Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
466/13.9TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: SUB-ROGAÇÃO
PRESCRIÇÃO DO DIREITO
CREDOR SUBROGADO
PAGAMENTOS
CONTAGEM DO PRAZO
Data do Acordão: 06/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JL CÍVEL – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 31º, Nº 4, DA LEI Nº 100/97, DE 13/09; 498º, Nº 2, DO C. CIVIL.
Sumário: I. A despeito da denominação, o n.º 4 do art.º 31.º da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, consagra uma verdadeira sub-rogação a favor da entidade empregadora ou seguradora.

II. Ao exercício do direito pelo credor sub-rogado é aplicável analogicamente o prazo previsto no n.º 2 do art.º 498.º, não beneficiando aquele da extensão eventualmente resultante da aplicação do n.º 3 do preceito.

III. Atendendo ao carácter uno da obrigação de indemnizar, revelado desde logo pelo seu modo de cálculo, assente na teoria da diferença (cf. art.º 562.º do CC), e salvo casos escolhidos em que se imponha a autonomização das indemnizações, o prazo prescricional, quando tenham ocorrido pagamentos faseados, conta-se do último pagamento.

IV. Ainda nos casos em que se imponha a autonomização das indemnizações, por respeitarem a “danos normativamente diferenciados”, caberá ao réu, sobre quem recai o ónus de alegação e prova dos elementos constitutivos da excepção, invocar a autonomia e cindibilidade de cada pagamento ou grupo de pagamentos, não bastando a alegação genérica de que o direito do credor sub-rogado se encontra prescrito.

Decisão Texto Integral: I. Relatório

L... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., com sede na Rua ..., instaurou acção declarativa de condenação com processo comum contra M..., LDA, com sede na ..., pedindo a condenação da ré no pagamento à Autora da quantia de €16.862,21, acrescida dos juros de mora vincendos desde a data da propositura da presente acção até integral e efectivo pagamento.

Alegou, para o efeito, em suma, que incorporou, por fusão, a sociedade “..., S.A”, tendo-lhe sucedido nos respectivos direitos e obrigações.

Mais alegou que no exercício da sua actividade seguradora, a, à data, “..., S.A.” celebrou com a sociedade “S..., Lda.”, em 2007.06.01, o contrato de seguro titulado pela apólice n.º ... nos termos do qual, a partir de 2007.06.01, segurou os trabalhadores daquela identificados nas respectivas folhas de salários. No dia 26 de Novembro de 2007 a referida sociedade participou à Autora um sinistro ocorrido às 09.00h do dia 22 de Novembro de 2007 com o seu trabalhador J..., que caracterizou como acidente de trabalho, sendo a ocorrência do mesmo de imputar com culpa a A..., que na ocasião manobrava a grua acoplada ao veículo pesado com a matrícula OD-..., o que fazia por conta e seguindo as instruções da aqui ré, sua proprietária.

Em consequência do referido acidente o trabalhador sinistrado sofreu diversas lesões, designadamente fractura de L1 e do ramo ísquio-púbico, que lhe provocaram Incapacidade Temporária Absoluta de 22.11.2007 a 27.06.2008, foi assistido em diversas instituições, públicas e privadas, nomeadamente os Hospitais de Universidade de Coimbra, Casa de Saúde de Santa Filomena e nos Serviços Clínicos da Autora, e durante todo o tempo em que se manteve em recuperação necessitou de medicamentos e produtos farmacêuticos.

Alegou ainda ter corrido termos pelo 2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Coimbra sob o n.º ... o respectivo processo laboral, no qual a ora Autora foi Ré, aí tendo sido condenada a pagar ao trabalhador sinistrado, na sequência da fixação da Incapacidade Permanente Parcial de 5%, “o capital de remição correspondente à pensão de € 299,18”, devida desde 28.06.2008, e, bem assim, da quantia de € 15,00 a título de despesas com transportes, a cujo pagamento procedeu, com o que despendeu a quantia global de € 16.862,21. Uma vez que o trabalhador da ré, no âmbito das suas funções e de acordo com a direcção da sua entidade patronal, não se certificou de que a auto-grua estivesse em perfeitas condições de utilização, tendo o acidente ocorrido porque o gancho que sustentava o porta-paletes se abriu, levando à queda deste sobre o sinistrado, o acidente é de imputar à demandada, pelo que assiste à autora, por via da sub-rogação nos direitos da segurada, o direito a haver da responsável quanto despendeu na regularização do sinistro.

