Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2458/10.0TBPBL-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PREJUÍZO
CREDOR
OCULTAÇÃO
PATRIMÓNIO
Data do Acordão: 12/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 186, 235, 238 CIRE
Sumário: 1. Constituindo a exoneração do passivo restante uma excepção ou desvio à ratio e teleologia que subjaz e inspira todo o regime do CIRE, qual seja, a satisfação, o mais ampla possível, dos direitos dos credores, importa, para defender o justo equilíbrio dos interesses em presença, operar uma análise cuidadosa sobre a verificação, ou não, dos requisitos legais que a tal pedido podem obviar – artº 238º do CIRE.

2. O prejuízo dos credores, exigido pela al. d) do nº1 do artº 238º, não decorre automaticamente do atraso na apresentação à insolvência, mas também não constitui elemento autónomo e independente de tal atraso e apenas consistente em actos de dissipação de património ou acumulação de dívidas, antes podendo ser qualquer hipótese de redução da possibilidade de pagamento dos créditos, oriunda do atraso na apresentação à insolvência.

3. Pelo menos nos casos em que os factos adrede provados deixam dúvidas sobre a presença, ou não, dos requisitos obstativos à concessão da exoneração, deve aferir-se, atentos todos os elementos do processo, se o impetrante agiu, ou não, de boa fé, lato sensu, i.e. com correcção, transparência e honestidade, pois que só naquele caso, lhe assiste jus à mesma.

4. A ocultação prevista no artº 186º nº2 al. a) do CIRE basta-se com uma actuação que, alterando a situação jurídica do bem – vg. vendendo-se a terceiros - impeça ou dificulte a sua identificação, acesso ou accionamento pelo credor.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

1.

A (…), requereu, no processo de insolvência que lhe foi instaurado por  C (…) Lda, a exoneração do passivo restante.

O Sr. Administrador e os credores pronunciaram-se contra tal pedido.

Foi proferida decisão na qual, atento o estatuído no art. 238, nº 1 alíneas d) e e) e nº 1, (quereria dizer-se nº2)  se indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo.

2.

Inconformado recorreu o insolvente.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I.Não se pode entender que desde Maio de 2010 que o Insolvente já tinha conhecimento da sua situação de insolvência, carecendo os autos de elementos que conduzissem a Meritíssima Juiz a tal conclusão.

II. No despacho inicial de indeferimento não são tais factos indicados, não se baseando, pois, o despacho de que se recorre, em factos concretos que decorrem do presente processo.

III.É entendimento do Recorrente que não incumpriu o lapso temporal que se encontra previsto no artigo 238.º, n.º 1, d), do CIRE, porquanto não existe da sua parte obrigação de apresentação à insolvência, mas a verdade é que assim que a sua insolvência foi requerida, o Recorrente assumiu a mesma, já que apenas nessa data se apercebeu da actualidade da sua situação de insolvência.

IV.Não se pode concluir, como erradamente fez a Meritíssima Juiz “a quo”, que não foi cumprido o lapso temporal de 6 meses estabelecido no artigo 238.º, n.º 1, d), do CIRE.

V.Mesmo que se entenda que o Recorrente não cumpriu o lapso temporal de seis meses estabelecido no artigo 238.º, n.º 1, d), do CIRE – o que apenas se concede por mera questão de raciocínio – não constitui motivo justificativo que esse facto por si só, necessariamente, conduza ao indeferimento da concessão da exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no artigo 238.º, n.º 1, d).

VI. Não basta que o devedor, não estando obrigado a se apresentar à insolvência, não o tenha feito nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, exigindo o artigo 238.º, n.º 1, d) que exista prejuízo para os credores e que o devedor soubesse, ou não pudesse ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

VII. Compulsados os autos temos que não resulta dos mesmos que os credores tenham sofrido prejuízos pela não apresentação à insolvência, por parte do Recorrente, nos seis meses posteriores à verificação da situação de insolvência, até porque tais prejuízos não foram sequer invocados pelos credores que se limitaram a indicar que se opunham a que fosse concedida a exoneração do passivo restante ao Recorrente.

VIII.Não decorre do despacho recorrido que a Juiz “a quo” tenha vislumbrado a existência de prejuízos para os credores, baseando-se o despacho de que se recorre numa venda de património pertencente ao Recorrente, não se podendo, no entanto, inferir de tal venda que a mesma tenha causado, de uma forma intencional, prejuízo aos seus credores.

IX.A existir prejuízo para os credores o mesmo teria necessariamente que implicar um agravamento da divida do Recorrente, ou seja teria que existir um aumento dos valores em divida, facto que não ocorreu nos presentes autos e nem sequer foi alegado pelos credores ou sequer decorre do despacho de que se recorre.

X.Não foi o facto de ter o Insolvente procedido à venda do seu património que agravou a sua situação de insolvência, tal apenas aconteceria se tivesse existido um incremento dos valores em divida, facto que não sucedeu e nem sequer serviu de base ao despacho que de que se recorre que se limita a fundamentar o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante na venda do património do Recorrente.

XI. A venda de património foi assumida, nos presentes autos, por parte do Recorrente, nunca tendo sido ocultado esse facto, já que foi o próprio Insolvente que indicou, aquando da sua intervenção nos autos, que havia efectuado tais alienações, comunicando ao presente processo que tais bens faziam parte do seu activo, tendo consciência e assumindo que os mesmos eram seus.

