Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3/17.6T1CLB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: MEDIDA DE COACÇÃO
APRESENTAÇÕES PERIÓDICAS
INSUBSISTÊNCIA DOS FUNDAMENTOS
CONDENAÇÃO EM PENA DE MULTA
Data do Acordão: 11/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 204.º E 409.º DO CPP
Sumário: I – O escopo de qualquer medida de coacção é o de assegurar a eficácia do procedimento penal, na dupla dimensão do seu desenvolvimento e da sua execução.

II – Em função da natureza da pena imposta ao arguido (multa), insusceptível de agravamento por força da proibição da reformativo in pejus (artigo 409.º do CPP), com a prolação da sentença deixaram de subsistir – por força da dupla vertente acima assinalada – os condicionalismos legais, desde logo constitucionais, necessários à manutenção da medida de coacção de apresentações periódicas antes imposta.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo abreviado n.º 3/17.6T1CLB do Tribunal Judicial da Guarda, C. Beira – Juízo C. Genérica, por despacho judicial proferido em 14.05.2018 foi indeferida a revogação da medida de coação de apresentações periódicas (198.º do CPP), requerida pela arguida (…).

2. Inconformada com a decisão recorreu a arguida, formulando as seguintes conclusões:

I – No âmbito do 1º interrogatório judicial, foi a recorrente sujeita, para além do TIR, “à obrigação de apresentação periódica, uma vez por semana, no posto da GNR de (…), às segundas-feiras, até às 12 horas”, prevista no artigo 198.º do CPP, atendendo ao perigo de fuga, previsto no artigo 204º do CPP;

II – Por decisão datada de 27/02/2018, foi a recorrente condenada por um crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, previsto e punível pelo artigo 254.º do Código Penal (CP), na pena de 160 dias de multa à taxa diária de € 5,00, ainda não transitada em julgado, atendendo ao recurso interposto por aquela para este Tribunal, do qual se aguarda decisão.

III – Pelo que, e salvo o devido respeito por diferente entendimento, consideramos terem deixado de existir as circunstâncias que justificaram a aplicação da medida de coação de obrigação de apresentações periódicas, mormente o perigo de fuga;

IV – A recorrente vive desde abril de 2013 na sua propriedade em (…), onde pratica uma agricultura de subsistência e tem a seu cargo, pelo menos, cinco cães, num estilo de vida alternativo, mas socialmente integrada, não sendo expetável que a mesma se ausente do país;

V – Por outro lado, a deslocação entre a sua residência em K... e a GNR de (…) – cerca de 40 km, ida e volta – é fisicamente penosa, já que, muitas vezes, a mesma tem que se deslocar a pé e de bicicleta ou financeiramente difícil.

VI – A aplicação de uma medida de coação deverá ser orientada pelos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade, nos termos dos artigos 191.º e 193.º CPP, devendo aplicar-se aquela que, no caso concreto, se revelar adequada às exigências cautelares que se fizerem sentir e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que possam vir a ser aplicadas e visam garantir o decurso do processo penal sem incidentes.

VII – Nos termos do artigo 204.º CPP a aplicação das medidas de coação tem que se basear em pressupostos reais, concretos e demonstrativos do real perigo de fuga.

VIII – Por outro lado, a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 27º consagra o princípio à liberdade e segurança, o qual apenas pode ser restringido em situações excecionais, e tendo sempre presente o princípio da presunção de inocência, segundo o qual todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.

IX – Ora no caso em concreto, apesar da decisão ainda não ter transitado em julgado, também não se verifica qualquer perigo de fuga, o que sempre seria irrelevante atendendo à pena não privativa da liberdade em que a arguida foi condenada.

X – Face ao supra exposto, a medida de obrigação de apresentações periódicas é desproporcional e desadequada às exigências cautelares que se fazem sentir em concreto, pelo que deverá ser revogada, mantendo-se o TIR, nos termos dos artigos 27.º, 28.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa e artigos 204.º e 212.º do Código de Processo Penal.

NESTES TERMOS

E NOS MELHORES DE DIREITO

SEMPRE COM O DOUTO SUPRIMENTO DE V/EX.ª (S)

Deve conceder-se provimento ao presente recurso, revogando o douto despacho proferido, substituindo-o por outro que determine a revogação da medida de obrigação de apresentações periódicas.

Certos que V. Exas. farão, como sempre, sã e costumeira justiça!

3. Por despacho de 26.06.2018 foi o recurso admitido.

4. Ao recurso respondeu a Digna Procuradora-Adjunta, concluindo:

1. A recorrente vem interpor recurso da decisão proferida nos autos que manteve a medida de coação de obrigação de apresentações periódicas.

