Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2289/11.0T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
MUDANÇA DE DIRECÇÃO
PEÃO
PASSADEIRA
Data do Acordão: 02/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INSTÂNCIA CÍVEL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 101º, Nº 1 E 103º DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário: 1. Como fenómeno dinâmico que é um qualquer acidente de viação, o seu processo causal não é, muitas vezes, de fácil apreensão e compreensão, impondo-se ao julgador uma tarefa mental de recreação ou de reconstituição a partir de todos os elementos disponíveis carreados ao processo, não já para atingir a evidência ou a certeza integral, mas para chegar àquele grau de probabilidade bastante para fundar uma convicção, para consentir a crença quanto às causas do evento.
2. No caso particular dos acidentes de viação, o que importa determinar - mais do que uma violação formal de uma regra de trânsito – é o processo causal da verificação do acidente e a influência de tal conduta na sua produção, até porque entendemos não existirem normas estradais que protejam em absoluto.

3. Nestas situações poderá o atravessante da passadeira concorrer para o seu atropelamento, bastando, para isso, atentar na norma do artigo 101º n.º 1 do Código da Estrada - "os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente"-.

4. O que poderemos ter como boa será a expressão de que depois de iniciar a travessia da passadeira o peão vê a sua liberdade de circulação superiormente protegida.

5. O condutor de uma viatura que efectua, em cruzamento, manobra de mudança de direcção para a esquerda, existindo no local uma passadeira para peões, está vinculado a um especial dever de atenção e cautela, relativamente aos peões que, se possam encontrar na referida passadeira e em pleno atravessamento da via.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

M…, residente na Rua …, intentou a presente acção declarativa, sob a forma sumária, contra Companhia de Seguros A…, S.A., com sede na Rua …, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 7.905,18, acrescida de juros de mora, a taxa legal, a partir da citação.

Articula, para o efeito, que no dia 07/02/2011, pelas 19,30 horas, na localidade de Esgueira, no local onde a Rua Manuel de Melo Freitas entronca com a Rua José Luciano de Castro, atravessava, a caminhar, a dita Rua Manuel de Melo Freitas, sobre uma passadeira para atravessamento de peões, quando veio embater contra si o veículo ligeiro de mercadorias, marca Ford Transit, matrícula …-HU.

 Este veículo procedia da Rua José Luciano de Castro e o seu condutor virou à esquerda para entrar na Rua Manuel de Melo Freitas.

Por falta de cuidado não parou a marcha para permitir o atravessamento da via que a A. já havia iniciado, e, por isso, o veículo foi embater com a sua frente (a cerca de 0,40 cms. do ângulo frontal direito) no corpo da A..

O embate ocorreu a cerca de 1,20 metros da berma do lado direito, considerando a progressão do …-HU. Por via desse embate a A. caiu prostrada no solo e sofreu fractura distal do rádio esquerdo com componente articular.

A Ré, na sua contestação, defende que a A. intentou proceder à referida travessia, totalmente desatenta ao trânsito, designadamente ao …-HU que se encontrava a percorrer a passadeira para peões, e a ocupar a mesma na totalidade.

E que logo que iniciou tal travessia embateu no lado esquerdo do …-HU que por ela passava, sensivelmente a meio.

Após julgamento, o Tribunal da 1.ª instância proferiu a seguinte decisão:

” Julgo, pelo exposto, a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condeno a Ré a pagar à A.:

a) a quantia de € 3.080,38, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento;

b) a quantia de € 2.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a partir da prolação da presente sentença e até integral pagamento.

Absolvo a Ré da restante quantia peticionada.

2. Objecto da instância de recurso

Nos termos do art. 684°, n°3 e 685.º-A do CPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações dos recorrentes.

A ré/recorrente COMPANHIA DE SEGUROS A…, S.A. alega e conclui:

             A autora, M…, alinhou assim as suas contra alegações:

...

3. Do Direito

A questão a decidir é a seguinte:

Com os factos que a 1.ª instância fixou, a culpa no acidente é de imputar ao condutor do veículo …-HU e ao peão, em igual medida?

Esta é a matéria de facto que este Tribunal irá usar para conhecer da instância do recurso:

...

