Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
45/12.8TATMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
FALSIFICAÇÃO INTELECTUAL
FALSAS DECLARAÇÕES A AUTORIDADE PÚBLICA
Data do Acordão: 02/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR (1.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 356.º, N.º 1, ALÍNEA D), DO CP
Sumário: Não comete o crime de falsificação, na modalidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 256.º, do CP, quem presta, perante o notário, que as faz consignar em escritura de justificação, falsas declarações relativas à propriedade e posse de um prédio urbano.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO:

1. No âmbito do Processo Comum (Singular) nº 45/12.8TATMR do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar, foram julgados os seguintes 4 arguidos:

- A... , casado, professor, nascido a 01.10.1956, natural de (...) Ferreira do Zêzere, filho de E... e de (...), residente em Av. (...) Seixal,

- B... , casada, nascida a 27.06.1959, natural de (...) Melgaço, filha de (...) e de (...), residente em Av. (...) Seixal,

- C... , casado, nascido a 07.08.1949, natural de (...) Amarante, filho de (...) e de (...), residente em (...)Tomar e,

- D... , casado, nascido a 29.01.1933, natural de (...) Tomar, filho de (...) e de (...), residente em Rua (...) Tomar,

depois de, pelo Ministério Público, virem acusados, cada um deles, da “prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo no artigo 256º nº1 b) e 3 do Código Penal.”

2. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida a sentença (constante de fls. 423 a 439) onde se decidiu:

“Pelo exposto, julgo a acusação procedente por provada e em consequência:

I - a) Condeno o arguido A..., em autoria material e na forma consumada, pela prática de um crime de falsificação de documento autêntico p. e p. nas disposições conjugadas dos artigos 255º-a) e 256º/1-d) e 3, todos do CP, na pena de 360 dias de multa, dias à razão diária de 8 € o que totaliza para cada um 2.880,00 €, ou em alternativa em 240 dias de prisão subsidiária;

b) Condeno a arguida B..., em autoria material e na forma consumada, pela prática de um crime de falsificação de documento autêntico p. e p. nas disposições conjugadas dos artigos 255º-a) e 256º/1-d) e 3, todos do CP, na pena de 360 dias de multa, dias à razão diária de 8 € o que totaliza para cada um 2.880,00 €, ou em alternativa em 240 dias de prisão subsidiária;

c) Condeno o arguido C..., em autoria material e na forma consumada, pela prática de um crime de falsificação de documento autêntico p. e p. nas disposições conjugadas dos artigos 255º-a) e 256º/1-d) e 3, todos do CP, na pena de multa de 130 dias, à razão diária de 6 €, ou seja, no valor global de 780 €, ou em alternativa em 86 dias de prisão subsidiária;

d) Condeno o arguido D..., em autoria material e na forma consumada, pela prática de um crime de falsificação de documento autêntico p. e p. nas disposições conjugadas dos artigos 255º-a) e 256º/1-d) e 3, todos do CP, na pena de multa de 110 dias, à razão diária de 6 €, o que totaliza 660 €, ou em alternativa em 73 dias de prisão subsidiária;

e) Mais, condeno todos os arguidos no pagamento de 3 UC’s de taxa de justiça e nas demais custas do processo, nos termos do artigo 8º do RCP.

II – a) Condeno todos os demandados A..., B..., C... e D...a, a pagarem solidariamente ao demandante F..., a título de indemnização cível pela ocorrência de danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia de 1.040,00 € (mil e quarenta euros).

b) Sem custas cíveis por delas estar isento o pedido civil, artigo 4º/1-m) do RCP.

(…)”

3. Inconformado com o assim decidido, recorreu apenas o arguido A..., finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

“1- MATÉRIA DE FACTO:

A - O recurso que agora se interpõe tem por objecto a impugnação da decisão proferida em matéria de facto, ou seja, visa a reapreciação da prova gravada;

B - O depoimento da Testemunha G..., com importância para o presente recurso, é praticamente imperceptível, pelo que deve ser ordenada a sua repetição, nos termos do disposto nos art°s. 430°. n.º. 1 e 410.º n.º 2 do C.P.P.;

C - Os pontos de facto que se julgam incorrectamente julgados são os que constam nas páginas 4 e 5 da Douta Sentença recorrida, assinalados na matéria de facto provada sob os números 9, 10; 11, 12, 13, 14, 15, 18, 19,20,23,24,25 e 26;

D - Há elementos de prova produzida em Audiência de Julgamento que impõem que não se deveria ter julgado provado que o arguido A... declarou na escritura de justificação sub judice factos que sabia que não correspondiam à verdade, para obter uma vantagem a que sabia não ter direito e causando ao Queixoso um prejuízo patrimonial correspondente ao valor do prédio;

E - Desde logo, os documentos "Contrato-promessa de compra e venda", a carta escrita pelo Queixoso à sua irmã O... (junta na sessão de 21/05/2013, cfr. Acta), e a carta escrita pelo Queixoso aos arguidos em 27/08/2010, dos quais resulta, sem sombra de dúvida, que o próprio Queixoso participou na alienação do prédio em 1976 ou 1977 e, desde aí, sempre o considerou propriedade de E... ( " ... e que, quem a comprou, está há 30 anos a governar-se ... " ), só tendo "acordado" em Outubro de 2009, 33 anos depois da tomada de posse do terreno por parte do Pai do arguido e sem que nunca, durante todos esses anos, ninguém da família do Queixoso se tenha oposto a tal posse;

F - Mas também os depoimentos, supra transcritos, dos arguidos, Testemunhas e Queixoso, de onde só se pode concluir que a posse do terreno foi exercida ininterruptamente, de 1976 a 2009, pelo Pai do arguido, sem oposição de quem quer que fosse, pública, pacificamente e de boa fé, e posteriormente pelos arguidos, cuja posse deve ser somada à daquele ( veja-se aliás, por favor, que no último parágrafo da página 8 da Douta Sentença, referindo que o depoimento foi credível, a Mma. Juíza admite que a Testemunha L....., irmão do arguido, disse que sempre conheceu o terreno na família, e que quando o seu Pai faleceu fizeram partilhas e o mesmo coube ao arguido, que por isso fez a escritura de justificação que tinha sido o Pai a iniciar );

G - E que o Queixoso só se lembrou da existência do terreno quando veio a saber do Registo Predial em nome do arguido, e apenas porque pretendia, passados 34 anos, obter mais dinheiro ( não porque tivesse tido alguma vez a intenção de registar o prédio em seu nome );

H - Ou seja, deve julgar-se que efectivamente os arguidos sucederam na posse de E..., após a morte deste no ano de 2009;

I - E que, mesmo havendo uma incorrecção na escritura, por omitir tal sucessão na posse, essa incorrecção não constitui o crime de falsificação, uma vez que em nada altera a verdade material - o terreno é dos arguidos - e em nada prejudica o Queixoso - o terreno já não era seu;

