Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
694/13.7TTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHADORES INDEPENDENTES
APÓLICE UNIFORME
NATUREZA DA ACTIVIDADE PROFISSIONAL
Data do Acordão: 03/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – INST. CENTRAL – 1ª SEC. DE TRABALHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DL Nº 159/99, DE 11/05; LEI Nº 98/2009, DE 4/09(NLAT); NORMA Nº 3/2009-R, DE 5/03 (PUBLICADA NO DR 2ª SÉRIE Nº 57, DE 23/03/2009)
Sumário: I – Sendo o autor trabalhador independente aplica-se-lhe o regime decorrente do DL 159/99, de 11/05, o qual veio regulamentar a obrigatoriedade de seguro de acidentes de trabalho para os trabalhadores independentes e que garante, com as devidas adaptações, as prestações definidas pela Lei nº 98/2009, de 4/09 (NLAT) remetendo para ela muitos dos aspectos de regulamentação do regime de acidentes de trabalho daqueles trabalhadores.

II – A LAT/2009 consagra, no seu artº 81º, que a regulamentação do contrato de seguro do ramo ‘acidentes de trabalho’ deve constar de uma apólice uniforme, a aprovar pelo Instituto de Seguros de Portugal.

III – A apólice uniforme do seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores independentes (Norma nº 3/2009-R, de 5/03) ao pretender definir o objecto do seguro estabelece, na sua cláusula 3ª, nº 1, que ‘o segurador, de acordo com a legislação aplicável e nos termos desta apólice, garante os encargos provenientes de acidentes de trabalho da pessoa segura, em consequência do exercício da actividade profissional por conta própria identificada na apólice’.

IV – O contrato de seguro de acidentes de trabalho é, pois, definido pela natureza da actividade profissional (económica) a que a pessoa segura se dedica.

V – A cobertura está, assim, circunscrita ao tipo de actividade que constitui o objecto do contrato, e em função da qual foram estipulados o prémio e as restantes condições contratuais.

Decisão Texto Integral:

   Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Em processo emergente de acidente de trabalho e patrocinado pelo Ministério Público, o autor intentou contra a ré acção pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe: «a) O capital de remição calculado com base na pensão anual no montante de € 228,14, com início em 29.06.2013, dia imediato ao da alta, e de acordo com a base técnica de cálculo de remição das pensões de acidente de trabalho, calculada com base no salário anual transferido de € 11.200,00, e na desvalorização de 2,910%; b) A quantia de € 1.025,31 a título de diferenças de indemnizações por incapacidades temporárias; c) A quantia de € 32,00 a título de despesas com deslocações obrigatórias ao Tribunal e ao Gabinete Médico-Legal; c) Os juros vencidos e vincendos até ao seu integral pagamento».

Para tanto alegou, em síntese, que foi vítima de um acidente no dia 17.12.2012, num estaleiro, sua pertença, que servia de apoio à sua actividade profissional de sondagens geológicas e abertura de furos para captação de águas, quando, no exercício e por conta da sua actividade, ao proceder a trabalhos de desactivação para proceder à venda do estaleiro, subiu a um poste para desmontar um holofote, e se desequilibrou e caiu ao solo, sobre o ombro e mão direita, com traumatismo, do qual resultaram sequelas, tendo ficado afectado, a final, com incapacidade permanente para o trabalho, e suportou despesas com transportes, em deslocações ao Tribunal e ao Gabinete Médico-Legal, pelo que tem direito ao pagamento das quantias peticionadas, estando a responsabilidade do seu pagamento a cargo da ré.

Contestou a ré, defendendo a “inaplicabilidade do contrato de seguro”, referindo que a tarefa realizada pelo autor na altura do sinistro não tem qualquer relação com a actividade profissional cujo risco se encontra garantido pela ré, que é de sondagens geológicas e levantamentos topográficos, a qual não ocorre a partir do referido estaleiro. Mais alegou que o acidente ocorreu no âmbito da vida privada do autor, que subiu a um poste de iluminação na via pública, situado junto do mencionado estaleiro, para retirar um holofote nele colocado, a cerca de 5 metros de altura, para evitar que viesse a ter problemas com a EDP, e não porque estava a realizar qualquer tarefa (remunerada) a favor de terceiro enquanto prestador de serviços, sucedendo mesmo que o fez utilizando uma simples escada de alumínio, sem fazer uso de qualquer elemento de fixação, nomeadamente apoios de escadas portáteis, violando as mais elementares regras de segurança. Neste caso, alega que, concluindo-se pela ocorrência de acidente de trabalho coberto pelo seguro, o mesmo se deverá considerar descaracterizado.

Concluiu pela improcedência da acção e a sua consequente absolvição do pedido.

                                                                 *
Prosseguindo o processo os seus regulares termos veio a final a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente.

