “receber o preço dos produtos entregues relativamente a alguns clientes e a remeter esse preço à R. após dedução da comissão’.

Ou seja, a recorrida conservou, desde Maio de 2012 e até (pelo menos) à data da apresentação destas alegações, para além do valor que lhe era devido a título de comissões, montantes “significativos” que não lhe pertenciam (…), pelo que se trata de matéria que excede, em muito, o domínio do incumprimento contratual, e que se revela gravíssima.

No que concerne ao facto da relação comercial durar há 20 anos, tal é irrelevante, para a boa decisão da causa, desde logo, por não existir notícia de que anteriormente tivessem ocorrido atrasos no cumprimento de obrigações recíprocas.

A recorrente diverge também da sentença recorrida na parte em que na mesma se refere « Ora, neste contexto, o facto de a R. conceder 15 dias à A. para pagar a quantia em falta, cortar os fornecimentos e o acesso ao sistema informático que permitia cobrar as dívidas dos clientes, e de seguida resolver o contrato, faz-nos crer que a resolução do contrato não radica no incumprimento da A.. Não sendo reiterado o incumprimento da A., ele era relativamente grave. Todavia não se pode dizer que este incumprimento era de tal forma grave que não era exigível que a R. se mantivesse fiel ao contrato celebrado. Ao contrário. O que era exigível era que o incumprimento da R. motivasse uma maior fidelidade ao contrato que vigorou durante 20 anos …»

            Referindo «que a R. não se limitou a conceder 15 dias à A. para pagar a quantia em falta. Com efeito em 8 de Maio de 2012, apresentando a recorrida uma divida de 146.337,08€ a recorrente interpelou-a para que efectuasse o pagamento até 23 de Maio de 2012, sob pena de cortar os fornecimentos e resolver o contrato (dando-lhe um prazo de 15 dias para retomar o cumprimento). Em 1 de Julho de 2012, 22 dias depois da primeira interpelação, a recorrente voltou a interpelar a recorrida, concedendo-lhe um prazo adicional de 8 dias para promover o pagamento da dívida em causa, a qual havia já aumentado para 179.711,83€.

            No que concerne aos fornecimentos a mesma é mais que legitima, desde logo, por a recorrente não ser obrigada a fornecer quem não lhe paga.

            Mais refere, mesmo a entender-se que tem aplicabilidade ao caso o D.L. 178/86, onde os fundamentos da resolução são mais restritivos em comparação com o regime geral do C.C., os fundamentos invocados pela Recorrida sempre seriam passíveis de fundamentar a resolução contratual, desde logo, porque a gravidade associada à conduta da recorrida não se coaduna com a subsistência da relação contratual».

            Apreciando.

            Como vimos in supra, afigura-se-nos, que ao caso em apreço não se aplica o D.L. 178/86, pelo que a questão tem de ser vista face às normas do Código Civil que regulam esta matéria.

            Assim, não acompanhamos a sentença recorrida no seu raciocínio, desde logo, por a mesma assentar na aplicabilidade do D.L. n.º 178/86.

A resolução ocorre nos contratos bilaterais quando uma das partes o não cumpre, justificando-se, assim, que a contraparte o rompa (art. 432 do C. Civil) ou quando há uma alteração anormal da base negocial que atinge o equilíbrio das prestações (art. 437 do C. Civil que traz uma nova visão da antiga teoria da imprevisão elaborada na sequência das profundas mutações sócio-económicas ocorridas após a guerra de 1914-1918).

A resolução é, por conseguinte, motivada, com efeitos imediatos e retroactivos e sem dependência ou observância de qualquer prazo contratual.

A recorrente resolveu o contrato imputado à recorrida a um incumprimento culposo que, na sua óptica, justificava a declaração resolutiva.

Acresce que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir (art.º 805, n.º 1, do C.C.), sendo que nos termos do art.º 808, n.º 1, do mesmo diploma, se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.

