Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
142/08.4GDSCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: DIREITO DE QUEIXA
COMPARTICIPAÇÃO
Data do Acordão: 09/08/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SANTA COMBA DÃO – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 113º E 114º CP
Sumário: 1. O art. 113º do CP regula a legitimidade para o exercício da queixa, dispondo sobre a titularidade e condições de exercício do respectivo direito.
2. O art. 114º do CP, por seu turno, dispõe sobre a extensão dos efeitos da queixa, estipulando que basta a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes para tornar o procedimento criminal extensivo aos restantes. Esta norma tem a ver não tanto com a queixa contra o autor do crime, mas sobretudo com a queixa pelo crime.
3. O autor do crime até poderá ser desconhecido do queixoso no momento da apresentação da queixa, assim como poderá ser desconhecida a existência de eventuais comparticipantes, vindo a apurar-se a sua existência e identificação no decurso do inquérito.
4. A expressão procedimento criminal utilizada no art. 114º do Código Penal tem essencialmente o sentido de investigação ou inquérito. Fundamental para o início do procedimento criminal, para a abertura do inquérito por crime de natureza semi-pública, é apenas e tão-só a apresentação de queixa.
5. O M.P. tem legitimidade para praticar os actos de inquérito necessários para apurar a responsabilidade daqueles que se indicie terem sido comparticipantes do crime, ainda que contra eles não tenha sido apresentada queixa, se vierem a ser identificados no decurso do inquérito; mas já não a terá para deduzir acusação sem precedência de queixa contra todos os comparticipantes, já que assume preponderância a natureza semi-pública do crime, tornando-se exigível na fase de acusação a verificação dos pressupostos do procedimento criminal relativamente a todos os comparticipantes. É esse, precisamente, o significado e alcance prático da norma constante do art. 115º, nº 3, do Código Penal.
6. Averiguada em inquérito por crime semi-público a existência de comparticipantes não denunciados, deve o M.P., antes de deduzir acusação, notificar o queixoso para, querendo, apresentar queixa também contra eles, sob pena de extinção do procedimento criminal contra todos.
7. Não exigindo a validade da queixa uma fórmula especial ou a expressa declaração com utilização do termo «queixa», bastando-se com qualquer manifestação inequívoca do titular do direito de queixa, no sentido de pretender desencadear o procedimento criminal, a dedução de pedido cível contra os comparticipantes, efectuada em tempo para a apresentação da queixa, imputando-lhes os factos com relevância criminal, fazendo apelo ao respectivo conhecimento da violação da lei penal, traduz inequívoca intenção de desencadear procedimento criminal contra o co-arguido.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

            Nestes autos de processo comum que correram termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida sentença decidindo nos seguintes termos:

            (…)
Assim, e pelo exposto, decido:
Acção criminal
a) Condenar os arguidos pela prática, em co-autoria mediata, e na forma consumada, de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1 do Código Penal, sendo-o:
            - a arguida G..., na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de 6,00 € (seis euros), o que perfaz o total individual de 1.080,00 € (mil e oitenta euros);
            - o arguido J..., na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de 8,00 € (oito euros), o que perfaz o montante global de 1.440,00 € (mil quatrocentos e quarenta euros).
            b) Condenar os arguidos no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça individual em 2 UCs;
            Acção cível
            c) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante M… e, consequentemente, condenar os arguidos a pagar-lhe a quantia de 4.820,00 € (quatro mil, oitocentos e vinte euros), acrescido de juros de mora à taxa legal desde notificação para contestar até efectivo pagamento, a que acresce ainda o montante de IVA sobre 4.800,00€ à taxa legal em vigor à data do pagamento, a título de danos patrimoniais; e 1.000,00€ (mil euros) a título de danos não patrimoniais, a que acrescem juros à taxa legal desde a data da presente sentença até integral pagamento, absolvendo os demandados do remanescente peticionado.
            d) Condenar os arguidos/demandados e ofendida/demandante no pagamento das custas da instância civil, na proporção do respectivo decaimento (arts. 523º do Código de Processo Penal e 446º do Código de Processo Civil).

            (…)

            Inconformados, recorrem os arguidos retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

1. Tendo sido deduzida acusação particular contra o arguido J... contra quem não foi dirigida nem formalizada queixa, manifesto é que o Ministério Público extravasou a sua competência e ultrapassou a sua legitimidade, estando a acusação contra aquele ferida de nulidade insanável por violação do art. 212°/3 do CP e arts 48º e 49° do CPP;

2. Acresce, ainda, que se verifica a excepção peremptória da caducidade e extinção do direito de queixa contra o arguido J..., o que se invoca, segundo o principio geral "tempus regit actum" – art. 115º do CP., pois entre a data dos factos e a constituição de arguido decorreu prazo superior a seis meses;

3. A queixosa e H..., testemunha arrolada na acusação e no pedido civil são casados entre si e proprietários da casa de habitação, bem que se presume comum do casal, titulares e lesados do pretenso direito violado, pelo que deveriam deduzir o pedido civil conjuntamente, mas não o tendo feito é a demandante civil parte ilegítima, com a consequente absolvição dos arguidos da instância quando à acusação pelo crime imputado bem como do pedido civil, violando assim a decisão recorrida o disposto nos arts 71º, 74° do CPP, e art. 483° do CPC.;