XII. Ao ter sido indicado pelo Recorrente que é proprietário dos bens em causa, e que tempos antes os havia vendido, é forçosa a conclusão que não teve qualquer intenção de ocultar património, ou de actuar de forma menos lícita ou de prejudicar os seus credores.

XIII. A intenção do Recorrente foi levar ao presente processo a verdade, sendo este comportamento revelador da sua postura de transparência, boa fé, tendo a noção de que a venda efectuada não podia permanecer.

XIV.Dificilmente se compreende o despacho de indeferimento liminar proferido, não se percebendo como pôde a Meritíssima Juiz “a quo” ter entendido que o Recorrente ocultou o seu património, quando o sucedido foi precisamente o contrário!

XV.Sempre seria fácil para os credores apresentar no presente processo prova documental que levasse a concluir que o Insolvente praticou efectivos e múltiplos actos de gestão que terão eventualmente sido determinantes para a situação deficitária em que se encontra.

XVI.A verdade é que tais elementos não foram trazidos aos autos pelos credores ou pelo Senhor Administrador da Insolvência, conforme lhes competia.

XVII.No sentido do exposto veja-se o Acórdão proferido pela 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 926/10.3TBVCD-A.P1, bem como o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no processo n.º 3850/09.0TBVLG-D.P1.S1, em 21 de Outubro de 2010, que determinou que

“B) – Ónus dos requerentes. Entende o recorrente que “é ao requerente que cumpre alegar e demonstrar os factos concretos que, encandeados entre si, permitam concluir que o incumprimento do dever de apresentação à insolvência não teve qualquer incidência na sua situação económica, nem prejudicou os seus credores, pois que tal prejuízo presume-se no caso em que o requerente há muito não tem bens em número e valor susceptível de satisfazer as suas dívidas”. Cremos que também não tem razão. É que e conforme resulta do disposto no nº3 do artigo 236º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o devedor pessoa singular tem apenas, no requerimento de apresentação à insolvência em que formula o pedido de exoneração do passivo restante, de “expressamente declarar” que “preenche os requisitos” para que o pedido não seja indeferido liminarmente.

Ou seja e como refere Assunção Cristas “in” Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante” – Themis/Revista de Direito/Setembro de 2005, página 168  “o devedor pessoa singular tem o direito potestativo a que o pedido seja admitido e submetido à assembleia de apreciação do relatório, momento em que os credores e administrador da insolvência se podem pronunciar sobre o requerimento (artigo 236º/1 e 4)”. Isto significa, em nosso entender, que o devedor não tem que apresentar prova dos requisitos. Até porque, bem vistas as coisas, as diversas alíneas do nº1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelecem os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

Não constituem factos constitutivos do direito do devedor de pedir esta exoneração. Antes e pelo contrário, constituem factos impeditivos desse direito. Nesta mediada, compete aos credores e ao administrador da insolvência a sua prova – cfr. nº2 do artigo 342º do Código Civil.

Um afloramento deste entendimento pode encontrar-se na alínea e) do referido artigo 238º, quando aí se prevê o caso de para a indiciação da existência a culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência e no caso de não constarem já do processo, os elementos serem fornecidos pelos credores ou pelo administrador da falência. No caso concreto em apreço e em relação à questão anteriormente tratada sobre a existência de prejuízos para os credores, não foram fornecidos quaisquer elementos ou factos que contrariassem o alegado pelos devedores, para além do avolumar do juros que, já vimos, não pode se tido como prejuízo. Assim, bem de andou no acórdão recorrido em considerar como não verificado o pressuposto em causa.”

(sublinhado nosso).

XVIII.Não se compadece com o despacho recorrido que tenha existido qualquer ocultação de património, até porque a venda de um bem imóvel não é passível de ocultação, atenta a sua obrigatoriedade de registo.

XIX.Neste sentido já se pronunciou o referido Acórdão proferido pela 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 926/10.3TBVCD-A.P1, tendo determinado numa questão semelhante que “Quanto ao imóvel não há qualquer intenção de ocultação, uma vez que foi o próprio requerente que o mencionou, depois porque, tratando-se de um bem imóvel, não, por natureza passível de ocultação ou dissipação.”.

XX. Não resulta dos autos que o Recorrente soubesse, ou não pudesse ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, nem pode tal resultar dos autos, pois não é pelo facto de as empresas de que o Recorrente é sócio e gerente se terem apresentado à Insolvência que daí poderá resultar tal conclusão.

XXI. Uma das sociedades pertencente ao Insolvente encontra-se em processo de recuperação e não de liquidação, o que significa que a actividade profissional do Recorrente se vai manter e que grande parte das suas dívidas será liquidada, até porque estas decorrem maioritariamente de aval prestado a essas mesmas sociedades.

XXII. O que leva a que exista prejuízo para os credores é o agravamento da situação económica do Recorrente, no lapso de tempo decorrido desde a verificação da situação de insolvência até ao momento em que o Recorrente se apresenta à insolvência, tendo necessariamente de existir um agravamento da sua situação financeira.

XXIII. A lei não se basta com o agravar da dívida; a lei exige efectivamente um prejuízo para os credores decorrente do agravamento da sua situação financeira, que no caso sob judice, não se verifica.

