Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6611/17.8T8CBR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO DOMINGOS PIRES ROBALO
Descritores: CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS ADVOGADOS E SOLICITADORES
CPAS
TRIBUNAIS COMPETENTES
EXECUÇÃO PARA COBRANÇA DE QUOTAS DOS SEUS ASSOCIADOS
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Data do Acordão: 01/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE EXECUÇÃO – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 4º, Nº 1, AL. O) DO ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS. DEC.LEI Nº 119/2015.
Sumário: I – A CPAS tem traços de entidade pública, desde logo por ter sido criada pelo Estado - pelo Decreto-Lei nº 36.550, de 22/10/1947 - como constituindo uma instituição de previdência, sendo que a Lei 4/2007, de 16/1/ (Bases Gerais do Sistema de Segurança Social), a manteve em actividade, referindo no seu art 106º que «mantêm-se autónomas as instituições de previdência criadas anteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 549/77, de 31 de Dezembro, com os seus regimes jurídicos e formas de gestão privativas, ficando subsidiariamente sujeitas às disposições da presente lei e à legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações».

II - É indiscutível, e isso mesmo resulta expresso do art 1º do Regulamento da Caixa de Previdência dos CPAS, publicado em anexo ao DL 119/2015, que a CPAS visa «fins de previdência e de protecção social» e, embora autónoma, se rege, nos termos do nº 2 dessa norma, «pelo presente Regulamento e, subsidiariamente, pelas bases gerais do sistema de segurança social e pela legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações».

III - Sendo a CPAS uma pessoa colectiva de direito público, a competência para solucionar tal tipo de litígios recai nos tribunais administrativos e fiscais, nos termos da al. o) do n.º 1 do art.º 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

IV - As relações jurídicas estabelecidas entre a CPAS e os seus associados (como é o caso dos autos, pretendendo-se aqui cobrar coercivamente uma dívida composta por quotas vencidas e não pagas pelo réu), são relações de natureza administrativa e cabem na competência geral mencionada na referida al. o) do n.º 1 do art.º 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Decisão Texto Integral:


  Acordam na Secção Cível (3.ª Secção), do Tribunal da Relação de Coimbra

 Proc.º n.º 6611/17.8T8CBR

                                                      1. – Relatório

1.1. Nos presentes autos veio a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores intentar a presente acção executiva contra T..., sua beneficiária, apresentando como título executivo uma certidão de dívida relativa ao incumprimento das suas obrigações contributivas, no valor de €51 459,60.

1.2. A fls. 10 a 14 foi proferido despacho a indeferir liminarmente o requerimento executivo, nos termos do art.º 726.º, n.º 2, do C.P.C., referindo “ (…) Olhando agora para o caso sub judice, a matéria subjacente ao título dado à execução prende-se com o incumprimento de uma obrigação decorrente de uma relação jurídica estabelecida entre a CPAS e a executada, enquanto sua beneficiária.

Ora, a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores constitui uma instituição de previdência social destinada a providenciar pensões de reforma aos seus beneficiários e subsídios por morte às respectivas famílias e é actualmente definida pelo Decreto-Lei n.º 119/2015, de 29.06, que aprovou o respectivo Regulamento da CPAS, como uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa, que visa fins de previdência e de proteção social dos advogados e dos associados da Câmara dos Solicitadores.

Trata-se, pois, materialmente, de um regime de segurança social instituído para os advogados e solicitadores, que correu sempre de forma paralela à legislação reguladora da Segurança Social, continuando ainda hoje a prever-se a aplicação subsidiária das bases gerais da segurança social, conforme decorre do disposto no n.º 2 do artigo 1.º do referido Regulamento.

Por outro lado, independentemente da sua qualificação como uma verdadeira instituição de segurança social, tanto a doutrina como a jurisprudência do STA tem entendido que a CPAS é uma pessoa colectiva pública uma vez que foi criada por acto normativo e iniciativa estadual, para assegurar a prossecução necessária de interesses públicos, na vertente da previdência, em benefício de um determinado universo delimitado funcionalmente, sendo dotada de prerrogativas de direito público, isto é, exorbitantes de direito privado – cf. Freitas do Amaral in “Curso de Direito Administrativo”, 2012, págs. 370/371 e Mário Esteves de Oliveira in “Direito Administrativo”, Vol. I, 1984, pág. 213; e também o Ac. de 2/10/2008, proferido no Conflito n.º 010/08, todos referenciados no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 27.04.2017, disponível in www.dgsi.pt).

