Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2051/08.8TBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
DEVER DE VIGILÂNCIA
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 02/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO - 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 563.º DO CC
Sumário: Não há nexo de causalidade entre o incumprimento contratual do lar de idosos que, por violação do dever de vigilância relativamente a um idoso com problemas mentais, não impediu a sua saída do lar e desaparecimento por mais de 24 horas e a sua morte ocorrida enquanto vagueou perdido e que, de acordo com a relatório de autópsia, foi causada por hemorragia cerebral.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

            A....e B....propuseram contra ”C..., Lda.” acção com forma de processo ordinário, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 75.911,85, correspondente aos danos sofridos, € 50.000,00 pela perda do direito à vida do marido e pai, respectivamente, € 911,85 por despesas de funeral, € 5.000,00 pelos danos sofridos pela própria vítima e € 10.000,00 relativamente a cada uma das AA. pelos danos próprios sofridos com a morte do seu familiar.

            Alegaram, para tanto, em resumo, serem respectivamente cônjuge e filha do internado E... , de 75 anos de idade, com as faculdades mentais diminuídas, no lar de idosos denominado “F...”, em ...., no âmbito de um contrato de prestação de serviços, o qual, desaparecido das instalações do lar, veio a ser encontrado sem vida, mais de 24 horas após, a carca de 750 m da estação de caminho de ferro de ...., vítima de hemorragia cerebral, violando a R. a obrigação de cuidar e vigiar o falecido, por não ter tomado as cautelas necessárias para obstar a que saísse do lar para o exterior e expor-se ao frio numa noite de Inverno, morte que não teria ocorrido se a R. não tivesse omitido o seu dever de vigilância e, daí, ter-se constituído na obrigação de reparar os danos derivados dessa omissão e que acima se enunciaram.

            Contestou a R., fundamentalmente alegando nenhuma responsabilidade sobre si incidir, desde logo por não verificação de nexo de causalidade, ainda que indirecta, da morte com a sua obrigação relativamente ao idoso.

Foi proferido despacho saneador e, seleccionada a matéria de facto e organizada a base instrutória, foi objecto de reclamação por ambas as partes, contudo, sem êxito.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento e proferida decisão sobre a matéria de facto, não foi objecto de reclamação.

Não houve lugar a alegações de direito por escrito e, proferida sentença, veio a acção a ser julgada parcialmente procedente e a R. condenada no pagamento às AA., a título hereditário, da quantia de € 5.000,00, correspondente aos danos não patrimoniais sofridos em vida pela própria vítima, sendo que, quanto aos demais, não se demonstrou haver nexo de causalidade entre o incumprimento contratual da R. e a morte do idoso.

Inconformadas, recorreram as AA., formulando nas alegações as seguintes conclusões:

a) – A sentença recorrida não tomou em consideração a matéria de facto provada e fundamentou-se num incorrecto entendimento da teoria da causalidade adequada acolhida no art.º 563.º do CC na vertente mais ampla, da sua formulação negativa;

b) – A hemorragia cerebral corresponde à ruptura de uma artéria do cérebro, ocorrendo frequentemente durante uma actividade ou circunstância que provoque um súbito aumento da pressão arterial como, por exemplo, um esforço físico ou uma situação de stress, como aqueles por que o falecido passou;

c) – Quanto mais idosa é a pessoa, maior é a possibilidade de desenvolver hipertensão arterial;

            d) – A hemorragia cerebral, que foi causa da morte, ocorreu num quadro circunstancial adequado a provocar o resultado verificado e esse circunstancialismo não teria ocorrido se a Ré não tivesse omitido o seu dever de cuidar do falecido;

            e) – Não há que excluir, também, a probabilidade de a hemorragia cerebral ter sido causada pela ferida inciso-contusa na região frontal direita referida no relatório de autópsia do falecido;

            f) – A ter ocorrido hemorragia cerebral encontrando-se o falecido na Residência teria tido a possibilidade de ser prontamente assistido medicamente e sobreviver;

            g) – O tribunal, para lá de haver interpretado incorrectamente o disposto no art.º 563.º do CC, violou o n.º 2 do art.º 496.º do CC e 659.º do CPC, ao julgar não poder estabelecer-se um nexo de causalidade entre a conduta omissiva da R. e a ocorrência da hemorragia cerebral, que foi causa da morte, pelo que deve ser revogada a sentença e substituída por outra a condenar a R. no pedido.

            Não houve lugar a resposta.

