Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
159/15.2GTVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR
INJUNÇÃO
DESCONTO
PENA ACESSÓRIA
Data do Acordão: 10/26/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA LOCAL DE MANGUALDE – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 69.º, 81.º E 82.º, DO CP
Sumário: I - A injunção de proibição de conduzir veículos a motor aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo, tem natureza diferente da pena acessória prevista no art.69.º do Código Penal.

II - A injunção de proibição de conduzir veículos com motor, pela sua natureza, não é uma prestação que possa ser repetida, diferentemente do que acontece com prestações com carácter fundamentalmente patrimonial.

III - O Tribunal da Relação reconhece que inexiste norma a prever o desconto, na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, da injunção equivalente cumprida no âmbito da suspensão provisória do processo, como acontece nas situações descritas nos artigos 80.º a 82.º do Código Penal.

IV - Mas por uma questão de justiça material e respeito pelo cumprimento daquela injunção, equivalente ao cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos, entendemos com parte da jurisprudência, que temos como largamente maioritária, que deve considerar-se que a inexistência de norma a prever o desconto configura uma lacuna legal, e não uma opção do legislador.

V - No caso, a ausência do desconto levaria a sancionar duplamente a mesma conduta, mesmo entendendo que, rigorosamente, não estamos perante uma violação do princípio ne bis in idem.

Decisão Texto Integral:





Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

                          

     Relatório

Pela Comarca de Viseu – Instância Local de Mangualde, Secção de Competência Genérica – J1, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo abreviado, o arguido

A..., solteiro, pintor de automóveis (desempregado), nascido a 29 de julho de 1967, em Mangualde, filho de (...) e de (...) , titular do CC n.º (...) , residente na (...) , em Mangualde;

imputando-se-lhe a prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º n.º 1 e 69.º n.º l al. a), ambos do Código Penal.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 30 de março de 2016, decidiu julgar totalmente procedente, por provada, a acusação do Ministério Público e, em consequência:

- condenar o arguido A... , como autor material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts.69.º, n.º1, al. a) e 292.º, n.º1, ambos do Código Penal, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de €5,00, perfazendo o montante global de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros);

- condenar o arguido A... na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor de qualquer categoria pelo período de 5 (cinco) meses, nos termos do disposto no art.69.º, n.º1, al. a) do Código Penal; e

- determinar que se proceda ao desconto, no cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir, do período de tempo em que a carta de condução do arguido esteve apreendida à ordem dos presentes autos no âmbito da injunção aplicada ao arguido na suspensão provisória do processo determinada nestes autos, consubstanciada na não condução de veículos a motor, e, encontrando-se a carta do arguido apreendida nestes autos desde o dia 8/10/2015, considerar cumprida a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor agora aplicada, declarando-a extinta, determinando a imediata entrega ao arguido daquele título de condução.

            Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1. O arguido foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1 e artigo 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à razão diária de € 5, 00 (cinco euros), no total de € 350 ,00 (trezentos e cinquenta euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 05 (cinco) meses, na qual se procedeu ao desconto do período de inibição de conduzir cumprido no âmbito da suspensão provisória do processo entretanto revogada nos autos;

2. Entendemos que o Tribunal a quo ao operar tal desconto não fez uma correta aplicação dos comandos normativos ínsitos nos arts. 281.º, n.º 1, 2 e 3 e 282.º, n.º 4 do Código de Processo Penal e 69.º, n.º 1 alínea a) do Código Penal;

3. De facto, a injunção de proibição de conduzir veículos a motor aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo tem natureza diferente da pena acessória prevista no artigo 69.° do Código Penal quer ao nível da sua natureza (coativa ou não) quer das consequências do seu incumprimento, o que afasta a hipótese de desconto de uma na outra;

4. Por outro lado, no atual quadro legislativo não é possível proceder ao desconto na pena acessória do período de inibição de conduzir cumprido pelo arguido no âmbito da suspensão provisória do processo atenta a inexistência de norma que dite tal desconto;

