Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1110/08.1TBILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE FACTO
REQUISITOS
Data do Acordão: 02/14/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INSTÂNCIA CÍVEL DE ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 685º-B E 712º, Nº 1, AL. A) DO CPC
Sumário: I – A decisão da 1ª instância proferida sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação, se do processo constarem todos os elementos de prova ou, se tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 685º-B do CPC, a decisão com base neles proferida.

II – Para o efeito, deve o recorrente indicar claramente os pontos determinados da matéria de facto controvertida alegada pelas partes que reputa de mal julgados e o sentido de orientação das respostas a consagrar.

III – Uma impugnação indiscriminada e puramente genérica não é a legalmente imposta, fulminando a lei essa forma de impugnação com a rejeição do recurso – artº 685º-B, nº 1 do CPC.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

         I- RELATÓRIO

         I.1- C…, Ldª, com sede em Gafanha da Nazaré, intentou em 26.9.08  acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra V…, S.A., com sede em Vila Flor, pedindo seja a ré condenada a pagar-lhe a quantia de 11.530,08€, acrescida dos juros de mora que se vençam sobre a quantia de 10.303,05€, contados à taxa legal, desde a data da propositura da acção e até integral cumprimento.

Para tanto e em síntese, a alega que, dedicando-se ao fabrico, comercialização e montagem de instalações isotérmicas e equipamentos industriais e comerciais de frio, efectuou a pedido da ré e ao longo de 2007, reparações e operações de manutenção em equipamentos frigoríficos da mesma, vendendo-lhe, transportando e instalando na sua sede, equipamentos de ar condicionado, e procedendo à retirada e instalação dos mesmos equipamentos já existentes nas instalações da ré; serviços prestados e os materiais vendidos que discrimina por remissão para as facturas que juntou aos autos, referindo que o respectivo preço, no valor global de 10.303,05 €, deveria ter sido pago no prazo de 30 dias a contar da emissão das facturas, o que não sucedeu.

Citada, a ré contestou, alegando que os serviços prestados pela autora entre 10 de Abril e 01 de Agosto de 2007 destinaram-se a colocar em funcionamento equipamentos de frio que a mesma fornecera e instalara no decurso do ano de 2006, os quais nunca chegaram a funcionar em plenas condições, motivando diversas reclamações. Mais alega que a autora forneceu a partir de 16.08.2007 oito equipamentos de ar condicionado que também nunca funcionaram correctamente e que as intervenções por ela efectuadas a partir daquela data se destinavam a colocar em funcionamento os ditos equipamentos, inexistindo qualquer motivo que justifique a emissão da correspondente facturação, até porque também ocorreu no prazo de garantia dos equipamentos. Deste modo, a ré excepciona o não cumprimento do contrato, invocando o disposto nos arts. 428º e segs. do Cód. Civil.

A autora respondeu à matéria da contestação, sustentando serem-lhe devidas as facturas cujo pagamento pede, sendo falso que se refiram a serviços relacionados com a colocação em funcionamento de material previamente instalado e disfuncionante, sendo certo que parte do que vem pedido se refere a material fornecido e instalado em 2002.

         Convidou-se a ré a aperfeiçoar a sua contestação, suprimindo insuficiência da alegação da matéria de facto no tocante à defesa por excepção, o que fez, tomando a autora posição.

Foi efectuado o saneamento dos autos, dispensando-se a selecção da matéria de facto assente e a elaboração de base instrutória.

Realizado o julgamento em três sessões com gravação da prova, foi proferida sentença datada de 15.4.2011, a julgar a acção procedente condenando-se a ré no pedido.

I.2- Apelou a ré em extenso alegatório ocupando 102 folhas, terminando com estas conclusões, depois de ter sido convidada a sintetizá-las:

...

I.3- Contra-alegou a A. em defesa do julgado.

Nada havendo a obstar ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                            II - FUNDAMENTOS

II.1 - de facto

O tribunal recorrido fixou a seguinte factualidade:

II.2 - de direito

A ré reage contra a decisão, por esta não ter atendido aos defeitos que apresentavam os equipamentos fornecidos e montados pela A., e que a seu ver justificavam a procedência da excepção de não cumprimento que invocou.

Na verdade, como forma de recusar o pagamento do montante facturado e judicialmente exigido respeitante à venda e instalação de equipamentos de frio e ar condicionado, a ré usou a exceptio non adimpleti contractus a que se refere o art.428º C.C., com a alegação de defeituosa execução da obra contratada à A. e oportuna denúncia dos defeitos.

A acção foi julgada procedente, ponderando-se na sentença que da factualidade resulta a responsabilidade da ré pelo pagamento da importância peticionada, uma vez que se apurou terem sido prestados os serviços encomendados pela ré e que nos testes efectuados pela autora os equipamentos funcionaram. Relativamente à defesa da ré com a “excepção do não cumprimento do contrato”, observou-se que a mesma dirigiu à autora os faxes e e-mails juntos aos autos e que, “se é certo que a ré remeteu à autora todos os faxes e e-mails referidos, o certo é também que não resulta inequivocamente demonstrado o mau funcionamento geral dos equipamentos fornecidos pela autora e que a ré alega em suporte do seu não cumprimento do pagamento do preço”.

Diverge a recorrente deste entendimento, atacando-o sob o ângulo do julgamento da matéria de facto. Com efeito, entende que, pelo depoimento das testemunhas que indica transcrevendo curtas passagens dos depoimentos prestados, bem como os aludidos faxes, e-mails e facturas, houve erro na apreciação das provas e que o tribunal recorrido deveria ter dado como provado: que a autora não acabou a obra contratada – fornecimento de equipamento (aparelhos de ar condicionado e túneis de frio) e serviços de manutenção - , nem foi aceite pela recorrente, a que fez foi de má qualidade pois o equipamento nunca chegou a funcionar em perfeitas condições, e que as reclamações que a recorrente apresentou relativamente aos equipamentos de ar condicionado nunca foram atendidas.