*

Citada, a ré ofereceu contestação e nela defendeu-se por excepção, aqui tendo arguido a sua ilegitimidade para a causa e, bem assim, a prescrição do direito de regresso da autora, tendo requerido a intervenção provocada da Companhia de Seguros A..., S.A. para a qual transferira a responsabilidade civil emergente dos acidentes de viação em que interviesse o veículo OD.

A A. veio pugnar pela improcedência das excepções invocadas e declarou a não oposição à intervenção principal provocada deduzida, vindo a ser admitida a intervenção da chamada.

Citada, veio a interveniente A... deduzir contestação, peça na qual impugnou, por desconhecimento, o circunstancialismo em que ocorreu o acidente e, bem assim, as respectivas consequências. Mais alegou que, em todo o caso, vingando a versão da autora, nunca seria responsável, uma vez que se encontram excluídos da cobertura do contrato de seguro os danos causados em consequência de operações de carga e descarga, conforme consta de cláusula de exclusão que expressamente convocou.

Teve lugar audiência prévia, na qual se frustrou a tentativa de conciliação.

Por requerimento de 24-05-2014, a R. veio pedir a condenação da A. como litigante de má-fé em multa e indemnização não inferior a € 5.000,00.

Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade passiva invocada pela R., fixou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova, tendo a apreciação da excepção de prescrição sido relegada para a decisão final.

Realizou-se a realização da audiência de julgamento com observância do legal formalismo, finda a qual veio a ser proferida douta sentença que decretou a absolvição da interveniente A..., condenando a ré M..., Lda a pagar à autora L... – Companhia de Seguros, S.A., a quantia de € 762,60 (setecentos e sessenta e dois euros e sessenta cêntimos), acrescida dos juros de mora vincendos desde a propositura da acção até integral pagamento, absolvendo-a do mais peticionado.

Inconformada, apelou a autora e, tendo desenvolvido nas alegações os fundamentos da sua discordância com a decisão proferida, formulou a final as seguintes conclusões:

Contra alegou a ré, pugnando pela manutenção do julgado.

Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são duas as questões suscitadas pela apelante, a saber:

i. do prazo prescricional aplicável;

ii. do início da sua contagem.

II. Fundamentação

Por não impugnada e inexistindo fundamento para a sua modificação oficiosa, é a seguinte a matéria de facto a atender, tal como nos chega da 1.ª instância:

...

De Direito

Do prazo prescricional aplicável

Não está em causa no presente recurso a reapreciação da culpa da apelada nem, tão pouco, a absolvição da interveniente A..., por força da cláusula de exclusão invocada, uma vez que a decisão recorrida não foi impugnada nos aludidos segmentos.

Do mesmo modo, e a despeito da menção a direito de regresso que constava do art.º 31.º n.º 4 da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, aqui aplicável, atenta a data em que ocorreu o sinistro, não vem posta em causa a qualificação do direito que a autora pretende exercitar como de sub-rogação legal, na medida em que, apesar do nomen juris, “(…) se ancora na circunstância de a seguradora ter pago indemnizações que, em princípio, deveriam ser satisfeitas por quem deu causa ao acidente, sendo que tal interpretação é favorecida pela letra do correspondente art.º 294.º, n.º 4 do CT[1][2]. Tal corresponde, de resto, ultrapassada uma fase de controvérsia, a jurisprudência agora consolidada, como se vê dos arestos deste TRC de 18/12/2013, processo n.º 360/12.0T2AND.C1[3] e de 27/5/2014, processo 1953/08.6 TBPBL.C1, TRL de 16/6/2015, processo 21090/13.0 T2SNT-A.L1-7 e do STJ de 25/3/2010, processo 2195/06.0 TVLSB.S1; 31/1/2017, processo 50/09.2 TVLSB.L1.S1H; e 7/2/2017, processo 3115/13-1 TBLLE.E1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

No que respeita ao prazo de prescrição, insiste a recorrente que será aplicável o ordinário previsto no art.º 309.º do Código Civil, uma vez que os prazos prescricionais consagrados no art.º 498.º do mesmo diploma se reportam à indemnização por responsabilidade civil extracontratual e o facto gerador dos créditos cujo pagamento a A. peticiona não emerge do acidente descrito, mas sim da sua caracterização como sinistro laboral e regularização do mesmo com fundamento no contrato de seguro; a entender-se que está em causa o prazo previsto neste último preceito, sempre aproveitaria à apelante o alargamento previsto no seu n.º 3, dado que os factos descritos na p.i. são susceptíveis de enquadrar responsabilidade criminal (ofensa à integridade física); em qualquer caso o direito da apelante não se encontra prescrito, pois o terceiro que paga pelo devedor só fica sub-rogado nos direitos do credor com o pagamento.