De onde terá então, igualmente, de concluir-se que as relações jurídicas estabelecidas entre a CPAS e os seus beneficiários têm natureza administrativa, tanto mais que aquela está sujeita, de acordo com o artigo 97.o do seu Regulamento, à tutela dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da justiça e da segurança social.

Finalmente, de acordo com o disposto no artigo 81.º, n.º 4 daquele diploma legal a certidão da dívida de contribuições emitida pela direção constitui título executivo, devendo obedecer aos requisitos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário, o que nos parece ser norma suficiente para nos remeter para a aplicação do regime relativo ao processo de execução fiscal previsto nos artigos 148.º e ss. daquele Código, em cujo âmbito de aplicação as referidas dívidas cabem inteiramente nos termos do disposto no n.º2 a) do artigo 148.º.

Tem sido este, de resto, o entendimento perfilhado por toda a jurisprudência que se conhece, quer da jurisdição administrativa e fiscal, quer da jurisdição comum, indicando-se, a título de exemplo, o acórdão proferido pelo STA de 27.07.2017 (Tribunal de Conflitos) e os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.03.2017 e do Tribunal da Relação do Porto de 20.06.2016, nos quais se decidiu ser o processo de execução fiscal a forma adequada para se proceder à cobrança coerciva das contribuições devidas à CPAS.

Face a todo o exposto, concluímos que a competência para julgar a presente acção executiva pertence aos Tribunais Administrativos e Fiscais e não aos tribunais comuns, nomeadamente aos tribunais de execução, estando-se diante de um caso enquadrável na hipótese prevista na alínea o) do artigo 4.º do ETAF.

A violação das regras relativas à competência em razão da matéria determina, nos termos do disposto no artigo 96.º do Código de Processo Civil, a incompetência absoluta do tribunal, que, por sua vez, configura uma excepção dilatória que pode ser arguida pelas partes ou suscitada oficiosamente pelo tribunal (artigos 97.º n.º 1 e 2, 577.º al. a) e 578.º, 1.ª parte todos do Novo Código de Processo Civil).

Trata-se, por outro lado, de uma excepção que conduz, no âmbito do processo executivo, ao indeferimento em despacho liminar, tudo nos termos do disposto nos artigos 99.º, n.º 1 e 726.º, n.º2 b) do Código de Processo Civil.

Termos em que e ao abrigo das disposições legais supra citadas, julgo esta Secção de Execução materialmente incompetente para conhecer dos presentes autos.

Face a todo o exposto e abrigo do disposto no artigo 726.º n.º2 do Código de Processo Civil, indefere-se liminarmente o requerimento executivo“.

1.3. Inconformado com tal decisão dela recorreu a exequente terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

...

                                   1.3. Cumpre decidir.

                                   2. Fundamentação

 O circunstancialismo fático processual a ter em consideração emerge do relatório que antecede, havendo a acrescentar o conteúdo da comunicação datada de 9/11/2015, proveniente da Autoridade Tributária e Aduaneira e dirigida à Direção da CPAS, tendo por assunto “Processo de Execução Fiscal para cobrança de créditos da CPAS”, (cfr. fls. 21 v.º), documento que a recorrente juntou com as alegações, e cuja junção se mostra admissível nos termos do disposto no art.º 651.º, do C.P.C., na medida em que a sua junção só se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.

  3. Motivação                                  

 3.1. É, em princípio, pelo teor das conclusões do recorrente que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso (cfr. art.s 608, 635, n.º 4 e 639, todos do C.P.C.).

A decisão a decidir consiste em saber se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que atribua competência aos tribunais comuns, ou seja a questão colocada a este tribunal consiste em saber se efectivamente o tribunal comum será o competente para a execução em apreço, como sustenta a apelante.

            Vejamos.

De conformidade com o preceituado nos arts. 211º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 40, nº 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário e 64º do CPC vigente, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

Ou seja, os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não discriminada, por isso sendo chamados de competência genérica, gozando os demais, tribunais especiais, de competência limitada às matérias que lhes são especialmente cometidas.

Que o mesmo é dizer que a competência dos tribunais judiciais se determina por um critério residual, ou de exclusão de partes - tudo o que não estiver atribuído aos tribunais especiais (cfr. Profs. Palma Carlos (in “CPC Anotado”, pags. 230) e A. dos Reis (in “Comentário”, Vol. I, pags. 146 e segs e Ac. Rel. de Coimbra de 21/10/2008, onde foi relator Gregório da Silva Jesus).