5. Pelo contrário, o art.282.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, de forma expressa e clara, proíbe a repetição das prestações prestadas em caso de revogação da suspensão provisória do processo;

6. Tal regime terá de ser aplicável a todas as prestações prestadas independentemente da sua natureza por não se descortinar da letra e espírito da lei fundamento que justifique divergência de tratamento;

7. A tal conclusão não obsta a alteração legislativa operada pela Lei n.º 20/2013 de 21 de Fevereiro ao art.281.º, n.º 3 do Código de Processo Penal dado que a mesma não foi acompanhada da alteração do estatuído no n.º4 do art.282.º decorrendo uma única interpretação possível: a de que o legislador pretendeu manter tal norma e a sua ratio.

8. Por outro lado importa realçar que o legislador consagrou expressamente o desconto para outras situações tais como as previstas nos arts. 59.º, n.º4 e 80.º do Código Penal logo, não o terá feito para esta situação não por esquecimento cuja lacuna precise de ser integrada mas sim por opção que o intérprete e aplicador terão de respeitar;

9. Tendo em atenção o supra expendido somos do entendimento que foram violados os artigos 281.°, 282.°, n.º 4 do            Código de Processo Penal e 69.°, n.º 1, alínea a) do Código Penal porquanto não poderia in casu ter sido efetuado o desconto à pena acessória do período de proibição de conduzir que o arguido cumpriu no decurso do período da suspensão provisória do processo;

10. Assim, e reiterando as considerações tecidas, deverá o arguido ser condenado no cumprimento efetivo da pena da pena acessória de 5 (cinco) meses sem ser determinado à mesma qualquer desconto, pugnando-se pela revogação da sentença recorrida nesta parte.

            O arguido A... não respondeu ao recurso.

O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder, mantendo-se a douta decisão recorrida.

Notificado deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.417.º do Código de Processo Penal, o arguido nada disse.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            A matéria de facto dada como provada, constante da sentença recorrida,  é a seguinte:

            No dia 28 de agosto de 2015, pelas 16h01, o arguido A... conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula (...) RC, pela EN 234, área desta cidade de Mangualde, da sua propriedade.

Nesse contexto de tempo e lugar, foi o arguido fiscalizado por militares da G.N.R. Destacamento de Trânsito de Viseu os quais se encontram no exercício das suas funções de fiscalização rodoviária.

Nessa ocasião o arguido foi submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue através do aparelho “ DRAGER, modelo ALCOTEST 7110 MKIII P, série ARPN, com o n.º 0068, aprovado pelo IPQ e autorizado pela ANSR, acusou uma taxa de álcool no sangue (TAS) de, pelo menos, l,435g/l, a que corresponde, após dedução do erro máximo admissível, o valor apurado de 1,51 g/1.

Notificado de que poderia requerer contraprova o arguido declarou não pretender efetuá-la.

O arguido sabia que havia ingerido bebidas alcoólicas antes do exercício da referida condução e ainda assim não se absteve de conduzir nas referidas circunstâncias de tempo e lugar tendo como possível que podia estar a realizar esta atividade com uma taxa de alcoolémia no sangue não permitida por lei, conformando-se com aquela realização.

O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua  conduta era proibida e punida por Lei.

            O arguido é solteiro; reside sozinho em casa própria; encontra-se desempregado há cerca de 6 anos, não recebendo qualquer subsídio; vive com dinheiro que efetuou através da venda de bens que herdou.

Tem o 6.º ano de escolaridade.

            O arguido não tem antecedentes criminais.   
                                                                        *
            O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente Ministério Público a questão a decidir é a seguinte:

- se o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 281.º e 282.º, n.º 4 do C.P.P. e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, ao descontar à pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis o período de proibição de conduzir que o arguido cumpriu a título de injunção no decurso do período da suspensão provisória do processo posteriormente revogada, pelo que deve ser condenado no cumprimento efetivo da pena da pena acessória de 5 meses.

            Passemos ao seu conhecimento.

