Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6525/09.5T2AGD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO CÍVEL
Data do Acordão: 07/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.66, 67, 68 CPC, 72, 73, 110, 118 LOFTJ
Sumário: 1. A competência material do tribunal afere-se em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida.

2. O Juízo de Competência Especializada Cível é o competente para conhecer do pedido de condenação da sociedade no pagamento de proporcionais de férias e subsídios de férias e de Natal devidos a sócio gerente pelas funções desempenhadas no período anterior à renúncia, sem que estivesse sujeito a orientação e direcção hierárquica de outro gerente.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

           

           

            I. V (…) instaurou, na Comarca do Baixo Vouga/Águeda-Juízo de Média e Pequena Instância Cível, acção declarativa com processo sumário contra G (…) & A (…) Lda., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 5 624,97, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento, alegando, em síntese, que foi sócio e gerente da Ré desde 13.02.2008 até 14.9.2009, data em que cedeu a respectiva quota e renunciou à gerência; antes de se tornar sócio e gerente da Ré era seu trabalhador e auferia a remuneração base mensal de € 2 500; quando assumiu a função de gerente da Ré ficou acordado entre todos os sócios e gerentes da Ré que a gerência exercida pelo A. seria remunerada tal como até aquela data tinha acontecido enquanto trabalhador (mensalmente com o valor de € 2 500, acrescido de subsídio de refeição, retribuição das férias e subsídios de férias e de Natal); a remuneração dos outros gerentes também englobava a remuneração de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal de valor igual à remuneração mensal; a Ré não lhe pagou os proporcionais de férias e subsídios de férias e de Natal relativos ao ano de 2009.

            Contestando e reconvindo, a Ré alegou, designadamente, que os créditos reclamados na acção não são devidos dada a natureza das funções que o A. exerceu na Ré a coberto, não de um contrato de trabalho, mas de um mandato que esta lhe conferiu e que compreendia direitos e deveres incluídos no âmbito da gerência da empresa; não obstante ter sido acordado aquando da nomeação do A. como gerente que o cargo que iria desempenhar no âmbito do mandato seria remunerado, tal não lhe confere o direito de vir exigir os proporcionais referentes a direitos que só a trabalhadores são conferidos, como se de um mero contrato de trabalho se tratasse; se o A., bem como os gerentes, eram remunerados pela função e recebiam os respectivos subsídios de férias e de Natal e as férias, tal só acontecia enquanto desempenhassem essas funções no âmbito do mandato que lhes foi conferido; se o A. pretende receber as quantias peticionadas tendo em conta a primeira relação jurídica que teve com a Ré, ou seja, com base num contrato de trabalho, como parece decorrer da alegação vertida sob o art.º 5º da petição inicial[1], é o Tribunal do Trabalho o competente em razão da matéria para dirimir o conflito.

            Concluiu depois a Ré que o tribunal recorrido é incompetente em razão da matéria e pediu, além do mais, a sua absolvição da instância.[2]

            No despacho saneador, o tribunal a quo fixou o valor da acção, não admitiu a reconvenção e julgou improcedente a dita excepção da incompetência material.

            Inconformada com o decidido, a Ré interpôs a presente apelação, formulando as conclusões que, atento o objecto do recurso, assim vão sintetizadas:

            1ª - No petitório, o A. começou por alegar que em data anterior à sua nomeação como gerente da Ré era seu trabalhador subordinado, uma vez que celebrou com a mesma um contrato de trabalho por tempo indeterminado.

            2ª - Contrato de trabalho que ficou suspenso no momento em que foi nomeado gerente da Ré.

            3ª - O A., em momento anterior à nomeação como gerente, exercia as funções para que foi contratado sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré e dentro do horário de trabalho por esta fixado, o que se manteve após a data da renúncia à gerência (14.9.2009), porquanto na data em que o A. renuncia à gerência deixou de existir a causa que levou à suspensão do contrato de trabalho e, desse modo, aquele readquiriu a qualidade de trabalhador da Ré.