XXIV. Não é suficiente dizer que como não foi cumprido o prazo de seis meses, que tal facto acarreta invariavelmente prejuízo para os credores e que o Recorrente sabia ou pelo menos não podia ignorar sem culpa grave não existirem perspectivas sérias de melhoria da sua situação económica.

XXV.Neste sentido, entre outros, já se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 286/09.5TBPRD-C.P1, em 6 de Outubro de 2009, in www.dgsi.pt, tendo determinado que “II – A não observância do prazo de seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência por pessoa singular não titular de empresa comercial, para fundamentar o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, tem que resultar clara dos autos e ser cumulativa com a evidência de que o atraso na apresentação prejudicou os interesses dos credores, sabendo o insolvente ou não podendo ignorar, sem culpa grave, que inexistia qualquer perspectiva de melhoria da sua situação económica.”, acrescentando ainda o sobredito Acórdão que “De qualquer modo, mesmo que se entendesse que era possível concluir que a situação de insolvência dos Requerentes havia ocorrido há mais de seis meses, considerando a data da sua apresentação, tal facto não determinaria só por si o indeferimento liminar do pedido formulado, uma vez que ainda se teria que constatar que esse atraso havia prejudicado os interesses dos credores, nomeadamente por ter contribuído para o agravamento da sua situação de insolvência, e que os insolventes sabiam ou não podiam ignorar, sem culpa grave, que inexistia qualquer perspectiva de melhoria da sua situação económica, uma vez que o preenchimento destes requisitos como fundamento do indeferimento liminar é cumulativo.”.

XXVI.Não se encontra preenchido o artigo 238.º, n.º 1, e), bem como a artigo 186.º, n.º 2, do CIRE, uma vez que o Insolvente reconheceu a realização das alienações, não se tendo, de forma alguma, oposto à sua resolução, facto que não pode deixar de ser tido em consideração por parte desse Exmo. Tribunal, e que necessariamente exclui qualquer actuação dolosa ou com culpa grave, por parte do Recorrente.

XXVII.Não corresponde integralmente à verdade que o Recorrente não tenha cumprido com o dever de colaboração no presente processo, tendo mesmo o Senhor Administrador vindo informar precisamente o contrário, pelo que tal argumento não deveria ter servido de base ao despacho de que se recorre.

XXVIII. Em parte alguma do despacho recorrido é indicado em que medida tal falta de colaboração se manifestou ou sequer se foi preponderante para o desenrolar do presente processo.

XXIX. A Meritíssima Juiz “a quo” fez uma errada interpretação e aplicação do preceito contido na alínea d), do n.º 1, do artigo 238.º, do CIRE.

 Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida que indeferiu a concessão da exoneração do passivo restante ao Recorrente em conformidade com as presentes alegações, devendo ser a decisão recorrida substituída por outra que admita tal exoneração, seguindo-se os ulteriores termos processuais.

Contra-alegou a credora requerente, pugnado pela manutenção do decidido.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685º-A do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Deferimento do pedido de exoneração do passivo restante por inverificação dos elementos legais obstativos previstos no artº 238º nº1 als. d) e e) do CIRE.

5.

Decidindo.

5.1.

Clama o recorrente pela inexistência de factos na decisão que alicerçassem as conclusões nela vertidas e a pertinente subsunção nos normativos invocados.

Com alguma razão o faz, posto que apenas  de índole  mais formal do que substancial.

Efetivamente a sentença/decisão que decida de mérito alguma questão essencial ou pedido, deve respeitar as exigências formais previstas no artº 659º do CPC, de entre as quais se impõe a discriminação autónoma dos factos que sufragam a aplicação do direito.

Só assim a decisão se revela uma peça escorreita, facilmente percetível, inteligível, a valer apenas por si: ie., sem necessidade de outras indagações no processo, e, assim, melhor sindicável.

Caso contrário assumir-se-á, por via de regra, uma peça maçuda, complexa, dúbia e, destarte, suscetível de várias interpretações e confusões.

A decisão ora em sindicância não cumpre os requisitos legais e, assim, não se revela um modelo formal, dando azo às interpretações e dúvidas colocadas pelo recorrente.

Porém, perscrutada a mesma, alcança-se que, substancialmente, ela não é nula, ex vi do estatuído no artº 668º nº1 al.al. b), 1ª parte do CPC,  pois que, bem vistas as coisas, encerra os factos em que se alicerça, posto que esparsadamente nela colocados.

Destarte, importa corrigir tal deficiência e considerar de uma maneira ordenada, conjunta e sistemática, os factos apurados com relevância para a decisão,  atentos não apenas os mencionados na sentença como os dimanantes do processo.

Os quais, assim,  são os seguintes:

A ação atinente ao pedido de insolvência do requerido operada pela credora C (…), Lda foi instaurada em  final de 2010.

A insolvência do requerido foi decretada por sentença de 24.03.2011, com base nos seguintes, essenciais, factos, pelo requerido confessados:

O requerido reconheceu, em Março de 2009, ser devedor da C (…), Lda  pelo valor de 101.800,00 euros, acordando no seu pagamento;

O requerido não cumpriu o acordado;

Mediante escritura pública realizada em 19 de Maio de 2010,  o insolvente vendeu à sociedade (…) o imóvel sua casa de habitação bem como os móveis que nela se encontravam;

Esta sociedade era administrada, de facto, pelo requerido;

Este passou, relativamente ao dito imóvel, de proprietário, a fiador da arrendatária sua mulher;

O insolvente concordou junto do Administrador da insolvência em que os aludidos contratos por si celebrados fossem resolvidos.

