Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
507/19.6T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE DANOS
SUBSEGURO
Data do Acordão: 06/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LAMEGO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 24.º, 49.º, N.º 2, 128.º, 131.º, N.º 2 E 134.º, TODOS DA LEI DO CONTRATO DE SEGURO
Sumário: I - A aceitação, pela seguradora, da proposta apresentada pelo tomador de seguro com indicação do capital seguro, não constitui convenção expressa para fixação do valor da coisa uma vez que “não existe um dever geral de verificação dessa exatidão por parte do segurador”, devendo a seguradora avaliar o valor do bem à data do sinistro.

II - Sendo o valor do capital seguro inferior ao valor da coisa, existindo, assim, uma situação de subseguro, não existindo convenção em contrário, a seguradora só responderá pelo dano, na proporção entre o valor do interesse em risco e o valor do capital seguro, deduzido do valor da franquia acordada.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO


F... LDA., intentou a presente acção contra C...SA,

Peticionando a sua condenação no pagamento de 5.658,00 euros e respectivos juros de mora desde a citação até integral pagamento, pelos danos provocados sofridos num armazém de sua propriedade e respectivo recheio, cobertos por contrato de seguro multirriscos celebrado com a R.


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Citada, a Ré contestou, aceitando a existência de contrato válido à data do sinistro, a existência do sinistro e respectivo valor e a sua responsabilidade, mas considerando que se verifica uma situação de sub-seguro, pelo que deve ser aplicada a regra da proporcionalidade, de acordo com o disposto nas cláusulas gerais 18º e 19ª do contrato celebrado.

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A A. veio apresentar resposta à matéria da excepção de existência de sub-seguro, alegando que aquando da contratação indicou todas as características do imóvel, que a área por eles referida de 90m2 para a dita proporcionalidade, não consta de lado nenhum e que o valor patrimonial do imóvel não foi condição para o seguro, nunca lhe sendo dito que existia sub-seguro.

Mais alegou que a Ré não o informou da possibilidade de aplicação da regra do sub-seguro, pelo facto do imóvel ter valor superior, violando os deveres de informação.


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Foi proferido despacho saneador, identificando-se o objeto do litígio, enunciando-se os temas da prova, e admitindo-se a prova apresentada pelas partes, após o que teve lugar a audiência final, sendo proferida sentença na qual se julgou parcialmente provada a ação e, em consequência se condenou “a Ré a pagar à A. a quantia global de 4.500,00€, correspondente ao limite do capital seguro, menos a franquia acordada, acrescida de juros de mora desde a citação.


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Não conformada com esta decisão, impetrou a R. recurso da mesma relativamente à matéria de direito, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

“1º- A sentença recorrida não decidiu corretamente ao não aplicou a regra da proporcionalidade, sendo que, no presente caso, estamos perante um caso de subseguro;

2º- O valor indicado, pelo segurado, como capital seguro foi de € 5.000,00;

3º- O valor do imóvel, que sofreu os danos, que foi avaliado em € 22.500,00;

4º- O valor dos danos ascende a € 4.600,00;

5º- A Ré assumiu indemnizar a Autora, aplicando a regra proporcional, prevista na Cláusula 19ª das Condições Gerais da Apólice, em virtude do capital seguro ser inferior ao valor em risco;

6º- A Ré propôs à Autora a indemnização de € 920,00, calculada da seguinte forma: € 5.000,00 : € 22.500,00 x € 4.600,00 - € 102,22 (da franquia);

7º- Nos termos do contrato, o Capital Seguro indicado foi de 5.000,00 €, pelo que o coeficiente seguro é de 22%, conforme resulta dos docºs 3 e 4, juntos com a contestação da recorrente;

8º- Dispõe a CLÁUSULA 19.ª - INSUFICIÊNCIA OU EXCESSO DE CAPITAL:

1 - Salvo convenção em contrário, se o capital seguro pelo presente contrato for, na data do sinistro, inferior ao determinado nos termos dos n.ºs 2 a 4 da cláusula anterior, o Segurador só responde pelo dano na respetiva proporção, respondendo o Tomador do Seguro ou o Segurado pela restante parte dos prejuízos como se fosse Segurador.

9º- O capital do seguro de € 5.000,00, indicado pela Autora, era inferior ao valor de reconstrução e ao valor do imóvel seguro, avaliado em € 22.500,00, estando-se perante uma situação de sub-seguro, sendo de aplicar a regra proporcional, o que determina a obrigação da Ré de suportar apenas 22% do valor dos danos;

10º- O valor do capital seguro é indicado livremente pelo tomador do seguro, indicação essa da sua responsabilidade;

11º- O seguro em causa tinha a duração de um ano, renovando-se automaticamente, sendo que, sempre que ocorria essa renovação, a tomadora do seguro, ao receber as respetivas condições particulares, juntamente com o aviso para pagamento do prémio de seguro, tomava

conhecimento de que o valor do capital seguro mantinha-se inalterado, ou seja, em € 5.000,00,

ficando, desta forma, cumprido o nº 2 da Cláusula 19º, das Condições Gerais e Especiais da Apólice;

12º- Uma vez que o capital seguro (€ 5.000,00) era inferior ao valor em risco (do imóvel seguro - € 22.500,00), ao valor dos prejuízos (€ 4.600,00), tem que ser aplicada a regra proporcional, de acordo com a cláusula 19ª das Condições Gerais e Especiais da Apólice, pois estamos perante uma situação de sub-seguro.