Vamos à aplicação do direito.

Como fenómeno dinâmico que é um qualquer acidente de viação, o seu processo causal não é, muitas vezes, de fácil apreensão e compreensão, impondo-se ao julgador uma tarefa mental de recreação ou de reconstituição a partir de todos os elementos disponíveis, carreados ao processo, não já para atingir a evidência ou a certeza integral, mas para chegar àquele grau de probabilidade bastante para fundar uma convicção, para consentir a crença quanto às causas do evento.

 Nesta tarefa, os dados objectivos disponíveis têm de ser analisados e valorados à luz das regras do direito estradal vigentes ao tempo do acidente, que condicionam e disciplinam a actuação dos intervenientes – as que estavam em vigor à data da colisão (7 de Fevereiro de 2011) e que se mostram contidas no Código da Estrada publicado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, tinham sido modificadas pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro -.

Para demonstrar a “riqueza” dos acontecimentos factuais relacionados com o caso dos autos passamos a citar alguns acórdãos dos Tribunais Superiores, dos quais resulta que a atribuição de culpa nos acidentes rodoviários tem, sempre, algo de “subjectivo”, no sentido de que os casos de vida trazidos aos Tribunais não representam simples equações matemáticas.

Esta Relação de Coimbra, por Acórdão de 10.12.2002, decidiu que,”O desrespeito de normas de perigo abstracto, tendentes a proteger interesses como as regras estradais tipificadoras de infracção de trânsito rodoviário, faz presumir a culpa na produção dos danos daí decorrentes. II - O autor, tendo sido atropelado pelo veículo seguro na ré quando atravessava uma via, no interior de uma localidade, fora da passadeira destinada à travessia de peões, localizada a cerca de vinte metros, contribuiu para o seu próprio atropelamento. III - O condutor do dito veículo também contribuiu para a eclosão do acidente na medida em que atingiu o autor quase no centro da meia faixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha, a dois metros do passeio para onde este se dirigia e quando já percorrera a distância de quatro metros e sessenta centímetros, a partir da berma de onde iniciara a travessia da rua. IV - Tendo em conta que as consequências gravosas resultantes do atropelamento são de imputar em grau superior ao veículo automóvel, a culpa deve ser repartida na proporção de 60% para o condutor e 40% para o autor”.

“Se um peão é atropelado numa passadeira depois de aí ter iniciado a travessia da via, a culpa na verificação do acidente é de atribuir ao condutor do veículo atropelante, que não o conseguiu parar no espaço livre e visível que tinha à sua frente”.

“Nas passagens de peões, são estes que têm a prioridade do atravessamento da via, devendo o condutor deixar passar os peões que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem. Procede com culpa exclusiva o condutor do automóvel que, numa recta, cuja faixa de rodagem media 5,70 metros de largura, ao aproximar-se de uma passagem para peões (marcada a tinta no pavimento, e assinalada por um sinal vertical de trânsito indicativo da aproximação de passagem para peões), não reduziu a velocidade do seu veículo, nem accionou o mecanismo de travagem, vindo a embater num peão que atravessava a passadeira, da esquerda para a direita, atento o sentido do automóvel e que no momento do embate se encontrava no eixo da via, a cerca de 3 metros da berma do lado direito – Acórdãos da Relação do Porto de 7.11.2012 e de 26.6.2006 -.

“O atravessamento de uma faixa de rodagem fora da passadeira para peões existente a menos de 50 metros não constitui, por si só, causa do atropelamento verificado no seu decurso. Como qualquer outra situação contravencional, o atravessamento da via nessas circunstâncias pode contribuir, ou não, para a verificação de um atropelamento, havendo que apurar, em concreto, a existência dessa contribuição, ponderando todo o circunstancialismo que o envolveu – Relação de Lisboa de 27.9.2012 -.

“Iniciando o peão a travessia da passadeira sem previamente se certificar se circulavam veículos automóveis na via, numa altura em que o veículo conduzido pelo arguido já se encontrava sobre a mesma passadeira, o acidente é imputável em exclusivo ao lesado, o que afasta a responsabilidade objectiva ou pelo risco do condutor do veículo” – Relação de Lisboa 5.6.2012-.