            Dispensados os vistos, cumpre apreciar, sendo que a única questão a decidir é saber se há nexo de causalidade entre o incumprimento do dever de vigilância por parte da R. e a morte do idoso internado no seu lar, causada por hemorragia cerebral.

Vejamos.


*

2. Fundamentação

2.1 De facto

Foi a seguinte a factualidade dada como provada pela 1.ª instância, que não foi impugnada, nem esta Relação vê motivo para oficiosamente alterar:

a) – As AA. são, respectivamente, viúva e filha e as únicas herdeiras de E...., falecido em 24 de Dezembro de 2005;

b) – A R. é proprietária da “ F....”, sita na ...., ....;

c) – Em Setembro de 2005, E.... foi colocado e passou a residir na referida Residência;

d) – Nos termos do Contrato de Prestação de Serviços celebrado em 21.9.05 entre a 2.ª A. e a R. esta obrigou-se a prestar a E.... estadia, alimentação, assistência médica, de enfermagem e de acompanhamento e vigilância;

e) – As AA. pagaram mensalmente à R., pela estadia de seu marido e pai, a quantia de € 775,00;

f) – A 2.ª A. declarou expressamente no Termo de Responsabilidade anexo ao Contrato de Prestação de Serviços que “o utente de que é responsável não poderá sair do estabelecimento sem ser por si acompanhado”;

g) – E.... à data do internamento na referida residência tinha 75 anos de idade e padecia de demência;

h) – E.... revelava grandes dificuldades de locomoção;

i) – Estava completamente dependente de terceiros para satisfazer as suas necessidades de alimentação, higiene e vestuário;

j) – No dia 23 de Dezembro de 2005, cerca das 10 horas, a 2.ª A. recebeu um telefonema de D..., sócio gerente da R., comunicando-lhe que, no dia anterior, cerca das 19 horas, o seu pai E.... desaparecera da residência;

j) – No dia 24 de Dezembro de 2005, cerca das 9h30, o posto da GNR de .... informou os familiares de E.... de que recebera uma comunicação da CP, dando conta de que se encontrava um corpo caído na berma da via férrea, próximo da estação de caminho de ferro de ....;

l) – O local onde se encontrava o corpo dista cerca de 750 m da estação de caminho de ferro de ....;

m) – O relatório da autópsia efectuada ao cadáver de E.... em 26 de Dezembro de 2005 refere, como causa da morte, ocorrida em 24 de Dezembro, uma hemorragia cerebral;

n) – E.... durante o período de cerca de 3 meses em que esteve internado na Residência de idosos foi frequentemente assistido e medicado pelo Dr. H...., médico do Centro de Saúde de ...., na própria Residência;

o) – O Dr. H.... conhecia o estado da doença de que padecia E....;

p) – Todo o pessoal de serviço na Residência que no exercício das suas funções lidava quotidianamente com E.... conhecia o estado da sua doença e a necessidade de o vigiar;

q) – O desaparecimento e a morte de E.... ocorreram numa noite de Inverno em que fazia muito frio;

r) – A morte de E.... ocorreu mais de 24 horas após se ter dado pela sua ausência do lar de idosos;

s) – As AA. nutriam pelo seu marido e pai um grande amor;

t) – A morte deste, nas circunstâncias em que ocorreu, constituiu um rude golpe que não estavam preparadas para enfrentar;

u) – Visitavam-no regularmente durante o período em que esteve internado no lar de idosos, telefonavam com frequência para se inteirarem do seu estado e sempre cuidaram para que nada lhe faltasse;

v) – Nas várias visitas que efectuaram sempre lhe manifestaram o amor que sentiam por ele e proporcionaram-lhe muito carinho;

x) – Choraram diariamente a sua morte;

z) – Continuam a sentir uma imensa dor e saudade de seu marido e pai e não se conformam com a sua morte, nas circunstâncias em que ocorreu;

aa) – Em 26 de Novembro de 2001 o Comandante dos Bombeiros Voluntários de .... declarou que o estabelecimento para acolhimento de idosos, denominado “ F....de ....” cumpria as normas de segurança exigidas pela lei em vigor;

bb) – Correu termos no Centro Distrital da Segurança Social de .... o processo de contra-ordenação n.º 02-00067 por falta de funcionamento do estabelecimento “ F....”, sito em ...., que culminou com a condenação da arguida;

cc) – A “ F....”, sita em ...., funciona nas instalações do antigo hospital da Misericórdia de ....;