O requerido tem outras  dívidas, vg. para com o Montepio Geral, no valor de 102.000 euros e M ( ...) , SA, no valor de 55.795 euros a qual contra ele instaurou ação executiva;

A sociedade C ( ...) de que ele é sócio deve à Fazenda nacional e à Segurança Social 400.000,00 euros.

Contra esta sociedade e a sociedade (…), de que o requerido é sócio, foram instaurados processos de insolvência.

Não é conhecido ao requerido outro património nem quaisquer rendimentos.

Em Maio de 2010 o seu passivo era superior ao activo não conseguindo proceder aos pagamentos em dívida aos seus credores, nomeadamente instituições bancárias.

5.2.

Apreciemos então.

Nos termos do  artº 235º do CIRE: Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste ….

Como é consabido e comummente aceite a concessão da exoneração do passivo é uma medida inovadora, que o preâmbulo do DL 53/2004, de 18.03 explica: “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em processo de insolvência…»

A exoneração representa uma exceção, ou, pelo menos, um desvio importante à ratio e teleologia que subjaz e inspira todo o regime do CIRE, qual seja, a satisfação, o mais ampla e célere possível, dos direitos dos credores.

Por outro lado: «a introdução deste mecanismo pode levar a um aumento grande do número de processos de insolvência de pessoas singulares, uma vez que se pode revelar bastante vantajoso para essas pessoas. As estatísticas tenderão, pois, a refletir a introdução dos mecanismos da nova lei» - Assunção Cristas, Exoneração do Devedor do Passivo Restante, in Revista Themis da Faculdade de Direito da UNL, 2005, p.166.

Nesta conformidade, considerando o aludido cariz excecional e sendo congeminável uma atuação, pelo menos temerária, do devedor no impetramento da exoneração, importa operar uma análise cuidada e cuidadosa sobre a verificação e presença, ou não, dos requisitos legais que a tal pedido podem obviar.

Efetivamente «se o incidente não deverá reduzir-se a um “instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas, sem qualquer propósito mesmo de alcançar o seu regresso à actividade económica, no fundo o interesse social perseguido” e “sem que se divise sequer, mesmo em termos verosímeis, o almejado retorno à actividade económica do beneficiário dado que a este título nenhuma comprovação lhe é exigível”, a exoneração do passivo é uma medida de protecção ao devedor que seja pessoa singular, que tenha pautado a sua conduta passada pela correcção, transparência e boa fé nas relações, e que durante um período de prova, venha a revelar idêntica conduta. Há um tratamento diferenciado, favorável a estes devedores relativamente aos demais insolventes, a respeito dos quais o interesse social não justifica igual protecção. Daí que, no despacho inicial, seja a actuação passada e presente do devedor insolvente analisada, até para aferir da vontade e capacidade do requerente para cumprir as exigências que a lei lhe impõe, havendo de rejeitar-se o benefício quando dessa actuação se conclua que o devedor não merece beneficiar dessa protecção e que com a pretensão nada mais visa do que libertar-se das dívidas duma forma fácil e rápida (decorridos apenas cinco anos, sem esperar pelo decurso do normal prazo de prescrição)»- Ac. da Relação do Porto de 18.06. 2009, dgsi.pt. p. 3506/08.0TBSTS-A.P1, cit. na sentença.

            Na verdade: «A exoneração do passivo restante não pode ser vista como a possibilidade de o insolvente se libertar, quase automaticamente, da responsabilidade de satisfazer as obrigações para com os seus credores…» - Ac. da Relação do Porto de 10.05.2011, dgsi.pt, p. 1292/10.2TJPRT-D.P1.

Cuidado aquele tanto mais de adotar quanto é certo que ao devedor, para obter o deferimento liminar da exoneração, basta invocar que não está abrangido por qualquer impedimento legal, e impendendo sobre o Administrador, ou qualquer credor, convencer da verificação de qualquer dos factos integrantes dos fundamentos do “indeferimento liminar” previsto no art. 238º do CIRE, já que estes têm natureza impeditiva da pretensão formulada  por aquele – cfr. artº 342º nº2 do CC e Ac. do STJ de 06.07.2011, dgsi.pt, p. 7295/08.0TBBRG.G1.S1.

Isto não obstante, e considerando o elevado grau de dificuldade de tal prova,  dado que incide sobre factos pessoais ou, porventura, praticados pelo insolvente no âmbito de uma atividade mais ou menos de cariz privado e até sigiloso, se poder perspetivar tal ónus com algum grau de mitigação e plasticidade e, eventualmente, poder exigir-se a colaboração acrescida do insolvente para apurar e clarificar a presença (ou não presença) dos legais requisitos impeditivos da exoneração.

5.3.

De entre as causas de indeferimento liminar, releva para o caso vertente o disposto na al.d) do nº1 do artº 238º do CIRE, a saber: ter o devedor incumprido o dever de apresentação à insolvência ou não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Como emerge da sua letra, a aplicação deste segmento normativo  apenas emerge se estiverem presentes os seus três elementos constitutivos, a saber:

a) o devedor não cumpriu o dever de apresentação à insolvência ou, se não estando obrigado a tal apresentação, não o tiver feito nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;

b) existência de prejuízos decorrentes do incumprimento do dever de apresentação;

c) o conhecimento ou desconhecimento culposo de que não havia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

5.3.1.