“Do não provado de circular um veículo a velocidade objectivamente excessiva não resulta arredada a possibilidade de a velocidade imprimida ao mesmo veículo ser excessiva, desta feita em termos subjectivos. A circunstância do atravessamento da faixa de rodagem, fora da passadeira de peões, encontrando-se apurado que a passadeira mais próxima se encontrava situada a 23,70 metros, não permite, por si só, imputar a culpa do atropelamento à vítima por desrespeito do que se encontra estatuído no art.º 103º do Código da Estrada, uma vez que, neste âmbito, um facto apenas se pode considerar causal na medida em que faça acrescer, de modo considerável, a possibilidade objectiva da realização do resultado ocorrido “- Relação de Lisboa de 11.10.2007-.

“O atropelamento de peão que atravessava passadeira encontrando-se o sinal verde para os veículos não impõe inexoravelmente a conclusão de que o peão foi o culpado do sinistro. Não pode deixar de se atender ao demais circunstancialismo do acidente e, assim sendo, uma vez provado que o acidente se verificou quando o peão já estava quase a chegar ao passeio, que a passadeira se situa em local de grande intensidade de trânsito de peões e de veículos, mesmo no centro de Lisboa ( Rua do Ouro), impõe-se que o condutor do veículo regule a velocidade tendo em conta o local em causa, deixando que os peões que já iniciaram a travessia da faixa de rodagem a possam concluir em segurança. Verificando-se que o condutor desrespeitou os deveres de cuidado que se indicaram, há da sua parte inobservância de disposições rodoviárias (artigos 24.º/1, 106.º/1, 104.º/1 todos do Código da Estrada) a imporem a sua responsabilização pelos danos causados “– Relação de Lisboa de 17.4.2007 -.

“ Ficou a dever-se a culpa exclusiva do peão, o acidente motivado pelo facto de o mesmo ter iniciado a travessia da estrada, em diagonal, e pela zona de intercepção do entroncamento de duas ruas, num momento em que o veículo segurado se encontrava já em plena manobra de mudança de direcção para a sua esquerda, e nessa mesma zona de intercepção, existindo uma passadeira a menos de 10 metros do local do embate - Relação de Guimarães de 12.1.2012-.

“A simples circunstância de o atropelamento de peão ter ocorrido quando este atravessava a passadeira em infracção à sinalização semafórica existente no local, violando a norma constante do art. 101º do CE, não impõe de forma automática e inexorável, a conclusão de que foi necessariamente o único e exclusivo responsável pelo sinistro. Na verdade, pode actuar também culposamente, violando um dever geral de atenção e diligência no exercício da condução, o condutor de viatura que efectua, em cruzamento, manobra de mudança de direcção para a esquerda, existindo no local uma passadeira para peões e apresentando-se-lhe os semáforos com a luz amarela intermitente, sem a necessária atenção e concentração a tal manobra, já que está vinculado a um especial dever de atenção e cautela, relativamente aos peões que, (ainda que em infracção ao semáforo que regula o seu próprio atravessamento), se possam encontrar na referida passadeira e em pleno atravessamento da via – Acórdão do STJ de 17.11.2011-.

“Deve ser envolvida de especiais cautelas a travessia das faixas de rodagem por peões nas passadeiras para o efeito existentes que se situem no limite do entroncamento de faixas de rodagem por onde transitem em mudança de direcção autocarros de passageiros. Nesse quadro de dever objectivo de cuidado incumbe às pessoas, antes de operarem a referida travessia, a verificação da aproximação de veículos automóveis e a sua dimensão e velocidade, actuando em conformidade com a dinâmica envolvente. Em termos de causalidade e de culpa, é exclusivamente imputável à vítima a colisão mortal entre ela e a porta traseira de um autocarro de passageiros, se a mesma se movimentou na passadeira pedonal depois da sua transposição pela frente daquela viatura e ao seu condutor já não era possível aperceber-se daquela travessia, para si inesperada” - Acórdão do STJ de 15.2.2005-.