4. O forno demolido não era coisa alheia, era bem próprio dos arguidos incorporado materialmente no solo do prédio rústico propriedade destes de que haviam tomado posse há cerca de 20/25 anos, quando por partilhas verbais o receberam do pai da arguida, cabeça de casal, algum tempo após a morte da mãe desta, ocorrida em 1980;

5. Partilhas desse e de outros prédios rústicos validadas por acordo de todos os interessados no inventário judicial instaurado em 2005, após o falecimento do pai da arguida ocorrido em 2004;

6. O pai da arguida, como cabeça de casal, anos antes de falecer havia dado autorização à filha para demolir o forno em decadência sem uso nem utilização há mais de duas décadas;

7. A propriedade dos imóveis abrange, além do mais, tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei, ou negócio jurídico, nos termos do artigo 204°/1 al. e) e nºs 2 e 3 do Cód. Civ. gozando o proprietário de modo pleno e exclusivo dos direitos de fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas – art.s 1305º do CC;

8. Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei; toda a restrição resultante de negócio jurídico que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional - art. 1306°/1 do CC,;

9. Em sede de inventário judicial, acordaram todos os interessados que da casa de habitação, descrita sob a verba 14 da relação de bens, adjudicada pela interessada ora recorrida, fazia parte uma eira, casa da eira e terreno anexo, tudo com cerca de 360 m2, não fazendo constar o forno incorporado no solo do prédio rústico da recorrente delimitado do urbano da recorrida por um muro divisório comum em pedra com 30/40 cm de largura – art. 1371º do CC.;

10. Não se verificam os elementos típicos do ilícito criminal porquanto os factos praticados pelos arguidos não se subsumem nos conceitos de destruição ou desfiguração ou tornar não utilizável coisa alheia da previsão do crime de que vêm acusados;

11. Nos termos do art. 212º/l do CP., o objecto do crime de dano é uma coisa alheia móvel ou imóvel, sendo que o forno dos autos não era coisa alheia, achava-se incorporado/ligado por meio de alicerces ao solo do rústico propriedade plena dos arguidos, não onerado com qualquer tipo/espécie de servidões nominadas ou atípicas, aliás, não alegadas, pelo que os factos praticados não se subsumem em nenhum dos elementos do tipo do crime de dano, além de que este só é punível se tiver subjacente intenção dolosa;

12. Não violaram os arguidos de forma ilícita e culposa coisa alheia nem cansaram dano à recorrida, pois agiram na convicção de que o forno lhes pertencia, como sempre afirmaram e nenhuns elementos de prova dos autos são suficientes para afastar nem abalar a credibilidade da sua versão;

13. O Tribunal a quo não podia admitir e ou basear a sua convicção no depoimento da testemunha H... (marido da queixosa/demandante) por ser parte interessada na causa e também poder depor, estando legalmente impedido de depor como testemunha, nos termos dos arts. 617º e 668°/1, al d) e nº 4 do CPC., o que gera nulidade da sentença;

14. O Tribunal a quo, à luz do princípio da investigação, apesar de recolhidos todos os factos relevantes para a boa decisão da causa não os podia subtrair à "dúvida razoável" e, consequentemente, observar o princípio "in dubio pro reo ", decorrente do princípio constitucional da presunção de inocência – art. 32º/2 da CRP;

15. O tribunal a quo errou já que violou de forma patente o disposto no art. 410°/2, als. a), b) e c) do CPP., por manifesta insuficiência da matéria de facto provada para decidir que os arguidos houvessem praticado o crime de dano imputado, havendo erro notório na apreciação da prova e contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;

16. Quanto ao pedido civil, de acordo com o disposto no art. 496º/2 do CC., no juízo de equidade que sempre preside à fixação do montante indemnizatório, o grau de culpa e as condições económicas do agente e da vitima são elementos, além do mais alegado (excepção da ilegitimidade da mandante e nulidade da prova), critérios que, in casu, não foram tidos em consideração, mostrando-se o quantum da condenação completamente desproporcionado, foge às regras da boa prudência e da justa medida das coisas, pelo que foram violados os art°s 494º e 496º do CC.;

17. Normas violadas: os artigos 212°/1 e 3 do CP.; arts. 48º e 49º do CPP.; art. 115° do CP., arts 71°,74°/1 e 410°/2, als. a), b) e c) e 3 do CPP.; 204°/1, al e) e arts. 2 e 3 e 1305°, 1306º/1 e 1371° e arts 494° e 4960 do CC.; 617° e 668º/1, al. d) e nº 4 do CPC e art. 133°/1 al. c) do CPP e art° 32º/1 da CRP.

Termos em que tudo ponderado e com o douto suprimento de Vªs Exªs, deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida com a absolvição dos recorrentes do crime de dano em que foram condenados, fazendo-se, assim, inteira justiça!

            O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

            Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, pronunciando-se também pela improcedência do recurso.

            Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

            Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

            No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:

            - Nulidade insanável da acusação pública deduzida contra o arguido J... por falta de legitimidade do Ministério Público;

            - Caducidade do direito de queixa;

            - Ilegitimidade da ofendida, por desacompanhada do respectivo cônjuge;

            - Falta de verificação dos elementos objectivos do tipo legal de crime;

            - Violação do princípio in dubio pro reo;

            - Vícios previstos nas alíneas do art. 410º, nº 2, do CPP;

            - Desajustamento da indemnização cível arbitrada.

                                                                       *

                                                                       *

II - FUNDAMENTAÇÃO:

            Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
1) No dia 23 de Outubro de 2008, entre as 12 e as 14 horas, os arguidos em comunhão de esforços e de intentos, acordaram entre si destruir parte de um forno de lenha pertencente a M…, localizado no anexo da casa de habitação daquela M…, situada na Rua Principal,…. , Concelho de Mortágua.
2) Para o efeito falaram com D... e disseram-lhe para proceder à destruição de parte do dito forno (parte de trás), para além de com o mesmo acertarem a realização de outros trabalhos.
3) O referido D..., na sequência do que lhe foi dito pelos arguidos, no dia e local acima mencionados, cerca das 14 horas, com o auxílio de uma máquina giratória e a mando dos arguidos, procedeu à destruição da parte de trás do forno de lenha construído em tijolo, partindo todos os tijolos.
4) Com o comportamento supra descrito provocaram os arguidos estragos no dito forno.
5) Os arguidos agiram em comunhão de esforços e de intenções, mancomunados entre si, de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de destruir parte do forno em lenha acima mencionado, e de assim impossibilitar que o mesmo pudesse servir para o fim a que se destinava, bem sabendo que não lhes pertencia, e que actuavam contra a vontade da sua legítima dona.
6) Bem sabiam ademais os arguidos que a sua descrita actuação lhes implicava responsabilidade criminal.
7) Os arguidos não têm registados quaisquer antecedentes criminais (fls. 156 e 157).
8) Os arguidos vivem em casa própria.
9) O arguido aufere mensalmente cerca de 1.800,00€, e tem a 4ª classe.
10)A arguida aufere mensalmente quantia não inferior ao salário mínimo nacional e tem a 3ª classe.
11) À data dos factos acima descritos, a demandante encontrava-se a proceder ao restauro da sua casa de habitação e respectivos anexos e dependências, que havia adquirido em processo de inventário, partilha, por morte dos seus avós, pais da arguida.
12)Nesse restauro, a demandante mantém a linha estética original antiga da dita casa.
13) Em virtude de tal casa, com respectivas dependências e anexos, ter pertencido aos seus avós, com quem tinha grande ligação, o forno de lenha tinha para si grande valor estimativo.
14)A conduta dos arguidos provocou um buraco visível na parede do anexo onde estava incorporado o forno.
15)Em virtude da conduta dos arguidos a demandante sentiu grande desgosto, mágoa e perturbação psicológica.
16)A reconstrução do forno mantendo a linha estética original importa 4.800,00 €, sem IVA.
17)Na sequência e por causa do comportamento dos arguidos, a demandante teve de se deslocar por duas vezes à GNR posto de Mortágua e por duas vezes a Santa Comba Dão;
18) Deixando de comparecer no seu estabelecimento de estética onde exerce por conta própria as funções de esteticista.
19)A demandante é pessoa sensível.

            Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte:
Com importância para a decisão da causa não se provou que a demandante, em virtude da conduta dos arguidos, tenha tido perda de sono durante vários dias, acordando sobressaltada, antecipando outros ataques e condutas semelhantes dos arguidos aos seus bens ou à sua pessoa e tenha tido discussões com o marido; que nas deslocações a Mortágua à GNR e ao Tribunal tenha dispendido 28,00 €; que por ter faltado ao serviço tenha deixado de auferir 300,00 €; que tenha tido de suportar o montante de 15,00 € relativo a despesas de deslocação do seu marido e 90,90 € relativo ao que este deixou de receber por ter faltado ao serviço; que tenha suportado despesas por novas deslocações a tribunal e perda de outros dias de trabalho no valor de 650,00 €.