O despoletamento e aplicação deste segmento normativo tem sido objeto de várias posições/ interpretações jurisprudenciais no que tange ao elemento “prejuízo”.

Para uns ele decorre automaticamente do incumprimento à apresentação à insolvência – acs. do trc de 17/12/2008, p. 1975/07.4tbfig.c1; trg de 30/04/2009 p.2598/08.6tbgmr-g.g1; do trp de 15.07.2009 p.6848/08.0tbmts; do trg de 31/12/2009, p.2199/08.9tbgmr.g1; do trp de 19/01/2010, p.627/09.5tboaz-b.p1; do trl de 28/01/2010 p.1013/08.otjlsb-d.l1-8; do trc de 11/02/2010, p.570/10.5tbmgr-b.c1; do trp de 20/04/2010, p.1617/09.3tbpvz-c.p; do trg de 12/07/2010, 7750/08.1tbmts-f.g1; do trc de 07/09/2010, p.72/10.0tbsei-d.c1; do trg de 12/10/2010, p.2945/09.8tbbrg.g1; do trc de 14/12/2010, p.326/10.5t2avr-b.c1; do trp de 15/12/2010,p. 1344/10.tbpnf-a.p1; do trg de 27/01/2011,p. 6067/09.9tbbrg-g.g1;  todos in  in dgsi.pt. 

Aduzem, para tanto e em síntese que: «A partir do momento em que, estando em situação de insolvência, não existe qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica em que se encontram, a inacção dos devedores, ao não requererem tempestivamente a respectiva insolvência, redunda, em princípio, em prejuízo dos credores, pois que, para além de provocar o avolumar dos montantes em dívida a estes, por via do acumular dos juros remuneratórios e/ou moratórios, possibilita que o património se vá dissipando, diminuído, assim, a garantia que este representa para tais credores.»-  Ac. da Rel. Coimbra de14/12/2010, cit.

Para outros tal elemento é autónomo, independente e adicional, do atraso à apresentação à insolvência – acs. do trp de 11/01/2010, 347/08.8tbvcd-d.p1; do trp de 14/01/2010, 135/09.4tbsjm.p1; do trc de 23/02/2010 1793/09.5tbfig-e.c1; do trp de 19/05/2010, 1634/09.3tbgdm-b.p1; do trp de 30/09/2010, 430/09.2tjprt.p1; do trc de 02/11/2010, 570/10.5tbmgr-b.c1; do trp de 18/11/2010, 1826/09.5tjprt-e.p1; do trc de 23/11/2010 1293/09.3tbtmr-a.c1; do trl de 14/12/2010, 2575/09.0tbalm-b.l1-1; do trg de 18/01/2011, 5984/09.0tbbrg-e.g1; do trp de 25/01/2011, 4898/09.9tbsts-e.p1; do trp de 08/02/2011, 754/10.6tboaz-e.p1; do trp de 10/02/2011, 1241/10.8tboaz-b.p1;  do trp de 15/03/2011, 2887/10.0tbgdm-e; de 24.03.2011, p. 444/10.0tbpni-d.l1-6.

Invocam estes: «o prejuízo dos credores acresce aos demais requisitos - é um pressuposto adicional, que aporta exigências distintas das pressupostas pelos demais requisitos, não podendo por isso considerar-se preenchido com circunstâncias que já estão forçosamente contidas num dos outros requisitos. Valoriza-se aqui […] a conduta do devedor, ou seja, apurar se o seu comportamento foi pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé, no que respeita à sua situação económica, devendo a exoneração ser liminarmente coarctada caso seja de concluir pela negativa.

 […] a lei não visa mais do que os comportamentos que façam diminuir o acervo patrimonial do devedor, que onerem o seu património ou mesmo aqueles comportamentos geradores de novos débitos (a acrescer àqueles que integravam o passivo que estava já impossibilitado de satisfazer).» - Ac. do TRP de 21/10/2010, p.3916/10.2TBMAI-A.P1.

Finalmente outros, considerando que o prejuízo não pode ser desligado do atraso na apresentação, entendem que ele não pode ser presumido, mas antes efetivo e decorrente de factos apurados – Cfr. entre outros, o Ac. do TRC de 25.10.2011, p. 96/11.0T2AVR-D.C1 e do  STJ de 03.11.2011, p. 85/10.1TBVCD-F.P1.S1.

Clamam estes que: «Do simples facto de o insolvente se apresentar tardiamente à insolvência não se pode presumir, sem mais, a verificação de prejuízo para os credores. Esse prejuízo, a que se alude naquela norma, terá que ser efectivo e consubstanciado ou concretizado em factos que autorizem a conclusão quanto à existência do mesmo, e tendo sempre como causa ou relação a apresentação tardia à insolvência.» (sublinhado nosso) Ac.  cit. do TRC.(sublinhado nosso).

Na verdade: «Em primeiro lugar…resulta da letra da lei, que liga causalmente o prejuízo ao atraso na apresentação, por referência ao prazo de seis meses. Restringir a sua aplicação às hipóteses em que o devedor contraiu novas dívidas ou dissipou o património significa encontrar outra causa do prejuízo.