“Os peões não podem iniciar a travessia das ruas ou estradas, ainda que nas passadeiras, sem se darem conta da aproximação das viaturas. Por isso, deve ser graduada em 3/4 para o arguido e 1/4 para a vítima, respectivamente, a culpa do condutor de viatura automóvel que colhe o peão quando atravessava a rua pela passadeira e deste, por se meter à via sem ter em conta a circulação dos veículos – Acórdão do STJ de 17.6.1993; todas as decisões supra sumariadas foram retiradas do site www.dgsi.pt -.

Temos para nós que no caso particular dos acidentes de viação o que importa determinar - mais do que uma violação formal de uma regra de trânsito – é o processo causal da verificação do acidente e a influência de tal conduta na sua produção, até porque entendemos não existirem normas estradais que protejam em absoluto – isto mesmo resulta das decisões supra referidas -.

Por isso não concordamos com a afirmação da Srª. Juiz da 1.ª instância quando a dado passo, da sua decisão, diz “A prioridade dos peões nas passadeiras é absoluta”.

Nestas situações poderá o atravessante da passadeira concorrer para o seu atropelamento, bastando atentar na norma do artigo 101º n.º 1 do Código da Estrada -  "os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente"-.

O que poderemos ter, como boa, será a expressão de que, depois de iniciar a travessia da passadeira o peão vê a sua liberdade de circulação superiormente protegida.

Adiante.

Resulta da factualidade provada que: a) no dia 07/02/2011, pelas 19,30, o veículo ligeiro de mercadorias, marca Ford Transit, matrícula …-HU, circulava na Rua José Luciano de Castro, no sentido poente – nascente, e pretendia mudar de direcção à esquerda e passar a circular pela Rua Manuel de Melo Freitas; b) a Rua José Luciano de Castro entronca, pelo lado esquerdo, atento o sentido poente – nascente, com a Rua Manuel de Melo Freitas; c) na Rua Manuel de Melo Freitas, no local onde esta entronca com a Rua José Luciano de Castro, estava marcado no pavimento uma passadeira para peões; d) não existiam, no local, sinais luminosos (semáforos) tanto na via como na passadeira; e) a A. iniciou, a caminhar, a travessia da Rua Manuel de Melo Freitas sobre a referida passadeira – nº 16 dos FP; f) quando o condutor do veículo …-HU, depois de ter virado à esquerda e entrado na Rua Manuel de Melo Freitas, a cerca de 30 km/hora, passava, sem deter a sua marcha, na passadeira para peões, ocorreu o embate da parte lateral direita do veículo na A.; g) o embate ocorreu a cerca de 1 metro da berma do lado direito, atento o sentido, de circulação do …-HU e de progressão da A. (da direita para a esquerda); h) o …-HU era perfeitamente visível para a A.

Preceitua o nº 2 do art.º. 103.º do Código da Estrada que ao aproximar-se de uma passagem para peões, junto da qual a circulação de veículos não está regulada nem por sinalização luminosa nem por agente, o condutor deve reduzir a velocidade e, se necessário, parar para deixar passar os peões que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem.

E o nº 3 da referida norma acrescenta que, ao mudar de direcção, o condutor, mesmo não existindo passagem assinalada para a travessia de peões, deve reduzir a sua velocidade e, se necessário, parar a fim de deixar passar os peões que estejam a atravessar a faixa de rodagem da via em que vai entrar – compreende-se esta responsabilidade reforçada do condutor, atenta a perigosidade das manobras mudança de direcção/travessia de peões, uma vez que esta é feita logo na embocadura da rua, momentos que antecedem a manobra mudança de direcção -.

Pode ler-se no citado Acórdão do STJ de 17.11.2011O “ o condutor de uma viatura que efectua, em cruzamento, manobra de mudança de direcção para a esquerda, existindo no local uma passadeira para peões …está vinculado a um especial dever de atenção e cautela, relativamente aos peões que se possam encontrar na referida passadeira e em pleno atravessamento da via”.

Ora, o embate ocorreu quando a A. tinha já percorrido um metro da passadeira.