            4ª - Só nessa qualidade é que o A. poderia vir reclamar os proporcionais referente a direitos laborais que se tivessem vencido com a cessação de contrato de trabalho, mas para tal não seria este Juízo o competente para dirimir tal litígio.

            5ª - No momento em que o A. abandona o trabalho, sem para tal dar qualquer justificação - entendendo-se tal comportamento como não pretendendo manter a relação laboral existente, denunciando o contrato -, os eventuais direitos creditórios que lhe seriam devidos eram-no por efeito do contrato de trabalho e não por efeito da renúncia à gerência que antes exerceu na Ré.

            6ª - O Juízo de Pequena e Média Instância de Águeda é incompetente em razão da matéria, sendo competente o Juízo do Trabalho de Águeda - aquele Juízo ao ter-se declarado competente em razão da matéria violou, além do mais, o disposto nos art.ºs 67° do CPC e 118° da LOFTJ, devendo ser revogada a decisão constante do despacho saneador que declarou competente o Tribunal a quo e substituída por outra que declare tal juízo incompetente em razão da matéria.

            O tribunal a quo admitiu o recurso da decisão que julgou improcedente a excepção de incompetência material, como apelação, a subir imediatamente e em separado e com efeito devolutivo.[3]

O A. contra-alegou sustentando a improcedência do recurso.

Questiona-se, assim, e importa decidir se, atenta a natureza da relação substancial pleiteada, o tribunal recorrido é competente para julgar a acção ou se essa competência cabe ao tribunal do trabalho, sendo aquele materialmente incompetente.

                                                        *

II. 1. Os factos a ter em consideração na decisão do recurso são apenas os aludidos do relatório (ponto I) – sobretudo, os alegados na petição inicial -, para os quais se remete e que aqui se dão por reproduzidos.[4]

2. Sem quebra do respeito sempre devido por opinião em contrário, afigura-se-nos dever ser acolhida a perspectiva explanada no despacho recorrido, não deixando de ser algo incompreensível a posição da recorrente, ao pretender distorcer a realidade para sustentar tese manifestamente improcedente, pois, além do mais, não vemos em que factos se funda para afirmar o “ressurgimento” do contrato de trabalho na data da renúncia à gerência, resultando antes, se necessário fosse atender a essa factualidade, que o A. deixou de ter qualquer ligação à empresa Ré na data em que vendeu a sua quota social e renunciou à gerência (veja-se, nomeadamente, o alegado sob os itens 21º, 23º, 26º, 29º e 44º da contestação).

Assim, vejamos se o tribunal recorrido é o competente em razão da matéria para conhecer do objecto do litígio.

3. São da competência dos tribunais judicias as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art.º 66º do CPC).

            As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria ou forma de processo, são da competência dos juízos dos tribunais judiciais dotados de competência especializada (art.º 67º do CPC, na redacção conferida pela Lei n.º 52/2008, de 28.8).
Os tribunais judiciais de 1ª instância são, em regra, os tribunais de comarca e, nesse caso, designam-se pelo nome da circunscrição em que se encontram instalados (art.º 72º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais/LOFTJ, aprovada pela Lei n.º 52/2008, de 28.8).
Compete aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais. Os tribunais de comarca são tribunais de competência genérica e especializada (art.º 73º, n.ºs 1 e 2, da LOFTJ).
Os tribunais de comarca desdobram-se em juízos que podem ser de competência genérica e especializada, nos termos dos art.ºs 110º e seguintes, existindo, de entre os juízos de competência especializada, as Instâncias de Trabalho e Cível, esta, desdobrável em Grande, Média e Pequena instância (art.º 74º, n.ºs, 1, 2, alíneas c) e i) e 4, da LOFTJ).
            Os tribunais do Trabalho são tribunais de competência especializada (art.º 74º, n.º 2, alínea c), da LOFTJ). A respectiva competência, em matéria cível, encontra-se definida no art.º 118º da LOFTJ, disposição legal que lhes atribui competência para conhecer, nomeadamente, das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e das questões emergentes de contratos equiparados por lei aos de trabalho [alíneas b) e f)].
4. O A. intentou a presente acção alegando ter sido gerente da Ré e auferir, nessa qualidade, a remuneração mensal de € 2 500, retribuição das férias, subsídio de refeição e subsídios de férias e de Natal, e que, tendo renunciado à gerência a 14.9.2009, a Ré não lhe pagou as férias e os subsídios de férias e de Natal proporcionais à actividade desenvolvida durante o ano de 2009, no montante global de € 5 624,97.

