Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1248/21.0T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
ILEGITIMIDADE ATIVA
SATISFAÇÃO DO CRÉDITO POR UM GARANTE
GARANTIA AUTÓNOMA
SUB-ROGAÇÃO
Data do Acordão: 11/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 10.º, N.º 5, 53.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – O embargado/exequente não tem legitimidade para intentar ação executiva contra a embargante/executada, com base em livrança exequenda, no interesse de terceiro, que, na qualidade de garante do crédito do exequente (prestou garantia bancária autónoma, assumindo o crédito concedido pelo banco à executada), já liquidou a quantia devida por aquela ao exequente.

II – Liquidada toda a dívida, por parte do garante, ficou este sub-rogado nos direitos do beneficiário da garantia/exequente, com a consequência de este último ter deixado de ser credor da executada, não lhe sendo lícito, por isso, usar a execução para se ressarcir de um crédito que já não detém.

Decisão Texto Integral:

Relator: Arlindo Oliveira
Adjuntos: Emídio Francisco Santos
Catarina Gonçalves

            Processo n.º 1248/21.0T8VIS-A.C1 – Apelação

            Comarca de Viseu, Viseu, Juízo de Execução

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhe move o Banco BPI, SA, veio AA, ambos já identificados nos autos, deduzir os presentes embargos de executado, peticionando a extinção da mesma.

Para tanto, alega, em síntese, o seguinte:

por carta registada, datada de 23.12.2020, a Norgarante - Sociedade de Garantia Mútua, S.A. comunicou à executada que, a solicitação expressa do exequente, lhe havia pago – nesse mesmo dia – a quantia de € 5.327,00; valor sujeito a garantia prestada, prevista no considerando c) e cláusula 10ª, nº 1, do Contrato de Empréstimo – Linha de Crédito de Apoio ao Empreendedorismo e à Criação do próprio emprego celebrado entre exequente e executada em 30 de Maio de 2018, relação/obrigação subjacente à livrança agora pretendida dar à execução;

nos termos do disposto no art.º 644º do C.C., a Norgarante passou a estar sub-rogada nos direitos do exequente Banco B.P.I., S.A., por todos os montantes que pagou ao beneficiário, em cumprimento da garantia e nos termos nela estabelecidos; mais interpelando a executada para proceder ao pagamento de tal quantia até 31 de Dezembro de 2020; a executada encetou contactos com a Norgarante, dando conhecimento disso ao Balcão de ... do exequente, no sentido de ser alcançado um acordo de pagamento em prestações que lhe permitisse liquidar a sua dívida; acordo, esse, que foi alcançado em finais do mês de Janeiro de 202, ficando convencionado entre as partes – com o pleno conhecimento do exequente – que a executada pagaria a quantia mensal de € 50,00 à Norgarante (sem necessidade de dia específico), através de depósito bancário a efetuar junto do Balcão de ... do exequente, na conta da Norgarante cujos dados lhe foram facultados para o efeito; tendo a executada efetuado vários depósitos; a execução surge como violação do acordo extrajudicial alcançado com a Norgarante, credora que manifestamente ingressou na posição do exequente;

o exequente terá abusivamente incumprido o respetivo pacto de preenchimento da livrança; o preenchimento da livrança pelo exequente, nos termos em que aconteceu, sempre constituiria um manifesto e censurável abuso de direito, atenta a circunstância de o exequente estar integralmente pago do seu crédito, tendo a sociedade Norgarante assumido a sua posição de credora; pela executada não é devida qualquer quantia ao exequente, seja a que título for.

