Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4158/17.1T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
RECURSO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
MONTANTE DA RESTITUIÇÃO
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 604º E 607º, Nº 5, DO NCPC; 379º, Nº 2, 473º E 474º DO C. CIVIL.
Sumário: I - A censura da decisão sobre a matéria de facto, maxime quando esta se alicerçar em prova pessoal, apenas é de conceder quando os elementos probatórios invocados pelo recorrente não apenas a sugiram, mas antes a imponham.

II - O montante da restituição com base no enriquecimento sem causa visa, determinantemente, não o empobrecimento, mas o enriquecimento, relevando o quantum atualizado deste, não podendo ele ser superior ao quantitativo do empobrecimento, e apenas podendo ser igual, inferior ou, até, no limite, nulo.

III - Assim, se a empobrecida contribuiu para as benfeitorias de uma casa propriedade do enriquecido em valor superior ao atual valor venal de mercado desta, não é aquele valor, mas este, que deve ser atendido nesta sede.

Decisão Texto Integral:




ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

L... instaurou contra J... ação declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediu:

1)  A condenação do réu a reconhecer que o prédio identificado no artigo 42º da petição é propriedade do dissolvido casal de Autora e Réu, ou que é propriedade de Autora e Réu na proporção de metade;

2)  Em consequência ordenada a atualização e retificação da descrição matricial e da descrição predial do mesmo prédio, nos termos alegados nos artigos 78, 79º, 81º e 82º da petição.

A título subsidiário, caso improceda o primeiro pedido:

3) A reconhecer que foram realizadas obras que constituem benfeitorias necessárias, pois tiveram como finalidade evitar a perda, destruição ou deterioração do imóvel;

4) A reconhecer que foram realizadas benfeitorias úteis que lhe aumentaram e aumentam o valor;

5) A reconhecer que tais benfeitorias necessárias e úteis foram realizadas por Autora e Réu de boa fé, de comum acordo, tendo cada um suportado metade do seu custo;

6) A reconhecer que tais benfeitorias não podem ser retiradas do citado prédio sob pena da sua destruição ou perecimento;

7) A pagar à Autora a quantia de 100.000,00€ (cem mil euros), a título de indemnização correspondente a metade do valor das benfeitorias, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação.

Alegou em  síntese:

A autora e réu, na constância do casamento, ergueram em conjunto a casa de morada de família, com o dinheiro proveniente dos ambos os progenitores do casal, tendo realizado obras de melhoramento pagas com dinheiro ganho pela força de trabalho de ambos.

O réu  contestou.

Impugnou a factualidade alegada na PI, alegando que a casa foi totalmente construída no terreno herdado da família do pai, que posteriormente lhe foi adjudicado em partilhas, tendo as obras sido custeadas exclusivamente com dinheiro dos seus pais.

E que  as obras de melhoramento foram custeadas exclusivamente com recurso aos seus rendimentos de trabalho e ainda a produto da venda de bens próprios.

Pediu:

A improcedência da ação e, em consequência, a absolvição do pedido.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais supra citadas, decide este Tribunal julgar a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência:

I – Condenar o réu a pagar à autora quantia no valor de €48.302,94 (quarenta e oito mil trezentos e dois euros e noventa e quatro cêntimos), correspondentes à sua parte, por benfeitorias úteis não passíveis de  levantamento implantadas no prédio melhor descrito em 5), acrescido de juros civis, à taxa legal de 4% desde a prolacção da presente sentença até integral pagamento;

II – Absolver o réu do demais pedido;

III – Condenar autora e o réu nas custas da ação, na proporção respectiva de 51,70% e 48,30%;»

3.

Inconformado recorreu o réu.

Rematando a s suas alegações com as seguintes conclusões:

...

w).Assim sendo, o valor do benefício ao tempo da entrega da coisa não poderá ser superior a €20.000,00 e nunca nos valores fixados pela Douta Sentença, que conseguiu arbitrar ao valor da metade, valor superior ao valor de mercado do prédio no seu todo.

 a.a). A douta sentença recorrida violou, assim, o disposto no no nº 5 do artigo 607º, 608º, do Código de Processo Civil e artigos 479º e 1273º do Código Civil.

Contra alegou a autora pugnando pela manutenção do decidido.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º, nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª -  Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

2ª – Improcedência da ação.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº 607º, nº 5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

Finalmente, e como dimana do já supra referido, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genericamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

 A lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.

Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua, subjetiva, convicção sobre a prova.

Porque, afinal, quem  tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.

Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular deve ele efetivar uma análise concreta, discriminada, objetiva, crítica, logica e racional, do acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

 A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório  com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito probatório permitida e que lhe é concedida.

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção, se podem censurar as respostas dadas.– cfr., neste sentido, os Acs. da RC de 29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 17.05.2016, p. 339/13.1TBSRT.C1; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos  in dgsi.pt;

Até porque constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

5.1.2.

In casu.

...

Por conseguinte, e no parcial deferimento desta pretensão, os factos a considerar são os seguintes, indo a bold os alterados:

...

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

A Srª Juíza interpretou e decidiu, de jure, nos seguintes, essenciais e sinóticos  termos:

«Prescreve o artigo 1273.º do CC que tanto o possuidor de boa fé, como o de má fé têm o direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que tenham feito, podendo inclusive levantar as benfeitorias úteis, desde que o façam sem detrimento para a coisa. Prescreve ainda o artigo 1273.º, no seu n.º 2 que, quando para evitar o detrimento da coisa, não possa haver lugar ao levantamento das benfeitorias, o titular deverá satisfazer o possuidor na medida do valor dessas benfeitorias, calculado nos termos do enriquecimento sem causa.

Nos termos do artigo 216.º do CC são benfeitorias todas as despesas realizadas para conservar ou melhorar a coisa. O legislador, dentro destas despesas distinguiu ainda entre benfeitorias necessárias, as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; das benfeitorias úteis, que são as que não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam o valor; das benfeitorias voluptuárias, entendidas como as que não sendo indispensáveis para a conservação da coisa, nem acrescentando valor à coisa, servem apenas para recreio do benfeitorizante.

No que respeita ao prédio urbano descrito em 5), inexistem quaisquer dúvidas que a casa de habitação nele implantada e respectivos anexos, de entre os quais o jardim, a churrasqueira, a garagem, todas essas obras integram o conceito de benfeitorias, e de entre as benfeitorias elencadas na lei, as benfeitorias úteis, cfr. artigo 216.º do CC…

Por outro lado, resulta também evidente das regras da experiência a impossibilidade de levantar essas benfeitorias sem evitar o detrimento da coisa…

Assim, em face dos factos apurados, tendo em consideração que autora e réu despenderam, em igual proporção, na construção, manutenção e sucessivos melhoramentos da casa de habitação e respectivos anexos, impõe-se ponderar em que medida deve a autora ser indemnizada…

A obrigação de restituir/indemnizar fundada no instituto do enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa dos quatro seguintes requisitos: a) a existência de um enriquecimento; b) que ele careça de causa justificativa; c) que o mesmo tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição; d) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado.

O enriquecimento traduz-se em valorização ou vantagem de carácter patrimonial, que pode ser obtida por diversos meios: como aumento do activo, diminuição do passivo, poupança de despesas, entre outros.

Prescreve o artigo 479.º, n.º 1 do CPC que a obrigação de restituir compreende tudo quanto tenha sido obtido à custa do empobrecido, a que corresponde, no caso das benfeitorias úteis que não podem ser levantadas sem prejuízo para a coisa, no pagamento do valor correspondente.

No que respeita a interpretação de “valor correspondente”, seguindo nesta senda o ensinamento de Antunes Varela/Pires de Lima (in “Código Civil Anotado”, Volume III, p. 42-44), em face da razoabilidade das soluções apresentadas, defendemos que a indemnização deverá corresponder ao valor daquilo que o titular tiver obtido à custa do empobrecido, ou seja, o valor será encontrado entre o valor do custo das benfeitorias – na medida do empobrecimento do benfeitorizante, sendo o valor efectivamente investido na coisa considerado uma dívida de valor e nesse âmbito actualizada de acordo com a depreciação da moeda; e o valor actual que corresponde ao enriquecimento do titular do direito.

Como se constata da matéria de facto apurada em 7), 11), 12), 13), 16), e bem assim de 17) a 25), a casa implantada sobre o prédio descrito em 5) sofreu inúmeras alterações ao longo dos quase 40 anos de casamento entre autora e réu.