            A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:
O tribunal fundou a sua convicção sobre a factualidade apurada, de acordo com as regras da experiência comum e na livre valoração do julgador assente na imediação com a prova, na conjugação das declarações dos arguidos, dos depoimentos das testemunhas e dos elementos documentais juntos aos autos.
Assim, são desde logo os arguidos que confessam ter mandado destruir o forno, mais precisamente a parte de trás; no entanto, dizem que apenas o fizeram porque o forno lhes pertencia, pois parte do mesmo, a abóbada, situava-se no seu terreno. Mais referem que o pai da arguida ainda em vida (faleceu em 2004) lhes tinha dado autorização para proceder à destruição do forno.
De nenhum dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência resulta que o forno pertencesse aos arguidos, nem que estes tivessem agido convencidos de que eram proprietários do mesmo. Da prova documental junta aos autos não resulta igualmente corroborada a versão apresentada pelos arguidos.
As fotografias constantes dos autos, a fls. 15, 16, 94 e 196 permitiram ao Tribunal conhecer as características do local onde os arguidos praticaram os factos, bem como percepcionar o estado em que ficou o forno após a intervenção ocasionada pelos arguidos (nomeadamente o buraco visível na parede do anexo da casa da queixosa), e que tal forno integra a estrutura física da dependência da casa de habitação da queixosa.
O documento de fls. 14 e a certidão de fls. 39 a 57 permitem a conclusão de que a propriedade da casa de habitação onde se situa o anexo onde, por sua vez, se localiza o forno foi adquirida pela queixosa por partilha por morte dos seus avós, pais da arguida. Sendo ainda de realçar que no inventário respectivo, onde intervieram quer a queixosa quer os arguidos, os quinhões hereditários foram compostos por acordo, e que apesar de não ter sido feita qualquer alusão ao forno em causa, os interessados nesse inventário acordaram em proceder à rectificação da verba a que corresponde aquela casa de habitação, dela fazendo constar que da mesma faz parte uma eira, casa de eira e terreno anexo tudo com cerca de 360 m2, a confrontar do norte com os arguidos, donde se extrai que foi intenção de todos os interessados esclarecer a composição do prédio que veio a ser adjudicada à queixosa, sem que se tivesse excluído como parte integrante desse prédio o referido forno.
De forma pacífica, quer do depoimento das testemunhas, nomeadamente de L... e C..., irmãs da arguida e interessadas naquele inventário, e mesmo das declarações dos arguidos, resultou que o dito forno servia a casa de habitação que foi adjudicada em 2007 à queixosa M..., que o mesmo foi construído para tal fim e que sempre foi usado pelos anteriores proprietários daquela casa de habitação, os inventariados. Assim sendo, o Tribunal não ficou com dúvidas relativamente à propriedade da queixosa sobre o referido forno, casa de habitação e anexos onde o mesmo está incorporado, que é o que agora, para efeitos do presente processo, interessa, tanto mais que o mesmo integra a estrutura física da dependência da sua casa de habitação.
A questão que aparentemente subjaz aos factos ocorridos e que divide os arguidos e a queixosa, não se prende tanto com a propriedade do forno, mas antes com a propriedade da parcela de terreno onde a parte de trás do forno estava assente, que os arguidos entendem pertencer-lhes. Tal questão é exclusivamente civil, e se os arguidos entendem que aquela parcela de terreno lhes pertence, não tendo integrado o direito de propriedade da queixosa aquando da adjudicação em processo de inventário do imóvel onde o mesmo se localiza, estando a ser lesados no seu direito de propriedade, deverão, em sede própria, fazer valer os direitos de que se acham titulares.
A versão trazida pelos arguidos de que o forno seria sua pertença não logrou convencer o Tribunal na medida em que para além de não se mostrar corroborada por qualquer outro meio de prova como acima de disse, é a própria arguida que em declarações denuncia a convicção com que ela e o marido agiram quando, espontaneamente, refere que “destruí com todo o cuidado”. Ora, se estavam convencidos que o forno lhe pertencia e o objectivo era destruí-lo, porque razão haveriam de ter cuidado com a destruição?... Por outro lado, também a justificação de que o pai da arguida em vida teria dado autorização para destruir o forno por o mesmo ocupar a terra que, por partilha verbal, caberia à arguida, não convence, porquanto a ser assim, porque motivo haveriam os arguidos de destruir o forno apenas depois da realização formal da partilha em processo de inventário se dispunham já de autorização para tanto desde pelo menos 2004?... igualmente não pode o Tribunal acreditar que os arguidos, pessoas que não aparentam qualquer problema intelectual ou cognitivo, considerassem válida uma autorização eventualmente dada pelo anterior proprietário do forno, quando o prédio que o mesmo serve havia sido entretanto adjudicado à queixosa em processo de inventário em que todos intervieram e não fizeram menção a tal questão. Mas mesmo que assim fosse, se os arguidos achassem que tinham autorização para destruir o forno, dizem as regras da experiência comum e da normalidade que entrariam em diálogo com a nova proprietária da casa (sua sobrinha) com vista a anunciar a sua intenção, até porque tal forno servia aquela casa e tal diálogo se revelava essencial, o que não sucedeu.
O tribunal não tem pois dúvidas que o dito forno como parte integrante da estrutura física do anexo da casa de habitação da queixosa a esta pertencia e que os arguidos tinham perfeita consciência desse facto.
Os Certificados de Registo Criminal dos arguidos (fls. 156 e 157) não apresentam quaisquer antecedentes criminais.
Para a prova dos danos sofridos pela demandante teve-se em conta, para além das suas declarações, que pese embora o seu interesse na causa, pareceram ao Tribunal verdadeiras e fundadas, dando conta do desgosto, perturbação psicológica e mágoa que sofreu e revelando fragilidade emocional quando falava na arguida, sua tia, e das deslocações e tempo de trabalho como esteticista (trabalha por conta própria, pertencendo-lhe um estabelecimento comercial de serviços de estética) que perdeu; o depoimento do seu marido, testemunha H…, que corroborou no essencial as declarações da demandante; o depoimento de C..., mãe da demandante, que igualmente de forma fundada deu conta do estado psicológico em que ficou a queixosa na sequência da destruição do forno pelos arguidos, seus tios, o que decorria já das regras da normalidade social que alguém que vê o seu património danificado por outrem propositadamente sinta tristeza e incómodo, quanto mais quando são familiares a fazê-lo, revelando ao Tribunal, de forma consentânea com as declarações acima referidas que a demandante procedia ao restauro da casa, mantendo o traço original; o depoimento de B..., funcionária da demandante desde Novembro de 2008, que prestou declarações das quais não viu o Tribunal motivo para desconfiar, transmitindo o estado de desgosto nervosismo e hipersensibilidade emocional em que viu a demandante em virtude da destruição do forno, e de como considera a demandante pessoa sensível.
No que respeita aos alegados montantes despendidos pela demandante, não foi produzida prova bastante, nomeadamente não foram juntos quaisquer elementos documentais objectivos, que corroborem as declarações prestadas a esse respeito e permitam ao Tribunal verificar o rendimento mensal ou diário do seu estabelecimento ou as despesas por esta suportadas nas deslocações que efectuou à GNR de Mortágua e Santa Comba Dão, estas sim, comprovadas nos autos.
No que concerne ao valor necessário à reconstrução do forno mantendo a linha estética original atendeu-se ao depoimento de V…, construtor civil que procedeu ao restauro da casa de habitação da demandante, que confirmou que tal obra segue a linha estética original, e deu conta de forma fundada do custo daquela reconstrução, sem IVA, confirmando o orçamento da sua autoria junto a fls. 89.
Os demais factos não provados derivam de nenhuma prova ter sido feita acerca dos mesmos.
Quanto aos factos alegados não especificamente dados como provados ou não provados, nomeadamente os constantes da contestação civil dos demandados, tal resulta de, ou serem factos instrumentais de outros fundamentais dados como provados ou não provados, ou não terem interesse para a decisão da causa.