 

O exequente/embargado apresentou contestação com o seguinte teor:

subjacente ao processo executivo, está um Contrato de Empréstimo, na modalidade de Linha de Crédito de Apoio ao Empreendorismo e à Criação do próprio emprego, com garantia mútua; foi concedido à Embargante um empréstimo, sob a forma de abertura de crédito, no montante global de € 5.327,00 (cinco mil, trezentos e vinte sete euros); o reembolso do capital seria feito no prazo de 84 (oitenta e quatro) meses, em 60 (sessenta) prestações, mensais e sucessivas, após decorrido um período de carência de capital de 24 (vinte e quatro) meses, conforme Cláusula Quinta do Contrato (Doc. 1);

a Embargante deixou de cumprir com as obrigações inerentes ao Contrato celebrado e, apesar de interpelada, não regularizou a situação, pelo que em 18.11.2020 foi o contrato resolvido através de comunicação escrita; neste seguimento, o Exequente requereu junto da NORGARANTE o acionamento da garantia, solicitando o pagamento do capital em dívida, no montante de € 5.327,00;

por sua vez, a Embargante não regularizou a situação junto da NORGARANTE, pelo que, nos termos do contrato e conforme comunicado à Embargante a 23.12.2020, caso não regularizasse a situação junto da NORGARANTE, “o Banco BPI, S.A., em nome da Norgarante – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., procederá à execução judicial correspondente para cobrança dos montantes em dívida acrescidos dos juros moratórios que sejam devidos, além de procedermos à comunicação dos valores devidos como responsabilidades efetivas para efeitos da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal.”, razão pela qual o assunto foi entregue ao Departamento de Contencioso do banco BPI; a 21.01.2021, a livrança que a Embargante deu como garantia, foi preenchida pelo montante de € 5.874,52;

encontra-se o Embargado legitimado a preencher a livrança que a Embargante subscreveu e entregou em branco, pelo que, salvo melhor entendimento, não poderá proceder a alegação de que o Banco preencheu abusivamente a livrança; verifica-se a inexistência de acordo formal entre a Embargante e a NORGARANTE; a haver algum tipo de acordo de regularização de dívida, deveria ser com o Exequente, ora Embargado, uma vez que foi o mesmo incumbido de proceder à recuperação do crédito em causa; no entanto, houve pagamentos voluntários por conta da dívida, no montante de € 150,00 (cento e cinquenta euros), realizados diretamente à NORGARANTE por parte da Embargante.

Teve lugar a realização da audiência prévia, no decurso da qual, foi proferido despacho sanador tabelar e se considerou que os autos dispunham de todos os elementos para se conhecer do seu mérito.

Conclusos os autos à M.ma Juiz a quo foi proferida a decisão de fl.s 56 a 60, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se julgaram os embargos totalmente procedentes e, em consequência, foi determinada a extinção da instância da acção executiva de que os mesmos são apenso, ficando as custas a cargo do exequente/embargado.

Inconformado com a mesma, interpôs recurso o exequente/embargado BPI, SA, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 71), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

A) Vem o presente recurso de apelação interposto da Douta Sentença proferida nos Embargos à margem identificados, em que obteve a seguinte decisão:

“Sendo esta a situação dos autos, afigura-se que não podia a exequente preencher e executar a livrança nos moldes em que o fez, pois, satisfeito o seu crédito por terceiro, até pelos termos do contrato, a este terceiro pertence o direito de, por sub-rogação, acionar a embargante, utilizando o título (livrança) que o contrato conferia.

Verifica-se, pois, uma situação de ilegitimidade substantiva da exequente, pois que já não é titular da relação jurídica subjacente à livrança, em moldes que lhe permitam a respetiva cobrança coerciva;

B) Nos termos do artigo 631.º do Código de Processo Civil, podem recorrer da Sentença os que directa e efectivamente forem prejudicados pela decisão.

C) Na realidade, o processo teve origem em Requerimento Executivo interposto pelo aqui Recorrente, para pagamento de quantia certa, referente ao título de crédito em apreço.

D) Conforme se expôs, subjacente ao processo está um Contrato de Empréstimo, na modalidade de Linha de Crédito de Apoio ao Empreendorismo e à Criação do próprio emprego, com garantia mútua, contrato que assumiu a escrita ...02

E) O Contrato celebrado entre Recorrente e Recorrida, tinha como propósito criar as condições favoráveis para o acesso ao crédito bancário por parte de desempregados que pretendessem criar novas empresas, como foi o caso da aqui Recorrida.

F) Em face do exposto, foi concedido à Recorrida, um empréstimo, sob forma de abertura de crédito, no montante global de € 5.327,00 (cinco mil, trezentos e vinte sete euros).