Inconformado, o autor interpôs a presente apelação e, nas correspondentes alegações, apresentou as seguintes conclusões:

[…]

A ré apresentou contra-alegações, no termo das quais concluiu:

[…]


*


II- OS FACTOS:

[…]


*

III. Apreciação

As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objecto do recurso, não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Decorre do exposto que as questões que importam dilucidar e resolver, no âmbito das conclusões do recurso, se podem equacionar basicamente da seguinte forma:

- se o acidente sofrido pelo autor está abrangido pelo contrato de seguro que celebrou com a ré, contrariamente ao concluído na sentença recorrida;

- caso se conclua por essa cobertura, apreciar em substituição do tribunal recorrido (art. 665.º n.º 2 do CPCivil) se o acidente pode ser qualificado como acidente de trabalho susceptível de reparação pela ré, verificando ainda se o mesmo se deve considerar descaracterizado por violação de regras de segurança.

Vejamos, assim, se pode considerar-se que, no caso, o evento que vitimou o autor se pode considerar coberto pelo contrato de seguro que firmou com a ré, na qualidade de trabalhador independente, qualidade essa com as quais as partes se mostram de acordo e como resulta da apólice respectiva constante de fls. 32 e segs. dos autos.

Sendo o autor trabalhador independente aplica-se-lhe o regime decorrente do DL 159/99, de 11/05, o qual veio regulamentar a obrigatoriedade de seguro de acidentes de trabalho para os trabalhadores independentes e que garante, com as devidas adaptações, as prestações definidas pela Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, (LAT/2009) remetendo para ela (por força do disposto na norma remissiva do art. 181.º daquela Lei) muitos dos aspectos de regulamentação do regime de acidentes de trabalho daqueles trabalhadores.

Na sentença recorrida considerou-se que o acidente se deve considerar excluído da cobertura do contrato de seguro celebrado entre as rés, na medida em que o sinistrado exercia no momento do acidente uma actividade não abrangida pelo contrato.

Nos termos do “Regime Jurídico do Contrato de Seguro”, aprovado pelo Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, nomeadamente nos seus artigos 32.º a 35.º, o contrato de seguro deve ser formalizado por escrito pelo segurador, num instrumento denominado apólice, sendo regulado pelas estipulações dele constantes, a menos que a desconformidade entre ele (apólice) e o acordado resultem de documento escrito o de outro suporte duradouro (art. 35.º).

A LAT/2009 consagra, no seu art. 81.º, que a regulamentação do contrato de seguro do ramo “Acidentes de Trabalho” deve constar de uma apólice uniforme, a aprovar pelo Instituto de Seguros de Portugal.

Em vigor à data do acidente dos autos estava Norma n.º 3/2009-R, de 5 de Março (publicada no D.R. 2.ª Série, n.º 57, de 23/3/2009), que veio aprovar a “Parte Uniforme das Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes”.

A apólice uniforme do seguro obrigatório de acidentes de trabalho, ao pretender definir o objecto do seguro, estabelece, na sua cláusula 3.ª n.º 1, que “o segurador, de acordo com a legislação aplicável e nos termos desta apólice, garante os encargos provenientes de acidentes de trabalho da pessoa segura, em consequência do exercício da actividade profissional por conta própria identificada na apólice”.

O contrato de seguro de acidentes de trabalho é, pois, definido pela natureza da actividade profissional (económica) a que a pessoa segura se dedica.

A cobertura estará, assim, circunscrita ao tipo de actividade que constitui o objecto do contrato, e em função da qual foram estipulados o prémio e as restantes condições contratuais (v., por exemplo, Ac. do STJ de 13-03-2002, in CJ/STJ, t. I, pag. 274).

No caso dos autos, verifica-se que a actividade indicada nas condições particulares da apólice era a de “Sondagens Geológicas e Levantamentos Topográficos” (v. facto 6. e doc. de fls. 32). Não vem demonstrada, por qualquer modo, existir divergência ou desconformidade entre a apólice e o acordado, pelo que deve ser essa a actividade fixada para o objecto do contrato de seguro em causa.

Nos negócios jurídicos em geral – como também, por norma, nas cláusulas de um contrato de seguro – a regra interpretativa é a de que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante – art. 236.º do Código Civil. Só assim não acontecerá quando seja irrazoável imputar ao declarante o sentido declarativo assim apurado, ou quando o declaratário conhecer a vontade real do declarante. Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações (art. 237.º do mesmo Código).

Mas nos negócios formais – como acaba por suceder em parte no caso do contrato de seguro quando é entregue pelo segurador o instrumento apólice, sem invocação de divergência com o acordado – o sentido hipotético da declaração, tem de ter um mínimo de correspondência no texto que a corporiza (art. 238.º n.º 1 do CC).