Apreciemos, pois, a valia de tais argumentos.

A prescrição, conforme é sabido, é um instituto jurídico que permite à contraparte opor-se ao exercício de um direito quando este não seja exercitado durante certo tempo indicado na lei, e que varia consoante os casos, tendo como fundamento a reacção da lei contra a inércia ou o desinteresse do titular do direito que o torna indigno de protecção jurídica[4], podendo ainda ser invocadas razões de certeza e segurança jurídica e de protecção dos obrigados contra as dificuldades de prova a que ficariam expostos caso o credor os pudesse demandar a todo o tempo para exigir o que porventura já tivesse recebido.

O direito da A. funda-se no por si invocado n.º 4 do art.º 31.º da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, diploma que vigorava ao tempo do acidente dos autos, no qual se dispõe: “A entidade empregadora ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente tem o direito de regresso contra os responsáveis referidos no nº 1, se o sinistrado não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente.”

Já se disse que, apesar da designação legal, estamos perante uma sub-rogação legal, caso em que o crédito de que o accipiens da prestação é titular se transmite na íntegra para a titularidade do solvens, mantendo a sua etiologia, características e funcionalidades, v. g. garantias constituídas, etc.[5] Se assim é, não pode obviamente a apelante beneficiar do prazo ordinário de prescrição previsto no art.º 309.º o qual, para além do mais, tem aplicação residual, só se aplicando quando a lei não preveja prazo diverso, o que não é o caso, uma vez que o art.º 498.º estabelece no seu n.º 2, que se tem por analogicamente aplicável, prazo diverso e mais curto[6]-[7].

Questão diversa e que a apelante também coloca no seu recurso, saber se beneficia, conforme pretende, do prazo mais longo que resultar da aplicação do n.º 3.

A este propósito, e conforme vem anotado na sentença recorrida, com recenseamento de decisões jurprisprudenciais, o nosso STJ tem vindo de forma consistente a negar ao credor sub-rogado a possibilidade do prazo de que dispõe beneficiar da extensão prevista naquele n.º 3 (cf., para além de toda a jurisprudência ali citada, ainda o muito recente aresto do STJ de 31/1/2017, processo n.º 850/09.2TVLSB.L1.S1, no qual se refere “(…) há razões ponderosas para circunscrevermos o espaço aplicativo do n.º 3 do art. 498.º, razões essas que se prendem com a natureza e o escopo do direito de regresso (próprio ou impróprio) e a própria racionalidade desse n.º 3, não tendo sentido considerar, no caso em análise e noutros semelhantes, a seguradora beneficiária (no plano prescricional) do ilícito criminal cometido pelo seu segurado. Só este deve suportar "0 efeito sancionatório do alongamento da prescrição", não devendo a seguradora repercutir no seu direito (que não é o de fazer valer uma pretensão indemnizatória fundada, eventualmente, no art.º 483º) esse mesmo efeito, tendo em conta que não houve, perante ela, qualquer ilícito criminal. A seguradora não é, em rigor, lesada imediata, só surgindo o seu "dano" com o pagamento ao verdadeiro lesado (…).

No mesmo sentido, afirmou o mesmo STJ em acórdão de 19/5/2016, proferido no processo 645/12.6TBVLSB.L1.S1 “O alargamento do prazo de prescrição previsto no n.º 3 do art.º 498.º do CC não é aplicável ao prazo de prescrição do direito de regresso invocado pela seguradora -de 3 anos, segundo  o n.º 2 do mesmo preceito- por ser um direito novo, distinto do direito de indemnização do lesado, que não corresponde, em termos directos e imediatos, a uma situação de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito”.

Por outro lado, tenha-se presente que não procedem aqui as razões que levaram o legislador a consagrar a solução prevista neste n.º 3 do preceito e que tiveram fundamentalmente a ver com a necessidade de harmonizar os prazos prescricionais previstos nas leis civil e criminal. Com efeito, impondo o legislador ao lesado, por força do princípio da adesão, que faça valer a sua pretensão indemnizatória no processo penal, mal se compreenderia que se extinguisse o direito à indemnização por prescrição mantendo-se vivo o procedimento criminal. Acresce que o prazo de exercício do direito do sub-rogado conta-se também de momento diverso daquele que importa atender para efeitos do exercício, pelo lesado, do seu direito à reparação, começando a correr precisamente na data do cumprimento da obrigação de que este é credor, inexistindo portanto identidade de situações que justifiquem a extensão daquele benefício ao credor sub-rogado.