Assim, tendo em consideração os critérios supra enunciados, importando atribuir um valor às benfeitorias realizadas, tendo em consideração o decurso do tempo entre as benfeitorias realizadas, a desvalorização da moeda até ao presente (dia 27/3/2020), correspondendo ao critério de actualização a Taxa  de Inflacção ou Taxa de Variação do Índice de Preços no Consumidor, inicialmente publicada anualmente pelo INE e actualmente no PORDATA, constata-se:

- As obras a que alude o ponto 18) da matéria de facto julgada provada, avaliadas em 86.496$00, que corresponderia em euros a €413,45, actualizado de acordo com a inflacção corresponde a 21.570,11EUR;

- As obras a que alude o ponto 19) da matéria de facto julgada provada, cujo valor gasto à época (1972) apurou-se rondar 117.746$68, ou €587,37, actualizado de acordo com índice de variação de preços no consumidor corresponde a 28.129,41EUR;

- As obras a que alude o ponto 20) da matéria de facto julgada provada, cujo valor gasto à época (1981-1982) se apurou rondar 1.031.661$00 ou €5.145,91, actualizado de acordo com o índice de variação de preços no consumidor corresponde a 38.704,87EUR;

- As obras a que alude o ponto 21) da matéria de facto julgada provada, cujo valor gasto à época (1991) se apurou rondar €2.692,16, corresponde, seguindo o método supra mencionado, o valor actual de 5.463,77 EUR;

- As obras a que alude o ponto 22) da matéria de facto julgada provada, cujo valor gasto à época (2001-2002) se apurou rondar €2.100,00, corresponde, seguindo o mesmo método, o valor actual de 2.773,72EUR.

Por outro lado, apurou-se, com fundamento nos relatórios dos senhores peritos, que a casa e respectivos anexos têm o valor de mercado actual de €40.000,00 (factos julgados provados em 23), valor cuja apreciação teve em consideração factores de desvalorização como: a inexistência de licença de utilização, a utilização de materiais de menor qualidade, mau dimensionamento das áreas, ausência de isolamento térmico e acústico e ainda a antiguidade da casa (50 anos) e correspondente desvalorização pelo uso.

Como se constata do caso vertido nos presentes autos, tem o tribunal a incumbência de avaliar qual o valor das benfeitorias decorrentes da construção e inúmeras obras de manutenção e melhoramento da casa de habitação, por cerca de 40 anos, por autora e réu.

Tendo em consideração os valores apurados, constata-se que seguindo o método do empobrecimento da autora, verificamos que esta despendeu, por força das benfeitorias realizadas ao longo de quase 40 anos de vida em comum, pelo menos metade de €96.641,88, ou seja €48.302,94 (21.570,11+ 28.129,41+ 38.704,87+ 5.463,77+ 2.773,72= €96.641,88). Por outro lado, seguindo o método do enriquecimento do réu, verifica-se que este enriqueceu em metade do valor de mercado apurado, ou seja €20.000,00.

Ora, não se duvida que as decisões foram tomadas por autora e réu, não se tendo por qualquer forma provado que a inexistência de licença de utilização ou a utilização de materiais de menor qualidade tivesse decorrido de manifestação e imposição da vontade da autora. Por outro lado, à data em que as obras  foram realizadas, não existia a obrigatoriedade hodierna de ter a utilização da casa e qualquer aditamento ou alteração do projecto licenciado, obrigações que decorrem da entrada de Portugal na então Comunidade Económica Europeia, em 1/1/1986.

Desta forma, tendo em consideração o tempo volvido e a alteração das regras de avaliação das benfeitorias ao longo desse período, considera-se que o método de indemnização do valor do empobrecimento da autora corresponde à forma mais justa de indemnização, razão pela qual se decide que a medida do seu empobrecimento se encontra avaliada em €48.302,94 (quarenta e oito mil trezentos e dois euros e noventa e quatro cêntimos).»

Atentemos.

5.2.2.

Dispõe o artº 473º do CC:                         

«1 - Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.

2 - A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que foi recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.»

Sendo, assim, pressupostos  ou requisitos do enriquecimento sem causa:

a)  A existência de um enriquecimento de alguém;

b)  A obtenção desse enriquecimento à custa de outrem;

c) O nexo causal entre as duas situações;

d)  A ausência de causa justificativa para o enriquecimento;

e) Que a lei não faculte ao empobrecido – rectius credor – outro meio de ser indemnizado ou restituído – cfr. entre outros os Acs do STJ de 04.06.1996 e de 23.04.1998, BMJ, 458º, 217 e 476º,371.

O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem assuma, vg. uso ou fruição de determinada coisa, aumento do ativo ou diminuição do passivo.

O enriquecimento há-de verificar-se à «custa de outrem», ou seja a expensas com meios ou instrumentos alheios, mas não tem, necessariamente, de implicar um empobrecimento ou sacrifício económico. É o caso do uso de coisa alheia, com fruição das suas utilidades, sem que tal represente qualquer prejuízo, afetação ou constrangimento patrimonial para o seu dono.