G) O reembolso do capital supra referido seria feito pela Recorrida, no prazo de 84 (oitenta e quatro meses), em 60 (sessenta) prestações, mensais e sucessivas, após decorrido um período de carência de capital de 24 (vinte e quatro) meses, conforme Cláusula Quinta do Contrato junto com os autos.

H) Com efeito, decorrente da Sentença proferida nos autos, ficou provado que:

(…)

I) Conforme se retira tanto dos autos principais, o contrato foi celebrado, tendo associado a si uma garantia autónoma, prestada pela Norgarante – Sociedade de Garantia Autónoma, S.A..

J) A garantia autónoma é, no essencial, um contrato outorgado entre o mandate da garantia e o garante, a favor de um terceiro, o beneficiário, só podendo o garante opor a este as excepções que constem do próprio texto da garantia, mas já não as derivadas da relação contratual que está na base daquela.

K) A questão aqui em causa, é saber se o Banco BPI, S.A., aqui Recorrente, tem legitimidade para intentar a acção executiva para pagamento de quantia certa, para recuperação do valor aposto na livrança dada à execução.

L) Tal questão só se levanta, uma vez que, conforme consta do contrato de garantia mútua, o Banco BPI, S.A. acionou a garantia e foi ressarcido do montante em causa.

M) A acção executiva para pagamento de quantia certa, teria que ser intentada pela Norgarante – Sociedade de Garantia Mútua, S.A.?

N) Entende o aqui Recorrente que não, senão vejamos,

O) O contrato celebrado entre o Recorrente e a aqui Recorrida, consubstancia um contrato de crédito, porquanto visava a criação de próprio emprego, conforme alínea c) do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 133/2009, nos termos do qual:

“c) «Contrato de crédito» o contrato pelo qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartão de crédito, ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante;”

P) “A garantia bancária (autónoma) é comummente considerada como um negócio legalmente atípico, mas socialmente típico, aceite no nosso ordenamento jurídico em consequência do princípio da liberdade contratual, consagrado no artigo 405.º do Código Civil, segundo o qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiros, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (contrato-base), sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse contrato.” – Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo 140341/18.2YIPRT.L1.

Q) A garantia bancária autónoma distingue-se da fiança, na medida em que a obrigação do garante não se molda sobre a obrigação principal, quer quanto ao seu objecto, quer quanto aos pressupostos da sua exigibilidade, instituindo antes uma obrigação própria, em tudo distinta do devedor.

R) Dos autos resultou provado que o ora Recorrente recebeu, por parte da Norgatante – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., o montante de € 5.327,00 (cinco mil trezentos e vinte sete euros), a título de 100% do capital.

S) Por outro lado, nos termos do contrato junto aos autos, nomeadamente da do número 2 da Cláusula Décima, temos o pacto de preenchimento da livrança, nos termos do qual:

“Ainda em garantia do integral e tempestivo cumprimento das obrigações para a Mutuária do presente contrato, assim como as obrigações assumidas perante as SGM’s e o IEFP, I.P., a Mútuária entregou ao Banco, uma livrança por si devidamente subscrita, com montante e data de vencimento em branco, ficando o Banco desde já irrevogavelmente autorizado a, também no seu interesse, efectuar o respectivo preenchimento integral e assim formar o correspondente título de crédito, se o contrato for rescindido ao abrigo da Cláusula Décima Segunda infra.

(a) fixando-lhe a data de emissão, correspondente à data em que o Banco efectue o preenchimento, a data de vencimento, que ocorrerá 10 dias após a data de emissão, e o montante, correspondente a tudo quanto, naquela data de vencimento, constituir o crédito do Banco, da SGM’s e do IEFP, I.P., incluindo os encargos referidos no ponto seguinte. (…)”

T) Em face do supra exposto, o Banco ficou irrevogavelmente autorizado a preencher a livrança, quer fosse no seu interesse directo ou ainda no interesse das SGM’s ou IEFP, I.P., com base nos valores que constituíssem o crédito, quer do Banco, como das SGM’s ou ainda do IEFP, I.P.