dd) – O acesso ao estabelecimento é feito, do exterior, por um portão metálico automático que permite a entrada no logradouro destinado a jardim e, daqui para o edifício do lar, por única porta deste, a qual se encontra permanentemente encerrada e só aberta a solicitação pontual;

ee) – Durante algum tempo, o portão manteve-se aberto durante o dia, devido a avaria no motor que o movimenta;

ff) – Enquanto não foi reparado, era o mesmo fechado manualmente, todos os dias, após saída das últimas visitas, cerca das 19 horas e assim permanecia toda a noite;

gg) – No dia 22 de Dezembro de 2005, entre as 18h30 e as 19 horas, as funcionárias da R. em serviço no lar começaram a levar os idosos para a sala de jantar a fim de os mesmos tomarem tal refeição;

hh) – Nessa altura do ano o jantar é servido cerca das 19 horas, após a saída das últimas visitas;

ii) – E.... foi visto pelas funcionárias do lar, pela última vez, alguns minutos antes das 19 horas do dia 22.12.05, no corredor de acesso à sala de jantar e em direcção a ela (levando-as a crer que para lá se dirigia para jantar), a empurrar uma cadeira de rodas em que se amparava, dadas as dificuldades de locomoção;

jj) – Cerca das 18h45 do dia 22.1.205, quando todos os idosos se encontravam à mesa da sala de jantar para tomar a refeição, as funcionárias da R. aperceberam-se da falta de E....,

ll) – E, de imediato, iniciaram as buscas;

mm) – Procuraram no edifício do lar e no jardim anexo e, como não o encontraram, deslocaram-se, de imediato, ao posto da GNR e ao Comando dos Bombeiros Voluntários de ...., cujas instalações se situam frente ao lar e na mesma rua, a quem participaram o sucedido;

nn) – Com os meios disponíveis destas entidades, auxiliadas por funcionários do lar, iniciaram-se de imediato as buscas, que se prolongaram por toda essa noite, pelo dia seguinte – 23 – e pela noite de 23 para 24 de Dezembro de 2005;

oo) – No lapso de tempo – cerca de 15 minutos – em que a R. perdeu contacto com o falecido encontravam-se ainda de saída algumas visitas e o portão exterior estava aberto;

pp) – À data do desaparecimento a identificada Residência de Idosos dispunha de uma autorização provisória de funcionamento, emitida pelo Centro Distrital da Segurança Social de ...., em 5 de Abril de 2005, por um período de 180 dias;

qq) – Na última visita dos seus familiares não reconheceu a mulher, a sua filha e os seus netos e manteve-se sempre num estado de completo alheamento e prostração;

rr) – O portão exterior, a maior parte do tempo, encontrava-se aberto;

ss) – A Residência não dispõe de portaria e as entradas e saídas não são vigiadas;

tt) – O falecido tinha uma ferida na testa, tinha um pé descalço e estava deitado com as costas assentes no solo;

uu) – O Dr. H.... comunicou expressamente aos responsáveis do estabelecimento da R. a necessidade de vigiar atentamente E....;

vv) – O E...., no período de tempo que mediou entre a altura em que saiu do Lar e aquela em que faleceu, vagueou perdido e confuso, sem ter capacidade de recorrer a alguém que lhe valesse;

xx) – Padeceu fome e frio;

zz) – O E.... faleceu sozinho.


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            2.2. De direito

a) – Como vimos, a única questão a resolver prende-se com a recusa, pela sentença, do nexo de causalidade entre o dano da morte e o facto ilícito de omissão do dever de vigilância por parte da R. recorrida, relativamente ao idoso, respectivamente marido e pai das AA. e encontrado sem vida mais de 24 horas após ter-se ausentado do lar explorado pela R.

Se bem que a realidade do dia-a-dia nos force à evidência do desrespeito pela dignidade e dos direitos humanos, em geral, do idoso, com especial enfoque, aqui, da sua segurança, o legislador, atento a algumas situações de vulnerabilidade no ciclo da vida humana, desde logo antes do nascimento com a defesa mais ou menos abrangente do embrião, passando, depois, pelo direito dos menores, no decurso da vida activa (mormente com o combate à violência doméstica) e até no seu final (com o direito mortuário), no que respeita à terceira idade e pese embora a matriz constitucional do art.º 72.º da Constituição da República Portuguesa[1], não logrou ainda normativizar os seus direitos, em especial, no que aqui interessa, no quadro da sua assistência institucional, seja em lares com alojamento colectivo ou estabelecimentos assistenciais congéneres, mormente se explorados por particulares, cujo escopo empresarial é dotado de lógica nem sempre coincidente com a ética e defesa dos seus direitos básicos enquanto pessoa humana vulnerável pela idade e pela doença que lhe anda associada.

