Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1432/16.8T9PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CRIME CONTINUADO
PUNIÇÃO
CONDENAÇÃO ANTERIOR
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
DECISÃO
REENVIO DO PROCESSO
NOVO JULGAMENTO
Data do Acordão: 09/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (POMBAL – JL CRIMINAL – JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REENVIO (PARCIAL) DO PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO
Legislação Nacional: ARTS. 30.º, Nº 2, E 79.º, N.º 2, DO CP; ARTS. 410.º, N.º 2, AL. A), E 426.º, DO CPP
Sumário: I – Perante o disposto no n.º 2 do artigo 79.º do CP [texto actual, introduzido pela Reforma Penal de 2007], a condenação por crime continuado não faz caso julgado, devendo ser reapreciada em novo julgamento a integração do facto novo na continuação criminosa anteriormente julgada.

II – Hodiernamente, o crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação e não, como sucedia na versão anterior do CP, com a pena concretamente aplicada.

III – A maior gravidade da conduta supervenientemente conhecida após o trânsito em julgado de uma sentença condenatória, mas obviamente ocorrida antes daquele [a sentença provoca a quebra do primitivo desígnio criminoso, assistindo-se, a partir dela, à formulação de uma nova vontade, originária, incompatível com a afirmação de um nexo de coesão entre todos os crimes], reporta-se à acção que, integrando a continuação criminosa, for punível de forma mais severa, a que corresponda, por conseguinte, uma moldura penal abstracta mais grave.

IV – Neste caso, a pena quer for aplicável à conduta mais grave substitui a anterior.

V – Diversamente, chegando-se à conclusão de a nova conduta conhecida integrar com as condutas já julgadas uma continuação criminosa, e de a pena àquela aplicável ser, relativamente às demais, de igual ou menor gravidade, não há que considerá-la, prevalecendo a pena imposta na anterior condenação.

VI - A ausência, na sentença, dos factos relevantes à formulação de um juízo sobre a eventual ocorrência de uma situação de continuação criminosa entre as condutas já julgadas no âmbito de outro processo e aquelas a julgar no processo em curso consubstancia o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, determinante do reenvio referido no artigo 426.º do CPP.

Decisão Texto Integral:





Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 1432/16.8T9PBL do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Pombal – JL Criminal – Juiz 2, mediante acusação pública, foi o arguido A... , melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe, então, imputada a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 107.º, n.º 1, com referência ao artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, em conjugação com os artigos 30.º, n.º 2 e 79.º do C. Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 24.03.2017, o tribunal decidiu [transcrição do dispositivo]:

1. Condenar o arguido A... , pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 30º, nº 2 e 79º do Código Penal, e artigo 107º, nº 1, pro referência ao artigo 105º, nº 1, do RGIT, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), o que perfaz o montante total de € 550 (quinhentos e cinquenta euros);

2. Condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC`s e demais encargos do processo – artigo 8º do RCP e tabela III anexa.

(…)

3. Inconformado com a decisão recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

I. No âmbito do presente processo vem o recorrente condenado pela prática do crime de abuso de confiança sobre a segurança social, p. e p. pelos artigos 107º, nº 1, com referência ao artigo 105º, nº 1, do RGIT, em conjugação com os artigos 30º, nº 2 e 79º, do Código Penal, porquanto no período compreendido entre outubro de 2010 e janeiro de 2012, não procedeu à entrega à segurança social dos valores retidos a título de contribuições e cotizações das remunerações pagas aos funcionários e gerentes da sociedade arguida I... , Lda., na pena de 110 dias de multa à razão diária de 5 €, correspondentes a 73 dias de prisão subsidiária.

II. Ao contrário do que o arguido pugnou em sede de contestação, o Tribunal “a quo”, em questão prévia ao seu douto aresto, deixou entendido que os factos pelos quais vem agora condenado não integram a continuidade da conduta criminosa, pela qual foi julgado e condenado como autor do mesmo crime de abuso de confiança à Segurança Social, no âmbito do processo 694/11.1TAPBL, e respeitante ao período de novembro de 2009 a agosto de 2010, não sendo de aplicar ao caso o disposto no nº 2, do artigo 79º, do C.P.

III. Entendeu o Tribunal “a quo” que a aferição do crime como continuado deve ser concretizada a um determinado lapso temporal que se finda com a dedução da respetiva acusação por referência aos factos conhecidos até àquele momento.

IV. O artigo 30º, nº 2, do CP impõe como únicos requisitos à aferição de um determinado crime como continuado, a realização plúrima de uma mesma conduta criminosa cuja punição fundamentalmente proteja o mesmo bem jurídico, que tal conduta seja executada de forma essencialmente homogénea e num quadro de uma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

V. Requisitos esses cuja verificação se encontra demonstrada nos factos provados de ambas as sentenças.

VI. Não está assim imposto qualquer limite temporal ou qualquer ato processual interruptivo para a aferição de um crime como continuado.

VII. O entendimento demonstrado no despacho recorrido não tem assim qualquer acolhimento legal, nem mesmo doutrinal ou jurisprudencial.

VIII. Por outro lado, o raciocínio de que a conduta criminosa continuada cessa com a ação do Ministério Público, esvaziaria de conteúdo o citado nº 2, do artigo 79º do C.P., já que a aplicabilidade de tal preceito pressupõe necessariamente o conhecimento posterior a uma condenação transitada em julgado (e naturalmente posterior à respetiva acusação) de condutas que integrem a continuação criminosa julgada.

IX. Por outro lado, este artigo 79º, nº 2 ao contrário do artigo 78º (para o concurso de crimes) não ressalva como condição à sua aplicabilidade que a nova conduta conhecida haja sido praticada “anteriormente àquela condenação”, circunstância da qual se extrai que tal conduta tanto pode ser anterior à primeira condenação, como posterior a ela, desde que integrante da continuação e quando conhecida posteriormente ao trânsito em julgado daquela condenação.