Tem, em todo o caso e como se viu, de existir uma relação de conexão e interdependência  ou correlação entre o enriquecimento e o direito afetado: aquele tem de se suportar ou dimanar deste. Não se exige, porém, uma relação diretamente proporcional entre o enriquecimento e o empobrecimento podendo os valores respetivos serem díspares.

Exige-se a inexistência de causa justificativa.

Ou seja, impõe-se que não exista uma causa jurídica que legitime a deslocação patrimonial: ou porque nunca a houve, ou porque, havendo-a inicialmente, entretanto desapareceu.

A lei não definiu o conceito de ausência de causa do enriquecimento, limitando-se a indicar no nº 2 do artº 473º alguns exemplos que constituem auxiliares ou subsídios para a formulação de um conceito mais geral que permita abarcar a grande variedade de situações que podem integrar-se em tal instituto.

Assim, quando a deslocação patrimonial opera mediante uma prestação do empobrecido, no pressuposto que ela é devida por força da existência de uma obrigação nesse sentido e esta não existe, tal prestação carece de causa.

Nos casos em que a deslocação patrimonial assenta numa obrigação de cariz negocial – vg. venda, arrendamento, empréstimo –  a mesma fica sem causa quando o fim típico do negócio em que se integra não é atingido por qualquer razão.

 Fora estes casos e em tese geral tem-se entendido que o enriquecimento não tem causa quando para a  transferência patrimonial não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, a justifique.

Ou, ainda, quando se apresentar como injusta perante a ordem jurídica, no sentido de se encontrar em desarmonia com a correta ordenação jurídica dos bens conforme fixada e aceite pelo sistema jurídico, de tal sorte que o seu acolhimento e aceitação na esfera jurídica patrimonial do enriquecido, em detrimento da do empobrecido, porque injustificada e iníqua, repugnaria ao direito – cfr. Antunes Varela, Obrigações em Geral, 2ª ed. P.364 e segs. e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ªed. p.335.

Finalmente o cariz subsidiário, última ratio ou a válvula de escape, do instituto -consoante estatuído no artº 474º do CC –  determina que o empobrecido só pode recorrer  a esta ação quando a lei não lhe faculte outro meio para pedir o ressarcimento dos prejuízos. Sempre que a ação normal possa ser exercida, o empobrecido deve optar por ela.

Assim e designadamente: «aquele que tenha direito a pedir a declaração de nulidade ou a anulação de um negócio jurídico e a restituição da prestação entregue (artº 289º) não é admitido a exercer a acção de enriquecimento» - Almeida Costa, ob.cit., p.338 e A. Varela, ob. Cit., p.377 e sgs. e, entre outros, Ac. do STJ de 16-10-2008, dgsi.pt, p   08A2709.

Diga-se ainda que, como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, é sobre o autor da ação que impende o ónus de provar os aludidos requisitos, porque elementos constitutivos do seu direito, nos termos do artº 342º nº 1 do CC. – cfr. autores, obs. e locs. cits. e, entre outros, Acs. do STJ de 03.07.1970, BMJ, 199º, 190, 5/12/06, 29/5/07, 4/10/07 e 24.03.2017, ps. 06A3902, 07A1302,  07B2772 e 1769/12.5TBCTX.E1.S1, in dgsi.pt.

5.2.3.

Já quanto ao montante a restituir, que é o que, essencialmente  está em causa no recurso, urge ter presente,  que, como dimana da letra da lei – artº 379º, nº 2 do CC –  a obrigação de restituir não pode exceder a medida do locupletamento atual.

Ou seja, mais do que que pretender tornar indemne o empobrecido, concedendo-lhe tudo o que do seu património o enriquecido, pretende-se apenas que este restitua o quantum que, atualizadamente, ainda usufrui sem causa à custa daqueleCfr. Ac. STJ de 19.01.2017, p. 187/12.0TBMGD.G1.S1 in dgsi.pt.

Se este valor coincidir com o montante do empobrecimento será o que terá de devolver. Se for inferior, é apenas este valor menor que  terá de restituir.

Assim:

«O beneficiado não é obrigado a restituir todo o objecto da deslocação patrimonial operada (ou o valor correspondente, quando a restituição em espécie não seja possível).

Deve restituir apenas aquilo com que efectivamente se acha enriquecido, podendo haver diferença — e diferença sensível — entre o enriquecimento do beneficiado à data da deslocação patrimonial e o enriquecimento actual (…). O enriquecimento assim delimitado corresponderá à diferença entre a situação real e actual do beneficiado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria, se não fosse a deslocação patrimonial operada» (Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, págs. 466 e  Acs. do STJ de 14.07.2009 e de 09.03.2010, in dgsi.pt.