13º- Em face do exposto a recorrente só poderá ser responsável pelo pagamento à Autora do montante de € 920,00 (€ 5.000,00 : € 22.500,00 x € 4.600,00 - € 102,22);

14º-Ao não aplicar a regra de proporcionalidade, em face da insuficiência do capital seguro, a sentença recorrida violou, entre outras, as normas contantes do artº 49º, nº 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, bem como as Cláusulas 18º e 19º, das Condições Gerais e Especiais da Apólice.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, revogando-se a decisão recorrida, proferindo-se decisão que tenha em consideração o ora alegado.”


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A A. interpôs contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.

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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Nestes termos, a única questão a decidir que delimita o objecto deste recurso, consistem em apurar:

a) Da existência de sub-seguro e suas consequências jurídicas;


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

1) Mostra-se inscrito na matriz e registada a aquisição favor da A. um prédio misto, sito na ..., união de freguesias ... e ..., concelho ..., composto por armazém, inscrito na matriz da referida freguesia sob o art. ...62º, e descrito na CRP ... sob o n.º 255/19....

2) Prédio esse que se destina a armazenar bens e produtos inerentes à atividade da Autora, nomeadamente para guardar produtos que vende na sua loja, como tintas, ferragens, ferramentas, materiais de construção, entre outros.

3) No sentido de transferir a responsabilidade infortunística - adveniente de prejuízos ou danos que pudessem vir a ser causados no prédio e nos bens que ali possui e que fossem provocados por incêndio, queda de raio e explosão, tempestades, inundações, greves, tumultos e alterações de ordem pública, atos de vandalismo ou de sabotagem, atos de terrorismo, aluimentos de terras, choque ou impacto de objetos sólidos ou animais, danos por água, pesquisa, reparação e reposição por avarias, danos acidentais a canalizações subterrâneas de água, de gás e em cabos elétricos, danos em jardins, muros e vedações, quebra de vidros, derrame acidental de óleo, bens refrigerados, danos em bens do senhorio, quebra ou queda da antenas de tv, tsf e painéis solares, danos estéticos para edifício, riscos elétricos, furto ou roubo, danos à propriedade por roubo, assalto fora de casa, fenómenos sísmicos, gastos originados por sinistro - celebrou em 1 de Junho de 2017, com a C...SA, nas instalações do ..., um contrato de seguro multirriscos empresas, titulado pela apólice n.º ...09, por um ano, renovável por iguais períodos.

4) Durante a vigência deste contrato, após renovação, mais precisamente em 28 de fevereiro de 2018, parte do prédio da autora – um anexo - sofreu vários danos, em consequência do temporal que se verificou nessa noite, com ventos fortes e chuvas.

5) Os ventos que se fizeram sentir foram de tal forma fortes que acabaram por provocar o levantamento de várias chapas do telhado do armazém, chegando algumas a ser mesmo arrancadas e outras ficaram bastante tortas e danificadas, tendo inclusive arrancado a antena de TV que estava colocada no telhado.

6) Para além dos estragos que o vento provocou, as chuvas fortes que se sentiram, e em consequência dos estragos provocados no telhado do armazém, as águas pluviais acabaram por se infiltrar para o seu interior, danificando as paredes e tintas.

7) A Autora, efetuou a respetiva participação junto da Ré.

8) Tendo sido efetuada a peritagem por perito enviado pela Ré.

9) Nessa vistoria, além de confirmar os danos, o Sr. Perito requereu a discriminação dos danos e solicitou a entrega de diversos documentos, o que a Autora cumpriu.

10) Tendo inclusive apresentado orçamento para a reparação dos prejuízos causados, no valor de 4.600,00 euros, acrescido de IVA o que perfaz o total de 5.658,00 euros.

11) A Ré mandou proceder a averiguações, tendo concluído que o valor da reparação do imóvel era de 22.500€, atendendo à sua utilização e área.

12) Em 15 de Março de 2018, a Ré comunicou à Autora, que aceitava a responsabilidade pela ocorrência do sinistro, assim assumindo expressamente a obrigação contratual de indemnizar a Autora pelos danos sofridos, que confirmavam e apuravam como de 4.600,00 euros, acrescido de IVA, mas não assumiam liquidar a totalidade dos prejuízos, propondo-se a indemniza-la pelo valor de apenas 1.022,22 euros, descontando ainda a franquia.

13) Inconformado com aquela situação, a Autora, através de carta enviada pelo seu mandatário, tentou ser ressarcido da totalidade dos danos, porém a Seguradora manteve a sua posição.