Considerando que o que está em causa é o confronto entre a competência dos tribunais da ordem judicial e a dos tribunais da ordem administrativa, vejamos qual é o âmbito da competência dos tribunais desta última ordem.

O artigo 212°, n.° 1 da C.R.P. diz, relativamente à jurisdição comum:

«Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas as outras ordens judiciais».

E o seu n.°3 diz, quanto à ordem administrativa:

«Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais».

Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial.

Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal especial.

A jurisdição administrativa é exercida por tribunais administrativos, aos quais incumbe, na administração da justiça, dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas (arts. 1º, nº 1, do ETAF e 212º, nº 3, da CRP).

Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, pois, a existência de uma relação jurídica administrativa.

Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que «por via de regra, confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração» (Cfr. Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo”, Vol. II, 2001, pags. 518) (...), outro não sendo o entendimento de J. C. Vieira de Andrade, quando, depois de afirmar que à justiça administrativa só interessam «as relações jurídicas administrativas públicas, ou seja, aquelas que são reguladas por normas de direito administrativo», acentua que devem ser consideradas relações jurídicas administrativas «aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» (in “A Justiça Administrativa” - Lições, 3ª Ed., 2000, pags. 79)”.

Como se sabe, desde 1 de Janeiro de 2004 que vigora o novo ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro.

Conforme estatui o seu artº 4º  do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/2)  «compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto:

a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares diretamente fundados em normas de direito

administrativo ou fiscal ou decorrentes de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

 b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por pessoas coletivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que diretamente resulte da invalidade do ato administrativo no qual se fundou a respetiva celebração;

c) Fiscalização da legalidade de atos materialmente administrativos, praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;

 d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;

e) Questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;

f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime

substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa; h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;

 i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;

 j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;

 l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contraordenacional;

m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

 n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal;

o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores»

É inquestionável que o legislador do novo ETAF cometeu à jurisdição administrativa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se esta responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada.

A distinção deixa de ter interesse relevante, para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa.

Todos os litígios emergentes de actuação da Administração Pública que constituam pessoas colectivas de direito público em responsabilidade extracontratual pertencem, portanto, à competência dos tribunais administrativo (cfr. Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, Professor Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, fls. 31 e 32).

Isto é, deixou de vigorar a norma constante do artigo 4º, alínea f), do ETAF de 1984 que excluía da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das questões de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa de direito público.

O novo regime alargou o âmbito de jurisdição administrativa a todas as questões de responsabilidade civil envolvente de pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.

Assim, compete aos tribunais da ordem administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (artigo 4º, nº 1, alínea g), do ETAF).

Mas igualmente lhe compete a apreciação da responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público (artigo 4º, nº 1, alínea i), do ETAF) – cfr. neste sentido Ac. Rel. de Coimbra de 21/10/2008.

Com o novo regime do ETAF foi propósito do legislador confiar à jurisdição administrativa os litígios emergentes da responsabilidade extracontratual da Administração arredando de vez a dicotomia gestão pública – gestão privada, muitas vezes de difícil caracterização com linhas de demarcação muito ténues, e fonte de conflito (cfr. neste sentido os Ac.s do STJ de 11/10/2005, Proc. n.º 05B2294, 8/5/2007, Proc. n.º 07 A 1004, no ITIJ, Prof. Mário Aroso de Almeida, in Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª edição, fls. 99 e Prof. João Caupers, in Introdução ao Direito Administrativo, 7.ª edição, 2003, fls. 265, conforme citação feita no Ac. Rel. de Coimbra de 21/10/2008).

Este conceito de relações jurídicas administrativas do artigo 4º, nº 1, al. g) do ETAF, em harmonia com o art.º 1º, nº 1, e ponderado à luz do nº 3 do artigo 212º da Constituição da República acima transcrito, não se confunde com acto de gestão pública, sendo antes, um conceito quadro muito mais amplo.

            Segundo a recorrente a CPAS tem uma forte componente privatística, sendo o litígio aqui em apreço de natureza privada.