J - Deve pois julgar-se que, ao não cometer o crime de que vem acusado, o arguido deve ser absolvido também do pedido de indemnização civil formulado pelo Lesado;

K - Mesmo que tal não venha a ser considerado, o que se invoca sem conceder e meramente por dever de patrocínio, deve então julgar-se que não se justifica indemnizar o Queixoso por deslocações de Lisboa a Ferreira do Zêzere, quando ficou provado - conforme declarações transcritas supra - que o mesmo tem casa em Ferreira do Zêzere, onde se desloca muitas vezes e por vezes se mantém por períodos de 15 dias; e que, para falar com os arguidos, é descabido que se deslocasse de Lisboa a Ferreira do Zêzere, quando sabe, porque para lá lhes escreveu uma carta, que os arguidos moram no Seixal;

L - Mais se deve julgar improcedente por não provado o pedido de indemnização no montante de 800,00 euros, a título de danos não patrimoniais, atendendo a que o Queixoso nunca, durante 34 anos, se lembrou sequer do terreno, e ao fim desse tempo a única coisa que pretendia era receber mais dinheiro pelo mesmo.

II - MATÉRIA DE DIREITO:

A - O arguido vinha acusado do crime p. e p. pelo art°. 256°. nº 1 b) do C.P.P, e nunca foi notificado da alteração da qualificação jurídica do mesmo, para a alínea d), pelo que, nos termos do disposto nos art°s. 358°. nºs. 1 e 3 e 379°. n°. 1 b) do C.P.P., existe nulidade da Sentença, a qual deve ser revogada e substituída por outra, que o absolva;

B - Existe contradição insanável na fundamentação da Douta Sentença, uma vez que refere que H... nunca vendeu o terreno, e mais adiante que consta dos autos uma sua declaração de venda, sem qualquer análise crítica à mesma; tal contradição é penalizada no art. 410°. n". 2 b) do C.P.P.~

C - Mais existe contradição insanável entre o Ponto 10 dos factos provados e o penúltimo parágrafo da pág. 11, onde já se diz que "compram à herança", percebendo-se por aqui que a Meritíssima Juíza, não obstante o que fixou em 10, percebeu perfeitamente que não houve, por aí, da parte dos arguidos, intenção de enganar ou de mentir;

D - Também existe contradição insanável, com a mesmo cominação, na própria decisão, pois a Mma. Juíza descreve pormenorizadamente - págs. 14 e 15 da Douta Sentença - a falta de dolo do arguido ( " Tudo isto com a agravante de considerarem que a forma como agiram está basicamente correcta ( ... ), raiou quase a sua incompreensão para estarem sentados no banco dos réus" ), acabando por o condenar por dolo;

E - Por outro lado, existe erro notório na apreciação da prova, uma vez que, percebendo-se que o terreno foi possuído durante mais de 30 anos por E..., o que é mais do que suficiente para adquirir o direito de propriedade por usucapião, se vem no entanto invocar a falta de menção à sucessão na posse, por parte do arguido A..., para justificar o cometimento de um crime, como se isso prejudicasse alguém ou trouxesse ao arguido algum benefício ilícito, de que não usufruiria sempre como herdeiro do seu Pai - ou seja, não se trata, in casu, de facto juridicamente relevante;

F - O erro notório na apreciação da prova tem também como cominação a revogação da Douta Sentença e sua substituição por outra - acto. 410°. n.º 2 c) do C.P.P,

G - Padece, por último, a Douta Sentença de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, uma vez que subjaz à mesma um entendimento que viola todas as regras previstas no Código Civil - art°s. 1296.º. e ss. - para a aquisição do direito de propriedade por usucapião, pelo que também por esse motivo a Douta Sentença deve ser revogada e substituída por outra,

I - Por fim, mesmo que assim não se entenda, o que se invoca sem conceder e meramente por dever de patrocínio, deve reduzir-se a multa criminal aplicada, que temos por excessiva, atendendo a que o arguido é licenciado, socialmente integrado, primário, não corre o risco de reincidir ( pela natureza do próprio crime ) e colaborou com o Tribunal, prestando declarações em tudo o que lhe foi solicitado; além disso, nesta parte, a Douta Sentença violou os critérios de fixação do quantitativo da pena de multa estipulados nos art°s. 47.º n.º  2 e 71.º n.º 2 a) e d) do C. P., pois que, dando como provado que o mesmo aufere 300,00 euros mensais, apenas, lhe fixou a multa em 2.880,00 euros.

Concluindo, Roga-se muito respeitosamente a Vossas Excelências que, revogando a Douta Sentença, a substituam por outra, em que se absolva o arguido A...da prática do crime de falsificação de que vinha acusado, bem como daquele por que foi condenado,

Assim fazendo Vossas Excelências, Venerandos Senhores Doutores Juízes Desembargadores, como habitualmente, a costumada

JUSTIÇA! “

                                                    *

4. O Ministério Público junto da 1ª instância, a fls. 484 a 489, respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e manutenção da decisão recorrida, tendo terminado com as seguintes, transcritas, conclusões:

1. A matéria de facto dada como provada na sentença recorrida é consentânea com a prova documental e testemunhal produzida nos autos.

2. A sentença recorrida não padece de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

3. Na verdade, no facto elencado sob o n.º 12 dos factos dados como provados na sentença recorrida, consta "desde a data em que adquiriram o prédio até ao seu falecimento, I.... e H.... nunca o alienaram ou, por qualquer forma, venderam designadamente, aos arguidos A... e B..." e sob o n.º 19 consta "consta uma declaração dos autos escrita manualmente e assinada por ( ... ) e mãe H... (cabeça de casal) "que declaram que venderam uma propriedade com o nome de milheiros pela quantia de 25.000$00 (25 contos) e que receberam como sinal e princípio de pagamento 10.000$00 (10 contos)".

4. Ora, atentando nestes dois factos, concluímos que os mesmos não são contraditórios entre si, dado que o que ficou provado sob o n.º 12 é que I...e H... nunca alienaram ou por qualquer forma venderam o prédios aos ora arguidos A... e B..., o que é substancialmente diverso de dos autos constar uma declaração manuscrita e assinada, além do mais, por H..., " que declaram que venderam uma propriedade com o nome de milheiros pela quantia de 25.000$00 (25 contos) e que receberam como sinal e princípio de pagamento 10.000$00 (10 contos)"(facto n.º 19)·

5. Logo, não existe, no nosso entendimento, qualquer contradição inultrapassável, entre o facto provado sob o n.º 10 do elenco dos factos provados e o último parágrafo de fls. 11 da sentença recorrida. Pelo contrário, tais factos são compatíveis entre si, antes se completam: os arguidos não compraram o prédio a I...por volta do ano de 1987, tanto mais que foi E... quem o comprara verbalmente.