O quadro legal mais directamente aplicável resulta incipientemente esparsado pelo DL 133-A/97, de 30.5 (que define o regime de licenciamento e fiscalização da prestação de serviços e dos estabelecimentos e foi alterado pelo DL n.º 268/99, de 15.7 para instituir a obrigatoriedade de um livro de reclamação) e pelo Dec. Regulamentar n.º 12/98, de 25.2.

Embora deles não resulte um elenco dos direitos do idoso internado em lar ou estabelecimento similar, a norma III, n.º 1, alín. a) deste último diploma exige, da parte do lar, a “prestação de todos os cuidados adequados à satisfação das suas [idosos] necessidades, tendo em vista a manutenção da autonomia e independência”.

Ora, estando aqui em causa pessoas vulneráveis, como dissemos, entre esses cuidados conta-se o dever de protecção e segurança, desde logo a partir do dever de vigilância no controle das saídas dos próprios idosos das instalações, em especial se for de noite e de Inverno e se tratar de idoso com necessidades especiais.

Todavia, para lá desse dever legal, cuja violação caracterizou o facto ilícito que levou à fixação da indemnização de € 5.000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos pelo pela vítima e cuja matéria não faz parte do âmbito do presente recurso, qualquer daqueles diplomas remeteu a fixação “dos principais direitos e obrigações de ambas as partes” para um “contrato [escrito] de alojamento e prestação de serviços”, o que foi feito entre a 2.ª A e a R. (fls. 19).


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            b) – Da cláusula 1.ª desse contrato, denominado de prestação de serviços, ressalta a retribuição mensal a pagar pela 2.ª A. relativamente ao idoso e os serviços a prestar pela R. de “estadia, alimentação, assistência médica, enfermagem e de acompanhamento e vigilância”.

            Ficou a constar ainda em tal documento a declaração da 2.ª A. em como o utente não poderia sair do estabelecimento sem ser por si acompanhado.

Trata-se, com efeito, de um contrato de prestação de serviços regulado pelo art.º 1154.º do Cód. Civil (diploma a ter presente sempre que outro se não indique), decorrendo para a 2.ª A. a obrigação do pagamento da retribuição assinalada, nos termos também da alí. b) do art.º 1167.º e, para a R., a prestação daqueles cuidados de assistência e vigilância à pessoa internada, conforme a alín. a) do art.º 1161.º, por força do art.º 1156.º.

Face à materialidade provada e é pacífico entre as partes, a R., ao não obstar que o idoso internado se ausentasse do lar, violou esse dever de vigilância, incorrendo em incumprimento contratual (e legal), na modalidade de cumprimento defeituoso da obrigação, emergindo a sua responsabilidade do disposto nos art.ºs 486.º, 798.º, 799.º e 800.º.

O facto ilícito assenta, pois, em conduta omissiva do dever de vigilância, que a R. podia e devia ter observado, por isso incorrendo na obrigação de reparar os danos.

Quais danos, é a questão, o que nos remete para o nexo de causalidade enquanto pressuposto da responsabilidade civil (contratual e extracontratual) e medida da obrigação de indemnizar, embora o recurso limite a apreciação ao dano da morte.


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            c) – Encaremos, então, a questão suscitada sobre se há nexo de causalidade entre o facto ilícito da R., de violação, por omissão e por via do contrato de prestação de serviços que a 2.ª A. com ela firmou (com culpa presumida – art.º 799.º) do dever de vigilância do idoso recolhido no lar e a morte sobrevinda de hemorragia cerebral.

            Na omissão, para lá da obrigação de praticar o acto omitido, para que haja lugar a indemnização necessário é também que entre a omissão e o dano exista um nexo causal. Nos  termos do art.º 563.º deve tratar-se de um dano que provavelmente se não teria verificado, se não fosse a omissão.

            Reduzindo a questão a uma formulação mais simples, será que a R. responderá pela morte do falecido por ter violado a obrigação de o vigiar? Será a morte consequência dessa omissão?

            A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que provavelmente não teriam ocorrido se não fosse a lesão.