Com refere o ilustre mandatário da autora “embora seja óbvia, na altura do embate, a simultaneidade da Autora no trajecto da passadeira e a travessia da mesma pelo veículo, a verdade é que, pelos factos provados, quando o veículo lá chegou já a Autora caminhava um metro sobre a mesma. Aliás, a Autora conta 70 anos de idade, como se vê pela sua certidão de nascimento constante dos autos, e naturalmente caminha devagar”.

Ponto central da factualidade dada como assente é que a autora, tal como se lhe impunha, iniciou o atravessamento da via na passagem que se encontrava devidamente assinalada para o efeito e quando estava nessa passagem viria a ser embatido pelo veículo segurado na ré - Quando o condutor do veículo …-HU, depois de ter virado à esquerda e entrado na Rua Manuel de Melo Freitas, passava, sem deter a sua marcha, na passadeira para peões, ocorreu o embate da parte lateral direita do veículo na A -.

Atenta a dinâmica do veículo e do peão - sabemos que um homem de idade madura, em travessia normal, percorre cerca de 1,60 metros num segundo, enquanto que o automóvel, nesse mesmo segundo, à velocidade de 30 Kms/hora, percorre cerca de 8,33 metros -, não poderemos concordar com a afirmação do ilustre advogado da recorrente, ao referir que “O acidente de viação dos autos ocorreu quando, em simultâneo, a Recorrida iniciava a travessia da passadeira para peões, nela tendo percorrido cerca de 1 metro, e o veículo automóvel circulava no interior da mesma passadeira para peões”.

Quando a autora inicia a travessia da passadeira o veículo automóvel ainda está a efectuar a mudança de direcção para a Rua Manuel de Melo Freitas, por isso, com todas as condições para parar e, assim, evitar o acidente – nos termos da norma do art.º 24º n.º1 do Código da Estrada “o condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.

Diferente seria, por exemplo, se os factos “afirmassem” que a viatura já se encontrava em cima da passadeira de peões quando a autora lhe aparece repentinamente, e em passo acelerado, do seu lado direito tendo ido embater na lateral direita/dianteira da sua viatura, ou se, repentinamente, o peão que estivesse a concluir a travessia, de repente, voltasse atrás.

Por isso, com todo o respeito por opinião contrária, sabendo nós que o acidente de viação têm características únicas que o torna “especial” na apreensão da sua génese, entendemos que os autos não permitem concluir, que a autora não tenha agido com a prudência exigível a uma pessoa medianamente cuidadosa e previdente, colocada nas circunstâncias concretas do caso, de modo a poder entender-se que houve concorrência de culpas.

Assim, não se aplica o disposto no nº 1 do artigo 570º do Código Civil no sentido pedido pela recorrente.

Sumariando:

1. Como fenómeno dinâmico que é um qualquer acidente de viação, o seu processo causal não é, muitas vezes, de fácil apreensão e compreensão, impondo-se ao julgador uma tarefa mental de recreação ou de reconstituição a partir de todos os elementos disponíveis, carreados ao processo, não já para atingir a evidência ou a certeza integral, mas para chegar àquele grau de probabilidade bastante para fundar uma convicção, para consentir a crença quanto às causas do evento – os casos de vida trazidos aos Tribunais não representam simples equações matemáticas -.

2. Temos para nós, que no caso particular dos acidentes de viação, o que importa determinar - mais do que uma violação formal de uma regra de trânsito – é o processo causal da verificação do acidente e a influência de tal conduta na sua produção, até porque entendemos não existirem normas estradais que protejam em absoluto.

3. Nestas situações poderá o atravessante da passadeira concorrer para o seu atropelamento, bastando, para isso, atentar na norma do artigo 101º n.º 1 do Código da Estrada -  "os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente"-. O que poderemos ter, como boa, será a expressão de que depois de iniciar a travessia da passadeira o peão vê a sua liberdade de circulação superiormente protegida.

4. O condutor de uma viatura que efectua, em cruzamento, manobra de mudança de direcção para a esquerda, existindo no local uma passadeira para peões, está vinculado a um especial dever de atenção e cautela, relativamente aos peões que, se possam encontrar na referida passadeira e em pleno atravessamento da via.

4. A Decisão

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

 (José Avelino - Relator -)

(Regina Rosa)

(Artur Dias)