6. A matéria de facto considerada provada e não provada na sentença recorrida não afronta, a nosso ver, as regras da experiência comum, antes se apresenta como uma das soluções plausíveis quer em função da prova produzida, quer à luz das regras comuns da lógica.

7. Pelo que não se verifica, no nosso entendimento, o invocado erro notório na apreciação da prova.

8. O recorrente, ao outorgar a escritura pública, dela não fez constar a circunstância de o seu pai exercer a posse do mesmo há mais de 30 anos. E dessa omissão, o tribunal a quo retirou a conclusão de que tal facto é revelador de dolo na prática do crime. E esta conclusão não afronta (nem, de resto, o recorrente o refere) as regras da experiência comum e do normal acontecer.

9. E tal facto é um facto juridicamente relevante, ou seja, de um facto que releva no comércio jurídico, na fé pública dos documentos.

10. Não se verifica, pois, insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada.

11. Ressalvando melhor opinião, as regras de aquisição do direito de propriedade por usucapião previstas no Código Civil não tinham que ser convocadas na sentença proferida nestes autos. O princípio da suficiência do Direito Penal assim o impõe.

12. A matéria de facto considerada prova só podia conduzir à condenação do recorrente.

13. A pena concretamente aplicada ao recorrente é justa, adequada e proporcional.

14. Deverá, pois, manter-se a sentença recorrida.

No entanto V. Excªs.

Farão a habitual Justiça. “

5. Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, a fls. 512 e 512vº, emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, excepto quanto à pena que entende dever ser reduzida para 300 dias de multa à taxa diária de €6.

6. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, não foi apresentada resposta.

7. Aquando do exame preliminar - face ao mencionado na alínea B-, ponto “I- MATÉRIA DE FACTO”, das conclusões de recurso - o ora relator, e pelos fundamentos constantes de fls. 518 a 520, proferiu despacho a indeferir a peticionada repetição, nesta Relação, do depoimento da testemunha G....

8. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
No caso vertente, vistas as conclusões do recurso pela ordem por que deveriam ser apreciadas, embora não seguindo a ordem de apresentação dada pelo recorrente, as questões suscitadas são as seguintes:
1. Saber se a sentença é nula nos termos das disposições conjugadas dos arts 358º nºs 1 e 3 e 379º nº 1 b), ambos do Código de Processo Penal, por falta de comunicação da alteração jurídica do crime que lhe era imputado.
2. Imperceptibilidade do depoimento da testemunha G....

3. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

4. Contradição insanável da fundamentação.

5. Erro notório da apreciação da prova.
6. Erro de julgamento quanto aos factos dados como provados nos pontos 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 18, 19, 23, 24, 25 e 26.

7. Medida da pena.

8. Pedido cível.
                                         *
Todavia, uma questão prévia a qualquer destas questões se nos suscita e que consiste em saber se os factos dados como provados na sentença recorrida são ou não susceptíveis de integrar a prática, pelo recorrente, do crime de falsificação de documento autêntico p. e p. nas disposições conjugadas dos artigos 255º-a) e 256 nº 1 d) e 3, todos do Código Penal [ sendo certo que, pela análise da acusação (constante de fls. 239 a 243), os factos desta peça processual (que nesta haviam sido qualificados pelo Ministério Público como integrantes, para cada um dos arguidos, de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo no artigo 256º nº1 b) e 3 do Código Penal) - com a ressalva de um pequeno pormenor que para o caso não reveste importância (na acusação constava “Todos os impostos…” e na sentença ficou a constar “Parte dos impostos…”) – foram dados como provados na sentença].
É que a resposta negativa a esta questão prejudica a apreciação de todas as demais questões que haviam sido suscitadas pelo recorrente.