U) A formulação do contrato celebrado entre o Recorrente e a Recorrida, confere a o Banco BPI, S.A. a legitimidade para a recuperação do crédito, por via judicial ou extrajudicial, consubstanciando um caso em que o Recorrente se obrigou a proporcionar à outra parte certo resultado, nos termos do artigo 1154.º do Código Civil

V) Desta forma, o Banco BPI, S.A. encontra-se mandato pela Norgarante – Sociedade de Garantia Mútua, S.A. a prestar serviços de recuperação de crédito, conforme Cláusula Décima do contrato celebrado com a Recorrida, o que efectivamente fez.

W) Por outro lado, a Recorrida, em sede de Contestação, em momento algum alegou o desconhecimento dos termos do contrato.

X) Em face de tudo quanto foi supra exposto, é entendimento que do Recorrente que tem legitimidade para intentar acção executiva contra a Recorrida para pagamento de quantia certa, tendo por base a livrança junto os autos.

Como é de Lei e de,

JUSTIÇA!

Contra-alegando, a embargante/executada, pugna pela manutenção da decisão recorrida, aderindo aos fundamentos na mesma expendidos.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se o embargado/exequente tem legitimidade para intentar acção executiva contra a embargante/executada, com base na livrança exequenda, no interesse da Norgarante, que, na qualidade de garante do crédito do exequente, já liquidou a quantia devida pela embargante/executada ao ora embargado/exequente.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1- No dia 30 de março de 2021 o exequente Banco B.P.I., S.A., instaurou execução contra a executada AA, ora embargante, peticionando o pagamento pela mesma da quantia de € 5.912,53 (cinco mil novecentos e doze euros e cinquenta e três cêntimos);

2- No requerimento inicial executivo, a exequente alega o seguinte: “(…)1. No âmbito da sua atividade bancária o Exequente é dono e legítimo portador de uma livrança, a qual foi subscrita pelo ora Executado AA, dada em garantia do contrato de empréstimo n. ...02, no valor de € 5.874,52 €, emitida a 21.01.2021 e vencida no dia 01.02.2021 (Cfr. Doc. 2 que ora se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais). 2. Apresentada a pagamento, a referida livrança não foi paga na data do respetivo vencimento, nem posteriormente pelo Executado apesar de por diversas vezes instado a fazê-lo. 3. Nos termos do disposto nos art.ºs 28º, 47º, 48º, 77º e 78º da Lei Uniforme Relativa a Letras e Livranças e art.º 4º do Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de Junho, o Executado é responsável pelo pagamento ao Exequente, não só do valor da livrança mas também dos juros de mora legais, calculados sobre o valor de capital, à taxa anual de 4% desde a data de vencimento até efetivo e integral pagamento. 4. Assim, na presente data os juros de mora ascendem a € 36,55, acrescendo igualmente e o montante de € 1,46 a título de imposto de selo a entregar aos cofres do Estado. 5. Na presente data o Executado deve a quantia global de € 5 912,53, valor ao qual acrescem os juros de mora que se vencerem desde a entrada da presente ação, até efetivo e integral pagamento, calculados à referida taxa de 4%, bem como imposto de selo a entregar aos cofres do estado. 6. A livrança consubstancia título executivo, nos termos da alínea c) do n.º1 do artigo 703º do Código de Processo Civil. O Tribunal é competente, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 89º do C.P.C. 7. A dívida é certa, líquida e exigível. 8. As custas da execução, incluindo honorários e despesas de agente de execução saem precípuas do produto de bens penhorados, nos termos do disposto no artigo 541.º do CPC. 9. O Exequente intentou Procedimento Extrajudicial Pré- Executivo com o nº 6928/21...., o qual neste ato é convolado em ação executiva, face aos bens que foram identificados nas consultas realizadas. (…)”;

3- No processo referido em 1, a exequente, ora embargada apresentou como título executivo uma livrança emitida em 21.01.2021, com o valor de € 5.874,52 (cinco mil oitocentos e setenta e quatro euros e cinquenta e dois cêntimos), com data de vencimento de 01.02.2021, subscrita pela executada/embargante, com a indicação de garantia do empréstimo n.º ...02;