Por outro lado: «a consideração equilibrada do interesse dos credores – protegidos pelo processo de insolvência… – e dos devedores – que o regime da exoneração beneficia – obriga a exigir como condição deste benefício uma actuação que também objectivamente tenha acautelado os interesses daqueles, traduzida numa apresentação à insolvência em tempo oportuno. Não é suficiente que o devedor não tenha dissipado o património, contraído “mais e mais dívidas”, andado a “meter para o bolso”…; basta recordar que o pedido de exoneração pode ser indeferido mesmo que a insolvência seja apenas fortuita.»

Destarte: «Tal prejuízo deve entender-se como abrangendo qualquer hipótese de redução da possibilidade de pagamento dos créditos, provocada pelo atraso na apresentação à insolvência, desde que concretamente apurada, em cada caso.» - Ac. cit. do STJ.(sublinhado nosso).

5.3.2.

Propendemos para este último entendimento, o qual consideramos o mais curial porque mais equitativo na consideração dos interesses em confronto: o dos credores a verem-se total e o mais celeremente ressarcidos e o do devedor em ter uma nova oportunidade de relançar a sua atividade económica.

Aliás muitos dos arestos supra citados e atinentes às duas primeiras teses, acabam, de alguma sorte e mais ou menos assertivamente, por propugnar esta interpretação intermédia.

Temos por líquido e inequívoco que o prejuízo não é elemento autónomo e adicional do atraso, o que, efetivamente, acabaria por redundar numa nova causa impeditiva da concessão da exoneração, a qual, obviamente, não pode ser criada pelo intérprete.

Mas, por outro lado, também não pode defender-se que o atraso implica, sempre, necessária e inelutávelmente, prejuízo para os credores, ainda que se conceda que, por via de regra, tal possa acontecer.

Serão, pois, os factos apurados em cada caso concreto, e a melhor interpretação que dos mesmos deve ser feita, que podem acarretar, ou não, a conclusão de que o atraso causou prejuízo.

Interpretação esta que deve revestir-se de alguma sagacidade e ser temperada com laivos de sensatez, acolher regras da lógica, e perspetivar a própria natureza das coisas e a experiencia comum.

Podendo, em função de tais elementos, o julgador, imbuído de um sensato, mas necessário, juízo crítico, ultrapassar a aridez e aparente inocuidade dos factos adrede e inequivocamente apurados, para, dos mesmos, e sem os desvirtuar, extrair outros ou formular juízos e conclusões que sejam a sua  necessária, ou, pelo menos, normal decorrência ou consequência.

Nisto, aliás, consistindo a mais nobre, posto que exigente, função do seu munus.

5.4.

Assim e descendo ao caso vertente a Sra. Juiza decidiu aduzindo o seguinte discurso argumentativo:

«…verifica-se, tal como alias é reconhecido pelo insolvente …que o mesmo, mediante escritura pública realizada em 19 de Maio de 2010, procedeu à venda a terceiro da sua casa de …tendo nessa mesma data declarado vender, por contrato escrito …os móveis que nela se encontram à mesma compradora da aludida moradia.

Ou seja, considerando que tal como é reconhecido pelo insolvente no apenso a fls. 24, que tais imóveis, conjuntamente com duas participações sociais em duas empresas que foram declaradas insolventes, eram os seus únicos bens e sendo certo, por outro lado, que resulta da posição pelo mesmo assumida a fls. 10 e 11 do apenso que já em Maio de 2010 o seu passivo era superior ao activo não conseguindo proceder aos pagamentos em dívida aos seus credores, nomeadamente instituições bancárias, é patente que o mesmo se absteve de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência.

…o insolvente, ao invés de em Maio de 2010 se apresentar à insolvência, procurou desfazer-se de todos os seus bens, numa tentativa de garantir que os mesmos não eram utilizados para pagamento das dívidas aos seus credores, causando, assim e intencionalmente, o prejuízo dos mesmos.

Por outro lado, o mesmo, ao desfazer-se de todo o seu património e dado que as empresas de que era sócio gerente se encontravam igualmente numa situação de insolvência – entretanto judicialmente decretada – tornava patente não existir perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Acresce, ainda, que a alínea e), do nº 1 do art. 238º do CIRE estabelece que é também indeferido o pedido de exoneração do passivo restante se constarem já do processo, …elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art. 186º.

Ora, o art. 186º, 1 do CIRE estatui que “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

no nº 2, al. a), do art. 186º CIRE encontra-se preceituado que se considera sempre culposa a insolvência quando o devedor tiver ocultado ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o seu património.

No caso dos autos, como supra já se deixou dito, foram trazidos elementos documentais ao processo – cfr. fls. 62 e segs. de onde consta a escritura de compra e venda, o contrato promessa e o contrato de arrendamento – de que resulta que o insolvente fez desaparecer parte considerável do seu património, procedendo à venda da sua casa de habitação, bem como dos móveis nela existentes numa tentativa de prejudicar os credores.

Efectivamente, demonstrativo de que essa era a sua intenção é a circunstância de a compradora de tal imóvel ter, no dia 1 de Junho de 2010, dado de arrendamento a casa de habitação que acabava de ser adquirida à mulher do aqui insolvente.

É certo que no âmbito deste processo de insolvência, já depois de ter sido realizada uma primeira reunião da Assembleia de Credores, o insolvente concordou junto do Administrador da insolvência em que os aludidos contratos por si celebrados fossem resolvidos.