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4.2 – Factos não provados

a) Aquando da celebração do contrato ou da sua renovação do contrato de seguro a Ré informou a A. de que só responderia pelo dano na respetiva proporção do valor do imóvel a considerar para efeitos de indemnização de perda total e dos critérios da atualização para que não se verificasse insuficiência de capital.

b) Aquando da celebração do contrato a A. entregou a certidão matricial do imóvel e esse elemento foi-lhe solicitado.”


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Não impugnada a matéria de facto, entende este tribunal, fazendo uso dos poderes que lhe estão cometidos por via do disposto no artº 662 nº1 do C.P.C., por resultarem de documento não impugnado pelas partes e serem essenciais à boa decisão da causa, aditar as clausulas relevantes da apólice de seguro, referida no ponto 2:

14-Nas condições particulares da apólice nº ...09, fez-se consignar o seguinte:

CLAUSULAS ESPECIAIS

Clausula de actualização convencionada:00%

Valor de substituição em novo: não.

15-Nas condições gerais anexas a esta apólice, fez-se consignar as seguintes clausulas:

CLÁUSULA 2.ª - OBJECTO E GARANTIAS DO CONTRATO

1 - O presente contrato destina-se a cumprir a obrigação de segurar os edifícios constituídos em regime de propriedade horizontal, quer quanto às fracções autónomas, quer relativamente às partes comuns, que se encontrem identificados na Apólice, contra o risco de incêndio, ainda que tenha havido negligência do Segurado ou de pessoa por quem este seja responsável.

2 - Para além da cobertura dos danos previstos no número anterior, o presente contrato garante igualmente os danos causados no bem seguro em consequência dos meios empregados para combater o incêndio, assim como os danos derivados de calor, fumo, vapor ou explosão em consequência do incêndio e ainda remoções ou destruições executadas por ordem da autoridade competente ou praticadas com o fim de salvamento, se o forem em razão do incêndio ou de qualquer dos factos anteriormente previstos.

3 - Salvo convenção em contrário, o presente contrato garante ainda os danos causados por acção mecânica de queda de raio, explosão ou outro acidente semelhante, mesmo que não acompanhado de incêndio.

(…)

CLÁUSULA 4.ª - DEVER DE DECLARAÇÃO INICIAL DO RISCO

1 - O Tomador do Seguro ou o Segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo Segurador.

2 - O disposto no número anterior é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo Segurador para o efeito.

3 - O Segurador que tenha aceitado o contrato, salvo havendo dolo do Tomador do Seguro ou do Segurado com o propósito de obter uma vantagem, não pode prevalecer-se:

a) Da omissão de resposta a pergunta do questionário;

b) De resposta imprecisa a questão formulada em termos demasiado genéricos;

c) De incoerência ou contradição evidente nas respostas ao questionário;

d) De facto que o seu representante, aquando da celebração do contrato, saiba ser inexacto ou, tendo sido omitido, conheça;

e) De circunstâncias conhecidas do Segurador, em especial quando são públicas e notórias.

4 - O Segurador, antes da celebração do contrato, deve esclarecer o eventual Tomador do Seguro ou o Segurado acerca do dever referido no n.º 1, bem como do regime do seu incumprimento, sob pena de incorrer em responsabilidade civil, nos termos gerais.

(…)

CLÁUSULA 18.ª - CAPITAL SEGURO

1 - A determinação do capital seguro, no início e na vigência do contrato, é sempre da responsabilidade do Tomador do Seguro, devendo atender, na parte relativa ao Bem Seguro, ao disposto nos números seguintes.

2 - O valor do capital seguro para edifícios deve corresponder, ao custo de mercado da respectiva reconstrução, tendo em conta o tipo de construção ou outros factores que possam influenciar esse custo, ou ao valor matricial no caso de edifícios para expropriação ou demolição.

3 - À excepção do valor dos terrenos, todos os elementos constituintes ou incorporados pelo proprietário ou pelo titular do interesse seguro, incluindo o valor proporcional das partes comuns, devem ser tomados em consideração para a determinação do capital seguro referido no número anterior.

4 - Salvo convenção em contrário, sendo para habitação o imóvel seguro, o seu valor, ou a proporção segura do mesmo, é automaticamente actualizado de acordo com os índices publicados para o efeito pela Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, nos termos da Condição Especial 01.

CLÁUSULA 19.ª - INSUFICIÊNCIA OU EXCESSO DE CAPITAL

1 - Salvo convenção em contrário, se o capital seguro pelo presente contrato for, na data do sinistro, inferior ao determinado nos termos dos n.ºs 2 a 4 da cláusula anterior, o Segurador só responde pelo dano na respetiva proporção, respondendo o Tomador do Seguro ou o Segurado pela restante parte dos prejuízos como se fosse Segurador.

(…)

16-Desta apólice constam ainda as seguintes clausulas especiais:

CLÁUSULA PRELIMINAR

Das Condições Especiais a seguir indicadas só são aplicáveis as que forem expressamente mencionadas nas Condições Particulares do contrato, regendo-se as mesmas pelas respectivas cláusulas e, à excepção das Condições Especiais 01 e 02, em tudo o que não se encontre aí previsto, sucessivamente, pelas cláusulas das Partes II e I das Condições Gerais.