Deste modo, e em suma, não se vendo razão para dissentir da enunciada posição, é de considerar arredada a pretendida extensão do prazo prescricional, sendo aplicável ao caso o prazo de 3 anos previsto no n.º 2 do art.º 498.º a que nos vimos reportando.

ii. do início da contagem do prazo

Derradeira questão suscitada pela recorrente e de que nos ocuparemos de seguida, saber a partir de quando se deve contar tal prazo.

A este propósito observou-se, a nosso ver correctamente, na decisão recorrida, que a letra do n.º 2 do art.º 498.º, por cujos termos “Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis” não permite resolver, sem mais, as situações frequentes e complexas em que, relativamente aos danos resultantes de um mesmo sinistro, se verifica uma sucessão de actos de pagamento efectuados pela seguradora, como sucede no caso dos presentes autos. Identificada a questão, e fazendo apelo ao entendimento perfilhado no acórdão do STJ de 7/4/2011, proferido no processo 329/06.4 TBAGV.C1.S1, também acessível em www.dgsi.pt, veio a Mm.ª juíza a considerar que no caso vertente era possível autonomizar núcleos indemnizatórios juridicamente diferenciados, em função de critérios funcionais e temporais, em razão do que veio a julgar prescrito o direito da autora no que se refere a todas as quantias reclamadas, com excepção das elencadas sob o ponto 24), alíneas t) a z) dos factos provados, no total de €762,60.

Refira-se, antes de mais, que os presentes autos foram instaurados em 7-02-2013, tendo a Ré sido citada no dia 13-02-2013, termos em que, atento o preceituado no art.º 323.º, a prescrição se interrompeu no dia 12-02-2013 (não sendo idóneas para efeitos de interrupção da prescrição em curso as cartas enviadas à ré e por esta recebidas em datas anteriores o que, de resto, não vem questionado)[8].

O prazo de prescrição inicia-se com o pagamento, pois é a partir desse momento que o direito poderá ser exercido (art.º 306.º, n.° 1 Código Civil). A questão que se coloca é, pois saber, se o prazo de prescrição que se determinou ser de 3 anos deverá correr desde a data em que cada um dos pagamentos foi efectuado, com respectivos “dies a quo”, ou antes a sua contagem se deverá iniciar na data do último pagamento efectuado, por só então se mostrar cumprida a obrigação de reparar os prejuízos sofridos pelo lesado (ou lesados). São ponderosos os argumentos a favor de um e outro entendimentos. Assim, se se reconhece razão à apelante quando defende que a primeira solução, impondo a instauração de inúmeras acções, em especial nos casos de pagamentos fragmentados por lapsos de tempo dilatados, acabará por desmotivar a rápida reparação do lesado, uma vez que, conforme justamente observa, o segurador, confrontado com a necessidade de promover sucessivas acções, tenderá a não proceder a pagamentos faseados ou parcelares da indemnização, mas antes a um pagamento concentrado e diferido no tempo relativamente à verificação do facto ilícito gerador da responsabilidade, assim afectando os interesses do lesado, muitas vezes carecido no imediato, não é menos certo que, no limite, contar o prazo do último pagamento conduzirá a uma quase imprescritibilidade do direito, obrigando o demandado a discutir a sua culpa em momento muito afastado do facto gerador da responsabilidade.

A este respeito, invocando o carácter uno da obrigação de indemnizar, ponderou-se no acórdão do STJ de 4/11/2010, proferido no processo 2564/08.1TBCBR.C1.S1 “Ainda que do carácter uno da obrigação não resulte necessariamente que o “dies a quo” da contagem do prazo prescricional, nos casos em que as respectivas prestações se vão cumprindo ao longo do tempo, se situe em data que abranja todas estas, temos aqui um argumento muito forte a favor da não cindibilidade, para estes efeitos, do pagamento.

Por regra, sendo a obrigação una e simples, quando se fala em cumprimento está-se a reportar ao cumprimento integral. E também aqui há que ponderar os efeitos práticos daquela posição de cisão das datas dos pagamentos para os efeitos que vimos abordando.
Por cada pagamento ou grupo de pagamentos, a seguradora poderia ter de intentar uma acção e vir sucessivamente com acções relativamente a cada pagamento ou grupo de pagamentos posteriores, o que só complicaria a apreciação judicial do caso, correndo-se mesmo o risco de, numa das acções, se condenar o lesado e noutra ou noutras se absolver (de acordo, por exemplo, com a prova ou não da relação de causalidade entre o grau de alcoolémia e a verificação do acidente). As regras de elasticidade do processo civil (nomeadamente quanto a apensação de processos) já constituiriam um mero remendar do que, à partida, com outro entendimento, corresponderia a uma tramitação linear.