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            Vejamos a primeira questão suscitada, qual seja, a da nulidade insanável da acusação pública deduzida contra o arguido J... por falta de legitimidade do Ministério Público. Sustentam os recorrentes que a M… apresentou queixa apenas contra a arguida e ora recorrente G…, em parte alguma dos autos se vislumbrando que tenha sido apresentada também queixa contra o recorrente J.... Exigindo o art. 212º, nº 3, do Código Penal, a apresentação de queixa pelo crime de dano como pressuposto de legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação e vistas as limitações à sua legitimidade consagradas nos arts. 49º a 52º do Código de Processo Penal, não deveria a acusação contra o J... ter sido recebida, padecendo assim o processo de nulidade insanável.

            A resposta do Ministério Público, acompanhada, aliás, pela ofendida, sustentou-se na consideração de que o nosso sistema processual penal há muito adoptou o princípio da extensão dos efeitos da queixa contra um dos comparticipantes, consagrado no art. 114º, pelo que a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes, concluindo pela sua legitimidade para o exercício da acção penal contra o arguido.

            Estamos, indiscutivelmente, no domínio dos crimes semi-públicos, já que o art. 212º, nº 3, do Código Penal impõe expressamente a apresentação de queixa como pressuposto do procedimento criminal.

            A questão colocada pelo recurso neste particular aspecto vem a traduzir-se fundamentalmente em saber como se articulam as normas vertidas nos artigos 114º e 115º, nº 3, do Código Penal.

            Estipula o primeiro daqueles normativos que “a apresentação de queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes”. Por seu turno, o nº 3 do art. 115º dispõe que “o não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa”.

            Como interpretar estas duas normas, à primeira vista inconciliáveis?

As normas em questão incluem-se ambas no Título IV do Livro I do Código Penal, que versa o tema da queixa e acusação particular. Não se oferece como razoável uma interpretação que procure ver naquela aparente incompatibilidade uma contradição, tanto mais que por força do art. 9º, nº 3, do Código Civil, na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. O argumento de ordem sistemática aponta, pois, para a necessidade de encontrar a lógica daquelas estatuições legais numa perspectiva de complementaridade e não de confronto.

            A evolução histórica do preceito permite verificar que no Código Penal de 1982 o não exercício tempestivo da queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime era regulado a par da desistência de queixa. Dispunha então o art. 114º, nº 3, que “a desistência da queixa e o seu não exercício tempestivo relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveitam aos restantes, nos casos em que também estes não possam ser perseguidos sem queixa”. A autonomização da regulamentação destas duas situações – desistência de queixa e não exercício tempestivo contra um dos comparticipantes – verificou-se com a entrada em vigor do DL nº 48/95, de 15 de Março, que procedeu à revisão do Código Penal. O nº 2 do art. 115º, na redacção desse diploma, correspondia à redacção do actual nº 3 e visou consagrar autonomamente o princípio da indivisibilidade das consequências do não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes do crime, na base da constatação de que em direito penal o que releva é o crime, não sendo admissível escolher quem deverá ser perseguido em caso de comparticipação [1].