01. ACTUALIZAÇÃO INDEXADA DE CAPITAIS

1 - Sem prejuízo do previsto na cláusula 19.ª das Condições Gerais, fica expressamente convencionado que o capital seguro pelo presente contrato, relativo ao edifício, identificado nas Condições Particulares, é automaticamente actualizado, em cada vencimento anual, de acordo com as variações do índice publicado trimestralmente pela Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões nos termos do n.º 1 do artigo 135.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril.

2 - As partes podem convencionar nas Condições Particulares uma periodicidade menor do que a anual para a actualização prevista no número anterior.

3 - O capital actualizado, que consta do recibo do prémio, corresponde à multiplicação do capital que figura nas Condições Particulares pelo factor resultante da divisão do índice de vencimento pelo índice de base.

4 - O prémio reflecte o capital actualizado nos termos do número anterior.

(…)

9 - Salvo convenção em contrário, apenas se actualiza, de harmonia com o previsto nos n.ºs 1 e 3, o valor do Edifício Seguro ou a proporção segura do mesmo.

10 - O estipulado nesta cláusula não dispensa o Tomador do Seguro de proceder a convenientes revisões do capital seguro, quer por reavaliação dos Bens Seguros, benfeitorias ou beneficiações, quer pela inclusão de novos bens.

11 - Em caso de sinistro, não há lugar à aplicação da regra proporcional prevista no n.º 1 da cláusula 19.ª das Condições Gerais da Apólice se o capital seguro for igual ou superior a 85 % do custo de reconstrução dos Bens Seguros.

12 - O Tomador do Seguro pode renunciar à indexação estabelecida nesta Condição Especial desde que o comunique ao Segurador, com a antecedência mínima de 60 dias em relação ao vencimento anual da Apólice.

02. ACTUALIZAÇÃO CONVENCIONADA DE CAPITAIS

1 - Sem prejuízo do previsto na cláusula 18.ª das Condições Gerais Uniformes, fica expressamente convencionado que o capital seguro pela presente Apólice, constante das Condições Particulares, é automaticamente actualizado, em cada vencimento anual, ou noutra frequência temporal convencionada, pela aplicação da percentagem indicada para esse efeito nas Condições Particulares.

2 - O capital actualizado consta do recibo de prémio correspondente, relativo à anuidade seguinte, ou ao período contratual não anual convencionado.

3 - O estipulado nesta cláusula não dispensa o Tomador do Seguro de proceder a convenientes revisões do capital seguro, quer por reavaliação dos Bens Seguros, benfeitorias ou beneficiações, quer pela inclusão de novos bens.

4 - Em caso de sinistro, não há lugar à aplicação da regra proporcional prevista no n.º 1 da cláusula 19.ª das Condições Gerais da Apólice se o capital seguro for igual ou superior a 85 % do custo de reconstrução dos Bens Seguros.

5 - O Tomador do Seguro pode renunciar à actualização estabelecida nesta Condição Especial desde que o comunique ao Segurador, com a antecedência mínima de 60 dias em relação ao vencimento anual da Apólice.”

17-Para os riscos de acção de ventos, inundações, acidentes geológicos e danos por água, foi estipulada uma franquia de 10 %, com um valor mínimo de € 100,00.


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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Funda a recorrente, nas suas conclusões, a sua discordância relativamente à decisão objecto de recurso, essencialmente nos seguintes argumentos:

-existe uma situação de sub-seguro do bem abrangido pela apólice de seguro multirriscos em apreço, sendo o valor do imóvel na parte afectada (anexo) mais de quatro vezes superior ao indicado pelo tomador;

-a fixação do valor indemnizatório a satisfazer pela seguradora é proporcional ao capital seguro, sendo aplicável a clausula 19ª das condições gerais deste seguro.

Decidindo

a) Da existência de sub-seguro e suas consequências jurídicas;

Considerou a decisão recorrida em primeiro lugar que que “Competia à seguradora, para poder invocar o subseguro, o dever de avaliar previamente o bem seguro. (…)

Por outro lado, nos termos das cláusulas supra referidas, o capital devia ser automaticamente renovado e atualizado o que nunca sucedeu, por facto imputável à seguradora, e em violação das clausulas 01 e 02 das condições especiais.

E não foi alegado nem demostrado o cumprimento, pela Ré, do dever de informação a que alude o art.º 19º nº 2 das condições gerais.

Ainda que se tivesse por cumprido o dever de informação, com o envio para a A. das clausulas contratuais gerais, onde o mesmo declara ter tido conhecimento, delas não resulta o valor seguro do imóvel para efeitos de indemnização em caso de perda total e dos critérios da atualização.

Mas ainda que assim não se entendesse, sempre estaríamos perante flagrante abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium- cfr. art.v 334.°, do Código Civil.

Decorre desta fundamentação que a primeira instância considerou, em primeiro lugar, que neste tipo de seguro de danos cabia à seguradora o dever de avaliar previamente o imóvel, para determinação do capital seguro.