X. Pelo que os factos imputados ao arguido nos dois processos integram a continuidade da uma mesma atividade criminosa que se iniciou em novembro de 2009 e cessou em janeiro 2012.

XI. Constituindo um só crime, continuado, de abuso de confiança contra a segurança social sujeito à disciplina decorrente do artigo 79º, nº 2, do C.P.

XII. Tal disposição legal, introduzida pelo DL 59/2007, de 04/09, veio consagrar o entendimento jurisprudencial maioritário segundo o qual, em respeito pelos princípios “in bis in idem” e do caso julgado, o conhecimento de condutas que integram a continuação, posteriormente ao trânsito em julgado da decisão condenatória, só terá lugar quando tal conduta assuma maior gravidade, situação em que a pena que for aplicável a essa conduta, por ser mais grave, substitui a pena anteriormente fixada.

XIII. Desta disposição resulta também “à contrário” e por maioria de razão, que se as condutas posteriormente conhecidas não assumirem maior gravidade, a sua punição considera-se incluída (consumida) pela condenação anterior.

XIV. Viola assim, à partida, o mencionado princípio, a condenação sofrida na sentença recorrida, na medida em que tal solução implica duas condenações (duas penas de multa) pela prática de um só crime, continuado.

XV. Deve a decisão impugnada ser revogada e/ou alterada, determinando-se que o crime pelo qual o arguido foi agora condenado integra a continuação do crime pelo qual foi julgado e condenado no âmbito do processo 649/11.1TAPBL e que a pena em que incorreu mostra-se, ao abrigo do artigo 79º, nº 2, do C.P., consumida pela condenação anterior.

XVI. A decisão recorrida violou e/ou fez incorreta interpretação das normas constantes do artigo 30º, 78º e 79º, do Código Penal e 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.

Termos em que e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se que a pena aplicada ao arguido nos presentes autos se considera consumida pela condenação anterior.


JUSTIÇA

4. O recurso foi admitido, tendo-lhe sido atribuído efeito suspensivo.

5. Ao recurso respondeu o Exmo. Magistrado do Ministério Público, concluindo:

1. A... interpôs recurso da sentença que o condenou pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo artigo 107º, nº 1 e 105º, nº 1 do RGIT, prendendo-se a sua discordância não com a condenação em si, mas sim com uma questão prévia que colocou, pugnando pela aplicação aos autos do disposto no artigo 79º do Código Penal.

2. Questão prévia decidida na sentença, mas que foi já alvo de ponderação semelhante anterior pelo Tribunal e MP, pelo que nada de novo existe em relação ao que já tinha sido alvo de pronúncia anterior.

3. Pugnando o arguido, tanto quanto se alcança, pela simbiose completa dos processos n.º 694/11.1TAPBL, por factos semelhantes ocorridos entre Novembro de 2009 e Agosto de 2010, tendo estes autos julgado factos ocorridos entre Outubro de 2010 e Janeiro de 2012, e entendendo que deveria ter aqui aplicação o artigo 79º, nº 2 do CP, terminando com o pedido que estes factos sejam integrados como continuação do crime pelo qual o arguido foi já julgado e condenado no Processo referido, mostrando-se, no seu ver, a pena aqui aplicada consumida pela condenação anterior, não devendo estes factos ser alvo de qualquer pena.

4. Sobre este artigo e posição do arguido o MP já se havia pronunciado quando o recorrente levantou a questão num âmbito errado de aplicação (cf. fls. 152 e seguintes dos autos, que aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, reprodução na íntegra na motivação supra desta resposta).

5. Este entendimento do MP também se encontra no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3 de Fevereiro de 2016, ao estabelecer que “I – As “condutas mais graves” referidas no n.º 2 do artigo 79º do Código Penal – versão da Lei n.º 59/2007, de 04-09 – são as que integram um tipo próximo do da condenação transitada (que proteja substancialmente o mesmo bem jurídico), mas com uma moldura penal mais severa. II – As condutas punidas pelo mesmo tipo legal, integrantes da continuação criminosa, que simplesmente revelem, no caso, um grau de ilicitude maior, ver-se-ão, nesta linha, consumidas pela condenação já transitada em julgado. III – Neste caso, não podem ser alteradas as penas aplicadas ao arguido na condenação anterior”.

6. O tribunal também se pronunciou a fls. 157 e seguintes, entendendo que não havia lugar à aplicação deste artigo no caso concreto.

7. Cremos que o raciocínio e leitura que o recorrente efetua sobre o artigo 79º do CP não está correto, levando, com essa leitura, a resultados intoleráveis e incompreensíveis, como sendo um completo benefício ao infrator que o legislador não quis, de todo, dar.

8. Na verdade, ao pretender fazer a aplicação do artigo conforme o lê, inverte o seu sentido, já que quer a aplicação da pena anterior e não da que resultaria dos factos “novos”, sendo esta a substituir a anterior e não o contrário, levando aquele raciocínio a que metade do crime que integra a continuação (neste caso, os factos aqui em apreço) pura e simplesmente desapareçam, sejam abraçados pela condenação anterior, mas a pena ali aplicada permaneça intocada, como que se esquecendo e para nada interessando a “metade” do crime aqui em causa, que assim fica sem qualquer punição!

9. Tal resultado e leitura é manifestamente intolerável e não querido, por desprovido de sentido e lógica punitiva.

10. A leitura que aqui é feita pelo MP vai também no sentido pugnado pelo Sr. Conselheiro Souto Moura, em estudo sobre “A JURISPRUDÊNCIA DO S.T.J. SOBRE FUNDAMENTAÇÃO E CRITÉRIOS DA ESCOLHA E MEDIDA DA PENA”, aqui referindo, sobre o artigo e as posições divergentes, que “A divisão passou a ser então, entre os que pensavam que deviam ser consideradas as condutas novas, só no caso de entre elas haver alguma que assumisse maior gravidade, leia-se, constituir um crime punido mais gravemente, e quem entendia que as condutas novas sempre deveriam ser tidas em conta, por o seu número acrescido se traduzir num grau mais elevado de ilicitude que devia ter reflexo na punição”.