Contudo, deve dizer-se que tal circunstância não apaga o comportamento anterior assumido pelo insolvente, que tudo fez para defraudar os seus credores e apenas devido à circunstância de por um deles ter sido pedida a sua insolvência, veio, então, reconhecer o que era por demais evidente – ou seja, a artificialidade dos negócios efectuados que mais não visavam do que o esvaziamento do respectivo património, almejando a finalidade de evitar que os credores se pagassem por ele.

De referir que mesmo ainda quando o Sr. Administrador tentou iniciar os contactos com o insolvente os mesmos se mostraram muito difíceis, como é relatado no relatório apresentado pelo Sr. Administrador.

É certo que o mesmo acabou por colaborar …tal colaboração a posteriori não afasta todo o comportamento anterior do insolvente que, como já se deixou dito, procurou por todas as formas evitar que os credores obtivessem a satisfação dos seus créditos com a liquidação do respectivo património.»

E visto o processo e os factos nucleares apurados tem de concluir-se que esta posição, na sua essencialidade relevante e no que concerne à aplicação da al. d) do artº 238º, não merece censura.

Pois que, devidamente interpretados tais factos e analisada toda a sua atuação, ao abrigo/com respeito/ sob a égide, dos aludidos princípios hermenêuticos, máxime as regras da lógica e da experiencia comum, tem de concluir-se que os três requisitos por ele exigidos, se encontram presentes.

Desde logo alcança-se que o recorrente não se apresentou à insolvência nos seis meses seguintes à verificação desta  situação.

Pois que esta situação emergiu, pelo menos, em princípio de 2009 e o processo de insolvência apenas foi despoletado em finais de 2010 e por iniciativa de um credor.

 Por outro lado tal retardamento causou prejuízo aos credores.

Na verdade, no lapso de tempo que medeou entre a verificação da situação de insolvência – pelo menos desde Março de 2009 – e a instauração do processo de insolvência e declaração da mesma – Março de 2011 – o recorrente, em vez de ele próprio se apresentar, tratou de dissipar/alienar o seu património, ou, melhor, criar uma nuvem de fumo sobre o mesmo, vendendo-a a sociedade curiosamente constituída em Maio de 2010, onde preponderam parentes e pessoas das suas relações, e numa altura em que era já mais do que evidente que as suas dificuldades económicas se apresentavam incontroláveis e, quiçá, irreversíveis.

Ora não tendo ele dado uma explicação lógica e plausível para tal facto e atuação, tem de concluir-se que com eles visava, exclusiva ou essencialmente, escapulir-se aos credores.

É evidente que tal alienação acarretou, objetivamente, prejuízo para os credores, os quais, assim, deixaram de vislumbrar património na esfera jurídico-patrimonial do recorrente, para poderem executar os seus créditos.

Nem podendo a sua atitude de aceitar a resolução dos negócios em benefício da massa insolvente apagar/justificar/mitigar tal atuação, pois que o prejuízo tem de ser, pelo menos por via de regra e determinantemente, apreciado e valorado contemporaneamente à data da pratica do ato, já que é nesta data que os credores ficam privados de agir sobre o património do devedor, e porque uma ação tardia se apresenta -, pelo menos por via de regra  e sem que o caso vertente se tenha mostrado exceção-, danosa, já porque , vg.,os créditos aumentaram e/ou o valor do património diminui.

 E não se podendo olvidar ou desconsiderar as despesas, trabalhos e aborrecimentos, afetantes da qualidade de vida a nível psico-moral, decorrentes das frustradas tentativas de cobrança os créditos.

Finalmente conclui-se que o recorrente sabia, ou pelo menos era-lhe exigível que soubesse, que não havia qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.

Está aqui em causa apurar se a não apresentação do devedor à insolvência se pode justificar por ele estar razoavelmente convicto de a sua situação económica poder melhorar em termos de não se tornar necessária a declaração de insolvência.

E ao exigir uma “perspetiva séria” o legislador aponta para um juízo de verosimilhança sobre a melhoria económica do insolvente, alicerçada naturalmente em indícios consistentes e não em fantasiosas construções ou otimismo compulsivo.

Ora nenhum facto apurado permite acobertar qualquer juízo de prognose minimamente consistente e credível sobre a melhoria da sua situação económica.

Antes pelo contrário, pois que, se apurou que contra as duas  sociedades de que o requerido é sócio, foram instaurados processos de insolvência, que não lhe é conhecido outro património nem quaisquer rendimentos e que em Maio de 2010 o seu passivo era superior ao activo não conseguindo proceder aos pagamentos em dívida aos seus credores, nomeadamente instituições bancárias, o que, tudo, demonstra que não tinha cabedal económico-financeiro para honrar os seus compromissos, nem tal situação se vislumbrava reversível ou até  sustentável, pelo menos a breve trecho.

5.5.

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, a pretensão do recorrente não poderia proceder.

Na verdade e como supra se expendeu, à concessão da exoneração subjaz a ideia de que o devedor deve ter tido uma atuação e conduta eivada/ pautada de correção, transparência  e honestidade.

È o que a lei designa de «pessoas singulares de boa fé incorridas em processo de insolvência».

 Esta atuação constitui o pressuposto genérico da concessão da exoneração, qual seja o de que o devedor impetrante «tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência» -  Assunção Cristas, ob. Cit., p.170.

Este requisito deve, pois, “pairar” sobre todo o regime legal e ser a pedra de toque para a concessão, ou não, da exoneração.