Este entendimento não é, no entanto, conforme com a natureza jurídica deste contrato, nem com os normativos que o regem, constantes do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Lei 72/2008 de 16 de Abril, doravante RJCS,), aplicável à data da sua celebração.

O contrato de seguro em causa, constitui um seguro de danos que tem por finalidade a cobertura de riscos relativos a coisas, bens imateriais, créditos e outros direitos patrimoniais, de acordo com as coberturas contratadas, até ao valor do capital, excluindo eventuais franquias contratadas. Conforme resulta do disposto no artº 43 nº2 do RJCS “No seguro de danos, o interesse respeita à conservação ou à integridade de coisa, direito ou património seguros.”

Inicia-se com uma proposta do tomador de seguro, que deverá de acordo com o disposto no artº 24 nº1 do RJCS “ declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.”  

Ao tomador de seguro, de acordo com o disposto no artº 49 nº2 do RJCS, cabe ainda “indicar ao segurador, quer no início, quer durante a vigência do contrato, o valor da coisa, direito ou património a que respeita o contrato, para efeito da determinação do capital seguro” (negrito nosso), salvo existindo disposição legal em contrário que, no caso em apreço, inexiste.

A propósito deste preceito, esclarece-nos PEREIRA MORGADO[1] que a “melhor interpretação deve ser a seguinte:

- no âmbito dos seguros obrigatórios o capital ou valor mínimo a segurar decorrerá, em princípio, da lei que institua cada um deles ou de normativo que o regulamente;

- no âmbito dos seguros facultativos plenamente regidos pela autonomia privada a solução regra é a de que cumpre ao tomador do seguro indicar, de forma explícita e clara, o valor ou capital a segurar;

- no âmbito dos seguros facultativos regidos por normas imperativas de lei especial, como é o caso dos seguros que confiram coberturas relativas a danos próprios de veículos automóveis, regulados pelo Decreto-Lei n.º 214/97, de 16.08, cabe ao tomador do seguro fornecer ao segurador os dados que permitam a determinação do valor ou capital seguro, tendo em conta o regime estabelecido”.

Nesta medida, neste tipo de seguros de danos facultativo, não se vê disposição legal ou contratual que imponha à seguradora o dever prévio de avaliar a coisa a que respeita o contrato, mas já se encontra disposição legal que impõe ao tomador de seguro o dever de indicar o valor da coisa e de prestar todas as informações verídicas à seguradora, para que esta possa calcular o risco e o prémio a cobrar.

O contrato de seguro é um contrato que assenta nos princípios da máxima boa fé, (uberrimae fides) e da tutela da confiança, “surgindo a declaração do risco como umas das várias manifestações dessa mesma natureza fiduciária. É em homenagem à especial relação de confiança entre as partes e ao princípio da boa-fé que se impõe um dever de declaração ao Tomador do Seguro/Segurado, e é natural que assim seja, uma vez que, relembremos, a figura nasceu para proteger o Segurador que tem de confiar nas declarações do Tomador do Seguro/Segurado (o que melhor conhece o risco) para poder delimitar o risco a segurar.[2]

A este respeito diz-nos ROMANO MARTINEZ[3], “a obrigação do segurador não é a de assumir o risco de outrem, mas de realizar a prestação resultante de um sinistro associado ao risco de outrem. (…) O contrato de seguro caracteriza-se pela obrigação, assumida pelo segurador, de realizar uma prestação (máxime uma quantia) relacionada com o risco do tomador do seguro ou de outrem”.

Nesta medida, o risco é elemento essencial do contrato de seguro, constituindo a opção por um determinado tipo de contrato de seguro, de acordo com LUÍS POÇAS, uma “dispersão do risco, distribuindo um risco pequeno por um grande número de indivíduos (prémio), em vez de concentrar um risco elevado apenas num indivíduo (dano) [4].

Por seu turno, “o capital seguro representa o valor máximo da prestação a pagar pelo segurador por sinistro ou anuidade de seguro, consoante o que esteja estabelecido no contrato” (Cfr. artº 49 nº1 do RJCS). Nesta medida, o capital seguro estabelece o plafond máximo da indemnização, limitado ao dano decorrente do sinistro, salvo estipulação legal em contrário. No seguro de coisas, conforme decorre do artº 130 nº1 do RJCS, o “dano a atender é o do interesse seguro ao tempo de sinistro”.

Ora, como refere ARNALDO PEREIRA[5], “um subsídio relevante para a determinação do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro será o valor do mesmo ao tempo da celebração ou actualização do contrato, valor aliás determinante do montante do prémio e de juízo de eventual situação de sobresseguro ou sub-seguro”.

Por outro lado, a indicação deste valor e a sua aceitação pela seguradora, não equivale a um acordo expresso quanto à fixação do valor da coisa. Conforme refere JOSÉ VASQUES[6], ainda que a propósito do artº 436 do C.Comercial, mas plenamente aplicável ao RJCS, o valor seguro pode ser “apurado segundo dois sistemas: o sistema do valor declarado e o sistema do valor acordado.