            No entanto, e como é posto em evidência no Ac. da Rel. de Lisboa de 9/3/2017, relatado por Maria Teresa Albuquerque, in www.dgsi. citando o Ac. da Rel. do Porto de 20/6/2016, relatado por Alberto Ruço “ (…) A CPAS tem traços de entidade pública, desde logo por ter sido criada pelo Estado - pelo Decreto-Lei nº 36.550, de 22/10/1947 - como constituindo uma instituição de previdência, sendo que a L 4/2007, de 16/1/ (Bases Gerais do Sistema de Segurança Social), a manteve em actividade, referindo no seu art 106º que, «mantêm-se autónomas as instituições de previdência criadas anteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 549/77, de 31 de Dezembro, com os seus regimes jurídicos e formas de gestão privativas, ficando subsidiariamente sujeitas às disposições da presente lei e à legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações». É indiscutível, e isso mesmo resulta expresso do art 1º do Regulamento da Caixa de Previdência dos CPAS publicado em anexo ao DL 119/2015, que a CPAS visa «fins de previdência e de protecção social», e embora autónoma, se rege, nos termos do nº 2 dessa norma, «pelo presente Regulamento e, subsidiariamente, pelas bases gerais do sistema de segurança social e pela legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações». Não deixa de estar sujeita à tutela dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da justiça e da segurança social – artigo 97º do respectivo Regulamento – e goza das isenções e regalias previstas na lei para as instituições de segurança social e de previdência social e de previdência estabelecidas na alínea c) do nº 1 do art 9º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas – artigo 98º do seu Regulamento”.
            Por acharmos com interesse para o caso em apreço onde se faz uma resenha do historial da CPAS, transcrevemos o pertinente no referido no Ac. do Tribunal de Conflitos, Proc.º n.º 37/16 , relatado por José Francisco Fonseca da Paz:
“ (…)A CPAS foi criada pelo DL n.º 36550, de 22/10/47, como instituição de previdência reconhecida pela Lei n.º 1884, de 16/3/35 e pertencente à categoria “caixas de reforma ou de previdência”.

A previdência social foi definida pela Base XXV, n.º 1, da Lei n.º 2115, de 18/6/62, como a actividade que, mediante o pagamento regular ou irregular de quantias fixas ou variáveis, se propunha conceder benefícios pecuniários ou de outra natureza, no caso de se verificarem factos contingentes relativos à vida ou à saúde dos interessados, à sua situação profissional ou aos seus encargos familiares. De acordo com a Base III, n.º 3, desta lei de bases do sistema de previdência social, as caixas de reforma ou de previdência eram as instituições de inscrição obrigatória das pessoas que, sem dependência de entidades patronais, exerciam determinadas profissões, serviços ou actividades.

O art.º 63.º, n.º 1, da CRP, veio estabelecer que todos tinham direito à segurança social, sendo objectivo do sistema, nos termos do n.º 3 deste preceito, o de proteger os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou de diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.

Traduzindo-se a segurança social num direito a prestações pecuniárias destinadas a garantir as necessidades de subsistência, é manifesto que as instituições que se destinam a exercer a previdência – uma das componentes do sistema de segurança social – realizam uma função de segurança social.

A Lei n.º 28/84, de 14/8 (Lei de Bases do Sistema de Segurança Social), dispôs que as instituições de previdência seriam gradualmente integradas no sistema de segurança social e que as criadas anteriormente à entrada em vigor do DL n.º 549/77, de 31/12 (Lei Orgânica da Segurança Social), ficavam sujeitas, com as adaptações necessárias, àquela lei e à legislação dela decorrente (cf. artºs. 68.º e 79.º). De acordo com o seu art.º 46.º, n.º 2, a cobrança coerciva das contribuições para a segurança social seria feita através do processo de execução fiscal, cabendo aos respectivos tribunais a competência para conhecer das impugnações ou contestações suscitadas pelas entidades executadas.

A Lei n.º 17/2000, de 8/8, que revogou aquela Lei n.º 28/84, aprovando as bases gerais do sistema de solidariedade e de segurança social, manteve que, com as adaptações necessárias, a ela e à legislação dela decorrente ficavam sujeitas as instituições de previdência criadas anteriormente à entrada em vigor do DL n.º 549/77 e estabeleceu que a cobrança coerciva dos valores relativos às cotizações e às contribuições era efectuado através de processo executivo e de secção de processos da segurança social (art.º 63.º, n.º 1) e que, enquanto não fosse legalmente definido o processo de execução previsto naquele art.º 63.º, n.º 1, a referida cobrança coerciva seria feita através do processo de execuções fiscais.