A resposta à questão suscitada há-de encontrar-se necessariamente na interpretação teleológica da norma, reportada ao fim ou objectivo por ela visado, em contraponto com a demais regulamentação do sistema. O traço distintivo resulta com clareza da análise global do Título IV do Livro I do Código Penal, como se verá já de seguida. A primeira norma deste título, o art. 113º, regula a legitimidade para o exercício da queixa, dispondo sobre a titularidade e condições de exercício do respectivo direito. O art. 114º, por seu turno, dispõe sobre a extensão dos efeitos da queixa, estipulando que basta a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes para tornar o procedimento criminal extensivo aos restantes. Esta norma tem a ver não tanto com a queixa contra o autor do crime, mas sobretudo com a queixa pelo crime. O autor do crime até poderá ser desconhecido do queixoso no momento da apresentação da queixa, assim como poderá ser desconhecida a existência de eventuais comparticipantes, vindo a apurar-se a sua existência e identificação no decurso do inquérito. A expressão procedimento criminal utilizada no art. 114º do Código Penal tem essencialmente o sentido de investigação ou inquérito. Fundamental para o início do procedimento criminal, para a abertura do inquérito por crime de natureza semi-pública, é apenas e tão-só a apresentação de queixa. Apresentada esta apenas contra um dos comparticipantes, os seus efeitos estendem-se aos demais. O que não significa, no entanto, que essa extensibilidade afaste ou exclua o funcionamento dos demais pressupostos de validade. Se é certo que o M.P. tem legitimidade para prosseguir com o procedimento criminal contra os comparticipantes na fase de inquérito com base na apresentação de queixa contra apenas um deles, em bom rigor já não a terá para deduzir acusação sem precedência de queixa contra todos os comparticipantes, já que assume preponderância a natureza semi-pública do crime, tornando-se exigível na fase de acusação a verificação dos pressupostos do procedimento criminal relativamente a todos os comparticipantes. É esse, precisamente, o significado do princípio da indivisibilidade a que antes aludimos e é esse o alcance prático da norma constante do art. 115º, nº 3, do Código Penal. Na verdade, os arts. 115º e 116º regulam os três modos distintos de extinção do procedimento criminal – extinção do direito de queixa por caducidade (decorrente do não exercício tempestivo do direito), nos termos previstos no art. 115º; renúncia, nos termos previstos no art. 116º, nº 1; e desistência, conforme o previsto no art. 116º, nº 2 – enquanto que o art. 114º é uma norma claramente virada para a investigação a desenvolver numa fase anterior à acusação.

            Ora, resulta dos autos que a ofendida inicialmente apresentou queixa exclusivamente contra a arguida G.... A comparticipação de J..., marido da arguida, veio a ser apurada no decurso do inquérito (resultou da inquirição da testemunha D..., a fls. 36), tendo conduzido à sua constituição como arguido. Sem precedência de notificação à ofendida para, querendo, apresentar queixa contra o comparticipante identificado no decurso do inquérito (em bom rigor, impunha-se a realização dessa notificação), o M.P. deduziu acusação contra ambos os arguidos (fls. 96). A ofendida foi notificada da dedução de acusação (fls. 107), presumindo-se que só com essa notificação tomou conhecimento da responsabilidade do co-arguido, e deduziu pedido de indemnização civil contra ambos os arguidos (fls. 120). Quando o fez estava em tempo para apresentar queixa contra o comparticipante. E a dedução de pedido cível nos termos em que foi feita, reportando-se a ambos os comparticipantes como arguidos, imputando-lhes os factos com relevância criminal, fazendo apelo ao respectivo conhecimento da violação da lei penal, traduz inequívoca intenção de desencadear procedimento criminal contra o co-arguido. Com essa actuação, sanou o vício de que padecia a acusação, decorrente da falta de verificação de um pressuposto processual. Na verdade, a validade da queixa não exige uma fórmula especial ou a expressa declaração com utilização do termo «queixa», bastando-se com qualquer manifestação inequívoca do titular do direito de queixa, no sentido de pretender desencadear o procedimento criminal [2].

           

Ainda na linha da questão acabada de tratar, invocam os recorrentes a caducidade do direito de queixa contra o arguido J....

Também neste particular aspecto não lhes assiste razão, como, aliás, já se deixou antever. Tanto quanto resulta dos autos, apenas com a notificação da acusação deduzida, notificada à ofendida por notificação postal simples com prova de depósito expedida em 02/06/2009, esta tomou conhecimento da comparticipação. Só então se iniciou o prazo de 6 meses para apresentação de queixa contra o co-autor. Em 24/06/2009, deu entrada em juízo o pedido de indemnização cível que, como se referiu, traduz inequívoca intenção de desencadear procedimento criminal também contra o arguido J.... Consequentemente, não ocorreu caducidade do direito de queixa.

            Passemos, pois, à questão seguinte, ainda uma questão de legitimidade, desta feita reportada à pessoa da queixosa M…, com fundamento no facto de esta ser casada com H..., tendo adquirido a casa de habitação em que se situava o forno destruído em inventário, sendo de presumir que se trata de bem comum do casal, pelo que o procedimento criminal, para ser eficaz, dependeria também da apresentação de queixa pelo marido da queixosa.

            É manifesta a falta de razão que assiste aos recorrentes. Estando em causa procedimento criminal por crime de natureza semi-pública, o art. 113º, nº 1, do Código Penal resolve a questão suscitada, atribuindo expressamente legitimidade para apresentação de queixa ao ofendido, considerado como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. Por outro lado, nos crimes contra a propriedade, o proprietário tem evidente legitimidade para a apresentação de queixa, bastando, nos casos em que o direito de propriedade pertença a mais do que uma pessoa, que qualquer dos titulares do direito de queixa o exerça, para desencadear o procedimento criminal e para legitimar a dedução do pedido cível visando a indemnização pelo prejuízo sofrido.