Quando o valor seguro seja apurado com base da sua mera declaração pelo proponente, sem que a seguradora exerça sobre essa declaração qualquer verificação estamos perante o chamado sistema do valor declarado. (…)

Quando aquele valor seja fixado por arbitradores nomeados pelas partes (…) o sistema designa-se por valor acordado. Este sistema apresenta vantagens para o tomador do seguro, uma vez que o segurador não o pode contestar, sendo este o valor a ser tomado em consideração para efeitos da determinação do montante indemnizatório e não o que se apure por ocasião do sinistro. (…)

A determinação do valor do objecto seguro, far-se-á, na generalidade dos casos, aquando da superveniência do sinistro, já que a declaração do risco – em que se inclui a descrição e avaliação do objecto do seguro – é uma declaração unilateral do segurado que o segurador aceita sem verificação e só para o efeito de calcular o prémio e estabelecer o valor máximo da indemnização.

Quer isto dizer que, existindo um dever geral por parte do segurado ou tomador de seguro de declaração do valor da coisa e de todas as circunstâncias que possam influir na avaliação do risco (artº 49 nº2  e 24 do RJCS), “não existe um dever geral de verificação dessa exatidão por parte do segurador”[7] pelo que, quando o valor declarado na proposta de seguro, o tenha sido sem intervenção da seguradora nem convenção expressa, esta indicação não vincula a seguradora que terá de avaliar o valor do bem ao tempo do sinistro (artº 131 nº2 do RJCS), valendo para estes casos as hipóteses de sobresseguro e sub-seguro.

 No que se reporta à renovação do contrato e actualização do valor seguro, também não é correcto que a seguradora tivesse incumprido o dever de actualização do capital seguro, quer porque não houve renovação do contrato em data anterior ao sinistro, quer porque a clausula invocada não lhe é aplicável, quer ainda porque foi fixado em 00% o quoficiente de actualização, conforme decorre das condições particulares acordadas. A clausula especial referida na sentença recorrida, é aplicável aos imóveis para habitação (sendo o objecto seguro um armazém comercial), e, ainda assim, não obriga à avaliação da coisa, mas à sua actualização de acordo com índices previstos nesta condição especial 01, de acordo com o valor inicialmente indicado. De qualquer modo, ainda que aplicável, a não actualização não determinaria a impossibilidade de a seguradora poder invocar a existência de sub-seguro, quando o valor indicado no início do contrato fosse manifestamente inferior ao valor real da coisa segura.

Por último, desconsiderou a sentença recorrida que o contrato foi celebrado em 1 de Junho de 2017 e o sinistro ocorreu em Fevereiro de 2018, menos de um ano depois, sem que houvesse decorrido qualquer renovação, uma vez que este seguro era anual.

De qualquer modo, a consequência que o tribunal pretendeu retirar não decorre da lei, nem do teor do artº 134 do RJCS, que estipula somente que “Salvo convenção em contrário, se o capital seguro for inferior ao valor do objecto seguro, o segurador só responde pelo dano na respectiva proporção.”

No caso em apreço, conforme decorre das condições gerais (clausula 19ª) deste contrato de seguro, não foi estabelecida convenção em contrário, reproduzindo no essencial esta clausula o teor deste preceito legal.

Por outro lado, resulta da certidão de registo predial e fiscal do imóvel, junta aos autos que o imóvel foi avaliado no ano de 2016, em data anterior à celebração do contrato de seguro, este datado de 2017, avaliação que fixou o valor do imóvel em € 284.907,89.

O que significa que o valor de € 5.000, indicado como valor do capital seguro – e o capital seguro conforme decorre do artº 43 do RJCS corresponde, ou deve corresponder ao valor da coisa a segurar que, nos seguros multirriscos corresponde ao valor de reconstrução do imóvel[8] - é muito inferior ao seu valor real, tendo em conta que o local indicado como de seguro é o armazém e não apenas uma parte do armazém ou sequer um anexo, uma vez que não resulta da apólice essa concreta restrição (pese embora a indicação do CAE).

Restringindo a coisa a segurar ao anexo onde ocorreu o sinistro, o valor deste equivale, ainda assim, a mais de 4 vezes ao valor indicado pelo segurado para a totalidade da coisa segura. Existe assim, manifestamente uma situação de sub-seguro, com evidente influência no montante de prémio anual pago pela A., fixado em €23,66.

Ora, no seguro de danos, a prestação do segurador está limitada pelo efectivo prejuízo, sem exceder o valor do capital seguro, conforme resulta do disposto no artº 128 do RJCS, pelo que, no caso de sub-seguro, não existindo convenção em contrário, a seguradora só responderá na proporção entre o valor do interesse em risco e o valor do capital seguro[9], de acordo com a seguinte fórmula: valor do dano x valor seguro : valor segurável.