11. Acrescentando o autor que “Se o legislador tivesse querido dizer que, depois de uma decisão transitada, o conhecimento de novos factos que integram a continuação, originaria [sempre] o repensar de uma nova pena que substituísse a anterior, então exprimiu-se muito mal. A redação apresentada aponta claramente para o estabelecimento de uma condição: o repensar de uma nova pena que substitua a anterior, é possível, só, “Se (…) for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação”.

É que, se depois de se admitir a ultrapassagem do caso julgado, o legislador tivesse querido que se refletissem na pena todos os factos novos conhecidos, não precisava de acrescentar, porque demasiado óbvio, que se deveria ter em conta a pena abstrata mais grave que fosse aplicável a um desses factos novos.

Acresce que as “condutas mais graves” de que fala o legislador, só poderão ser aquelas que integram um tipo próximo do da condenação transitada mas com uma moldura penal mais severa. É que a expressão “conduta mais grave”, do nº 2 do artº 79º do C.P., é também empregue no nº 1 do preceito, e aí não oferece dúvida que a gravidade da conduta se afere pela pena aplicável, e portanto, pela moldura abstrata do crime. Em dois números seguidos do mesmo artigo o legislador não pode ter querido usar a mesma expressão com dois sentidos diferentes”.

12. Ora, este modo de ver a lei, como se depreende pelo que deixámos já referido nos autos, é também o nosso, pelo que sem necessidade de mais ou melhores considerações, a decisão do Tribunal está alicerçada de facto e de direito, mostrando-se correta, não sendo assim alvo de qualquer censura, devendo, em consequência ser confirmada na íntegra, isto é, não se aplicando este artigo 79º, nº 2 do CP e condenando-se o arguido nos exatos termos, os quais o arguido não contesta.

Contudo, V. Exas. farão


JUSTIÇA.

6. Na Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer suscitando diversas questões, entre as quais a necessidade de ajuizar se efetivamente entre os factos dos dois processos ocorre uma situação de continuação criminosa, aspeto que só poderá ser respondido após o julgamento da matéria de facto do segundo processo (os presentes autos) e não, como sucedeu no caso, a título de questão prévia.

Termina pronunciando-se no sentido de o recurso merecer provimento.

7. Cumprido o n.º 2 do artigo 417º do CPP o recorrente não reagiu.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Considerando as conclusões, pelas quais, sem prejuízo do conhecimento das questões de natureza oficiosa, se delimita o objeto do recurso, no caso em apreço importa decidir se a sentença em crise violou os artigos 30.º e 79º do C. Penal e, assim, o artigo 29.º, n.º 5 da CRP.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença [transcrição parcial]

[…]

Questão Prévia

O arguido, em sede de contestação, vem dizer que os factos de que vem agora acusado integram-se na continuação da conduta criminosa pela qual já foi condenado no âmbito do processo 694/11.1TAPBL.

Compulsados os autos verifica-se que o arguido foi condenado no âmbito do Processo nº 694/11.1TAPBL pela prática do crime continuado de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 5,00, no valor total de € 550,00, por factos respeitantes ao período compreendido entre Novembro de 2009 e Agosto de 2010.

Nos presentes autos vem o arguido acusado pela prática do mesmo tipo de crime, também na forma continuada, enquanto gerente da mesma sociedade, mas por factos referentes ao período que medeia entre Outubro de 2010 a Janeiro de 2012 que só posteriormente àquela condenação foram conhecidos.

Nos termos do disposto no artigo 30º nº 2 do Código Penal, “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”

Acontece que esta aferição tem de ser concretizada no momento em que se deduz determinada acusação tendo por referência os factos conhecidos até àquele momento, sob pena de se tornar impraticável a prossecução penal.

De facto, o que importa para aferir do crime continuado é determinar quais foram os factos praticados em determinado lapso temporal que se finda com a prolação de uma acusação e se existe entre eles as particularidades consagradas no artigo 30º do Código Penal.

Sob pena de, assim não sendo, se limitar sem qualquer fundamento legal a ação penal do Ministério Público que ficaria coartado na sua iniciativa.

Importa não esquecer que na base da figura do crime continuado encontramos o concurso de infrações, relevando o mesmo apenas e tão só no período temporal conhecido pelo Ministério Público que não pode acusar por factos que ainda não ocorreram, mas também não pode deixar de acusar em virtude da possibilidade do arguido continuar a prática de factos ilícitos iguais aos quais já existe conhecimento funcional para se deduzir a respetiva acusação.

É dentro deste limite temporal que há-de funcionar a figura do crime continuado quando exista a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

E só dentro deste limite.

Pois que todos os factos que ocorram posteriormente à dedução da acusação e consequente sentença que redunde em condenação que haja transitado em julgado, não poderão mais ser tidos em conta para efeitos do englobamento dos mesmos na figura do crime continuado.

Aqui chegados importa esclarecer então o âmbito de aplicação do artigo 79º do Código Penal.

Ora, o escopo desta norma não é da aplicação a factos novos (constituam eles conduta mais grave ou não) ocorridos posteriormente aos factos já objeto de condenação transitada em julgado.

O escopo desta norma circunscreve-se aos factos que hajam decorrido dentro do período de tempo ao qual foi aplicado o regime do crime continuado e que constituam também eles a realização do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, mas cuja prática só chegou ao conhecimento da autoridade judiciária depois de julgada a causa e transitada em julgado.