            São as seguintes as ocorrências processuais relevantes para o que importa apreciar no âmbito do presente recurso:

1.1 Por despacho de 23 de setembro de 2015, obtida a concordância do Ex.mo Juiz de Instrução, o Ministério Público determinou a suspensão provisória do processo relativamente ao arguido A... , nos termos do artigo 281º do Código de Processo Penal, durante o período de 7 meses, a contar da data da notificação do arguido A... , com imposição das seguintes injunções: 1) prestar durante o período da suspensão, cerca de 60 horas de trabalho a favor da comunidade, de acordo com o plano de trabalho a elaborar pela D.G.R.S.P. - Equipa do Dão Lafões; 2) não conduzir veículos automóveis na via pública pelo período de 4 (quatro) meses, devendo entregar a sua carta de condução ou qualquer outro documento que o habilitem a conduzir, nos serviços do Ministério Público, no prazo máximo de 10 dias a contar do início do prazo de suspensão; 3) para além de não praticar durante o período da suspensão provisória do processo qualquer facto ilícito doloso e mormente da mesma natureza.

Notificado o arguido A... da suspensão provisória do processo procedeu o mesmo, no dia 8 de outubro de 2015, à entrega nos presentes autos da carta de condução para cumprimento da injunção.

Por despacho de 21-12-2015, o Ministério Público, considerando que o arguido incumpriu a injunção de prestação do trabalho comunitário determinou o prosseguimento do processo, nos termos do art.282º n.º 4 do Código do Processo Penal, e deduziu acusação contra o arguido para julgamento em processo abreviado.

No despacho de recebimento da acusação, de 7 de janeiro de 2016, o Ex.mo Juiz ordenou a devolução ao arguido da carta de condução apreendida nos autos para cumprimento da injunção que lhe foi aplicada no decurso da suspensão provisória do processo, sem prejuízo de vir a ser tido em consideração numa eventual futura condenação do arguido em pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor o período de tempo em que a sua carta de condução esteve já apreendida nos autos em consequência da suspensão provisória do processo;

Realizada a audiência de julgamento foi arguido condenado, na sentença recorrida,  pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez. p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 70 dias de multa, à razão diária de € 5,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses e foi determinado proceder ao desconto do período de inibição de conduzir cumprido no âmbito da suspensão provisória do processo entretanto revogada nos autos, e, encontrando-se a carta do arguido apreendida nestes autos desde o dia 8/10/2015, considerar cumprida a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor agora aplicada, declarando-a extinta, determinando a imediata entrega ao arguido daquele título de condução.

1.2. O recorrente, Ministério Público na Comarca de Viseu - Instância Local de Mangualde, não se conforma com parte da douta sentença, defendendo que o Tribunal a quo ao operar o desconto do período de inibição de conduzir não fez uma correta aplicação dos comandos normativos ínsitos nos arts. 281.º, n.º 1, 2 e 3 e 282.º, n.º 4 do Código de Processo Penal e 69.º, n.º 1 alínea a) do Código Penal.

Alega para o efeito, em síntese, o seguinte:

- A injunção de proibição de conduzir veículos a motor aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo, tem natureza diferente da pena acessória prevista no art.69.º do Código Penal, quer ao nível da sua natureza (coativa ou não) quer das consequências do seu incumprimento, o que afasta a hipótese de desconto de uma na outra;

- No atual quadro legislativo, atenta a inexistência de norma que dite tal desconto, não é possível proceder ao mesmo na pena acessória do período de inibição de conduzir cumprido pelo arguido no âmbito da suspensão provisória do processo.

Pelo contrário, o art. 282.º, n.º 4 do Código de Processo Penal proíbe a repetição das prestações prestadas em caso de revogação da suspensão provisória do processo. Tal regime terá de ser aplicável a todas as prestações prestadas independentemente da sua natureza por não se descortinar da letra e espírito da lei fundamento que justifique divergência de tratamento.

A tal conclusão não obsta a alteração legislativa operada pela Lei n.º 20/2013 de 21 de Fevereiro ao art.281.º, n.º 3 do Código de Processo Penal dado que a mesma não foi acompanhada da alteração do estatuído no n.º4 do art.282.º decorrendo uma única interpretação possível: a de que o legislador pretendeu manter tal norma e a sua ratio.