Na verdade,  o quantum da restituição com base no enriquecimento sem causa tem como limites o enriquecimento e o empobrecimento atendendo-se não ao enriquecimento real (que corresponde ao valor objetivo e autónomo da vantagem adquirida) mas ao enriquecimento efetivo ou patrimonial (aquele que resulta da comparação entre a situação real e a situação hipotética, sendo esta a que existiria se a deslocação se não tivesse verificado), mas não podendo  ser superior ao quantitativo do empobrecimento do lesado – cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ª ed. pgs.327 e 345 e Acs. da RC de 2012.07.03 p. nº 1051/03.9TBVNO.C1 inédito e de 2018.01.23.  p. 543/05.0TBNZ.C1 in dgsi.pt,   deliberados por este mesmo coletivo.

Aliás, há até quem defenda que uma vez que a pretensão deste preceito é fazer com que o enriquecimento obtido seja devolvido ao empobrecido, a obrigação de entregar o obtido, os proveitos e o que se adquiriu deste, o commodum de substituição, o valor, não existe na medida em que o enriquecimento do accipiens tenha desaparecido – Vaz Serra, BMJ, 82º, 190.

5.2.4.

No caso vertente.

Não se pode corroborar o discurso argumentativo  plasmado na sentença, atenta a lei aplicável, a melhor interpretação que entendemos dela dever ser feita e os factos apurados.

E o recurso procedendo, em função do ora referido e, aliás, dos argumentos aduzidos pelo recorrente.

Efetivamente, versus o entendido pela julgadora, não é o total das contribuições monetárias da autora para as benfeitorias da casa, de cerca de 96 mil euros, - aliás apuradas sem cabal, concreta e discriminada, fundamentação – que relevam no âmbito desta figura.

Mas antes, como se viu, o valor do atual efetivo do enriquecimento do réu.

Ora, este enriquecimento é muito inferior aquele empobrecimento.

Na verdade, e independentemente de tal disparidade, o certo é que as benfeitorias efetivadas com a comparticipação monetária da autora não atribuem, presentemente, à casa, um valor correspondente ou proporcional àquelas benfeitorias e esta comparticipação.

Pois que o hodierno valor venal de mercado da casa, mesmo com tais benfeitorias, não ultrapassa os  40 mil euros.

As benfeitorias foram introduzidas num bem, o qual - por variadas razões que não se apurou serem imputáveis ao réu: fraca qualidade dos materiais, inexistência de licenciamento, degradação pelo decurso do tempo – nem sequer tem o valor a elas correspondente, mas o supra aludido.

Assim, se se atendesse apenas ao seu valor, como defendido na sentença, tal equivaleria a fazer reembolsar na integra a autora pelo que despendeu na casa, quando o réu, se porventura quisesse reaver a sua parte, não o conseguiria, pois  apenas  atingiria tal fito  se vendesse a casa  por montante que fosse bastante para tal, e  o valor de mercado do imóvel  não o permite.

Tal injustiça sairia ainda mais agravada se se considerar que a autora também usufruiu da habitação durante longos anos, e, assim, do seu investimento na mesma retirou proveitos e utilidades.

Por conseguinte, se atingindo a final e lógica conclusão que o valor a considerar nesta sede não é o despendido nas benfeitorias, mas antes o valor atual venal da casa.

Em função do que, e tendo-se dado como provada uma igual comparticipação das partes para as benfeitorias, o valor que assiste jus à autora ascende a vinte mil euros.

Procede o recurso.

6.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.

I - A  censura da decisão sobre a matéria de facto, maxime quando esta se alicerçar em prova pessoal, apenas é de conceder quando os elementos probatórios invocados pelo recorrente, não apenas a  sugiram, mas antes  a imponham.

II - O montante da restituição com base no enriquecimento sem causa visa, determinantemente, não o empobrecimento, mas o enriquecimento, relevando o quantum atualizado deste, não podendo ele ser superior ao quantitativo do empobrecimento, e apenas podendo ser igual, inferior, ou, até, no limite, nulo.

III - Assim, se a empobrecida contribuiu para as benfeitorias de uma casa propriedade do enriquecido em  valor superior ao  atual valor venal de mercado desta, não é aquele valor, mas este, que deve ser atendido nesta sede.

 7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revogar a sentença e, agora, condenar o réu a pagar à autora a quantia de  vinte mil euros acrescida de juros, à taxa legal de 4%, desde a data da  sentença até integral pagamento.

Custas pelas partes na proporção da presente sucumbência.

Coimbra, 2021.02.23.