Como se invoca na sentença recorrida, nos contratos de adesão como também é o caso, de acordo com o disposto nos arts. 10.º e 11.º do D.L. n.º 446/85, de 25/10, as cláusulas ambíguas têm o sentido que lhes conferiria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição do aderente real e, em caso de dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente. Mas como também ali se afirma, citando-se Moitinho de Almeida, in Contrato de Seguro, Estudos, Coimbra Editora, 2009, pags. 126 e segs, «mesmo nos casos em que se imponha uma interpretação complementadora por força da existência de cláusulas insuficientes, ou falta de cláusulas necessárias, tal interpretação não pode conduzir a uma ampliação do objecto negocial, limite este que, no domínio dos seguros, deve ser entendido de modo particular, dada a relevância da amplitude do risco no âmbito deste contrato, ali acrescentando que tal interpretação é de excluir quando “implique a ampliação do núcleo da prestação da seguradora, na acepção da jurisprudência alemã segundo a qual esse núcleo se reporta aquelas cláusulas que estabelecem as condições e delimitam a prestação da seguradora, sem as quais o núcleo essencial do contrato careceria de precisão”».

No caso e no recurso, o apelante exclui mesmo que ocorra qualquer ambiguidade e afirma que a actividade profissional abrangida no objecto do contrato é expressamente a de “Sondagens Geológicas e Levantamentos Topográficos”. E se assim é, defende que devem considerar-se incluídas nessa actividade as que decorram ao funcionamento e segurança do estaleiro de suporte à mesma actividade, porque (nas suas palavras) concorrem, de forma acessória e complementar, para o objecto do contrato de seguro.

Devemos dizer que se não houvesse necessidade de fixar o sentido, que chamaríamos de “prático e sensato” da declaração (o mais consentâneo com uma postura de boa fé na interpretação do contrato) e, porventura, de alguma ambiguidade, perante os factos provados, a menção expressa adoptada afastaria na sua crueza a tarefa que o autor desempenhava quando se acidentou.

Mas, na interpretação do contrato, poderíamos até admitir que a actividade “Sondagens Geológicas e Levantamentos Topográficos” levaria a aceitar que um declaratário normal e um contratante indeterminado normal, que as subscrevesse, entenderia que actividades acessórias como as que decorram do funcionamento e segurança do estaleiro de suporte à mesma actividade estivessem compreendidos nas tarefas abrangidas pelo objecto do contrato de seguro - como o mais consentâneo com uma postura de boa fé na interpretação do contrato.

No entanto, o que verificamos da matéria de facto estabelecida é que a tarefa a que o autor se dedicava quando se lesionou (subida a um poste para desmontar um holofote), não tinha relação com o suporte à actividade de “Sondagens Geológicas e Levantamentos Topográficos”, ainda que de suporte de estaleiro. Pelo menos, podemos dizer que o autor não demonstrou essa relação com tal suporte à actividade, como disso tinha o ónus (art. 342.º n.º 1 do Código Civil).

Na verdade, se se provou que no local o autor possuía um estaleiro que qual servia de apoio à sua actividade profissional de sondagens geológicas e abertura de furos para captação e águas, também está demonstrado que (facto 7.) o acidente ocorreu quando o autor procedia à desactivação do estaleiro para proceder à sua venda, bem que (facto 17.) na altura do acidente o estaleiro já não tinha quaisquer máquinas e/ou equipamentos no seu interior.

Ou seja, como se referiu na sentença recorrida, o autor “procedia à retirada de um holofote, que havia colocado num poste da EDP, existente na via pública, frente ao local onde se situa o seu estaleiro e do lado de fora, quer para permitir a segurança do mesmo, quer para permitir a realização de trabalhos durante a noite, numa altura em que procedia à desactivação do estaleiro para realizar a sua venda e já não detinha quaisquer máquinas ou equipamentos no seu interior”. E assim qualquer pessoa segura (e, no caso, o autor) – como também se refere na sentença – “sagaz e prudente, não pode interpretar a cláusula negocial como abrangendo qualquer tipo de tarefa, numa ocasião em que procedia à desactivação desse espaço (inexistindo nessa altura qualquer instrumento ou equipamento no seu interior), ainda que o projector em causa (colocado num poste da EDP situado na via pública do lado de fora desse estaleiro) se destinasse a iluminar tal local de trabalho”.

Em consequência, entendemos que a actividade a que o autor se dedicava quando se acidentou não estava abrangida (tal se não demonstrou) no objecto do contrato de seguro.

Por isso, nada temos a censurar ao juízo da 1.ª instância quando nele se concluiu que “não estando o acidente do Autor abrangido pelo contrato de seguro que celebrou com a Ré, nada por esta importa ressarcir, ficando prejudicadas as demais questões suscitadas”.

Terá de improceder, pelo exposto, o recurso no que toca à responsabilização da ré, ficando assim, prejudicadas as restantes questões acima elencadas e que seriam de apreciar, caso procedessem os argumentos do apelante quanto à questão antecedentemente apreciada


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IV- DECISÃO
Em conformidade com o exposto, delibera-se julgar improcedente a apelação.

Custas no recurso pelo autor, sem prejuízo da isenção de que beneficia (cfr. art. 4º, nº 1, al. h) do RCP) e reconhecida na 1.ª instância.


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 (Luís Azevedo Mendes - Relator)

 (Felizardo Paiva)

 (Paula do Paço)