2. Alega a recorrente que pelo facto de nos autos ter sido proferida sentença que a condenou pela prática de um crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, na pena de 160 dias de multa à taxa diária de 5,00€, ainda não transitada em julgado, face ao recurso interposto pela arguida, deixaram de existir as circunstâncias que justificaram a aplicação da medida de coação de obrigação de apresentações periódicas, pois entende que deixou de existir o perigo de fuga.

3. Nos autos foi proferida sentença condenatória da arguida, mantendo-se a medida de coação de obrigação de apresentações periódicas, a que a mesma se encontrava sujeita, porquanto aquela não se extinguiu com a prolação da sentença, nos termos do disposto no artigo 214.º do Código de Processo Penal, nem resultam dos autos que o perigo de fuga identificado aquando da sujeição da arguida às medidas de coação tenha deixado de se verificar.

4. A arguida não possui laços com Portugal, onde não tem quaisquer familiares, vive das suas poupanças provenientes da venda de um imóvel na Escócia, sendo auxiliada economicamente pelos seus familiares, que lhe enviam dinheiro quando necessita.

5. A que acresce o facto de arguida na audiência de discussão e julgamento ter declarado que pretende vender a quinta onde reside, o que poderá indiciar que tenciona ausentar-se do País, uma vez que é de nacionalidade estrangeira e, como supra referido, não tem qualquer laço em Portugal.

6. Existindo a real possibilidade de a arguida pretender ausentar-se para Inglaterra, furtando-se ao cumprimento da pena em Portugal, verifica-se o perigo de fuga.

7. Face ao exposto a arguida deverá continuar sujeita à medida de coação de apresentações periódicas, nos termos do disposto nos artigos 191º, 192º, 193º, 198º e 204º, al. a) do Código de Processo Penal, pelo que a decisão recorrida não padece de qualquer vício.

Pelo exposto, mantendo, na íntegra, a decisão recorrida farão V. Exas. justiça.

5. Na Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de dever o recurso proceder.

6. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, a recorrente não reagiu.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presentes as conclusões, pelas quais se delimita e fixa o objeto do recurso, importa decidir se após a prolação da sentença, por da mesma haver recorrido a arguida ainda não transitada em julgado, e que a condenou pelo crime previsto no artigo 254.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal em pena de multa, deveria o tribunal a quo, deferindo o por si requerido, ter revogado a medida de apresentações periódicas aplicada findo primeiro interrogatório judicial.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar do despacho em crise:

A arguida (…) veio requerer a revogação da medida de coação que lhe foi aplicada, por entender que já não se verificam os pressupostos da sua aplicação.

A Digna Magistrada do Ministério Público promoveu a manutenção da medida.

Cumpre decidir

Ora, ao contrário do que invoca a arguida, entende-se que se mantêm inalterados os pressupostos da aplicação da medida de coação de apresentações periódicas.

De facto, como refere a Digna Magistrada do Ministério Público, para além dos fundamentos da decisão que aplicação de coação se manterem, a arguida, na audiência de discussão e julgamento, declarou que pretende vender a quinta onde reside, o que poderá indiciar que tenciona ausentar-se do País, dado que é de nacionalidade estrangeira e não tem qualquer laço com Portugal.

Pelo que, e ao abrigo do disposto nos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 198.º, 204.º, alínea a) do Código de Processo Penal, se indefere a revogação da medida, mantendo-se a mesma.

Notifique.

3. Apreciação

A única questão que vem colocada traduz-se em saber se após a prolação da sentença, por da mesma haver recorrido a arguida, ainda não transitada em julgado, que a condenou pelo crime previsto no artigo 254.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal em pena de multa, deveria o tribunal a quo, deferindo o por si requerido, ter revogado a medida de apresentações periódicas aplicada em 11.02.2017.

Vejamos o que decorre dos presentes autos de recurso em separado.

Na sequência do primeiro interrogatório judicial (artigo 141.º do CPP), ocorrido em 11.02.2017, foi a arguida (…) indiciada pela prática de um crime de Profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, p. e p. no artigo 254.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, tendo-lhe então sido aplicada, para além do termo de identidade e residência, a medida de apresentações (com a periodicidade de vez por semana) no posto da GNR de Celorico da Beira, surgindo a mesma fundamentada no perigo de fuga (artigos 198.º e 204.º, alínea a), do CPP).

Transparece pacífico (no despacho em crise, no requerimento e interposição de recurso e, bem assim, na resposta apresentada pelo Ministério Público), já haver sido proferida nos autos (em 27.02.2018) sentença, ainda não transitada em julgado por da mesma haver recorrido a arguida, nos termos da qual veio esta a ser condenada pelo crime p. e p. no artigo 254.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal em pena de multa.