Vejamos, então, o que da sentença recorrida consta quanto aos factos provados (transcrição):
“Na sequência do julgamento e discussão da causa resultou assente a seguinte matéria de facto:
1 – No dia 13 de Abril de 2009, no Cartório Notarial a cargo do licenciado J..., nesta cidade e comarca, foi outorgada uma escritura pública de justificação, lavrada a fls. 146 a 147 verso do Livro 203-L de Escrituras Diversas, em que intervieram como primeiros outorgantes os arguidos A... e sua mulher, a arguida B... e como segundos outorgantes os arguidos C... e D...e ainda M...., já falecido – cf. certidão de fls. 9 a 13;
2 – Aí, na qualidade de primeiros outorgantes, os arguidos A... e B... declararam:
3 – “que com exclusão de outrem, são donos e legítimos possuidores do seguinte prédio: rústico, sito em x..., freguesia de xx..., concelho de Ferreira do Zêzere, composto de cultura arvense em olival, construção rural, figueiras, olival e mata mista com dois mil metros quadrados, a confrontar do norte com a estrada, sul (...), nascente (...) e poente (...), inscrito na matriz sob o artigo (...), Secção Z, com o valor patrimonial tributável de € 108,74 e o atribuído de € 200,00”;
4 – “O referido prédio não se acha descrito na Conservatória do Registo Predial de Ferreira do Zêzere e encontra-se na matriz em nome de I...- Cabeça de Casal da Herança de, contribuinte 700301011 a quem eles, justificantes, o adquiriram por compra verbal, por volta do ano de mil novecentos e oitenta e sete sem que dela ficassem a dispor de título suficiente e formal que lhes permita o respectivo registo”;
5 – “que possuem o dito prédio em nome próprio há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com o conhecimento de toda a gente da freguesia de xx..., lugares e freguesias vizinhas, traduzida em actos materiais de fruição, conservação e defesa, nomeadamente usufruindo dos rendimentos, cultivando e recolhendo os respectivos frutos, pagando os respectivos impostos e contribuições, agindo sempre pela forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, sendo, por isso, uma posse pública, pacífica, contínua e de boa fé, pelo que adquiriram o prédio por usucapião”;
6 - Por sua vez, na qualidade de segundos outorgantes, os arguidos C... e D...declararam “que confirmam as declarações que antecedem, por serem inteiramente verdadeiras”;
7 – No momento da realização desta escritura, todos os arguidos, foram expressamente advertidos pelo Notário perante quem compareceram, de que incorreriam nas penas aplicáveis ao crime de falsidade se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestassem declarações falsas;
8 – Tal advertência ficou a constar da escritura a qual foi explicada e lida em voz alta aos arguidos, presentes na qualidade de outorgantes;
9 – Com efeito, o prédio a que alude a escritura de justificação supra referida, do qual foi rendeiro durante alguns anos E..., pertencia a I...e sua mulher H..., tendo o primeiro falecido em 23.10.1976 e a segunda a 11.12.1996;
10 – Razão pela qual nunca os arguidos A... e B... poderiam ter adquirido o dito prédio, verbalmente ou por outra forma a I...“por volta do ano de 1987”, uma vez que nessa data este já falecera há cerca de 11 anos;
11- Este prédio constou da relação de bens apresentada no processo de inventário nº 241/06.7TBFZZ que correu termos no Tribunal Judicial de Ferreira do Zêzere em que figuravam como inventariados I...e H... e, após trânsito em julgado em Outubro de 2009 de sentença proferida nesse processo, o mesmo prédio foi adjudicado ao ora denunciante F... que, desta forma, o adquiriu – cf. fls. 14 a 35;
12 – Desde a data em que adquiriram o prédio e até ao seu falecimento, I...e H... nunca o alienaram ou, por qualquer forma, venderam designadamente, aos arguidos A... e B...;
13 – Parte dos impostos e despesas de manutenção do mencionado prédio foram pagos por I...e mulher e, após a morte destes, pelos seus herdeiros, inclusive, por F... que adquiriu a sua propriedade e posse por sucessão, por morte dos seus pais que dele eram proprietários e possuidores;
14 – Ao declararem, nos termos supra referidos, factos que bem sabiam que não correspondiam à verdade, todos os arguidos fizeram crer ao Notário em exercício de funções no Cartório Notarial que as declarações que prestaram eram verdadeiras logrando, assim, que a escritura fosse lavrada para obterem a inscrição e o registo do prédio a seu favor;
15 – Os arguidos A... e B... agiram com o propósito concretizado de obterem para si uma vantagem a que sabiam não ter direito e que lhe permitiria obter a inscrição e registo daquele prédio nas Finanças e Registo Predial a seu favor e de prejudicar o seu legítimo proprietário e de causarem a este um prejuízo patrimonial correspondente ao valor do prédio;
16 – Os arguidos C... e D...não conheciam os restantes arguidos, o prédio objecto de justificação ou a identidade dos seus proprietários pelo que, ao confirmarem como verdadeiras as declarações dos dois primeiros arguidos na escritura de justificação, não podiam deixar de saber que as mesmas poderiam não corresponder à verdade e, mesmo assim, confirmaram-nas;
17 – Todos os arguidos sabiam que prestavam as declarações supra referidas perante um Notário no exercício das suas funções e, com a sua actuação, puseram em crise a fé pública e credibilidade de que goza uma escritura notarial;
18 – Os arguidos agiram deliberada, livre e conscientemente e sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;
19 – Consta uma declaração dos autos escrita manualmente e assinada por F..., N...., O... (todos irmãos) e a mãe H... (cabeça-de-casal), e todos filhos de I...“(…) que declaram que venderam uma propriedade com o nome de milheiros pela quantia de 25.000$00 (25 contos) e que receberam como sinal e princípio de pagamento 10.000$00 (10 contos) (…)”;
20 – Este negócio terá sido realizado por volta de Novembro de 1976, pouco depois do óbito do marido e pai dos herdeiros supra identificados e com o seu então rendeiro e que aqui nesta qualidade também já foi citado supra E..., pai do arguido A... e sogro da arguida B..., ora em causa;
21 – Consta de fls. 342 e ss., que o dito E... pagou diversas contribuições autárquicas nos anos de 2002, 2004, e relativas ao prédio rústico em causa, inscrito na matriz sob o artigo (...) Z de Ferreira do Zêzere;
22 – Conforme consta de fotos de fls. 355 e ss., foi este Sr. E... em sua vida que, construiu uma garagem/barracão, no dito terreno como dai se constata;
23 – Factos provados quanto ao pedido de indemnização civil: devido à actuação dos arguidos A... e B..., o ora demandante e legítimo proprietário do prédio rústico supra identificado, encontra-se impossibilitado de proceder ao registo deste em seu nome, pelo menos até agora;
24 - Na tentativa de resolver extra-judicialmente esta questão, o lesado dirigiu-se propositadamente à habitação dos arguidos A... e B..., em Milheiros, sendo que este habita em Lisboa tendo percorrido a distancia de cerca de 300km, tendo que suportar as respectivas despesas de deslocação num total de € 120,00 (300km x € 0,40);
25 - Para instruir o presente processo, conforme documentos já juntos aos autos, o ora lesado teve de se deslocar à Conservatória do Registo Predial de Ferreira do Zêzere, bem como ao Serviço de Finanças de Ferreira do Zêzere e ao Cartório Notarial de Tomar, suportando do seu bolso a quantia de € 120,00 de deslocações (300km x € 0,40);
26 - Toda esta situação, resultado exclusivo da actuação dos arguidos, provocou stress e mal-estar no demandante;
27 - Como consequência da actuação dos arguidos, o demandante sentiu-se mal de saúde, enervado e angustiado;
28 – Condições pessoais quanto ao arguido A...: é casado com a arguida B... e dá formação profissional pelo que recebe cerca de 300 €/mês;
29 – Tem um filho que é estudante universitário e pelo qual gasta cerca de 600 €/mês;
30 – Encontra-se a pagar a sua casa ao banco cerca de 600 €/mês;
31 – Possui uma licenciatura em História;
32 – Nunca respondeu em Tribunal, nem esteve preso;
33 – Condições pessoais quanto à arguida B...: é casada com o arguido A... e é funcionária pública pelo que recebe de salário cerca de 1.300 €/mês;
34 – Nunca respondeu em Tribunal, nem esteve presa;
35 – Possui uma licenciatura em História;
36 – Quanto ao arguido C..., já respondeu duas vezes pelo crime de falsificação de documento;
37 – Quanto ao arguido D..., já respondeu uma vez pelo crime de falsificação de documento.”

                                                    *

Depois de elencados os factos dados como provados pelo tribunal recorrido, em termos sintéticos, a questão prévia que se suscita consiste em saber se a conduta imputada ao recorrente, traduzida na prestação de “declarações falsas” – respeitantes ao facto de se intitular/arrogar como um dos “donos e legítimos possuidores do seguinte prédio: rústico, sito em x..., freguesia de xx..., concelho de Ferreira do Zêzere, composto de cultura arvense em olival, construção rural, figueiras, olival e mata mista com dois mil metros quadrados, a confrontar do norte com a estrada, sul (...), nascente (...) e poente (...), inscrito na matriz sob o artigo (...), Secção Z, com o valor patrimonial tributável de € 108,74 e o atribuído de € 200,00”, com a justificação de que com a co-arguida o adquiriram “por compra verbal, por volta do ano de mil novecentos e oitenta e sete sem que dela ficassem a dispor de título suficiente e formal que lhes permita o respectivo registo” (…)“que possuem o dito prédio em nome próprio há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com o conhecimento de toda a gente da freguesia de xx..., lugares e freguesias vizinhas, traduzida em actos materiais de fruição, conservação e defesa, nomeadamente usufruindo dos rendimentos, cultivando e recolhendo os respectivos frutos, pagando os respectivos impostos e contribuições, agindo sempre pela forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, sendo, por isso, uma posse pública, pacífica, contínua e de boa fé, pelo que adquiriram o prédio por usucapião” - perante o Notário e, - uma vez confirmadas pelas demais arguidos -, por este feitas consignar na escritura de justificação de 13.04.2013 [cf. fls. 10 a 13], é susceptível de integrar a prática pelo recorrente (único que recorre contra a sentença proferida nos autos com vista a obter a sua absolvição) do crime de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea d) e n.º 3 do Código Penal?