 Conforme se refere no Ac. do STJ de 22.09.11[10] (…), no caso do sub-seguro, que corresponde a um seguro ajustado com valor inferir ao do bem segurado, há implicações prejudiciais para o tomador do seguro, devido à designada “regra proporcional”, que determina o pagamento de uma percentagem sobre o valor dos danos sofridos.
Tendo o tomador do seguro indicado um valor para o objeto seguro inferior ao real, com violação do seu dever de informação, a seguradora só terá de pagar uma percentagem do dano sofrido, considerando-se que o tomador é parcialmente segurador (na parte resultante da diferença entre o valor real e o valor garantido pelo seguro). Justificando-se a regra proporcional, desde logo, pela falta de correspectividade entre o prémio pago e o bem assegurado, na relação com o risco assumido pela seguradora.
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Nesta medida, a regra da proporcionalidade “relaciona-se com o princípio do equilíbrio das prestações, tendendo a fazer equivaler o risco coberto ao prémio efectivamente pago.”[11]

No que se reporta à violação dos deveres de informação por parte da R. seguradora, previstos no artº 18 e 24 do RJCS, a posição do tribunal a quo não encontra cobertura factual. O artº 18 estabelece um dever geral de informação e esclarecimento do tomador de seguro pelo segurador ou quem o represente, que habilite o tomador de seguro à compreensão de todas as condições e coberturas do contrato, antes de este se vincular. Por sua vez e, no que se reporta à declaração inicial de risco, o n.º 4 do artigo 24.º da LCS, estabelece um dever a cargo da entidade seguradora, antes da celebração do contrato, de informar o candidato a tomador de seguro acerca do cumprimento do dever de declaração dos risco e de todas as informações necessárias, previsto no seu nº1, sob pena de incorrer em responsabilidade civil nos termos gerais. Este dever de indemnização implica que se mostre estabelecido um duplo nexo de causalidade, ou seja, que à violação dos deveres de informação por parte do segurador tenha correspondido a violação dos deveres de indicação do risco por parte do tomador de seguro, o que tem de ser expressamente alegado por este. Constitui este preceito “uma plena excepção ao princípio ignorantia iuris non excusat[12], previsto no artº 6 do CC. e, por constituir uma excepção a este princípio geral a sua alegação e prova cabem ao segurado.

Em resposta à contestação da R., em que esta invocava a existência de sub-seguro, alegou a A. que em momento algum a Ré o informou da possibilidade de aplicação da regra constante da clausula 19ª, pelo facto do imóvel ter valor superior, mas nunca alegou o desconhecimento desta clausula, tendo em conta que aquando da proposta inicial, declarou ter pleno conhecimento das clausulas e condições do contrato.

Ora, a ressarcibilidade do dano de acordo com o interesse atendível resulta expressamente do artº 128 e 130 nº2 do RJCS. A regra da proporcionalidade, no caso de o capital ser inferior ao valor do objecto seguro, resulta expressamente do disposto no artº 134 do RJCS. Esta regra não foi afastada por convenção em contrário, conforme resulta do teor das clausulas 18º e 19º das Condições Gerais do contrato de que, recorde-se a A. declarou ter conhecimento e que a sentença recorrida não considerou nulas, nem excluídas do contrato.

E, neste caso, era à A. que incumbia alegar e provar que tendo recebido estas condições e apesar da declaração por si aposta, não lhe foi dado conhecimento das mesmas, ou que acordara com a R. outro interesse atendível para além do que resulta do disposto nos artºs 128 e 130 nº2 do RJCS. 

Acresce que as disposições constantes dos nºs 2 e 3 do artº 135 do RJCS, que impõem um dever acrescido de informação ao segurador têm o seu campo de aplicação limitado ao seguro de riscos relativos à habitação e a riscos de massa,[13]não sendo assim aplicável ao caso em apreço.

 Por último, não se vê que exista abuso de direito pela R. seguradora. A este respeito considerou a decisão recorrida que “sempre estaríamos perante flagrante abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium- cfr. art.v 334.°, do Código Civil. A R. Seguradora aceite o valor de 5.000€ indicado, e sendo o valor dos danos de 4.600€ mais IVA, pelo que qualquer cidadão comum acredita que, até ao ao limite do capital seguro será indemnizado. Não é de considerar qualquer outro valor resultante de posteriores avaliações, para efeito de verificar qualquer situação de subseguro, pois não se pode aceitar, à luz da boa fé, que o cumprimento da obrigação assumida pelo contrato de seguro dependesse da incerteza quanto ao valor do bem ou que o valor convencionado possa ser alterado posteriormente, quando, aquando da sua celebração e renovação, a Seguradora nada tenha feito ou advertido.

Parte esta construção jurídica do entendimento explanado nesta sentença de que à R. incumbia o dever de avaliar o imóvel previamente à celebração do contrato de seguro e desconsidera que a indicação do valor da coisa segura cabe ao tomador de seguro e que, da aceitação da proposta não decorre nenhum vínculo da seguradora quanto ao valor do interesse seguro, nem constitui esta aceitação, a convenção expressa prevista no artº 131 do RJCS.