            No caso vertente a ofendida é a titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação e foi lesada pelos factos praticados, já que sofreu danos ocasionados pelo crime, daí resultando a sua legitimidade tanto para a queixa que apresentou como para o pedido cível formulado (arts. 113º, nº 1, do Código Penal e 74º, nº 1, do Código de Processo Penal).

            Os arguidos pretendem discutir a questão da propriedade do forno que destruíram alegando que não se tratava de coisa alheia, pondo assim em causa a verificação de um dos elementos objectivos do tipo legal de crime que lhes foi imputado, já que o crime de dano previsto no art. 212º, nº 1, pressupõe o carácter alheio da coisa destruída, danificada, desfigurada ou inutilizada. Contudo, esta é questão de facto que teve resposta do tribunal recorrido na consideração do forno como propriedade da ofendida (facto provado nº 1) e que não foi especificamente impugnada nos termos legais – os recorrentes não observaram o formalismo previsto no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP. De resto, os recorrentes confundem manifestamente a propriedade do forno com a propriedade do terreno onde aquele se encontrava implantado. As considerações de direito que tecem a esse propósito poderiam revelar-se pertinentes em eventual acção cível em que se discutisse a propriedade do terreno, mas são totalmente desajustadas no caso que agora cuidamos de apreciar. Acresce que não tinha a ofendida que alegar e provar factos tendentes à demonstração da sua posse sobre o forno com vista a daí retirar quaisquer conclusões sobre o seu direito de propriedade, como pretendem os recorrentes. Estamos no domínio do processo penal e a acusação tinha apenas que se limitar a indicar quem era o proprietário do forno, na perspectiva da acusação deduzida. Também no pedido cível não era exigível mais, já que a prova da propriedade do forno decorrente do alegado em sede criminal satisfaz o correspondente pressuposto na vertente do direito à indemnização pelos danos sofridos. Questão distinta é a de saber se o descrito na acusação corresponde ou não à verdade. Contudo, esta é questão que não respeita à nulidade ou validade da acusação e do pedido cível deduzidos, mas sim à prova e à consequente responsabilidade penal dos arguidos, ou à ausência dela. De todo o modo, a motivação da decisão de facto exarada na sentença revela uma análise cuidada, com clara indicação dos meios de prova de que o tribunal se serviu, procedendo ao seu exame crítico com pleno respeito pelas regras da experiência comum, não se vislumbrando quaisquer razões que permitam questionar as conclusões vertidas na matéria de facto, seja no que concerne à propriedade do forno, seja no que respeita à convicção com que os recorrentes agiram, seja relativamente a qualquer dos demais factos considerados como provados.

            No fundo, os recorrentes não impugnam o provado com base na falta de elementos de prova ou numa valoração absolutamente ilógica da prova produzida, mas sim com base na valoração que eles próprios fazem da prova produzida, questionando a livre convicção do tribunal recorrido. Nos termos em que formulam a sua impugnação o que os recorrentes pretendem é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que eles próprios entendem que deveria ter sido a retirada da prova produzida, essencialmente com base nas suas próprias declarações, exercício que no entanto é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova. Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância; não se procura encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só de verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso [3]. Acresce ainda que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais” [4], razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum [5]. Com efeito, ao tribunal de recurso cabe apenas “…aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” [6]

            Numa outra vertente, dizem os recorrentes nas suas conclusões que “o Tribunal a quo não podia admitir e ou basear a sua convicção no depoimento da testemunha H... (marido da queixosa/demandante) por ser parte interessada na causa e também poder depor, estando legalmente impedido de depor como testemunha, nos termos dos arts. 617º e 668°/1, al d) e nº 4 do CPC., o que gera nulidade da sentença” (conclusão 13). Ora, esta não é uma verdadeira «conclusão» do recurso, já que foca aspecto não tratado na motivação. As conclusões devem constituir o resumo sintético da motivação do recurso. É essa a conformação que lhes é apontada pelo nº 1 do art. 412º do Código de Processo Penal e que serve, entre outras finalidades, a da delimitação do objecto do recurso [7], operando a vinculação temática do tribunal superior pela definição do âmbito do conhecimento que obrigatoriamente se impõe ao tribunal ad quem. Mas, se por um lado, as conclusões delimitam o âmbito do recurso, por outro lado, precisamente porque devem constituir uma síntese da motivação, não podem abordar questões não tratadas na motivação. Se o fizerem, como sucede no caso em análise, tais questões não serão conhecidas, por as “conclusões” correspondentes não traduzirem a síntese de matéria antes tratada no corpo da motivação.