Não enjeitando que a questão possa ser algo controvertida (tal como até decorre do voto de vencido exarado no acórdão desta Relação a que seguidamente iremos fazer referência), entendemos que a resposta a tal questão terá que ser negativa.

Chamemos desde já à colação o artigo 256º do Código Penal que nos seus nºs 1 e 3 dispõe o seguinte:

1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;

b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;

c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;

d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;

e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou

f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;

é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

(…)

3 - Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.”

Incontornável para a resolução desta questão é o conceito de documento, o qual nos é oferecido pela alínea a) do art.º 255º do mesmo diploma legal.

Documento é “a declaração corporizada em escrito, (…) inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.” (sublinhado nosso).

Concordando com a posição (maioritária) explanada no recente Acórdão desta Relação, de 18 de Dezembro de 2013 (proferido no Proc. nº 18/13.3TAVLF.C1, relatado pela Sra Desembargadora Maria José Nogueira, acórdão esse acessível através do site www.dgsi.pt), o qual incide sobre questão idêntica a esta que estamos a abordar (embora tenha versado relativamente a um caso em que, reagindo contra o despacho de arquivamento do inquérito, a assistente tinha requerido a abertura de instrução com vista à pronúncia das arguidas pelo crime de falsificação de documento), passaremos a transcrever uma grande parte desse mesmo acórdão, no qual, a dado passo, é dito o seguinte:

“Conforme referido em sede de delimitação do objecto do recurso a questão que surge como «controvertida» no âmbito dos autos, traduz-se em saber se incorre no crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1, alínea d) e n.º 3 do Código Penal, quem, faltando à verdade, declara [caso da primeira arguida] ou confirma [caso das demais arguidas], perante o notário, o facto de ser «dona e legítima possuidora, com exclusão de outrem, há mais de vinte anos, pelo facto de lhe ter sido doado verbalmente (…), doação nunca titulada por escritura pública (…)» de prédio urbano - identificado nos autos - declarações por aquele feitas consignar na escritura de justificação lavrada a 16.02.2009, o que tornou possível o registo e subsequente venda do dito prédio pela primeira arguida a um terceiro.

Trata-se de matéria que, a nosso ver, não dispensa um excurso sobre o modo como, ao longo do tempo e actualmente, no domínio da legislação, tem vindo a ser «encarada».

Vejamos.

Sobre tais «falsas declarações», no âmbito do processo de justificação notarial, dispõe o artigo 97.º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto – Lei n.º 207/05, de 14 de Agosto:

«Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura».

O Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 340/05, de 22 de Junho, contrariando, então, o juízo de inconstitucionalidade orgânica, formulado na decisão recorrida, do artigo 97º do Código do Notariado, procedendo a uma pormenorizada resenha da evolução legislativa verificada, deixou consignado:

 «O artigo 107º da versão originária do Código do Notariado aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47619, de 31 de Março de 1967, tinha o seguinte teor:


“Artigo 107º

(Advertência aos outorgantes)


Os outorgantes serão sempre advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsidade, se, dolosamente e em prejuízo de terceiro, tiverem prestado ou confirmado declarações falsas, devendo a advertência constar da própria escritura.”

Com o Decreto-Lei n.º 87/90, de 1 de Março, que procedeu a várias alterações ao Código do Notariado de 1967, o tipo legal de crime em causa passou a constar do artigo 106º e a ter a seguinte redacção:


“Artigo 106º

(Advertência aos outorgantes)


Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura”.

Esta redacção foi transposta para o artigo 97º do actual Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto.

(…)

Finalmente, importa considerar a alteração que se traduz em o novo preceito – bem como o artigo 106º que o precedeu – ter passado a remeter para a pena prevista para o crime de “falsas declarações perante oficial público” – enquanto que o artigo 107º da versão originária do Código de 1967 remetia para a pena prevista para o crime de “falsidade” …

O Código Penal de 1886 (em vigor à data da edição do artigo 107º do Código do Notariado de 1967) continha, no Título III do Livro Segundo, um Capítulo VI – “Das falsidades”, onde se incriminavam as “declarações falsas” e que incluía as seguintes Secções: I – “Da falsidade de moeda, notas de bancos nacionais e de alguns títulos do Estado”; II – “Da falsidade de escritos”; III – “Da falsidade de selos, cunhos e marcas”; IV – “Disposição comum às secções antecedentes deste capítulo”; V – “Dos nomes, trajos, empregos e títulos supostos ou usurpados”; VI – “Do falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública”.

O Código Penal de 1982 eliminou o Capítulo antes designado por “Das falsidades” e procedeu a uma rearrumação sistemática dos crimes que nelas se incluíam. Passou, então, a distinguir entre, por um lado, aqueles crimes que – tal como os de falsificação de documentos, moeda, peso e medidas – são considerados crimes contra valores e interesses da vida em sociedade (Capítulo II do Título IV) e, por outro, aqueles que são considerados “crimes contra a realização da justiça” e como tal incluídos no Título dos “crimes contra o Estado” (Capítulo III do Título V). Entre estes últimos encontram-se, por exemplo, a falsidade de depoimento ou declarações, a que corresponde o actual artigo 359º do Código Penal ou a falsidade de testemunho, prevista no artigo 360º do mesmo Código …».

Ainda a propósito do percurso do preceito que nos vem ocupando extracta-se do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 379/2012, de 12 de Julho:

«A remissão, na formulação originária, para o crime de falsidade, dado o caráter genérico da designação, já suscitava dúvida quanto à norma para que o artigo 107º do Código de Notariado reenviava, na determinação da pena aplicável. Fazia parte do Código Penal de 1886, como se viu, um capítulo intitulado “Das falsidades”. Desse capítulo constava uma secção (secção II), prevendo (artigo 216º) o crime de “falsificação de documentos autênticos ou que fazem prova plena”. O n.º 3 desta norma determinava a condenação de quem cometer falsificação «fazendo falsa declaração de qualquer facto, que os mesmos documentos tem por fim certificar e autenticar, ou que é essencial para a validade desses documentos». Integrada no mesmo capítulo, a secção VI dispunha sobre o “falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública”. Dela fazia parte o artigo 242.º, prevendo o crime de “falso testemunho em inquirição não contenciosa. Falsas declarações perante a autoridade”.