Decerto que esta posição pode ter uma razão de ser nos casos em que o fraccionamento resulta do próprio regime de satisfação da obrigação. Estamos a pensar na indemnização em forma de renda, caso em que passaria a compreender-se muito mal o início do prazo prescricional só com o pagamento da última renda, sendo aqui de ponderar a aplicação do artigo 307.º do Código Civil. Mas, nos casos vulgares, o próprio fraccionamento é ditado por razões de protecção do próprio lesado (em ver satisfeitas, de imediato, certas despesas), por razões de conveniência de pagamento, de índole burocrática, de prontidão de exigência dos hospitais, etc. No limite, a contagem do início do prazo de prescrição com a data de cada fracção do pagamento levaria até as seguradoras a protelarem este, com prejuízo dos lesados, correndo menor risco as menos cumpridoras.

Ressalvados, pois, os casos de satisfação da indemnização em forma de renda, optamos pelo entendimento que vai no sentido de ter em conta, como data do início do prazo prescricional, a do último pagamento. Posição já assumida no Acórdão deste Tribunal de 11.7.2006, revista n.º 1856/06, 2.ª secção”.

O mesmo entendimento foi reiterado no acórdão de 14 de Julho de 2016, proferido no processo 1305/12.3 TBABT.E1.S1, que se pronunciou sobre a questão a propósito do exercício do direito de regresso mas em termos perfeitamente transponíveis para o instituto da sub-rogação, no qual se sintetizou “O prazo da prescrição para o exercício do direito de regresso nos termos do disposto no art.º 498.º, n.º 2 do CC, começa a correr a partir do pagamento da indemnização ou, sendo parcelar, a partir da última prestação, por correspondência ao momento do cumprimento da obrigação de indemnizar[9].

Procurando equilibrar os interesses em confronto do sub-rogado e do responsável, ponderou-se no antes citado acórdão do STJ de 7/4/2011, invocado na decisão recorrida: “Não sendo a letra da lei – ao reportar-se apenas ao “cumprimento”, como momento inicial do curso da prescrição – suficiente para resolver, em termos cabais, esta questão jurídica, será indispensável proceder a um balanceamento ou ponderação dos interesses envolvidos: assim, importa reconhecer que a opção pela tese que, de um ponto de vista parcelar e atomístico, autonomiza, para efeitos de prescrição, cada um dos pagamentos parcelares efectuados ao longo do tempo pela seguradora acaba por reportar o funcionamento da prescrição, não propriamente à “obrigação de indemnizar”, tal como está prevista e regulada na lei civil (arts. 562º e segs.) mas a cada recibo ou factura apresentada pela seguradora no âmbito da acção de regresso, conduzindo a um – dificilmente compreensível – desdobramento, pulverização e proliferação das acções de regresso, no caso de pagamentos parcelares faseados ao longo de períodos temporais significativamente alongados.

Pelo contrário, a opção pela tese oposta – conduzindo a que apenas se inicie a prescrição do direito de regresso quando tudo estiver pago ao lesado – poderá consentir num excessivo retardamento no exercício da acção de regresso pela seguradora, manifestamente inconveniente para os interesses do demandado, que poderá ver-se obrigado a discutir as causas do acidente (…) muito tempo para além do prazo-regra dos 3 anos a que alude o n.º 1 do art. 498º do Código Civil.

(…) Saliente-se, aliás, que o Ac. de 4/11/10, atrás citado, foi sensível a esta problemática, ao admitir que – num verdadeiro caso limite, em que a indemnização seja arbitrada em forma de renda – a prescrição se tem de iniciar antes do cumprimento global da obrigação de indemnizar – sob pena de, se assim não for, o direito de regresso ser pouco menos que «imprescritível», nos casos de renda vitalícia, ao revelar-se exercitável pela totalidade das rendas no momento em que cessasse a obrigação, a cargo da seguradora, de as pagar.