Por outro lado importa realçar que o legislador consagrou expressamente o desconto para outras situações tais como as previstas nos arts. 59.º, n.º4 e 80.º do Código Penal. Logo, não o terá feito para esta situação não por esquecimento cuja lacuna precise de ser integrada, mas sim por opção que o intérprete e aplicador terão de respeitar.

1.3. Vejamos.

A suspensão provisória do processo é um instituto introduzido no ordenamento jurídico português pelo atual Código de Processo Penal, que limita o dever do Ministério Público de deduzir acusação sempre que tenha indícios suficientes de que certa pessoa foi o autor de um crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, apresentando-se como uma solução de consenso na solução do conflito penal relativamente a situação de pena e média criminalidade.

Para a sua consagração concorrem tanto razões de funcionalidade do sistema de justiça penal (desobstrução da máquina judicial e promoção da economia e celeridade processuais, com isso se fortalecendo globalmente a crença na efetividade dos mecanismos de reação penal, com o que simultaneamente se realiza o objetivo de prevenção), como de prossecução imediata de objetivos do programa político-criminal substantivo (evitar a estigmatização e o efeito dissocializador, ligados à submissão formal a julgamento, relativamente a delinquentes ocasionais com prognóstico favorável, o que se insere no princípio de redução da aplicação das sanções criminais ao mínimo indispensável).[4]

Nos termos do art.281.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, havendo consenso do arguido e do assistente, ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza, não havendo lugar a medida de segurança de internamento; não sendo o grau de culpa elevado e sendo de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta respondem suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir, o  Ministério Público determina, com a concordância do Juiz de Instrução, a suspensão provisória do processo, mediante injunções ou regras de conduta

As injunções e regras de conduta oponíveis ao arguido, cumulativa ou separadamente, são as seguintes, nos termos do n.º2 do art.283.º do Código de Processo Penal:

          «a) Indemnizar o lesado;

b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;

c) Entregar ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa quantia ou efetuar prestação de serviço de interesse público;

d) Residir em determinado lugar;

e) Frequentar certos programas ou atividades;

f) Não exercer determinadas profissões;

g) Não frequentar certos meios ou lugares;

h) Não residir em certos lugares ou regiões;

i) Não acompanhar, alojar ou receber certas pessoas;

j) Não frequentar certas associações ou participar em determinadas reuniões;

l) Não ter em seu poder determinados objetos capazes de facilitar a prática de outro crime;

m) Qualquer outro comportamento especialmente exigido pelo caso.

A Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, ao alterar a redação do n.º 3 do art.283.º do Código de Processo Penal, veio estabelecer uma nova injunção, ao enunciar que « Sem prejuízo do disposto no número anterior, tratando-se de crime para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, é obrigatoriamente oponível ao arguido a aplicação de injunção de proibição de conduzir veículos com motor.».

Sobre a duração e efeitos da suspensão provisória do processo, o art.282.º, do mesmo Código, estabelece designadamente:

«1 - A suspensão do processo pode ir até dois anos, com exceção do disposto no n.º 5.

  2 - A prescrição não corre no decurso do prazo de suspensão do processo.

  3 - Se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto.

  4 - O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas:

a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta;  (…)».

A gama de injunções e regras de conduta enunciadas no n.º 2 do art.281.º do C.P.P. , correspondem quase integralmente ao elenco de “deveres” e “regras de conduta” que podem ser impostos em caso de suspensão da execução da pena de prisão, descritos, respetivamente nos artigos 51.º e 52.º do Código Penal, e que a lei substantiva considera ajustados à reparação do mal do crime (deveres) e à promoção de ressocialização (regras de conduta).