Aqui sim, tem aplicação a disciplina do nº 1 do artigo 79º do Código Penal. Situações em que os factos posteriormente conhecidos, que integram a continuação constituam condutas de gravidade igual ou menor, tenham ocorrido no mesmo lapso temporal objeto da sentença já transitada em julgado – situação em que haverá que se proceder a uma nova ponderação da pena, perante o alargamento da ilicitude dos factos (do “mal” praticado, ou do prejuízo causado), e da sua consequente censurabilidade, ou seja, da culpa, sempre respeitando-se o caso julgado e a pena concretamente aplicável, mas existindo a limitação da pena abstratamente aplicável.

Aplicando-se a disciplina do nº 2 do artigo 79º do Código Penal aos casos em que seja conhecida uma conduta mais grave, praticada dentro do lapso temporal objeto de sentença já transitada em julgado mas da qual apenas se tenha, naturalmente, conhecimento depois do trânsito. Situação em que, se apreciará a(s) nova(s) conduta(s)/infração, e aí sim, com a aplicação de uma pena única que englobará a anterior, ressalvando-se sempre a limitação de que este reajustamento da pena, que fica sujeita à moldura penal abstratamente aplicável à conduta mais gravosa, não pode entrar em contradição com a pena aplicada no anterior processo, obstando à aplicação de uma pena única mais leve. 

Assim sendo, apenas se pode concluir pela não aplicação ao caso dos autos do regime do artigo 79º do Código Penal, pois que a factualidade tratada no âmbito do Processo 649/11.1TAPBL e a factualidade tratada nos presentes autos não se circunscreve ao mesmo limite temporal.


**

II - Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1. A firma I... Lda., é uma sociedade por quotas, com sede em (...) , Pombal, NIPC (...) , contribuinte da Segurança Social n.º (...) , tendo como objeto a construção civil, obras públicas, compra e venda de propriedades e revenda dos imóveis adquiridos para esse fim.

2. Tendo, desde pelo menos 1990, como gerentes o arguido A... , e B... e C... .

3. Desde essa data, e no exercício das respetivas funções, era o arguido, juntamente com os dois outros gerentes, quem dirigiam as atividades da sociedade, procedendo ao pagamento das remunerações aos empregados e aos gerentes da mesma, ao recrutamento de trabalhadores, angariação de clientes e negociação de preços, tudo para fazer prosperar a empresa, cabendo ainda ao arguido e gerentes a responsabilidade pelas deduções às remunerações, correspondentes às quotizações devidas à Segurança Social e entregar-lhe o respetivo montante.

4. O arguido e gerentes, nos termos legais, procederam, nos períodos de Outubro de 2010 a Janeiro de 2012, ao pagamento aos empregados e aos membros dos órgãos sociais (gerentes) da sociedade, das remunerações respeitantes a esses períodos, tendo deduzido às mesmas o montante correspondente às respetivas contribuições para a Segurança Social, no valor global de € 7.487,89.

5. Sucede que, apesar dessas deduções, não levaram a cabo a entrega dessas quantias à Segurança Social.

6. Assim, o arguido e os gerentes deveriam ter entregue, e não entregaram, os montantes discriminados no mapa de fls. 11.

7. O arguido e os gerentes, no período ali compreendido (Outubro de 2010 a Janeiro de 2012), efetuaram as necessárias comunicações à Segurança Social, referentes aos salários pagos aos trabalhadores e gerentes da sociedade, não tendo, no entanto, procedido à entrega à Segurança Social dos descontos por si efetuados nas remunerações efetivamente pagas pela sociedade, no período e pelos montantes referidos até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que as contribuições respeitavam.

8. O arguido e gerentes também não regularizaram o pagamento das quantias indicadas nos 90 dias seguintes ao termo do prazo legal de entrega daquelas contribuições, assim como não o fizeram, praticamente na sua totalidade, até à presente data.

9. Assim, ao invés de entregar as quantias acima discriminadas à Segurança Social, optaram por fazerem suas as referidas quantias, utilizando-as em proveito próprio, integrando-as no património da sociedade, obtendo desse modo vantagens patrimoniais e benefícios que sabiam serem indevidos e proibidos criminalmente.

10. O arguido e gerentes, após não terem entregue, no mês de Outubro de 2010, os montantes destinados à Segurança Social, que haviam deduzido nas referidas remunerações, praticaram o mesmo tipo de conduta ao longo dos anos seguintes até Janeiro de 2012, porque, em virtude de não terem sido sujeitos a inspeção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização, se convenceram que a atuação que vinham levando a cabo estava a ser bem-sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à reiteração da prática descrita, a qual levaram a cabo, homogeneamente, ao longo do tempo referido.

11. Em todos aqueles períodos de tempo, sabiam o arguido e gerentes que os montantes que gastavam e utilizavam em seu proveito próprio e no giro económico da sociedade, pertenciam ao Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social e a este deviam ter chegado, juntamente com as folhas das remunerações processadas, nos prazos legalmente previstos e dos quais tinham perfeito conhecimento.

12. O arguido agiu sempre de modo livre e consciente, em comunhão de esforços e propósitos, no âmbito de um plano traçado, com o propósito deliberado de deduzir as mencionadas quantias e de as não entregar à Segurança Social, tendo feito reverter e despendido em beneficio da sociedade que geria as quantias deduzidas e, indiretamente, em seu proveito próprio, assim enriquecendo, desde logo, o seu património e o da sociedade, em igual montante e prejudicando a Segurança Social, pelo menos, em valor equivalente.

13. No entanto, no que diz respeito à trabalhadora G... e H... , os valores pagos, respetivamente de Março de 2011 a Novembro de 2011 e Março a Dezembro de 2011, foram pagos pelo Fundo de Garantia Salarial, pelo que, quanto a esses valores, não são os gerentes e o arguido responsáveis criminalmente por não haver retenção de quotizações.