            Entre a doutrina e a jurisprudência é pacifico que a nossa lei acolheu a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa, segundo a qual, o facto que actuou como condição do dano, só não deverá ser considerado causa adequada deste se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostra indiferente para a verificação do dano, não modificando o “círculo de riscos” da sua verificação, tudo sem perder de vista que a causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao danos no âmbito da aptidão geral ou abstracta desse facto para produzir o dano.

            Indiferença ou inadequação existirá quando o evento segundo o normal decurso das coisas e a experiência da vida não eleva ou favorece, nem modifica, aquele “círculo de riscos” de verificação do dano.

            Dito de outro modo: o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como “causa adequada” quando para a sua produção tiverem contribuído decisivamente circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas (“desvios fortuitos”) que intercederam no caso concreto, conclusão essa a retirar segundo um juízo de prognose póstuma.[2]

            A causalidade, é sabido também, não tem que ser imediata, directa, pode ainda ser indirecta, bastando que o facto, embora não haja ele mesmo provocado o dano, desencadeie outra condição que directamente o produza, “contando que esta segunda condição se mostre uma consequência adequada do facto que deu origem à primeira”.[3]

            Ora, à luz destes princípios, se há causalidade entre a omissão do dever de vigilância e os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, que pacificamente foram indemnizados, a que poderiam acrescer os ferimentos ou a morte se, p. ex., esta se devesse a atropelamento, já a “natureza geral” do facto omissivo (não ter obstado à saída – fuga - do idoso do lar) e de acordo com as regras da experiência comum, tal facto, mostra-se indiferente ao dano morte pela causa que a determinou (hemorragia cerebral), cujo “círculo de riscos” não alterou.

            Esta causa (hemorragia cerebral) foi uma circunstância excepcional ou extraordinária que interferiu no desenvolvimento do processo causal e, por isso, o facto-condição inicial deixou de ser considerado como causa adequada à produção do dano.

Estando ela, de acordo com a experiência comum e em princípio, associada à hipertensão arterial e aos AVC,s (acidentes vasculares cerebrais) especialmente em idosos, em abstracto o esforço físico que a vítima poderá ter desenvolvido no lapso de tempo em que vagueou perdido ou a ansiedade que possa ter vivido (circunstâncias que de todo o modo não vêm factualmente demonstradas, às AA. competindo o respectivo ónus de alegação e prova, nos termos do n.º 1 do art.º 342.º, por se tratar de um facto constitutivo do seu direito), não é causa ou condição idónea ou adequada a produzir aquele episódio fatal, que, tanto quanto se sabe, é mais ou menos fulminante.

Por provar ficou também que o ferimento apresentado na cabeça, região frontal direita (“testa”), de cerca de 3 cm, fosse provocado antes ou depois da hemorragia cerebral, por isso não se lhe podendo atribuir qualquer relação causal, como as AA. também alegam nas suas conclusões de recurso.

Face ao exposto, a douta sentença recorrida não merece censura quando referiu que face à causa da morte não se demonstrou que esta não ocorreria se a R. tivesse cumprido com zelo o dever de vigilância, não podendo estabelecer-se nexo de causalidade entre o incumprimento contratual e a hemorragia cerebral que, esta sim, desencadeou a morte.

Termos em que inexiste obrigação de indemnizar por parte da recorrida quanto ao dano da morte e despesas de funeral.

Na improcedência das conclusões recursivas importa, assim, manter a sentença impugnada.


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            3. Sumariando (n.º 7 do art.º 713.º do CPC):

            - Não há nexo de causalidade entre o incumprimento contratual do lar de idosos que, por violação do dever de vigilância relativamente a um idoso com problemas mentais, não impediu a sua saída do lar e desaparecimento por mais de 24 horas e a sua morte ocorrida enquanto vagueou perdido e que, de acordo com a relatório de autópsia, foi causada por hemorragia cerebral.


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4. Decisão

            Face a todo o exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

            Custas pelas recorrentes.


Francisco Caetano (Relator)
António Magalhães
Freitas Neto


[1] Que, sob a epígrafe de “terceira idade”, dispõe, no seu n.º 1, que “as pessoas idosas têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento ou a marginalização social”.
[2] A. Varela, “Das Obrigações em Geral”, I, 2.ª ed., pág. 756, Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1972, pág. 392 e ss e Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 3.ª ed. pág. 518.
V. Acs. do STJ de 20.6.06, CJ, 2006, II, 119, que seguimos de perto, e 24.5.07, CJ, 2007, II, 82 e 25.9.07, Proc. 07A2206, in www.dgsi.pt.
[3] Almeida Costa, ob. cit, pág. 520, sublinhado nosso.