A resposta da lei penal ao incumprimento das finalidades da suspensão é idêntico à dada ao incumprimento da suspensão da execução da pena de prisão, ao estabelecer no n.º2 do art.56.º do Código Penal, que « A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efetuado.». Ou seja, a não repetição das prestações, referida na parte final do n.º 4 do proemio do art.282.º do C.P.P., tem lugar um alcance paralelo ao da parte final do n.º 2 do art.56.º do Código Penal. 

Parece pacífico que a injunção de proibição de conduzir veículos a motor aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo, tem natureza diferente da pena acessória prevista no art.69.º do Código Penal.

A injunção não está ligada a censura ético-juridica da pena, nem a correspondente comprovação da culpa, nem o arguido está coagido à sua aceitação, o que não acontece com a aplicação duma pena criminal, ainda que acessória. Socorrendo-nos da lição do Prof. Manuel de Andrade , diremos que “As injunções e regras de conduta não são nenhuma pena no sentido do direito penal material. Nem configuram sequer uma sanção de natureza para-penal. Por outro lado, não pode esquecer-se que elas representam a inflição de um mal que só tem lugar por causa da conduta do arguido e das consequências que ela desencadeou. O que equivale a afirmar que as injunções e regras de conduta figuram como “equivalentes funcionais” de uma sanção penal: só assim se explica que se espere delas a realização do mesmo interesse público, por via de regra e em alternativa, satisfeito através da aplicação de uma pena.” [5]

Embora se aceite o primeiro dos argumentos indicados pelo recorrente, ou seja, que a injunção de proibição de conduzir veículos a motor aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo, tem natureza diferente da pena acessória prevista no art.69.º do Código Penal, entendemos, salvo o devido respeito por opinião contrária, que os restantes argumentos apresentados aqui pelo recorrente, estão longe de impor a solução por si protagonizada.

Antes do mais, cremos que o art.282.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, ao proibir a repetição das prestações prestadas em caso de revogação da suspensão provisória do processo, não deve levar à sua aplicação a todas as prestações independentemente da sua natureza.

Quando o n.º 4 do art.282.º do C.P.P. estabelece que em caso de incumprimento das injunções ou regras de conduta as prestações feitas não podem ser repetidas cremos que se pretende dizer que declarado o incumprimento não será possível ao arguido reaver, designadamente, o que satisfez como indemnização ao lesado ou que entregou de quantias ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social.

É o que se prevê também no n.º2 do art.56.º do C.P., quando estabelece que face à revogação da suspensão da pena o condenado não pode exigir a restituição de prestações que haja efetuado.

Nem da letra da lei, nem do seu espírito, resulta que o cumprimento no âmbito da suspensão provisória do processo da injunção de proibição de conduzir veículos com motor, deva ter um tratamento igual por parte da lei aos casos de cumprimento de injunções que respeitam a prestações com caráter fundamentalmente patrimonial, aceites voluntariamente.

A injunção de proibição de conduzir veículos com motor, pela sua natureza, não é uma prestação que possa ser repetida, diferentemente do que acontece com prestações com caráter fundamentalmente patrimonial.

Note-se ainda que face à atual redação do n.º 3 do art.281.º do Código de Processo Penal, embora a suspensão provisória do processo dependa do consenso do arguido querendo beneficiar da suspensão provisória do processo, quando para o crime esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, o mesmo tem de aceitar obrigatoriamente a injunção de proibição de conduzir veículos com motor, pois tal resulta de imposição da lei.

O n.º 3 do art.281.º do Código de Processo Penal, ao estabelecer esta imposição legal, procede a uma certa equiparação entre a injunção de proibição de conduzir veículos com motor e a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.

Tal foi reconhecido no parecer dos docentes da Faculdade de Direito de Lisboa, Maria Fernanda Palma, Paulo Sousa Mendes, João Gouveia de Caíres, João Matos Vieira e Vânia Costa Ramos, no âmbito da consulta que lhes foi feita pelo Parlamento: «Em princípio, a cominação legal de penas acessórias, mesmo no caso de inibição de condução de veículo a motor, é totalmente compatível com a suspensão provisória do processo e, se esta for a medida adequada, o julgamento apenas agravará a situação. É bom recordar que a suspensão provisória do processo é uma medida de diversão processual que apenas constitui um desvio à tramitação normal que conduziria ao julgamento. O que se evita com a suspensão provisória do processo é o julgamento, mas não a sanção acessória quando esta possa equivaler, materialmente, à imposição de uma injunção ou regra de conduta. Em tese, a inibição de condução, enquanto sanção acessória, também pode consistir numa injunção aplicada através de suspensão provisória do processo, aliás tornada efectiva mais prontamente do que se fosse aplicada como resultado de uma condenação transitada em julgado».