Esta dualidade de previsões, a do n.º 3 do artigo 216º e a do artigo 242º, espelhava normativamente a distinção entre falsificação (intelectual) de documentos e falsas declarações. A distinção reveste-se de extrema dificuldade, sobretudo quando, como é o caso, as falsas declarações são incorporadas em documento autêntico – cfr. Helena Moniz, O crime de falsificação de documentos. Da falsificação intelectual e da falsidade em documento, Coimbra 1993, 214. Para Maia Gonçalves (Código Penal Português, 3.ª ed., Coimbra, 1977, 380), «há falsidade intelectual quando o documento é genuíno; não foi alterado, mas, contudo, não traduz a verdade. A desconformidade há-de resultar em princípio, de uma desconformidade entre o documento e a declaração. Se o documento está de harmonia com a declaração, mas no entanto esta não está em harmonia com a realidade, não pode haver falsidade intelectual (…)». Beleza dos Santos também admitia a distinção, mas acabava por remeter para a norma (…) reguladora do concurso aparente de infracções (“Falsificação de documentos e falsas declarações à autoridade”, RLJ, ano 70º, 257).

Em face da dificuldade da distinção, não pode dizer-se que a jurisprudência emitida na vigência do Código Penal de 1886 tenha seguido um critério uniforme de aplicação. Assim, enquanto que o Acórdão do STJ, de 8 de outubro de 1969 (BMJ, 190.º, 239) pareceu adotar um critério idêntico ao proposto por Maia Gonçalves, ao decidir que «se o documento está de harmonia com a declaração, não existe falsidade (…)», já o Acórdão de 24 de janeiro de 1968, do mesmo Supremo Tribunal (BMJ, 173º, 179) dele se afastou, ao deixar lavrado: «Verifica-se o crime de falsificação de documento, na forma de falsificação intelectual, previsto no art. 216º do C.P., quando, com intenção de prejudicar, se fazem declarações falsas para serem exaradas em documento autêntico, sobre pontos que o mesmo tem por fim certificar ou autenticar».

Quanto à conexão destas previsões genéricas com o crime específico de falsas declarações em procedimento de justificação notarial, os antecedentes legislativos em nada contribuem para esclarecer a dúvida acima exposta, antes a adensam significativamente. Aquele procedimento foi criado pelo artigo 27º da Lei n.º 2049, de 6 de agosto de 1951, para permitir a inscrição de direitos no registo predial, por parte de quem, invocando-os, não pudesse deles fazer prova por documento bastante. Tal procedimento traduzia-se numa “declaração do proprietário, prestada sob juramento e confirmada por três testemunhas idóneas”, prestada perante a entidade administrativa competente. Pelo Decreto-Lei n.º 40.603, de 18 de maio de 1956, tal entidade passou a ser o notário. Tanto num diploma como no outro, o crime cometido por quem prestasse, neste procedimento, falsas declarações era identificado como “o crime previsto no § 5º do artigo 238º do Código Penal”. Esta norma dispunha assim: «O testemunho falso em matéria civil será punido com prisão maior de dois a oito anos».

É com o Código de Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei nº 42565, de 8 de outubro de 1959, que as falsas declarações, no procedimento de justificação notarial, passaram a ser punidas com as penas aplicáveis ao “crime de falsidade” (artigo 276º). Por contraste com as incriminações anteriores, e pela própria formulação utilizada, é defensável o entendimento de que se quis retirar o tipo legal de crime do âmbito da secção do Código Penal que versava sobre “do falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública” – a secção VI, que justamente abria com o artigo 238º - para o situar na secção II, que tratava “da falsificação de escritos”(…).

O Código de Registo Predial aprovado pelo Decreto-Lei nº 47.611, de 28 de março de 1965, remeteu a regulação desta matéria para o Código do Notariado, que veio a ser aprovado pelo Decreto-Lei 47.619, de 31 de março de 1967. Dele consta o artigo 107.º supra transcrito, o qual manteve as penas aplicáveis ao crime de falsidade.

Com o Código de Notariado, na versão aprovada pelo Decreto-Lei n.º 67/90, a incriminação passou (…) para o artigo 106.º. É com esta incriminação que surge a remissão para o “crime de falsas declarações perante oficial público”, mantida na versão em vigor.

Perante esta alteração é difícil sustentar (…) que a norma continuou a visar a punição do crime de falsificação intelectual de documento, constante, após a revisão de 1982, da alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º, e hoje localizada no artigo 256º, n.º 1, alínea d), do Código Penal. Se a nova sistemática do Código Penal, nesta matéria, impunha o abandono da designação “crime de falsidade”, por ter desaparecido esta categoria genérica, de forma alguma aconselhava a nova designação, se a intenção fosse deixar substancialmente tudo como dantes. Na verdade, a fórmula “crime de falsas declarações perante oficial público” está patentemente mais próxima da que designa o crime de “falsas declarações perante a autoridade”, previsto e punido, anteriormente à citada revisão, no artigo 242º, e que passou a integrar um novo capítulo, referente aos “crimes contra a realização da justiça”, aí dando corpo a um segmento do artigo 402º. Esta norma, abandonando a distinção entre as inquirições contenciosas e não contenciosas, incriminava (também) o falso testemunho e as falsas declarações «perante tribunal ou funcionário competente para receber, como meio de prova, os seus depoimentos (…)». Tal funcionário, tratando-se de elaboração de uma escritura pública, só poderia ser, à época, uma autoridade ou um oficial público.»

Aresto, este, que acabou por julgar inconstitucional a norma do artigo 97.º do Código do Notariado, por violação do artigo 29º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

Constatada, assim, com referência à evolução legislativa traçada, a dificuldade na defesa de que a dita norma do Código do Notariado [artigo 97.º] continuou a contemplar a punição do crime de falsificação intelectual em documento, enfrentemos, agora, a perspectiva da assistente.

Sobre a problemática realça-se o «Parecer sobre tutela penal de falsas declarações e eventuais lacunas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante autoridade pública», de 10.03.2011, da autoria de Paulo Dá Mesquita, publicado na Revista do Ministério Público, n.º 134, pág. 79 e ss. [que, de acordo com a Nota Introdutória do autor, «… foi elaborado no âmbito da Procuradoria – Geral da República, em 2011, tendo sido remetido pelo então Procurador-Geral da República para o Ministério da Justiça a fim de ser ponderado em eventual reforma legislativa. De acordo com informação divulgada pelo Governo, este parecer terá sido equacionado com vista a iniciativa legislativa avulsa que posteriormente veio a ser integrada na revisão do Código Penal de 2013 e no novo artigo 348.º - A com a epígrafe Falsas declarações …»], no qual, a propósito, se refere:

«A problemática das falsas declarações perante oficial ou outro agente com funções públicas que fará constar de documento essas declarações pode ainda suscitar a questão do eventual enquadramento jurídico-penal no tipo de falsificação ou contrafacção de documento p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, d) do Código Penal, que em regra se designa como falsidade intelectual…

(…)

Com efeito, pode considerar-se que as falsas declarações perante agente com funções públicas e que vai elaborar documento oficial baseado nessas declarações implica uma lesão do mesmo bem jurídico do tipo de falsificação, «a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental …». Valor que no tipo de falsificação se apresenta indissoluvelmente ligado às duas funções que o documento pode ter, a «função de perpetuação que todo o documento tem em relação a uma declaração humana» e a «função de garantia», «pois cada autor [de] documento tem a garantia de que as suas palavras não serão desvirtuadas e apresentar-se-ão tal como ele num certo momento e local as expôs …».