Por outro lado, o abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, caracteriza-se pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente. Traduz-se afinal, num acto ilegítimo, consistindo como refere CUNHA DE SÁ[14]a sua ilegitimidade num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo”, ultrapassados os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social e económico do direito, conforme decorre do artº 334 do C.C. 

Assim, o ponto de partida do venire, como refere BAPTISTA MACHADO,[15] consiste na adopção de uma conduta por um sujeito jurídico que, “objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico”.

É, no entanto, necessário que esta conduta tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que, com base nessa situação de confiança, a contraparte tenha actuado de determinada forma. Conforme refere MENEZES CORDEIRO[16], é necessário que se verifiquem os seguintes pressupostos:

“(...) 1.° Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);

2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;

3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;

4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.

Não se vê dos factos que resultaram assentes e do teor das clausulas deste contrato, que tenha existido violação dos deveres de boa fé por parte da seguradora, muito menos que esta ao actuar de acordo com a lei e de acordo com clausula expressa do contrato, exceda os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes. Já se nos afigura que ofende os deveres de boa fé e de declaração do valor da coisa e do risco, a indicação de um valor de € 5.000,00 para o imóvel, muito inferior ao seu valor real, mesmo tendo em conta a restrição da área onde ocorreu o sinistro, com o inerente pagamento de um prémio muito inferior ao que seria devido caso o valor indicado correspondesse ao valor de reconstrução do imóvel. Como ofende os princípios da boa fé que, neste caso e apesar da indicação de um valor diminuto e do consequente pagamento de um prémio diminuto, a seguradora ficasse obrigada ao ressarcimento integral do dano, tendo como único limite o valor do capital seguro.

Se tal acontecesse, não se veria incentivo para a declaração de um capital equivalente ao custo de reconstrução do bem, e de um prémio calculado com base nesse valor, prémio este muito superior ao suportado pela A.

Procede assim o recurso interposto pela R. revogando-se a sentença recorrida, de forma a considerar a existência de sub-seguro e a aplicação da regra da proporcionalidade constante do artº 134 do RJCS: valor do dano (€5.658,00) x valor seguro (€ 5.000): valor segurável (€ 22.500) - € 1.257,33. A este valor deve ser abatido o valor da franquia acordada de 10% sobre o valor a indemnizar, ou seja €125.73.


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DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta relação em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela R., revogando a decisão recorrida e condenando a R. a pagar à A. a quantia de € 1131,6 (€ 1257,33-€ 125,73) acrescido de juros de mora desde a citação até integral pagamento.
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As custas da acção fixam-se pelo apelante e apelado na proporção do decaimento (artº 527 nº1 do C.P.C.).


Coimbra 14/06/22



[1]Lei do Contrato de Seguro – Anotada; Almedina, 2011, pág. 259 nota 2.
[2] LOURO; Vanessa, “Declaração Inicial do Risco no contrato de seguro: Análise do regime jurídico e breve comentário à jurisprudência recente dos Tribunais Superiores”, pág.11, Revista Electrónica de Direito, nº23, Junho de 2016, disponível in https://cije.up.pt/client/files/0000000001/3_651.pdf
[3]Lei do Contrato de Seguro – Anotada; Almedina, 2011, pág. 40/41 38, nota IV.
[4] POÇAS, Luís, O Dever da Declaração inicial do Risco no Contrato de Seguro, Coimbra: Almedina, Teses, 2013, pág.  88.
[5] Lei do Contrato de Seguro Anotada, ob cit., pág 444, nota 3.
[6] Contrato de Seguro, Coimbra Editora,  págs. 216 e 306.
[7] Cfr. Ac. do STJ de 09/01/2018, proferido no Proc. nº 1714/16.9T8LSB.L1.S1, relator José Rainho, disponível in www.dgsi.pt
[8] Apesar de o valor não corresponder, em regra, ao valor patrimonial, ainda assim se vê a desproporção entre o valor indicado pelo segurado e o valor patrimonial do imóvel, avaliado em 2016, de €284.907,89.
[9] Neste sentido vide Ac. do TRP de 29/04/21, proferido no proc. nº 2411/19.9T8PNF.P1, relatora Deolinda Varão, disponível in www.dgsi.pt
[10] Proferido no proc. nº 710/06.9TCGMR.G1.S1, relator Serra Baptista, disponível in www.dgsi.pt
[11] Ac. do STJ de 07/11/2006, proferido no Proc. nº 06A2874, Relator Alves Velho, disponível in www.dgsi.pt.
[12] Neste sentido vide GULPILHARES, Fábio, O dever de declaração inicial do risco: âmbito, critério de relevância (materiality test) e sistemas de declaração espontânea vs. sistemas de questionário fechado, Julgar Online, Outubro de 2020, pág.34.
[13] Neste sentido vide Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, 2011, 2ª edição, em anotação ao artº 135- Arnaldo Oliveira- págs. 461-464.
[14] CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto, Abuso de Direito, 2ª reimpressão, 2005, Almedina, pág. 103.
[15] Obra Dispersa, I, 415 e ss.
[16] Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, Julho 1998, pág. 964