Pese embora a injunção não seja aplicada pelo Juiz, como acontece com a pena acessória de proibição de conduzir, a suspensão provisória do processo exige a concordância do Juiz de Instrução. Sendo a finalidade da injunção e da pena acessória idênticas, tendo o mesmo modo de execução e sendo as consequências do seu cumprimento para o arguido as mesmas, cremos que violaria o direito fundamental do arguido à justiça material sujeitar o mesmo ao cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor de qualquer categoria, no caso de já ter cumprido anteriormente, no âmbito da suspensão provisória do processo, esse período de inibição.

O Tribunal da Relação reconhece que inexiste norma a prever o desconto, na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, da injunção equivalente cumprida no âmbito da   suspensão provisória do processo, como acontece nas situações descritas nos artigos 80.º a 82.º do Código Penal.

Mas por uma questão de justiça material e respeito pelo cumprimento daquela injunção, equivalente ao cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos, entendemos com parte da jurisprudência, que temos como largamente maioritária, que deve considerar-se que a inexistência de norma a prever o desconto configura uma lacuna legal, e não uma opção do legislador.

Embora não aflore a questão do desconto, na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, da injunção equivalente cumprida no âmbito da suspensão provisória do processo, assertivamente esclarecia já o Prof. Figueiredo Dias, antes da Revisão do Código Penal de 1995, a propósito dos problemas do desconto das penas:

Da leitura dos artigos 80º a 82º parece resultar que, no pensamento da lei, o instituto do desconto só funciona relativamente a privações da liberdade processuais, a penas de prisão e (ou) a penas de multa, já não relativamente a outras penas de substituição e a medidas de segurança. Uma tal restrição não parece porém, ao menos em todos os casos pensáveis, político-criminalmente justificável. Melhor será, por isso, considerar que se está perante uma lacuna, que o juiz pode integrar – tratando-se, como se trata, de uma solução favorável ao delinquente -, sempre que possa encontrar um critério de desconto adequado ao sistema legal e dotado de suficiente determinação.”. [6]

No caso, a ausência do desconto levaria a sancionar duplamente a mesma conduta, mesmo entendendo que, rigorosamente, não estamos perante uma violação do princípio ne bis in idem.[7]

A realização, ou não, de desconto, da injunção cumprida na vigência da suspensão provisória do processo, na pena acessória de proibição de conduzir não colhe um único entendimento, na jurisprudência.

No sentido da não realização de desconto, encontram-se, entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa de 06/03/2012, proc. n.º 282/09.2SILSB.L1.S e de 17-12-2014, proc. n.º 99/13.0GTCSC.L1-9.

Já no sentido da realização do desconto, corrente jurisprudencial em que nos situamos, anotamos, também entre outros, os acórdãos da Relação de Coimbra, de 10-12-2014, proc. n.º 23/13.0GCPBL.C1, de 7-10-2105, proc. n.º 349/13.2GBPBL.C1 e de 24-2-2016, proc. n.º 129/12.2GTCBR.C1; da Relação do Porto de 22-4-2015, proc. n.º 177/13.5PFPRT.P1; da Relação de Guimarães de 6-6-2014, proc. n.º 98/12.7GAVNC.G1 e de 22-09-2014, proc. n.º 7/13.8PTBRG.G1 ; da Relação de Lisboa de 12-05-2016m proc. n.º 1729/12.6SILSB.L1-9 ; e  da Relação de Évora de 11-7-2013, proc. n.º 108/11.7PTSTP.E1.