Em 08.05.2018 a aqui recorrente dirigiu-se ao processo invocando, além do mais, a alteração das circunstâncias que determinaram a aplicação da medida de apresentações periódicas, pondo no atual estado de coisas em causa a respetiva necessidade e adequação, requerendo, convocando para tanto o artigo 212.º do CPP, a sua revogação.

Sobre semelhante pretensão recaiu o despacho acima transcrito, que a recorrente quer ver sindicado.

Quid juris?

Assente que à data da decisão em crise ainda não havia ocorrido o trânsito em julgado da sentença condenatória, por um lado, e que o prazo máximo de duração da medida de coação de apresentações periódicas, tal como previsto no n.º 1 do artigo 218.º do CPP, não se mostrava esgotado, por outro lado, é um facto não se poder falar na respetiva extinção.

Mostrando-se as medidas de coação subordinadas aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade (cf. artigos 18.º da CRP e 193.º do CPP) importa indagar se no caso concreto, uma vez proferida sentença que condenou a arguida numa pena de multa (prevista no tipo incriminador em alternativa à pena de prisão), da qual tão só esta interpôs recurso, deixaram de estar presentes os pressupostos que conduziram à sua imposição.

Como escreve Germano Marques da Silva, as medidas de coação e garantia patrimonial «são meios processuais de limitação da liberdade pessoal ou patrimonial dos arguidos e outros eventuais responsáveis por prestações patrimoniais, que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias» - [cf. Curso de Processo Penal, II, 231/232]. Significa que assegurar a eficácia do procedimento penal, na dupla dimensão do desenvolvimento e da execução, constitui o escopo de qualquer medida de coação. «Um dos pressupostos materiais para a restrição legítima de direitos, liberdades e garantias consiste, pois, no princípio da proporcionalidade (princípio da proibição de excesso) que se desdobra nos princípios da adequação (as medidas restritivas devem ser o meio adequado para a prossecução dos fins visados na lei), da exigibilidade (as medidas restritivas devem revelar-se necessárias) e da proporcionalidade propriamente dita (os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida» não devendo ser as medidas restritivas desproporcionadas, excessivas em relação aos fins pretendidos)» - [cf. Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Código de Processo Penal, Anotado, Vol. I, 3.ª edição, pág. 1221].

Como condições gerais da sua aplicação, a necessidade e a adequação implicam que as medidas de coação sejam reclamadas pelas exigências (estritamente cautelares) que o caso requer, o mesmo é dizer - exceção feita ao termo de identidade e residência – dependentes da verificação dos requisitos enunciados no artigo 204.º do CPP. Donde se segue que se for de concluir que por seu intermédio não se alcança, sequer se facilita, a realização do fim pretendido, ou que da mesma nenhuma eficácia (para a realização das exigências cautelares) pode decorrer, então é o pressuposto da exigibilidade/necessidade que resulta comprometido.

Revertendo ao caso que nos ocupa, em função da natureza da pena imposta à arguida (multa) a qual, nas circunstâncias, por força da proibição da reformatio in pejus (artigo 409.º do CPP) – recorde-se que o recurso pendente à data do despacho em crise foi apenas interposto pela arguida, ora recorrente – não pode sofrer alteração para prisão (tão pouco ser agravada quanto ao tempo correspondente), considerando que com o trânsito em julgado da sentença condenatória se dá a extinção imediata da medida de coação de apresentações periódicas (artigo 214.º, n.º 1, alínea e) do CPP), permanecendo, contudo, a arguida, até à extinção da pena, sujeita às obrigações decorrentes do termo de identidade e residência (artigo 214.º, n.º 1, alínea e) do CPP), afigura-se-nos claro não ser já possível, sem violação dos princípios enunciados, mantê-la.

De facto, extinguindo-se sempre e de imediato a medida (apresentações periódicas) com o trânsito em julgado da sentença condenatória, prejudicada fica a ponderação de uma eventual garantia do cumprimento da pena de multa, sendo certo que o termo de identidade e residência (com o que isso significa em matéria de notificações) se mantém até à extinção da pena.

Na perspetiva deste tribunal não se trata propriamente de uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação da medida em questão (artigo 212.º, n.º 3 do CPP); antes sim de uma situação em que deixaram de subsistir – em consequência do desenvolvimento processual - os condicionalismos legais, desde logo constitucionais, indispensáveis à sua manutenção (alínea b), do n.º 1, do citado artigo 212.º), importando, pois, a respetiva revogação. Com efeito a dupla dimensão reconhecida como o escopo de qualquer medida de coação - assegurar a eficácia do desenvolvimento ou da execução do procedimento penalmostra-se, neste caso, a partir da prolação da sentença, comprometida.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar procedente o recurso interposto pela arguida (…), revogando a medida de coação de apresentação periódica a que se encontra sujeita e, em consequência, o despacho recorrido.

Sem tributação

Coimbra, 14 de Novembro de 2018

[Processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)