De qualquer modo, independentemente da ênfase no bem jurídico, afigura-se-nos inequívoco que o princípio da tipicidade implica na ordem jurídico-penal um recorte da punibilidade pelo tipo (objectivo e subjectivo). Daí que se afigure essencial abordar a questão a partir das previsões legais e seu âmbito aferido em primeira linha à luz dos critérios gerais de interpretação.

No processo de revisão que culminou na alteração de 1995 do Código Penal, o presidente da comissão revisora, Professor FIGUEIREDO DIAS, ao identificar e apresentar o problema da integração da falsidade intelectual no tipo de falsificação, de forma inequívoca expôs a sua posição no sentido de que a alínea em causa «consagra uma situação anómala; confunde-se a falsificação com a falsidade intelectual», acrescentando ainda que «se se eliminar esta alínea, dever-se-á então indagar que falsidade intelectual haverá que consagrar no Código …»

Na discussão, o então Procurador – Geral da República CUNHA RODRIGUES pronunciou-se no sentido da «manutenção da alínea […] pois além de ter tradição é solução também acolhida em outros ordenamentos jurídicos (…). Na acta da reunião de 3 de Abril de 1990, relativamente aos outros membros da comissão revisora, apenas consta a verbalização da perspectiva de COSTA ANDRADE no sentido da eliminação do preceito, e que a «comissão acordou em manter a alínea até nova apreciação …». «Salientou, no entanto, o Senhor Professor FIGUEIREDO DIAS que a alínea não contempla qualquer falsificação de documento mas sim uma falsa declaração em documento regular. A ficar, tornar-se-á necessária uma interpretação restritiva, papel a desempenhar pela doutrina …».

Assentando o autor em que «não é típica a conduta do agente que faz declarações de um facto falso juridicamente irrelevante», prossegue o Autor «Integram-se no tipo de falsificação os casos em que o agente pratica um acto material determinante para o preenchimento ou registo no documento do facto falso juridicamente relevante (na modalidade de falsificação por força de falsidade intelectual relativa a declarações contrárias à verdade sobre factos juridicamente relevantes). Será esse o caso, por exemplo, da «integração no documento de uma declaração distinta daquela que foi prestada …»

Também se integrará na referida dimensão o fazer constar de facto falso por força do exercício de poderes próprios sobre a elaboração e redacção do documento, por exemplo a autoridade que dirige determinada diligência emite uma ordem para quem elabora o auto no sentido de que deve fazer constar do mesmo facto falso juridicamente relevante (…).

Falsidades consubstanciadas no exercício de um poder sobre os termos em que é elaborado o documento, «quando num documento existe divergência entre o que o documento relata e que de facto ocorreu, ou seja o documento mente …». Poder de conformação do documento de que não dispõe quem apenas presta declarações a uma entidade estadual por via de um dever jurídico …»

Afigura-se-nos teleologicamente infundado integrar no crime de falsificação a conduta de quem emite uma simples declaração verbal, sem ter o poder de emitir, elaborar ou determinar a emissão documento com informação sobres factos juridicamente relevantes, cujo relevo se apresenta reforçado pelo próprio documento …»

Isto é, quando relativamente ao que foi dito o agente apenas tem um domínio relativo ao poder da palavra sem capacidade para determinar a produção do documento não preenche o tipo de falsificação por falta do elemento objectivo relativo: fazer constar do documento facto juridicamente relevante.

Reportando-nos ao tema que suscitou a presente consulta, considera-se que na legislação portuguesa a tutela penal de declarações para efeitos de processo judiciário ou extra-judiciário que funcionário faz constar de documento com força pública se opera por eventuais tipos de falsas declarações e não de falsificação  …»

Daí que no caso do arguido que, por exemplo, presta falsas declarações sobre factos juridicamente relevantes e relativamente aos quais tem o dever de depor com verdade, ao que se sabe, nunca foi problematizada a eventual integração de um crime de falsificação por via de as mesmas constarem de auto com força de documento autêntico.

Em síntese, para se preencher o tipo de falsificação na modalidade de fazer constar do documento facto juridicamente relevante entende-se que tem de existir da parte do agente do crime, pelo menos, um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento (nomeadamente o que se disse em determinado evento). Ou seja, no caso da documentação por escrito de declarações perante autoridade esse domínio jurídico apenas é detido por quem ordena a redução a escrito e quem executa esse comando e não por quem apenas presta as declarações.

Ainda que se adopte uma ênfase (que no plano da interpretação do tipo objectivo nunca pode ser exclusivista) na função probatória do documento, a mesma cinge-se à sua força para a prova da ocorrência do evento documentado (que se disse) e não sobre a asserção (o que se disse), cuja força subsiste inalterada por via da documentação levada a cabo por terceiro.

(…)

Em termos sintéticos, não é a documentação do facto presenciado por agente estadual, que conforma os deveres dos particulares envolvidos (sejam de não atingir o património alheio ou de falar com verdade relativamente à sua identificação civil).»

Pensamento que, no seio de alguma conturbação doutrinária e jurisprudencial, temos por mais adequado atento o princípio da tipicidade, o qual se nos afigura não dispensar, utilizando as palavras do Autor, «um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento» - que no caso não ocorreu -, sendo certo que o subsequente uso da escritura de justificação para o registo e venda do imóvel a terceiro, não faz incorrer o agente no crime de falsificação de documento da alínea e) – também convocada no requerimento de abertura da instrução - na medida em que não se trata de «documento a que se referem as alíneas anteriores».

De facto, fosse a conduta em causa posterior à entrada em vigor das alterações ao Código Penal, introduzidas pela Lei n.º 19/2013, de 21.02, por certo não estaríamos a discutir a questão em função do novo artigo 348.º - A - integrando, agora, a Secção I, do Capítulo II, do Título V, do Livro II do dito compêndio normativo com a epígrafe «Da resistência, desobediência e falsas declarações à autoridade pública» -, o qual sob a designação «Falsas declarações», dispõe:

«1 – Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

2 – Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa» [destaques nossos].

Preceito que não podemos ler desligado do «Estudo» que vimos de citar – tendo até presente a respectiva «Nota Introdutória» -, em cuja conclusão 19. o Autor alerta para que «A ausência de tutela pública das falsas declarações perante autoridade pública afecta a autonomia intencional do Estado, nomeadamente, nas áreas dos registos, notariado, concursos públicos e múltiplos procedimentos sancionatórios»., aspecto, desde então [da entrada em vigor do sobredito preceito], concretamente no que tange à questão controversa, sanado.”