Retomando o caso concreto, verificamos que por despacho de 23 de setembro de 2015, obtida a concordância do Ex.mo Juiz de Instrução, o Ministério Público determinou a suspensão provisória do processo relativamente ao arguido A... , nos termos do artigo 281º do Código de Processo Penal, sendo uma das injunções a de não conduzir veículos automóveis na via pública pelo período de 4 meses, devendo entregar a sua carta de condução ou qualquer outro documento que o habilitem a conduzir, nos serviços do Ministério Público, no prazo máximo de 10 dias a contar do início do prazo de suspensão.

Notificado o arguido A... da suspensão provisória do processo procedeu o mesmo, no dia 8 de outubro de 2015, à entrega nos presentes autos da carta de condução para cumprimento da injunção, pelo 8 de fevereiro de 2016 (inclusive), seria a data do terminus do cumprimento da injunção de proibição de condução de veículos com motor na via pública pelo prazo de 4 meses.

Por despacho de 21-12-2015, o Ministério Público, considerando que o arguido incumpriu a injunção de prestação do trabalho comunitário determinou o prosseguimento do processo, nos termos do art.282º n.º 4 do Código do Processo Penal, e deduziu acusação contra o arguido A... para julgamento em processo abreviado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts.69.º, n.º1, al.a) e 292.º, n.º1, ambos do Código Penal, sem nada mencionar a propósito da devolução da carta de condução ao arguido.

Porém, no final do despacho de recebimento da acusação, de 7 de janeiro de 2016, o Ex.mo Juiz ordenou a devolução ao arguido da carta de condução apreendida nos autos para cumprimento da injunção que lhe foi aplicada no decurso da suspensão provisória do processo, sem prejuízo de vir a ser tido em consideração numa eventual futura condenação do arguido em pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor o período de tempo em que a sua carta de condução esteve já apreendida nos autos em consequência da suspensão provisória do processo.

Prima facie não teria andado bem a decisão recorrida ao dar como integralmente cumprida a pena acessória de 5 meses de proibição de conduzir, por desconto da injunção de proibição de conduzir veículos a motor no âmbito da suspensão provisória do processo, que tinha sido fixada em 4 meses, uma vez que este é período inferior ao que foi posteriormente fixado na douta sentença recorrida a título de pena acessória.

Resulta, porém, da douta sentença que à data da sua leitura, em 30 de março de 2016, ainda não havia sido cumprida a ordem de entrega da carta de condução do arguido, que assim se mantinha no processo mesmo após a revogação da suspensão provisória do processo e prosseguimento dos autos.

Nestas circunstâncias, face ao desconto, na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, da injunção equivalente cumprida no âmbito da suspensão provisória do processo e posterior manutenção da carta de condução no presente processo, por os serviços do Tribunal não a terem devolvido ao arguido como fora ordenado e o arguido não ter pedido a devolução até ao julgamento, admitimos como razoável, num processo justo e equitativo, que se dê como integralmente cumprida em 8 de março de 2016, a pena acessória de 5 meses de proibição de conduzir, em que o arguido foi condenado por sentença de 30 de março de 2016.

Deste modo, não se reconhecendo a violação das normas indicadas pelo recorrente nas conclusões da motivação, mais não resta que manter a douta decisão recorrida.

            Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e manter a douta sentença recorrida.

Sem custas.

                                                                        *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                     

   *

Coimbra, 26 de Outubro de 2016

(Orlando Gonçalves – relator)

(Inácio Monteiro - adjunto)

                                                                                                                                                                               


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[4] Cf. Prof. Faria Costa, em “Diversão (Desjudiciarização) e Mediação: Que Rumos”, in BFD-LXI, pág. 91 e sgs.
[5] Cf. “O Novo Código de Processo Penal”, in CEJ, pág. 353.

[6] Cf. in “Direito Penal Português - As Consequências Juídicas do Crime”, pág.300.
[7] No sentido de que viola o princípio ne bis in idem , decidiu o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 21-6-2016, proc. n.º 28/14.3PTFAR.E.1.