14. O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida criminalmente.

15. Tendo, tanto os arguidos como a sociedade, sido notificados nos termos e para os efeitos previstos no artigo 105º, n.º 4, alínea b), do RGIT.

16. Apesar dessas notificações, tendo já decorrido o prazo para pagamento voluntário das quantias em dívida e dos respetivos juros não foram as mesmas pagas.

17. O arguido já foi anteriormente condenado no processo nº 694/11.1TAPBL, deste Tribunal, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, por factos de 2011, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 5,50, por sentença proferida em 21.03.2013, transitada em julgado em 11.06.2013, já extinto pelo pagamento.

18. O arguido tem como habilitações literárias o 4º ano de escolaridade; começou de imediato a trabalhar, para apoiar a família, tal como os seus irmãos, em trabalhos sazonais na agricultura.

19. Aos 19 anos iniciou funções laborais numa unidade industrial de Pombal - J... , Lda. – onde esteve durante 12 anos. Em 1990, com as poupanças obtidas do seu trabalho, investiu na criação de uma empresa familiar, em sociedade com o seu irmão e cunhado deste, constituindo a “ I... , Lda.”, onde desempenhou funções até 2011.

20. Após o encerramento desta empresa o arguido permaneceu durante cerca de 2 anos desempregado e inativo, referindo ter vivenciado um período difícil da sua vida pessoal e profissional.

21. O arguido é casado há 42 anos, tendo três filhos, todos maiores de idade e já autonomizados, vivendo com a sua mulher, na casa de morada de família, que construíram para o casamento, cuja propriedade pertence à sua filha mais nova.

22. O arguido após dois anos de inatividade, em Julho de 2013 passou a trabalhar numa empresa da área da construção civil e na plantação de quivis, auferindo € 700 por mês; apresenta como despesas a manutenção da casa de habitação no valor de € 80 a € 90 por mês.

23. O arguido é considerado como pessoa dedicada à família e ao seu bem estar, sendo respeitado e positivamente valorizado, sendo pessoa bem integrada na comunidade onde reside, embora seja referida uma diminuição nas interações sociais, observando-se uma tendência para o constrangimento social, coincidente com os problemas financeiros e dívidas a credores, muitos deles da própria localidade onde reside.


**

III – Factos não provados

Inexistem factos não provados.


**

IV - Motivação da decisão de facto

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida na audiência de julgamento e, nomeadamente:

O arguido quis prestar declarações, tentando fazer crer ao Tribunal que não sabia das quantias em dívida, pois eram os outros dois gerentes que faziam os pagamentos, tendo como função na empresa apenas trabalhar nas obras; ora, tal não é credível desde logo porque ele próprio não recebia os salários atempadamente, e sempre referiu aos trabalhadores que a empresa estava em situação económica difícil, que não havia dinheiro para os pagamentos, sendo o gerente A... que lhe dizia que não havia dinheiro para pagar. Também afirma que não sabia que a empresa não estava a pagar à Segurança Social, mas como gerente tinha conhecimento da situação económica da empresa, até porque no seu depoimento vago o TOC acabou por admitir ter falado com os gerentes sobre tal situação. Aliás, sendo o arguido que trazia a maior parte das vezes a documentação ao TOC aqui em Pombal, até é natural que tenha sido com quem falou. Refere também que não sabia que a Segurança Social não estava a ser paga – o que também não é credível, uma vez que era com quem o TOC mais contactava, sendo muito estranho que nada tenham conversado sobre esta matéria.

O depoimento da testemunha F... , técnica superior da Segurança Social, que analisou a conta corrente da empresa; baseou o seu conhecimento na análise das declarações apresentadas pela sociedade arguida, sabendo que as cotizações correspondentes nunca foram pagas, de acordo com o sistema informático, a que tinha acesso. Também referiu que o mês de Setembro de 2010 não foi englobado porque o consideraram prescrito.

O depoimento da testemunha/trabalhador da empresa, H... , que depôs de forma convincente, esclarecendo que trabalhou na empresa; este depoimento foi importante para concluir que os salários foram sendo pagos, por vezes com atraso. Já em relação ao arguido, sabia que era o seu patrão, mas este desempenhava funções na empresa como ele próprio. Chegou a falar com o arguido sobre o problema da falta de pagamento de salários, sendo que este lhe respondeu que a situação da empresa estava complicada, em termos de dinheiro.

A testemunha G... , funcionária de escritório da empresa I... , até 2012/2013 e durante dois a três anos; o arguido e o gerente E... eram quem frequentava mais o escritório, para ver documentos de vendas de apartamentos, faturas, atender clientes, sendo que o B... ia menos vezes; o arguido ia ao escritório da empresa quase diariamente, bem sabendo dos salários em atraso, porque chegou a falar com ele sobre o assunto, tendo este respondido que também não recebia o salário dele e não podia pagar aos funcionários. A contabilidade da empresa era feita num escritório em Pombal.

O depoimento da testemunha D... , TOC da empresa, em pouco contribuiu para a descoberta da verdade, uma vez que sistematicamente se escudou na falta de memória para não responder. Normalmente era o arguido que trazia a documentação e informava os trabalhadores faltosos. As declarações à Segurança Social sempre foram entregues, mas se foram pagas ou não já nada sabe.

As testemunhas E... e B... não quiseram prestar declarações, conforme decorre da ata de audiência de julgamento.

Ajudou ainda a formar a convicção do Tribunal a seguinte prova documental: apenso da Segurança Social do qual consta auto de notícia e relatório preliminar de fls. 1 e seguintes; certidão e mapa de quotizações em dívida; notificações a que se refere o artigo 105º, n.º 4, alínea b) do RGIT, pesquisas, extratos e recibos de remunerações e seguintes e relatório final; dos autos principais, relatório preliminar de fls. 1 e seguintes; decisão de insolvência de fls. 5 e seguintes; ata de fls. 10; mapa de fls. 11; Certidão permanente de fls. 49 e seguintes; informação de fls. 69 e certidões de dívida de fls. 72 e seguintes; informações de fls. 80 relativa ao não encerramento da insolvência; cópia de sentença proferida no Processo n.º 694/11.1TAPBL. E ainda o Certificado de Registo Criminal e relatório social junto aos autos.