4- Subjacente à livrança dada à execução está a celebração, em 30.05.2018, entre o exequente e a executada, ora embargante, de um acordo escrito denominado “Contrato de Empréstimo – Linha de Crédito de Apoio ao Empreendorismo e à Criação do próprio emprego”, do qual consta, além do mais, o seguinte: “ (…) Primeira (Montante) O Banco, pelo presente contrato, concede à Mutuária um Empréstimo, sob a forma de abertura de crédito, no montante global de € 5.327,00, obrigando-se esta a promover o respetivo reembolso nos termos estipulados no presente contrato. (…) Quinta (Reembolso) 1. O reembolso do capital objecto do presente Empréstimo, será feito pela Mutuária, no prazo de 84 meses em 60 prestações mensais, iguais e sucessivas, no montante unitário, que resulta da divisão do capital do empréstimo pelo número de prestações, vencendo-se a primeira no dia 30 de junho de 2020, isto é decorrido um período de carência de capital de 24 meses contados a partir da data de celebração do presente contrato. (…) Décima (Garantias) 1. No âmbito da Linha MICROINVEST, por englobar apenas operações de microcréditos até € 15.000.000.00, ficou protocolado que as SGM’s emitiram em conjunto uma única garantia autónoma, designada habitualmente de garantia de carteira, para cobertura de 100% o capital em dívida de cada um dos empréstimos contratados pelo Banco ao abrigo da Linha MICROINVEST com uma taxa de cobertura máxima (cap rate) de 30% do crédito efetivamente concedido. 2. Ainda em garantia do integral e tempestivo cumprimento das obrigações decorrentes para a Mutuária do presente contrato, assim como as obrigações assumidas perante as SGM´s e o IEFP, I.P., a Mutuária entregou ao Banco, uma livrança por si devidamente subscrita, com montante e data de vencimento em branco, ficando o Banco desde já irrevogavelmente autorizado a, também no seu interesse, efctuar o respetivo preenchimento integral e assim formar o correspondente título de crédito, se o contrato for rescindido ao abrigo da Cláusula Décima Segunda infra. (…) Décima Segunda (Resolução) 1. O Banco poderá, mediante simples declaração escrita dirigida à Mutuária: (i) resolver o presente contrato, ou declarar o vencimento antecipado e imediato da obrigação de reembolso dos fundos mutuados e das demais obrigações emergentes do contrato e (ii) exigir, em qualquer dos casos, o pagamento imediato de todos os montantes que, consequentemente, sejam devidos, ficando a Mutuária obrigada a fazê-lo, caso a Mutuária deixe de cumprir pontualmente qualquer das obrigações, a que fica vinculada nos termos do presente contrato ou, ainda, se qualquer declaração feita ou a efectuar pela Mutuária, no presente contrato, for ou tiver sido falsa ou inexacta. (…)”;

5- Por carta registada, datada de 23 de dezembro de 2020, a Norgarante – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., comunicou à executada/embargante que, a solicitação expressa do exequente lhe havia pago, nesse mesmo dia, a quantia de € 5.327,00 (cinco mil trezentos e vinte e sete euros), quantia que efetivamente pagou;

6- Valor esse sujeito a garantia prestada por tal entidade no âmbito do acordo referido em 4;

7- A Norgarante interpelou a executada para proceder ao pagamento de tal quantia até ao dia 31 de dezembro de 2020.

Se o embargado/exequente tem legitimidade para intentar acção executiva contra a embargante/executada, com base na livrança exequenda, no interesse da Norgarante, que, na qualidade de garante do crédito do exequente, já liquidou a quantia devida pela embargante/executada ao ora embargado/exequente.

Como resulta do anteriormente exposto, o recorrente pugna pela improcedência dos embargos, com o fundamento em que constando do n.º 2 da Cláusula Décima do Contrato de Empréstimo que subjaz aos presentes autos que o banco foi autorizado a, também no interesse da garante, a preencher a livrança, incluindo este crédito (e outros ali identificados), foi mandatada por eles para recuperar os seus créditos, nos termos do disposto no artigo 1154.º do Código Civil.

Não está em causa, como o recorrente refere nas suas alegações, que a Norgarante prestou uma garantia bancária autónoma, assumindo o crédito concedido pelo banco à executada.