            O A. peticiona apenas os proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal pelo exercício de funções de gerência comercial no período anterior à renúncia e não enquanto trabalhador.

O contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização sob a autoridade destas (art.º 11º do Código do Trabalho/CT, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12.02).[5]
5. Sabendo-se que a competência material do tribunal se afere em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida[6] e que o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor (i. é, o pedido) se encontra necessariamente correlacionado com o facto concreto que lhe serve de fundamento (causa de pedir), para se saber qual o tribunal competente em razão matéria para o conhecimento da lide, temos de atentar, sobretudo, na alegação do A. e no efeito jurídico pretendido.
            Tendo em conta os elementos dos autos e o descrito posicionamento das partes, afigura-se-nos inteiramente correcta a fundamentação vertida no despacho recorrido.
            Na verdade, lido o articulado inicial, constatamos que relativamente ao período em causa (do ano de 2009) o A., para além do pagamento da remuneração pela gerência (retribuição também acordada para os restantes sócios e gerentes), não indica um único facto caracterizador da existência de um qualquer vínculo laboral - não refere quaisquer tarefas e/ou funções por ele porventura desempenhadas sob as ordens, orientação e fiscalização da Ré, nem sequer que a sua actuação/actividade profissional pudesse ser de algum modo conformada pela Ré; não indica factos conducentes à (eventual) afirmação do elemento distintivo do contrato de trabalho, único critério incontroversamente diferenciador e verdadeiramente típico do contrato de trabalho, porquanto nada foi alegado concernente à subordinação jurídica[7] (pressuposta no art.º 11º do CT).
Decorre dos documentos juntos aos autos, da alegação das partes e da matéria assente que o A. foi nomeado gerente, com determinada remuneração.
A compatibilidade da qualidade de gerente com a de trabalhador, em sociedade por quotas, é tema versado em diversos arestos, aceitando-se a possibilidade de coexistência das duas qualidades – é admissível que um sócio gerente de uma sociedade por quotas possa prestar a esta a sua actividade profissional em execução de uma relação laboral, contanto que subordinado às instruções e directivas de outro gerente a quem devesse obediência; a qualidade de gerente de sociedade por quotas é compatível com a de trabalhador, desde que exista uma situação de subordinação jurídica.[8]
Sendo assim elemento distintivo do contrato de trabalho uma prestação heterodeterminada de serviços ou, por outras palavras, uma subordinação jurídica que permite ao empregador determinar concretamente, dentro do âmbito definido pelo contrato, pelos instrumentos de regulamentação colectiva e pela lei, a prestação do trabalhador, há que considerar como pode ser subordinante e subordinado, dar e receber ordens, simultânea e contemporaneamente, sendo que a existência de uma remuneração não é relevante, pois o gerente tem direito a uma remuneração, a fixar pelos sócios, salvo disposição do contrato de sociedade em contrário (art.º 255º, n.º 1 do CSC)[9].

Na situação dos autos, também não deixamos de estar perante sócio gerente que, tendo constituído os órgãos directivos e representativos da sociedade, participou na formação da vontade social, agindo no âmbito de um contrato de mandato (ou de administração) e não de um contrato de trabalho subordinado, sendo que ninguém admitiu a situação de eventual cumulação das funções de gerente com a de trabalhador subordinado[10].