Em relação aos factos não provados, pela ausência de prova ou prova do contrário.

3. Apreciação

Defendendo que os factos pelos quais foi julgado e condenado no proc. n.º 694/11.1TAPBL e os factos em questão nos presentes autos integram a prática de um só crime continuado de abuso de confiança contra a segurança social, insurge-se o recorrente contra a sentença recorrida enquanto, a título de questão prévia, em violação nomeadamente dos artigos 30.º e 79.º do C. Penal e, bem assim, 29.º, n.º 5 da CRP, afastou a dita continuação criminosa.

Vejamos então os dados relevantes que os autos fornecem.

a. No âmbito do processo 694/11.1TAPBL do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, por factos ocorridos entre Novembro de 2009 e Agosto de 2010 (inclusive) foi o arguido, ora recorrente, por sentença de 21.03.2013, transitada em julgado em 11.06.2013, condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 105.º e 107.º do RGIT, 30.º e 79.º do C. Penal na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de € 5,50 – [cf. cópia certificada da sentença de fls. 88 a 109; certificado de registo criminal de fls. 224 a 225, elementos estes em consonância com os factos considerados em sede de questão prévia, apresentando, contudo, divergência relativamente ao lapso temporal mencionado no ponto 17 dos factos provados na parte respeitante ao período temporal em questão, no seio do qual, erradamente, vem referido «por factos de 2011»].

b. Nos presentes autos (proc. n.º 1432/16.8T9PBL) foi o arguido/recorrente, igualmente, acusado e condenado – por sentença de 24.03.2017, ora posta em crise -, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 107.º, nº 1 e 105º do RGIT, 30.º e 79.º do C. Penal, por factos verificados no período que mediou entre Outubro de 2010 e Janeiro de 2012, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa à razão diária de € 5,00.

Colocado perante semelhante quadro concluiu o julgador «pela não aplicação ao caso dos autos do regime do artigo 79º do Código Penal, pois que a factualidade tratada no âmbito do Processo 649/11.1TAPBL e a factualidade tratada nos presentes autos não se circunscreve ao mesmo limite temporal», isto por entender que a aferição a que se reporta o n.º 2 do artigo 30.º do C. Penal «tem de ser concretizada no momento em que se deduz determinada acusação tendo por referência os factos conhecidos até àquele momento», pois – prossegue - «o que importa para aferir do crime continuado é determinar quais foram os factos praticados em tal lapso temporal que se finda com a prolação de uma acusação e se existe entre eles as particularidades consagradas no artigo 30.º do Código Penal».

Isto dito.

Com interesse para o caso surgem as normas do n.º 2 do artigo 30.º e 79.º, nºs 1 e 2, todas do C. Penal, as quais respetivamente dispõem:

«2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente», e

«1 – O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.

2 – Se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior».

Podemos, pois, assentar em que uma vez descobertos novos factos que se possam encontrar numa situação de continuação criminosa com outros já julgados, se impõe previamente apurar se aqueles integram efetivamente a continuação (uma unidade jurídica criminosa), circunstância que não dispensa – constituindo esse o cerne da questão – o juízo sobre uma menor gravidade da culpa, ditado pela menor exigibilidade decorrente da persistência de um mesmo quadro de solicitação externa, na realização das várias condutas que, executadas de forma essencialmente homogénea, fundamentalmente atinjam o mesmo bem jurídico.

Ora, no caso que nos ocupa o tribunal, a nosso ver mal – mais que não fosse por via das questões (de facto) deverem ser tratadas perspetivando as várias soluções plausíveis ao nível do direito –, eximiu-se à indispensável ponderação sobre a existência de um eventual nexo psicológico (nexo de coesão) entre as condutas criminosas julgadas no âmbito do processo n.º 694/11.1TAPBL e aquelas outras em questão neste segundo processo.

É evidente que tal se ficou a dever ao facto de o julgador, como resulta do próprio texto da decisão, enfrentando matéria invocada na contestação, haver, liminarmente [em sede de questão prévia], afastado por motivos de «limite temporal» [relativo ao tempo da acusação] a aplicação do regime dos artigos 30.º, n.º 2 e 79.º do C. Penal, critério esse, porém, que nos termos em que vem colocado, não se vê colha sustentação na lei.

Com efeito, se a conclusão a retirar da nova regra do n.º 2 do artigo 79.º aponta para que os factos supervenientemente conhecidos integradores da continuação, se mais graves do que os já objeto de uma condenação transitada em julgado, deem origem a um novo julgamento, sendo a pena anterior substituída por aquela outra que lhe seja aplicável, daí não se segue que integrando tais factos crime de igual ou menor gravidade (relativamente aos já julgados) se mostre comprometido o juízo sobre a verificação da continuação criminosa e, assim, que lhes venha a caber uma pena autónoma; bem pelo contrário, a ideia principal subjacente é no sentido de que, como consequência de uma pluralidade de ações unificadas no conceito de crime continuado, há lugar à punição do agente apenas por um dos crimes praticados.

Expliquemo-nos com outro detalhe.

Como ensina Cavaleiro de Ferreira, o crime continuado constitui uma exceção ao concurso de crimes, «uma forma de concurso de crimes que revela uma muito menor gravidade da culpa», sendo a «penalidade do crime continuado a penalidade ou a pena aplicável ao crime mais grave dentre os cometidos em continuação» - [cf. Lições de Direito Penal, II, pág. 162].