Como dúvidas inexistem de que esta incumpriu o contratado.

E foi na sequência deste incumprimento que o banco interpelou o garante para lhe pagar a quantia em dívida, o que assim sucedeu, cf. itens 5.º e 6.º, dos factos provados.

Ou seja, neste momento, por via do contrato que celebrou com a executada, o exequente não detém qualquer crédito sobre a executada, cuja titularidade, do lado activo, passou para a Norgarante, que disso informou a executada e, por via da sub-rogação, lhe solicitou o pagamento da quantia em dívida, cf. carta de fl.s 13 e 14.

Tudo isto, é aceite pelo ora recorrente.

Não obstante, com fundamento no clausulado no n.º 2 da Cláusula 10.ª do Contrato de Empréstimo, defende o mesmo que continua a ter legitimidade (mais, a estar obrigado) para recuperar o crédito, de que já não é detentor, por o mesmo já lhe ter sido pago pela garante, nos termos do disposto no artigo 1154.º do Código Civil, que regula o contrato de prestação de serviços.

Não podemos sufragar esta pretensão.

Efectivamente, de acordo com o disposto no artigo 10.º, n.º 5, do CPC “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva”.

É sabido que a acção executiva tem por finalidade a reparação efectiva dum direito violado e não a previsão de um direito violado, já estando resolvidas as dúvidas que possam haver sobre a existência e a configuração do direito exequendo – neste sentido, entre outros, Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois Da Reforma, 4.ª Edição, pág.s 7 a 14.

Relativamente à legitimidade em processo executivo, rege o disposto no artigo 53.º, n.º 1, do CPC, de acordo com o qual “A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor”.

Como refere Rui Pinto A Ação Executiva, 2018, pág. 278, no domínio da determinação da legitimidade da acção executiva “Apela-se, assim, à literalidade do título executivo, seja ele sentença, contrato, título de crédito ou qualquer outro. Num certo sentido, a legitimidade singular apura-se por confronto entre o título executivo e as partes da causa”.

 Acrescentando, a pág.s 281/2 que, no caso o título consistir numa garantia bancária autónoma, como é o caso, “O título executivo, pelo qual se buscará o devedor, será o contrato, será o contrato de constituição dessa garantia”.

E, acrescentamos nós que, de igual forma, se terá de encontrar o credor, no caso de o garante já ter satisfeito a dívida ao beneficiário dessa garantia, substituindo-se ao terceiro (devedor).

Ora, tendo sido, como foi liquidado todo o crédito que o BPI detinha sobre a executada, por parte da garante, ficou esta sub-rogada nos direitos do beneficiário da garantia, no caso, o ora exequente, em face do que se impõe concluir que este não é credor da executada, não lhe sendo lícito usar a posição de exequente para se ressarcir de um crédito que já não detém.

O que ora se deixou exposto, em nossa opinião, é o bastante para manter a decisão recorrida e a consequente procedência dos embargos.

No entanto, como o exequente apela o teor do n.º 2 da referida Cláusula 10.ª, dele retirando a conclusão de que se obrigou a ressarcir, a favor de terceiros, o crédito em dívida, não deixará de se referir mais o seguinte.

A interpretação das declarações negociais rege-se pelo disposto nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil.

Ora, atendendo aos critérios ali consagrados não poderá entender-se o teor de tal cláusula como permitindo que o banco possa agir apenas no interesse de terceiros.

O que ali consta é que o banco ficou autorizado, também (sublinhado nosso) a preencher a livrança, incluindo os créditos dos garantes e IEFP. O que pressupõe, fora de dúvidas, que se mantenha o seu próprio crédito, o que se reforça atento o teor da sua alínea a), em que se alude ao que “constituir o crédito do Banco, da SGM´s e do IEFP, IP”.

Ou seja, mesmo na interpretação do exequente, seria necessário que o mesmo ainda tivesse algum crédito sobre a executada, o que não sucede.

Todavia, reitera-se, a falta de legitimidade do exequente resulta do disposto no artigo 53.º, n.º 1, do CPC, uma vez que o banco já não é credor da executada.

Consequentemente, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 22 de Novembro de 2022.