Afigura-se, todavia, que poderá não ser este o único caso em que a opção pela tese da unicidade da prescrição – como decorrência do carácter unitário da obrigação de indemnizar, inferível, desde logo, do modo como esta é, em regra, calculada, através da aplicação da “teoria da diferença”, comparando globalmente as situações patrimoniais, actual e hipotética, do lesado, nos termos do n.º 2 do art.º 566º do Código Civil – conduz a um desproporcionado alargamento do prazo da prescrição do direito de regresso: é o que poderá verificar-se quando a obrigação de indemnizar a cargo da seguradora abranja danos futuros, susceptíveis de se revelarem e desenvolverem ao longo de períodos temporais muito prolongados (o que normalmente ocorrerá quando o acidente tiver originado lesões graves, cujas sequelas incapacitantes se vão desenrolado   e agravando ao longo de anos) – não se vendo, neste caso, razão bastante para que a seguradora não deva exercitar a acção de regresso, referentemente à indemnização que satisfez e que cobre integralmente os danos actuais, causados pelo sinistro e perfeitamente consolidados e ressarcidos, de modo a deixar assente nessa acção, exercitada em prazo ainda próximo da data do acidente, toda a sua dinâmica e causalidade.

Por outro lado, a ideia base da unidade da obrigação de indemnizar” poderá ser temperada pela possível autonomização das indemnizações que correspondam ao ressarcimento de tipos de danos normativamente diferenciados, consoante esteja em causa, nomeadamente:

- A indemnização de danos patrimoniais e não patrimoniais, sendo estes ressarcidos fundamentalmente através de um juízo de equidade, e não da aplicação da referida teoria da diferença;

- A indemnização de danos que correspondam à lesão de bens ou direitos claramente diferenciados ou cindíveis de um ponto de vista normativo, desde logo os que correspondam à lesão da integridade física ou de bens da personalidade e os que decorram da lesão do direito de propriedade sobre coisas.

(…) Em suma: se não parece aceitável a autonomização do início de prazos prescricionais, aplicáveis ao direito de regresso da seguradora, em função de circunstâncias puramente aleatórias, ligadas apenas ao momento em que foi adiantada determinada verba pela seguradora, já poderá ser justificável tal autonomização quando ela tenha subjacente um critério funcional, ligado à natureza da indemnização e ao tipo de bens jurídicos lesados, com o consequente ónus de a seguradora exercitar o direito de regresso referentemente a cada núcleo indemnizatório autónomo e juridicamente diferenciado, de modo a não diferir excessivamente o contraditório com o demandado, relativamente à causalidade e dinâmica do acidente, em função da pendência do apuramento e liquidação de outros núcleos indemnizatórios, claramente cindíveis do primeiro.

E, nesta perspectiva, incumbirá ao Réu que suscita a prescrição o ónus de alegar e demonstrar que o conjunto de recibos ou facturas pagas pela seguradora até ao limite do período temporal de 3 anos que precederam a citação na acção de regresso corresponderam a um núcleo indemnizatório, autónomo e bem diferenciado, relativamente aos restantes valores indemnizatórios peticionados na causa – não lhe bastando, consequentemente, alegar, como fundamento da prescrição que invoca, a data constante desses documentos”.

E com tal argumentação, concluiu-se naquele aresto que “Não se inicia, nem corre autonomamente, o referido prazo prescricional quando os documentos a que se reporta a prescrição invocada se conexionam com o ressarcimento antecipado e faseado de danos exclusivamente ligados às lesões físicas sofridas pelo sinistrado – reparação dos períodos de incapacidade temporária, despesas médicas e de tratamentos clínicos, custo das deslocações para estabelecimento hospitalar – sendo tais pagamentos parcelares insusceptíveis de integrar um núcleo indemnizatório, autónomo e juridicamente diferenciado dos demais danos, de idêntica natureza, globalmente peticionados na acção de regresso.

Neste caso, o prazo de prescrição do direito de regresso apenas se inicia no momento em que estiver cumprida a obrigação da seguradora de ressarcir o lesado de todos os danos que lhe advieram da lesão dos bens da personalidade e respectivas sequelas, ainda que tal núcleo indemnizatório tenha originado pagamentos faseados ao longo do tempo”.

Esta mesma perspectiva veio a ser acolhida no acórdão do mesmo STJ de 19/5/2016, no processo 645/12.6 TVLSB.L1.S1[10], embora aqui se tenha distinguido, secundando o juízo feito pelo TR, como “núcleos indemnizatórios autónomos identificados e juridicamente diferenciados” as quantias pagas ao sinistrado a título de indemnização pela incapacidade temporárias em dois períodos distintos, o pagamento do capital de remição e ainda o início do pagamento de uma pensão vitalícia, dado o agravamento da incapacidade do lesado, mais se tendo entendido que as despesas com medicamentos e consultas médicas não tinham autonomia, devendo antes integrar os núcleos antes considerados em cujos períodos se inscrevessem.