            Prosseguem os recorrentes invocando violação do princípio in dubio pro reo. Contudo, a prova produzida, tal como foi analisada e explicitada, não gerou qualquer dúvida que devesse levar à consideração dos factos como não provados. Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com pleno respeito pelos princípios que disciplinam a prova sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação desse princípio que, como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio in dubio pro reo afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal [8]. No caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação do provado, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando coerentemente os elementos que serviram para fundar a convicção do tribunal. O posicionamento dos recorrentes, sustentando que deveria ter sido outro o quadro factual provado encontra-se totalmente à margem do condicionalismo legal. O erro notório na apreciação da prova em que se traduziria a violação do in dubio pro reo não reside na desconformidade entre a decisão de facto assumida pelo julgador e aquela que teria sido a do próprio recorrente - carecendo esta última de qualquer relevância jurídica - verificando-se apenas quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, resultar da motivação invocada uma conclusão diversa da que foi extraída pelo tribunal recorrido na fixação da matéria de facto. Nesta perspectiva, a violação do princípio em questão apenas poderia ser afirmada se, face aos factos que a 1ª instância teve como provados e aos respectivos fundamentos, se evidenciasse que, na dúvida, o tribunal recorrido tinha optado por decidir contra o arguido. Ora, a decisão sobre a matéria de facto foi motivada por referência às provas que fundamentaram a convicção do tribunal, efectuando a sua análise crítica com respeito pelas regras da experiência comum. Consequentemente, não ocorre violação daquele princípio nem foi beliscado o preceito constante do art. 32º, nº 2, 1ª parte, da Constituição da República Portuguesa.

Os recorrentes visaram ainda nas suas conclusões os vícios previstos nas als. a), b) e c) do art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal. Na motivação abordaram apenas o erro notório na apreciação da prova. Trata-se, no entanto, de matéria que se encontra no âmbito dos poderes de conhecimento oficioso da instância de recurso [9], pelo que de todos conheceremos.

Conforme expressamente resulta do nº 2 do citado art. 410º, os vícios referidos nas respectivas alíneas a) a c) apenas se poderão ter por verificados se resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

O primeiro desses vícios é o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [al. a)], que se traduz numa insuficiência dos factos provados para a conclusão que deles se extraiu, vício que se verifica quando a solução de direito, seja ela condenatória ou absolutória, não tem suporte seguro nos elementos de facto provados, devendo concluir-se que tais factos não consentem a decisão encontrada [10].

O vício referido na al. b) é o da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. Revela-se através de uma incoerência, evidenciada por uma relação de incompatibilidade ou conflitualidade entre dois ou mais factos ou premissas inconciliáveis, em termos tais que a afirmação de um ou uns implique necessariamente a negação do outro ou outros, e reciprocamente. É o que sucede, por exemplo, quando o mesmo facto é dado como provado e como não provado, quando se consideram assentes factos contraditórios ou quando se verifica uma insanável contradição entre a motivação e a decisão.

Por fim, a al. c) contempla o erro notório na apreciação da prova, vício que “existe quando, do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta evidente, por não passar despercebido ao comum dos observadores, uma conclusão sobre o significado da prova, contrária àquela a que o tribunal chegou a respeito dos factos relevantes para a decisão de direito” [11].

Revertendo para a decisão recorrida e apreciada esta à luz das considerações que antecedem, não se detecta qualquer daqueles vícios. Na verdade, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto provada e não provada enumerando os elementos probatórios em que se baseou para formar a sua convicção, com indicação dos elementos a que atribuiu relevância, explicitando um critério lógico, coerente e objectivo. Os factos dados como provados constituem suporte bastante para a decisão que veio a ser adoptada, não se vislumbra incompatibilidade entre o provado e o não provado ou entre a fundamentação e a decisão, não denotando a sentença em crise, seja pelo seu teor literal, seja por recurso às regras da experiência comum, qualquer erro evidente e imediatamente detectável na valoração da prova

            Quanto ao pedido cível, o valor da indemnização por danos patrimoniais foi fixado de acordo com a prova produzida, não merecendo qualquer censura. Já o montante correspondente aos danos não patrimoniais foi equitativamente fixado em € 1.000,00 (mil euros), actualizado à data da decisão em primeira instância, valor que se oferece como ajustado às circunstâncias do caso, sendo de manter sem reservas.

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III – DISPOSITIVO:

            Nos termos apontados, acordam os juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, confirmando integralmente a douta sentença recorrida.

            Por terem decaído integralmente em recurso que interpuseram, condenam-se os recorrentes – cada um deles – na taxa de justiça, já reduzida a metade, de 4 UC.

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                                                                                  Coimbra, ____________

                                       (texto processado pelo relator e

                                         revisto por todos os signatários)

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                                               (Jorge Miranda Jacob)

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                                               (Eduardo Martins)


[1] - Cfr. Maia Gonçalves, “Código Penal Português”, anotação ao art. 115º.
[2] - Cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime”, pág. 675.
[3] - No sentido apontado, veja-se o Acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss.
[4] - idem
[5] - Neste sentido, veja-se o Ac. da Relação de Coimbra, de 6/03/2002 , CJ, ano XXVII, 2º, pág. 44.
[6] - Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253.
[7] - Jurisprudência constante dos tribunais superiores.
[8] - Cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, pág. 213.
[9] - Cfr. o Ac. do STJ de 19/10/95, publicado no DR, série I-A, de 28/12/95; fixou jurisprudência nos seguintes termos: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
[10] - Vício que não se confunde, no entanto, com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, questão que se situa no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, com sede legal no art. 127º do CPP.
[11] - Entre outros, conferir, no sentido apontado, o Ac. do STJ de 22 de Abril de 2004, in “Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça”, ano XII, tomo 2, págs. 166/167.