Dos factos provados resulta que todos os contratos de fornecimento eram celebrados entre a R. e o cliente especifico … (facto 2.1.38.), ficando a A. com a obrigação de entregar à R. o preço dos produtos que recebia dos clientes desta, após dedução da sua comissão (ponto 2.1.11. e 2.1.12.), desde Março de 2012 que existia uma situação de incumprimento da A. (facto 2.1.77.), sendo que em 8/5/2012 a A. apresentava uma dívida perante a R. – recorrente – de 146.337,00€ (ponto 2.1.77.), em 8 de Maio de 2012 a R. – recorrente – enviou à A. uma carta onde descriminava todas as facturas em dívida concedendo-lhe um prazo de 15 dias para a possibilidade de resolução contratual (ponto 2.1.78.), em 23 de Maio de 2012 a A. pagou à R. a quantia de 75.000,00€ (ponto 2.1.81), apesar disso a dívida da A. perante a R. em 1/6/2012 era de 179.711,83€ (ponto 2.1.82.), em 1 de Junho a R. enviou nova carta à A. dando-lhe novo prazo para pagamento da dívida vencida, agora, de mais 8 dias, prevenindo desde logo a A. de que o não pagamento das importâncias em dívida até ao termo do prazo converteria a mora em incumprimento definitivo e determinaria a imediata resolução do contrato (cfr. ponto 2.1.83).

Face a tais factos, temos para nós não existirem dúvidas que a resolução do contrato por parte da recorrente é licita, desde logo, por ter notificado a recorrida do seu incumprimento, e voltou novamente a notifica-la referindo que a mora se converteria em incumprimento definitivo, caso não efectuasse o respectivo pagamento, que não fez, o que determinaria a imediata resolução do contrato.

Diga-se, também, mesmo a entender-se que ao caso tinha aplicabilidade o D.L. n.º 178/86, como entendeu a sentença recorrida, ainda assim não perfilhávamos o seu ponto de vista, por um lado porque sempre a R. poderia suspender os fornecimentos e proceder ao corte do acesso ao sistema informático lançando mão da excepção de não cumprimento a que alude o art.º 428 do C.C., escrevendo a este respeito Calvão da Silva, in Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, 4.ª edição Livraria Almedina, Coimbra, 2002, fls. 330, como aludido no parecer junto subscrito por António Pinto Monteiro « se o devedor não cumpre, não quer cumprir ou não pode cumprir, ainda que não imputavelmente, o credor pode suspender o cumprimento da sua obrigação, dada a ausência de contrapartida e reciprocidade que liga causalmente a protecção debitória e a prestação creditória» referindo ainda “pouco importa, por conseguinte, que o devedor não cumpra a sua obrigação por não querer e estar de má fé ou por não poder em virtude, por exemplo, de se encontrar em estado de impotência económica, portanto aquilo que legitima a exceptio non adimpleti contractus é a ausência de correspondência ou de reciprocidade que está na origem das obrigações (sinalagma genético) e que deve continuar a estar no seu cumprimento (sinalagma funcional)”.

            Por outro lado, por entendemos que as faltas de pagamento aludidas são graves, pois não só se traduzem no não pagamento, mas antes e o mais grave, era a não entrega do dinheiro dos clientes para pagamento dos produtos da R. que era entregue à A. para ser entregue à R., este factor, quanto a nós reveste gravidade e perda de confiança da A, por parte da R.

            A este propósito escreveu-se no parecer, citando Baptista Machado, in pressupostos da resolução por incumprimento, fls. 357, ou na ed. Scientia Iuridica, fls. 139 « Ora esta perda de confiança não tem directamente a ver com a gravidade do inadimplemento, o qual, ainda que em si pouco prejudicial para o interesse do credor, pode legitimar a resolução se as causas que estão na sua origem ou as circunstâncias que o acompanham são de molde a justificar um justo receio quanto ao cumprimento futuro das obrigações».

            Face ao exposto, e pelas razões apontadas, temos para nós, que nesta vertente assiste razão à recorrente.                       

                         4. Decisão

             Desta forma, por todo o exposto, acorda-se:

a)-Julgar parcialmente procedente a pretensão da recorrente em ver alterada a matéria de facto fixada em 1.ª instância.

 b)- julgar procedente a presente apelação e por consequência alterar a sentença recorrida absolvendo a R. do pedido.

Coimbra 9/1/2016

Pires Robalo (relator)

Silvia Pires (adjunta)

Jorge Loureiro (adjunto)