Neste enquadramento, considerando que o A., enquanto gerente e sócio - qualidade subjacente ao pedido formulado -, não trouxe aos autos factualidade susceptível de configurar a existência de um contrato de trabalho dependente/subordinado no período a considerar nesta lide (01.01.2009 a 14.9.2009), perspectiva que a própria Ré não deixou de corroborar, é evidente não haver a menor razão para que os autos deixem de prosseguir no tribunal/juízo onde foram instaurados, por ser o competente para a sua preparação e julgamento.

Soçobra, pois, tudo quanto em sentido contrário se fez constar das “conclusões” da alegação de recurso.

                                                        *

III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.


Fonte Ramos (Relator)
Carlos Querido
Emídio Costa

[1] Alega-se no referido item: “O autor antes de se tornar sócio e gerente da ré era seu trabalhador, com a categoria profissional de serralheiro (…) e auferia a remuneração base mensal de € 2 500”.
[2] O A. respondeu à contestação (cf. o aduzido no despacho saneador) mas não foi junta aos presentes autos cópia desse articulado.

[3] Mas não admitiu o recurso da decisão de não admissão da reconvenção, considerando que a mesma só é impugnável no momento processual definido nos n.ºs 3 e 4 do art.º 681º do CPC e que o recurso em questão não é subsumível à previsão da alínea m) do n.º 2 do art.º 691º do CPC.
[4] Diga-se, ainda, que toda a materialidade relevante para a dilucidação da questão ficou assente sob as alíneas B), C), D), E), F), G), H) e I) e apenas a matéria desta última alínea [“A Ré não pagou ao autor os proporcionais de férias pelo ano de 2009, os proporcionais de subsídio de férias pelo ano de 2009 e os proporcionais de subsídio de Natal pelo ano de 2009”] foi objecto de reclamação da Ré, indeferida por despacho de 11.5.2010.
[5] Idêntica noção, porventura menos precisa, constava do art.º 10º do anterior CT, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27.8 [veja-se também a definição do art.º 1152º do Código Civil].
[6] Cf., de entre vários, o acórdão do STJ de 20.5.1998, in BMJ, 477º, 389.
[7] Elemento decisivo para a distinção entre o contrato de trabalho e outros contratos que mantêm com este algumas afinidades - em geral, só existirá contrato de trabalho se o empregador puder, de algum modo, orientar a actividade do trabalho, quanto mais não seja no tocante ao lugar ou ao momento da sua prestação.
    Cf., a propósito, nomeadamente, A. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 11ª edição, Almedina, págs.131 e seguintes e Jorge Leite, Direito do Trabalho, Vol. II, Coimbra 1999, págs. 46 e seguinte e os acórdãos do STJ de 24.5.1995 e de 25.01.2000, in BMJ 447º, 308 e Acórdãos Doutrinais/AD 467º, 1519, respectivamente.

[8] Vide, entre outros, os acórdãos do STJ de 08.01.1992, 19.3.1992 e 31.5.2001, in BMJ, 413º, 360 e 415º, 421 e AD, 484º, 573, respectivamente.
[9] Cf. o citado acórdão do STJ de 19.3.1992.
    Veja-se, ainda, Abílio Neto [in Código das Sociedades Comerciais – Jurisprudência e Doutrina, 2ª edição, 2003, pág. 614], também citado na decisão recorrida: “embora a atribuição de um subsídio de férias ou o pagamento do subsídio de Natal ou do subsídio de refeição sejam prestações típicas do contrato de trabalho subordinado, nada obsta a que, por deliberação dos sócios, a remuneração paga aos gerentes compreenda prestações daquele tipo, não obstante as funções por eles desempenhadas não sejam, em princípio, subsumíveis a uma relação laboral”.
[10] Cf. sobre esta matéria, entre outros, Abílio Neto, in “Direito do Trabalho”, Separata do BMJ, 1979, pág. 167 e os acórdãos do STJ de 17.02.1994 e 29.9.1999, in AD, 391º, 900 e CJ-STJ, VII, 3, 248/AD, 461º, 784, respectivamente.