É, assim, «a menor exigibilidade e a consequente diminuição da culpa que caraterizam o crime continuado» e justificam correspondente «subtração às regras da pena conjunta do concurso», bem podendo dizer-se «ser ainda um princípio de exasperação, não de absorção, que preside à operação da medida da pena do crime continuado como unidade jurídica» - [cf. Figueiredo Dias, Direito Penal, II, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 296].

No domínio da punição do crime continuado a Reforma Penal de 2007 introduziu o n.º 2 do artigo 79.º, lendo-se na Exposição de Motivos do Projeto de Lei n.º 98/X, de 7 de Setembro de 2006, que se encontra na origem da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro: «Ao nível sancionatório, prescreve-se que o conhecimento superveniente de novo crime que integra a continuação criminosa ou o concurso acarreta sempre a substituição da pena anterior, mesmo que já executada, depois de se ter procedido ao correspondente desconto, no caso de a nova pena única ser mais grave. Deste modo, assegura-se o máximo respeito pelo princípio non bis in idem, consagrado no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição».

Significa, portanto, que a formulação do novo preceito «visou consagrar a tese segundo a qual a condenação por crime continuado não faz caso julgado, devendo ser reapreciada em novo julgamento a pertença do facto novo à continuação criminosa anteriormente julgada» - [cf. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, págs. 248/249].

Por outro lado, tem sido pacífico na doutrina o entendimento segundo o qual a redação do artigo 79.º do C. Penal não consente a interpretação possível no domínio do C. Penal de 1982 (à luz do artigo 78.º, n.º 5) de que ao crime continuado era aplicável a pena que em concreto fosse aplicada à conduta mais grave que integra a continuação, sendo, agora, claro que o crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a conduta criminosa e não com a pena concretamente aplicada.

Como escreve Germano Marques da Silva «A penalidade do crime continuado é a penalidade ou pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação», sendo diversos os critérios de punição no concurso de crimes e no crime continuado, acrescentando a propósito o Autor «No crime continuado não se procede à determinação da pena concreta a aplicar a cada uma das condutas que integram a conduta continuada, mas apenas à determinação da pena que seria aplicável a cada uma dessas condutas se consideradas autonomamente. A penalidade do crime continuado não implica qualquer soma nem de penas concretas nem de penalidades, pois é constituída pela penalidade aplicável à conduta mais grave (ou seja, a penalidade mais grave)» - [cf. Direito Penal Português, III, 2008, Verbo, págs. 186/191].

No mesmo sentido dizem Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette «Quando se refere o conhecimento superveniente de conduta mais grave, alude-se a uma conduta à qual corresponde pena aplicável mais grave do que a moldura penal antes utilizada para se punir a continuação, na sentença já transitada» - [cf. Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, págs. 239/241].

Também assim Pinto de Albuquerque ao evidenciar «O regime de punição do crime continuado consiste num sistema de exasperação (…). Assim, o tribunal deve escolher a moldura penal do facto mais grave e determinar a medida concreta da pena do crime continuado dentro desta moldura, devendo para o efeito considerar a penalidade dos factos criminosos.

A reforma de 1995 resolveu a querela de saber se a pena do crime continuado era a pena concreta ou a pena abstrata do crime mais grave, no segundo sentido, ao substituir a expressão “pena correspondente” por “pena aplicável” 8como já propunha Cavaleiro de Ferreira, 1989:162). Destarte a aplicação do regime do crime continuado supõe que o tribunal determine a pena aplicável (mas não a pena concreta aplicada) a cada um dos factos que integram a continuação, de modo a poder compará-las e determinar a moldura penal mais grave – [cf. op. cit., págs. 248/249].

Não de modo diverso se vem pronunciando a jurisprudência, como sucede no acórdão do STJ de 18.02.2010 (proc. n.º 432/09.9YFLSB) do qual se respiga: «As “condutas mais graves” serão então aquelas que integrem um tipo próximo do da condenação transitada (que proteja substancialmente o mesmo bem jurídico), mas com uma moldura penal mais severa (…). É que a expressão “conduta mais grave”, do n.º 2 do art. 79.º do CP, é também empregue no n.º 1 do preceito, e aí não oferece dúvida que a gravidade da conduta se afere pela pena aplicável, e portanto, pela moldura penal abstrata do crime, não fazendo qualquer sentido que a mesma expressão seja usada nos dois números com sentido diferente», posição seguida no acórdão do TRC de 03.02.2016 (proc. n.º 90/14.9TAMGL.C1) onde a ora relatora interveio como adjunta.

Pacífico que se mostra, para nós, este entendimento, isto é que a maior gravidade da conduta supervenientemente conhecida após o trânsito em julgado de uma sentença condenatória, mas obviamente ocorrida antes do mesmo se reporta à ação que, integrando a continuação criminosa, for punível de forma mais severa, a que corresponda, por conseguinte, uma moldura penal abstrata (uma penalidade) mais grave – e, bem assim, que o tempo da acusação não constitui, sem mais, critério para afastar o nexo psicológico (de coesão) entre as diversas condutas criminosas - é hora de questionar se sendo a conduta «nova» de igual ou menor gravidade relativamente àquelas já julgadas tal constatação, como parece resultar da sentença recorrida, torna a coisa irrelevante, dispensando a formulação do juízo sobre a efetiva existência de uma continuação criminosa, ou seja sobre a eventual unificação, suportada numa menor exigibilidade e na consequente diminuição da culpa, de todas as condutas anteriores num crime continuado.

Com o devido respeito, não se nos afigura tal defensável.

Partindo das normas de punição do crime continuado, chegando-se à conclusão que a nova conduta conhecida integra com a(s) conduta(s) já julgadas uma continuação criminosa, mas que a pena àquela aplicável é de igual ou menor gravidade relativamente a estas, então não há que considerá-la.