À primeira vista parece, pois, que a recorrente pretende ver modificada a matéria de facto provada, no sentido de vir a obter factualidade que sustente a sua recusa de pagamento da quantia reclamada, i.e., que leve à procedência daquela invocada excepção.

Ora, a pretendida alteração nos moldes em que foi feita, não reúne condições mínimas de atendimento.

Vejamos porquê.

Pela al.a) do nº1 do art.712º/C.P.C., a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art.685º-B, a decisão com base neles proferida.

Assim, em decorrência do que dispõe esse art.685º-B, aditado pela reforma introduzida pelo DL 303/07, de 24.8 – aqui aplicável -, impugnando a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente está sujeito, entre outros, como a indicação dos meios probatórios que implicam decisão diversa da proferida por referência, a este ónus: a)- indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

Segundo o texto preambular do DL 39/95, de 15.2, que veio ao processo civil “prever e regulamentar a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais da prova nelas produzida”, a garantia de duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto visa “apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente tem o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.

Como se vê das actas de julgamento, a prova aí produzida foi gravada. E se bem que tenha indicado os depoimentos das testemunhas que, constantes do registo de gravação, impunham decisão diversa da adoptada sobre a matéria de facto que alude, todavia, a recorrente não cumpriu o ónus fixado na al.a), i.e., não indicou os concretos pontos de facto que considerou incorrectamente julgados.

É verdade que não foi fixada a base instrutória. Porém, essa situação não dispensava a recorrente do dever de cumprir o assinalado ónus, especificando os pontos de facto impugnados por referência ao alegado nos articulados. A recorrente limitou-se a uma referência genérica de factos que respeitavam ao trabalho acordado com a A. referindo que eles apresentavam defeitos, mas sem os concretizar. Aliás, já na contestação a recorrente limitou-se a uma mera alegação da existência de defeitos, quando deveria ter apontado factos concretos que, a provarem-se, permitiam a conclusão de que o equipamento fornecido e os serviços prestados pela A. eram defeituosos e desconformes com o contratado. A título de exemplo, alega no artigo 3º que os equipamentos “nunca chegaram a funcionar em plenas condições e verificavam desde o seu funcionamento defeitos de funcionamento que motivaram diversas reclamações”. E no artigo 6º alega que “… mau grado as intervenções por si efectuadas, a A. jamais colocou aqueles equipamentos em pleno funcionamento, que verificam defeitos que ainda hoje perduram”.

Ou seja, a recorrente repetiu por diversas vezes o substantivo “defeito” sem ao menos especificar em que é que se traduziu essa imperfeição, esse vício, o que levou o decisor de 1ª instância a observar, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, que grande parte da matéria alegada reveste natureza conclusiva ou constitui matéria de direito.

Mesmo assim, e como atrás referido, devia a recorrente indicar claramente os pontos determinados da matéria de facto controvertida alegada pelas partes que reputa de mal julgados, e o sentido de orientação das respostas a consagar. Não fez nem uma nem outra coisa.

A impugnação do julgamento da matéria de facto empreendida pela recorrente é, portanto, inteiramente contrastante com o que estabelece a al.a) do art.685º-B e com o que se assinala no texto preambular do diploma acima aludido – a reponderação da decisão da matéria de facto proferida, com fundamento no erro da apreciação da prova, incide sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente tem o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Repare-se na letra da referida al.a): os concretos pontos de facto (não uma vaga alusão de factos) que considera incorrectamente julgados.

Trata-se de um ónus perfeitamente necessário.

Na verdade, sendo desígnio da lei concretizar, em termos práticos, o segundo grau de jurisdição em matéria de facto, estando instituído neste domínio um regime de substituição, então a Relação, para introduzir qualquer alteração na decisão recorrida em matéria de facto, terá de conhecer nitidamente o objecto da impugnação, i.e., carece de saber, para poder reapreciar com segurança, os concretos pontos de facto controvertidos – por referência à base instrutória ou aos articulados – cuja exactidão, por erro de julgamento, se impugna.

Ora, a forma de impugnação levada a cabo pela recorrente, indiscriminada e puramente genérica, logo, mais fácil e expedita, não é a legalmente imposta, fulminando a lei com a rejeição do recurso a postergação de tal ónus, como expressamente refere o nº1 do referido art.685º-B.

Por conseguinte, a não observância do estipulado na al.c) do nº1 desse preceito, implica o não conhecimento do objecto da apelação neste particular.

Como nada há que alterar, mantêm-se a factualidade apurada pela 1ª instância acima descrita.

Como bem decidiu a 1ª instância, “… não só não ficou demonstrado que os equipamentos estivessem sem funcionar, como tão-pouco se demonstrou que tal se devesse à autora, inexistindo em consequência e tão-pouco nexo de causalidade entre uma coisa e a outra. Assim sendo, tem de concluir-se pela improcedência da excepção de não cumprimento, o que conduz à procedência da acção.”.

         Dado que tudo o que a ré colocava à apreciação no recurso era exactamente a questão da eventual modificação fáctica em ordem a ser julgada procedente a excepção do não cumprimento que invocou, temos apenas de concluir sem mais pela improcedência do recurso.

            III - DECISÃO

         Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, na íntegra, a sentença apelada.

         Custas pela ré apelante.

Regina Rosa (Relatora)

Artur Dias

Jaime Ferreira