Na verdade os factos apurados, de per se, seca e objetivamente, poderão deixar dúvidas no julgador no sentido da concessão, ou não, da exoneração.

E apenas uma análise e dilucidação global e concatenada, de todos os factos, circunstancias, posições das partes e demais elementos do processo, poderão dissipar tais dúvidas e convencer num determinado sentido, se, através deles, se puder concluir que o impetrante da exoneração atuou, ou não, de boa fé.

Ora atentos os factos apurados e as ilações que, numa hermenêutica razoável e sensata, deles podem ser retiradas, não pode concluir-se pela verificação de tal pressuposto, pelo menos na vertente da transparência de atuação, e, até, boa fé, do insolvente, no decurso do hiato temporal que medeou entre a sua situação de insolvência e a declaração da mesma.

 Antes pelo contrário se podendo concluir, ainda dentro da margem de álea em direito permitida, pois que a ciência jurídica não assume o jaez de um ciência alicerçada em premissas de rigor exato e de cariz matemático, que tais pressupostos foram violados ou não foram cumpridos.

Efetivamente prova-se ou, no mínimo, indicia-se suficientemente, que o recorrente, antes do processo de insolvência, atuou de uma forma, no mínimo,  meandrosa e ziguezagueante , tendente a escapulir-se aos credores, fazendo acordos que não cumpria, vendendo bens a sociedades formadas por pessoas das suas relações familiares e pessoais e imediatamente antes da formalização do negócio, e nem tendo colaborado, numa fase inicial, com o Sr. Administrador o que apenas veio a acontecer numa fase ulterior e certamente quando se apercebeu que já não tinha fuga ou protelamento possíveis.

5.6.

Por aqui se vê que o recurso tem de improceder, pois que o caso pode e deve ser subsumido na al.d) do artº 238º do CIRE.

Porém e no que tange ao outro argumento aduzido na sentença, qual seja, que in casu se aplica, outrossim, o disposto no artº 186º nº2 al.a), nada há  também a censurar.

Efetivamente ao vender os bens nos termos em que o fez, ou seja, a uma sociedade constituída alguns dias antes por parentes seus e pessoas das suas relações e na qual o recorrente tinha, de facto, poderes de decisão, tem de concluir-se que ele pretendeu escapulir/ocultar tal património.

E ao termo “ocultar” não pode ser dada a interpretação restrita defendida peloinsurgente, no sentido de que estando a venda sujeita a registo, não pode haver ocultação.

Se assim fosse, efetivamente não haveria ocultação de imóveis, pelo que vazia ficava a previsão legal no a eles atinente e sendo certo que tal termo também se lhes refere, que não apenas aos bens móveis, porque tal segmento normativo não opera tal restrição.

Nesta conformidade a ocultação outrossim deve abranger casos como o presente em que o bem é vendido a um terceiro, podendo, inclusive, este revendê-lo, e assim sucessivamente.

Tal alienação, retirando os bens da esfera jurídica do devedor, implica um descaminho que pode impedir, ou, pelo menos - o que é o bastante para satisfazer a ratio legis -, dificultar, o seu acesso e o seu acionamento por parte do credor.

A lei não exige a ocultação  total  no sentido de se tornar impossível o seu acesso ou conhecimento, mas apenas parcial  no sentido de vontade, concretizada, de subtrair o bem ao direito/conhecimento do credor e respetiva ação legal, pelo que, e precisamente por isso, não exige ocultação no sentido físico, mas apenas no aspeto da situação jurídica do bem.

Aliás concomitantemente à ocultação a lei prevê o desaparecimento, o qual se revela um mais, no sentido da gravidade do descaminho, e que já pode ter as exigências propugnadas pelo recorrente para a presente e simples ocultação.

 Improcede o recurso.

6.

Sumariando.

I – Constituindo a exoneração do passivo restante uma exceção ou desvio à ratio e teleologia que subjaz e inspira todo o regime do CIRE, qual seja, a satisfação, o mais ampla possível, dos direitos dos credores,  importa, para  defender o justo  equilíbrio dos interesses em presença,  operar uma análise cuidadosa sobre a verificação, ou não, dos requisitos legais que a tal pedido podem obviar – artº 238º do CIRE.

II -O prejuízo dos credores, exigido pela al. d) do nº1 do artº 238º, não decorre automaticamente do atraso na apresentação à insolvência, mas também não constitui elemento autónomo e independente de tal atraso e apenas consistente em atos de dissipação de património ou acumulação de dívidas, antes podendo ser qualquer hipótese de redução da possibilidade de pagamento dos créditos, oriunda do atraso na apresentação à insolvência.

III- Pelo menos nos casos em que os factos adrede provados deixam dúvidas sobre a presença, ou não, dos requisitos obstativos à concessão da exoneração, deve aferir-se, atentos todos os elementos do processo, se o impetrante agiu, ou não,  de boa fé, lato sensu, i.e. com correção, transparência  e honestidade, pois que só naquele caso, lhe assiste jus à mesma.

IV – A ocultação prevista no artº 186º nº2 al. a) do CIRE basta-se com uma atuação que, alterando a situação jurídica do bem – vg. vendendo-se a terceiros - impeça ou dificulte a sua identificação, acesso ou acionamento pelo credor.

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão.

Custas pela massa.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Alberto Ruço