No caso sob apreciação, abraçando o referido entendimento, autonomizou a Mm.ª juíza como núcleos indemnizatórios juridicamente diferenciados “em função de critérios funcionais e temporais”:

- os montantes pagos pela A. ao sinistrado J..., a título de capital de remição, juros e despesas com transportes, discriminados no ponto 23) dos factos provados;

- as quantias pagas ao mesmo sinistrado durante o período de incapacidade temporária referida em 18), conforme discriminado nas als. a) a l) do ponto 24.;

- a quantia paga em 10/2/2010 a título de capital de remição da pensão devida desde 28/6/2008, nos termos da sentença proferida em 6/11/2009;

- os pagamentos efectuados a cada uma das entidades distintas do sinistrado, designadamente pela assistência que a este foi prestada.

Antes de mais, começa-se por dizer que não se vê razão para autonomizar as quantias pagas ao lesado a título de indemnização pelos tempos de incapacidade temporária e o montante correspondente ao capital de remição pela incapacidade permanente que lhe foi atribuída, com origem nas mesmíssimas lesões, isto a despeito de tal consideração não obstar à eventual procedência da excepção de prescrição no caso de se seguir o referido entendimento, atendendo a que o último pagamento foi efectuado no dia 10/2/2010 (a interrupção teria ocorrido a 12/2/2013, caso o prazo não se tivesse já completado).

Também não se concorda com a Mm.ª juíza “a quo” quando identifica como núcleo indemnizatório autónomo, cindível dos demais, os pagamentos efectuados a cada uma das diferentes entidades prestadoras de serviços de saúde que assistiram o lesado, às quais a autora  foi fazendo pagamentos à medida que os serviços iam sendo prestados e facturados, antes se afigurando que deveriam integrar o mesmo núcleo indemnizatório, dada a sua natural identidade, obviando ao exagero de obrigar a autora à instauração de uma acção por cada factura ou grupo de facturas cujo pagamento lhe foi exigido. Este diverso entendimento em relação ao decidido pela 1.ª instância, para lá de denunciar as dificuldades de aplicação do critério ali adoptado, conduz a que, no caso, se mantenha o direito da apelante em relação a tais quantias, posto que o último pagamento ocorreu em 1 de Outubro de 2012 (cf. al. z) do ponto 20.) pelo que, nesta parte, sempre o recurso haveria de proceder.  Todavia, a verdade é que não se vê igualmente razão para dissociar estes pagamentos das quantias pagas ao sinistrado em razão das lesões que estão na origem de uns e outras, sendo certo que, a terem sido tais despesas pagas pelo lesado e posteriormente reembolsadas pela autora, e nenhuma distinção haveria que fazer. Deste modo, considerando que está ainda em causa o cumprimento da obrigação -de carácter uno- da apelante de ressarcir o lesado de todos os danos que lhe advieram em razão das aludidas lesões, sem que outros, autonomizáveis, hajam sido reclamados, tendo os pagamentos sido efectuados de forma faseada, vale a data do último pagamento.

Mas uma razão mais intercede no sentido da procedência integral do recurso.

Conforme se sublinhou nos arestos do STJ proferidos em 11/4/2010, acima citado, e em 7/2/2017, este proferido no processo 3115/13.1TVLLE.E1.S1, a prescrição, enquanto facto extintivo do direito que o autor pretende fazer valer, há-de ser alegada pelo réu em todos e cada um dos seus factos constitutivos (cf. art.º 342.º, n.º 2 do CC). Ora, se a procedência da excepção pressupõe a consideração de que os pagamentos efectuados formam núcleos independentes e cindíveis dos restantes, tal autonomia normativa de cada pagamento ou grupo de pagamentos há-de ser devidamente invocada pelo réu excepcionante, não bastando a alegação mais ou menos genérica de que o direito do credor sub-rogado se encontra prescrito.

No caso em apreço, a ré invocou a prescrição atendendo apenas às datas em que cada pagamento foi efectuado, sem preocupação de agregar os pagamentos atendendo à sua autonomia e cindibilidade, atingindo até montante inferior ao que veio a ser considerado, pelo que não lhe poderia aproveitar eventual cisão dos pagamentos efectuados que houvesse de ser feita segundo o assinalado critério.

Procedendo assim as derradeiras conclusões recursivas, impõe-se a revogação da sentença, na parte impugnada.