Exemplificando, escreve Germano Marques da Silva: «Consideremos que o agente foi condenado pelas condutas A), B) e C), constitutivas cada uma de um crime de abuso de confiança, punível nos termos do disposto no art. 205.º, nº 1, pela prática de um crime continuado de abuso de confiança. Posteriormente descobre-se uma nova conduta também qualificada como abuso de confiança p.p. pelo n.º 1 do art. 205.º. Neste caso não há lugar a nova acusação porque o facto agora descoberto não implicará uma nova pena, por força do disposto no art. 79.º, nº 2. Se for deduzida acusação, a mesma não pode ser recebida e se o for o arguido deve ser absolvido».

No mesmo sentido vão as palavras de M. Simas Santos e M. Leal Henriques quando afirmam: «É agora claro que as condutas da continuação criminosa conhecidas tardiamente ficam impunes se forem menos graves do que a mais grave anteriormente considerada ou, sendo mais graves, levam à aplicação de uma nova pena (mais grave) que substituirá a anterior» - [cf. Noções Elementares de Direito Penal, 2009, Rei dos Livros, pág. 262]. Idêntica orientação perfilham Victor Sá Pereira e Alexandre Lafayette ao referirem: «Entretanto, se a superveniência se reportar a crime menos grave ou da mesma gravidade (em relação à parte já julgada), continua a valer, por força do trânsito, a pena já aplicada» - [op. cit., pág. 241].

Ainda a tal propósito escreve Pinto de Albuquerque «… sempre que se descubram novos factos que se possam encontrar em continuação criminosa com outros já julgados, deve sempre proceder-se a novo julgamento com vista a apurar 1) Se o facto novo integra efetivamente a continuação; 2) Se é mais grave ou menos grave que os outros já julgados (…).

- Se o facto novo efetivamente integrar a continuação e for mais grave, o tribunal do segundo julgamento aplica a pena a este crime de acordo com a respetiva moldura penal, descontando-se na pena concreta a parte da pena já cumprida.

- Se o facto novo efetivamente integrar a continuação, mas for menos grave, o tribunal do segundo julgamento declara a acusação procedente, isto é, que o facto novo dado como provado integra a continuação criminosa, e, nos termos do artigo 79.º, nº 2 do C.P., a contrário, mantêm a pena da sentença anterior.

- Se o facto novo não integrar a continuação, o tribunal do segundo julgamento fixa a pena que lhe for adequada, podendo considerar a anterior condenação apenas na medida concreta da pena» - [cf. op. cit., pág. 249].

Retomando o caso concreto, importa concluir.

A tese defendida pelo tribunal a quo no que ao limite temporal do conhecimento dos factos novos concerne não encontra sustentação na lei [quer à luz do n.º 2 do artigo 30.º, quer do artigo 79.º, n.º 2 do C. Penal], da qual apenas se infere, como não podia deixar de ser em face da menor exigibilidade e da consequente diminuição da culpa que caraterizam o crime continuado, que aqueles tem de ter ocorrido em data anterior à do trânsito em julgado da primeira condenação.

Com efeito, parece evidente que a sentença constitui uma interrupção necessária, provocando a quebra do primitivo desígnio criminoso, assistindo-se a partir da mesma à formulação de uma nova vontade, originária, portanto, incompatível com a afirmação de um nexo de coesão entre todos os crimes.

A questão da continuação criminosa dos factos julgados no proc. n.º 649/11.1TAPBL com aqueles outros em apreço nos presentes autos, não dispensa o julgador da formulação do juízo sobre o eventual nexo psicológico entre uns e outros, revelando-se insustentável o conhecimento da matéria em sede de questão prévia. Ao assim ter sucedido, conforme decorre do próprio texto da decisão, enferma a sentença do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [artigo 410.º, nº 2, alínea a) do CPP].

Tendo presente as regras de punição do crime continuado uma menor ou igual gravidade das novas condutas, aferida pela penalidade (moldura penal abstrata) cabível relativamente a cada uma das mesmas, uma vez assente a verificação efetiva de uma situação de continuação criminosa – que não pode ser apreciada em momento prévio ao do julgamento dos factos - conduz à desconsideração, para efeito da pena, dos novos crimes.

Na verdade, «A solução legal desinteressou-se de agravar a responsabilidade do agente, em virtude de uma reiteração, que simplesmente passasse a ver-se acrescida» (…), as condutas punidas pelo mesmo tipo legal, integrantes da continuação, que simplesmente revelem, no caso, um grau de ilicitude maior, ver-se-ão (…) consumidas pela condenação já julgada» - [cf. o cit. acórdão do STJ de 18.02.2010].

Isso mesmo resulta a contrario do n.º 2 do artigo 79.º do C. Penal.

Impõe-se, assim, decidir no sentido do reenvio parcial [artigos 426.º e 426.º - A do CPP] circunscrito ao julgamento dos factos relevantes à formulação do juízo sobre a eventual verificação de uma situação de continuação criminosa entre as condutas já julgadas no âmbito do proc. nº 694/11.1TAPBL e aquelas outras em questão nos presentes autos, os quais, uma vez fixados, deverão determinar, à luz do direito aplicável, os termos da correspondente decisão.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal, como consequência da verificação do vício da alínea a), do nº 2, do artigo 410.º do CPP, em determinar o reenvio parcial [artigos 426.º e 426.º - A do CPP] circunscrito ao julgamento dos factos relevantes à formulação do juízo sobre a eventual verificação de uma situação de continuação criminosa entre as condutas já julgadas no âmbito do proc. nº 694/11.1TAPBL e aquelas outras em questão nos presentes autos, os quais, uma vez fixados, deverão determinar, à luz do direito aplicável, os termos da correspondente decisão.

Sem tributação

Coimbra, 27 de Setembro de 2017    

[Processado e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)