Transcrito o eloquente entendimento manifestado no supra citado acórdão desta Relação, acórdão esse que com toda a nossa humildade aderimos e sufragamos no sentido da sua aplicação em relação ao nosso caso em apreço. Nessa medida, e porque a questão nele analisada reveste toda a actualidade e enquadramento, pouco mais temos a acrescentar ao que nele foi dito e que, nessa medida se encaixa/enquadra aos nossos autos, motivo pelo qual dele colhemos os ensinamentos para a decisão da nossa supra mencionada questão prévia.

Ademais, até constava expressamente exarado pelo notário, a dado passo daquela escritura de Justificação (constante de fls. 10 a 15) o seguinte: “Adverti os primeiros e segundos outorgantes de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsidade se, dolosamente e em prejuízo de outrem, tiverem prestado declarações falsas

Tendo em conta a matéria de facto apurada pelo tribunal recorrido e o que estabelece o artigo 256º nºs 1 d) e 3 do Código Penal, para a integração da conduta do recorrente neste legal de crime, não se pode concluir que tivesse sido o recorrente que fez constar da escritura o alegado facto juridicamente relevante. No nosso caso, tal como naqueloutro a cujo acórdão fizemos alusão, quem fez constar na escritura foi o notário…, mas segundo o que lhe foi declarado, que, segundo a acusação, é falso…. O acto objectivo/material de fazer (ou no dizer da lei “fizer”) constar foi praticado pelo notário, e não pelo recorrente. Ademais, atendendo a que o bem jurídico protegido pelo artigo 256.º do Código Penal é a confiança da sociedade no valor probatórios dos documentos que os outorgantes produziram perante o notário mediante a prestação de declarações, entendemos que o mesmo não sofreu qualquer dano. A escritura pública, enquanto documento autêntico, garante apenas a veracidade dos factos praticados pelo notário e dos que são referidos com base nas suas percepções, que não os juízos pessoais do notário ou os factos do foro íntimo dos outorgantes. Por outro lado, em lado algum dos autos decorre que o documento (escritura pública) não reproduza fielmente as declarações prestadas perante o Notário.

A este propósito, abrindo aqui um parênteses, e embora no âmbito de um quadro fáctico diverso das escrituras de justificação, pode-se também mencionar o Acórdão desta Relação, de 12.07.2011 (Relatora, Dra. Alice Santos, acórdão esse acessível através do site www.dgsi.pt) em cujo sumário se diz: “1 - Aqueles que, perante o notário em escritura pública de dissolução de sociedade, declaram inveridicamente que todo o passivo da sociedade fora já liquidado, não cometem o crime de falsificação de documento; 2.- Trata-se de um documento que não exibe qualquer aspecto susceptível de revelar falsidade material nem intelectual, pois não foi forjado ou alterado nem apresenta uma desconformidade entre o que foi declarado e o que está documentado. É um documento exacto (regular) que contém uma declaração inverídica.”

Por outro lado ainda, retornando àquele já citado Acórdão desta Relação de Coimbra, de 18.12.2013, e utilizando as palavras nele citadas, para o mencionado crime de falsificação de documento “tem de existir da parte do agente do crime, pelo menos, um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento (nomeadamente o que se disse em determinado evento). Ou seja, no caso da documentação por escrito de declarações perante autoridade esse domínio jurídico apenas é detido por quem ordena a redução a escrito e quem executa esse comando e não por quem apenas presta as declarações.” E esse domínio (de facto e/ou de direito) por parte do arguido/recorrente não ocorreu no caso dos autos

Em relação ao recorrente o que foi dado como provado, e disso estava também acusado, foi que o mesmo declarou factos que sabia não corresponderem à verdade (ou seja que declarou factos falsos, que prestou declarações falsas), mas não que os tivesse feito constar naquela escritura nem que tivesse tido o domínio sobre alguém a pontos de, sob esse domínio, fossem exarados naquela escritura. Que é ética e moralmente censurável este tipo de comportamentos, é-o com certeza; no entanto, não é pela via deste tipo legal que o mesmo poderá ser punido nem compete aos Tribunais suprir deficiências do legislador do tempo da ocorrência dos factos.

Por isso, tal como é dito no mencionado acórdão “fosse a conduta em causa posterior à entrada em vigor das alterações ao Código Penal, introduzidas pela Lei n.º 19/2013, de 21.02, por certo não estaríamos a discutir a questão em função do novo artigo 348.º - A - integrando, agora, a Secção I, do Capítulo II, do Título V, do Livro II do dito compêndio normativo com a epígrafe «Da resistência, desobediência e falsas declarações à autoridade pública» -, o qual até tem por epígrafe «Falsas declarações»!

Assim, tendo em conta os princípios da tipicidade e da legalidade, aderindo aos argumentos expostos no acórdão sobejamente citado e parcialmente transcrito, temos de concluir que a conduta do recorrente, à data, não integrava a previsão do artigo 256º nº 1 d) e 3 do Código Penal que na primeira instância levara à sua condenação nem de qualquer outro tipo legal de crime. Por isso, impondo-se a absolvição do recorrente, ter-se-á que, quanto a ele, revogar a sentença recorrida, desde já no que à respectiva condenação crime diz respeito.

E no que à condenação cível do recorrente também diz respeito, considerando que a matéria de facto apurada, naquela data, não integrava a prática do crime que lhe era imputado nem qualquer outro facto ilícito gerador de responsabilidade civil extracontratual, falta assim desde logo um dos basilares requisitos para a existência de responsabilidade civil por factos ilícitos, do que decorre falta da obrigação de indemnizar o demandante civil, com a consequente absolvição do arguido/demandado/recorrente do pedido que contra si havia sido formulado.

Assim, em síntese, impõe-se a revogação da sentença quanto à condenação crime e cível do recorrente, o qual, portanto, deverá ser absolvido.

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Nessa sequência, ficam prejudicadas as questões suscitadas pelo arguido recorrente.
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Apenas uma nota, a título de parênteses, em relação aos demais arguidos. A absolvição de um dos arguidos (neste caso do recorrente) não se pode estender aos demais arguidos. Com efeito, para além de não terem interposto recurso da sentença, quer da matéria de facto da acusação quer da fixada na sentença recorrida, decorre a existência de condutas paralelas, e não uma situação de comparticipação. Por isso, não podendo aproveitar do benefício a que alude a alínea a) do nº 2 do artigo 402º do Código de Processo Penal, temos de concluir que a condenação dos mesmos, decorrente da sentença da primeira instância, há muito transitou em julgado.
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III- DECISÃO.
Nos termos apontados, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em, embora por fundamentos diversos, concedendo provimento ao recurso interposto pelo arguido A..., revogar a sentença recorrida, absolvendo este mesmo recorrente do crime de falsificação de documento que lhe era imputado e, bem assim do pedido cível que contra o mesmo havia sido deduzido.
Sem tributação (em relação ao recorrente), em ambas as instâncias.
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Coimbra, 19 de Fevereiro de 2014



(Luís Coimbra - Relator)

(Isabel Silva)