III. Decisão

Acordam os juízes da 3.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso, condenando a ré a pagar à autora/apelante as quantias discriminadas em 19. e 20. da matéria de facto assente, no total de €16.862,21 (dezasseis mil oitocentos e sessenta e dois euros e vinte e um cêntimos), mantendo-se quanto ao mais a sentença apelada.

Custas nesta e na 1.ª instância a cargo da ré.

Sumário:

I. A despeito da denominação, o n.º 4 do art.º 31.º da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, consagra uma verdadeira sub-rogação a favor da entidade empregadora ou seguradora.

II. Ao exercício do direito pelo credor sub-rogado é aplicável analogicamente o prazo previsto no n.º 2 do art.º 498.º, não beneficiando aquele da extensão eventualmente resultante da aplicação do n.º 3 do preceito.

III. Atendendo ao carácter uno da obrigação de indemnizar, revelado desde logo pelo seu modo de cálculo, assente na teoria da diferença (cf. art.º 562.º do CC), e salvo casos escolhidos em que se imponha a autonomização das indemnizações, o prazo prescricional, quando tenham ocorrido pagamentos faseados, conta-se do último pagamento.

IV. Ainda nos casos em que se imponha a autonomização das indemnizações, por respeitarem a “danos normativamente diferenciados”, caberá ao réu, sobre quem recai o ónus de alegação e prova dos elementos constitutivos da excepção, invocar a autonomia e cindibilidade de cada pagamento ou grupo de pagamentos, não bastando a alegação genérica de que o direito do credor sub-rogado se encontra prescrito.

                                                                                    


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[1] Do acórdão do STJ de 7/2/2017, processo 3115/13.1 TBLLE.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt

[2] Agora no art.º 17.º, n.º 4 da Lei Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais.

[3] De que se destacam os seguintes pontos do sumário:

“1. Na sub-rogação legal verifica-se uma sucessão, uma transmissão do crédito - que mantém a sua identidade e os seus acessórios - apesar da modificação subjectiva operada: o credor sub-rogado continua o direito de crédito anterior, no todo ou em parte, consoante a sub-rogação seja total ou parcial; no direito de regresso, por exemplo, no caso paradigmático nas obrigações solidárias, existe um direito novo, que nasce ou se constitui na esfera do solvens, em consequência do cumprimento de uma obrigação: é um novo direito de crédito a que corresponde também um novo dever de prestar.

2. Apesar de na letra da lei (Base XXXVII da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965 e Art. 31º Nº4 Lei nº 100/97, de 13 de Setembro) se aludir expressamente a direito de regresso nas situações nela contempladas, a doutrina e jurisprudência vêm entendendo que apesar disso, o direito da entidade patronal ou da seguradora que tenha pago a indemnização pelo acidente simultaneamente de trabalho e de viação tem direito, por força da sub-rogação, ao reembolso da indemnização que satisfez do responsável civil pelo acidente de viação.
3. Tal entendimento veio a obter consagração legal no RJATDP constante da Lei 98/2009, de 04 de Setembro, que actualmente se encontra em vigor”.

[4]  Cfr. Prof. Almeida Costa, in “Direitos das Obrigações”, 10ª ed. pág. 1123.
[5] Prof. A. Varela,
[6] Cf., neste preciso sentido, ac. TRE de 24/9/2015, processo 1080/08.6TBBNV.Ei, de que se destaca o seguinte ponto do sumário “I - É de três anos, e não de vinte anos, o prazo prescricional para o exercício do direito de crédito por via da sub-rogação pelo FGA nos termos do artigo 26.º, n.º 3, do DL 522/85, de 31.12, aplicando-se analogicamente o preceituado no artigo 498.º, n.º 2, do Código Civil, atenta a semelhança da função de recuperação creditícia exercida quer através da figura do direito de regresso, quer através da figura da sub-rogação”.
[7] Defendendo a aplicação do n.º 2 do art.º 498.º por analogia ac. do STJ de 25/3/2010, processo n.º 2195/06.0TVLSB.S1, em www.dgsi.pt

[8] Cf. ac. STJ de 22/3/1996, processo 88081, acessível em www.dgsi.pt.

[9] Foi ainda a solução acolhida pelo TRL no acórdão de 16/6/2015, proferido no processo 21090/13.0 T2SNT-A.C1-7, ainda acessível em www.dgsi.pt
[10] De que se destaca o seguinte ponto do sumário “1. No caso de sucessão de actos de pagamento efectuados pela seguradora, o “dies a quo” da contagem do prazo de prescrição de três anos (…) situa-se na data do último acto de pagamento de cada núcleo indemnizatório autónomo identificado e juridicamente diferenciado”.