O DL n.º 42/2001, de 9/2, apenas pretendendo aplicar o disposto no CPPT ao sistema de solidariedade e segurança social, “dando continuidade ao trabalho já realizado, deixando para mais tarde e depois de algum tempo de prática a alteração do quadro legislativo em vigor” (cf. preâmbulo), criou as secções de processo executivo do sistema de solidariedade e segurança social, estabelecendo, no seu art.º 2.º, o seguinte:
“1- O presente diploma aplica-se ao processo de execução de dívidas à segurança social.
2- Para efeitos do presente diploma, consideram-se dívidas à segurança social todas as dívidas contraídas perante as instituições do sistema de segurança social pelas pessoas singulares e colectivas e outras entidades a estas legalmente equiparadas, designadamente as relativas a contribuições sociais, taxas, incluindo os adicionais, juros, reembolsos, reposições e restituições de prestações, subsídios e financiamentos de qualquer natureza, coimas e outras sanções pecuniárias relativas a contra-ordenações, custas e outros encargos legais”.

A Lei n.º 32/2002, de 20/12, revogou a Lei n.º 17/2000, mas, tal como esta, estatuiu que, com as adaptações necessárias, a ela e à legislação dela decorrente ficavam sujeitas as instituições de previdência criadas anteriormente à entrada em vigor do DL n.º 549/77 (cf. art.º 126.º) e que a cobrança coerciva dos valores relativos às cotizações e às contribuições seria efectuado através do processo executivo e da secção de processos da segurança social (cf. art.º 48.º).

Esta Lei foi revogada pela Lei de bases da segurança social actualmente em vigor (Lei n.º 4/2007, de 16/1), a qual estabeleceu que a estrutura orgânica do sistema compreendia os serviços que faziam parte da administração directa e da administração indirecta do Estado, que eram pessoas colectivas de direito público denominadas instituições de segurança social (cf. art.º 94.º). Quanto às quotizações e contribuições não pagas, como quaisquer outros montantes devidos, seriam objecto de cobrança coerciva nos termos gerais (cf. art.º 60.º). Relativamente às instituições de previdência criadas anteriormente à entrada em vigor do DL n.º 549/77, estatuiu-se que se mantinham autónomas com os seus regimes jurídicos e formas de gestão privativas, ficando subsidiariamente sujeitas às disposições dessa lei e à legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações (cf. art.º 106.º).

O novo regulamento da CPAS, publicado em anexo ao DL n.º 119/2015, de 29/6, ao estabelecer o regime específico de segurança social dos advogados e solicitadores, reafirmou que essa Caixa era uma instituição de previdência autónoma, visando fins de previdência e de protecção social, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa que se regia por esse regulamento e, subsidiariamente, pelas bases gerais do sistema de segurança social e pela legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações (cf. art.º 1.º), estando sujeita à tutela do Governo (cf. art.º 97.º) e gozando das isenções e regalias previstas na lei para as instituições de segurança social e previdência (cf. art.º 98.º). Relativamente às contribuições não pagas, o art.º 81.º, n.º 5, estatuiu que a certidão de dívida emitida pela direcção constituía título executivo, devendo obedecer aos requisitos previstos no Código do Procedimento e Processo Tributário.

Resulta do exposto que o pagamento forçado das contribuições para a segurança social, enquanto verdadeiras quotizações sociais que sendo imposições parafiscais apresentam grande semelhança com os impostos (cf. Ac. do T.Conflitos de 17/1/2008 – Conf. n.º 16/07) será feito através de processo de execução fiscal nas secções de processo executivo do sistema de solidariedade e segurança social, cabendo aos tribunais tributários neles exercer a actividade de natureza jurisdicional (cf. art.º 151.º, n.º 1, do CPPT).

Decorre ainda do que ficou referido, que a CPAS, tendo por fim estatutário conceder pensões de reforma aos seus beneficiários e subsídios por morte às respectivas famílias, prossegue finalidades de previdência e, consequentemente, realiza uma função de segurança social, estando incluída na organização desta e sujeita desde sempre à legislação que a regula, ainda que de forma subsidiária. Com a sua criação foi, pois, instituído, para os advogados e solicitadores, um verdadeiro regime de segurança social, embora de natureza especial, que ainda perdura. Independentemente da sua qualificação como uma verdadeira instituição de segurança social, tanto a doutrina (cf. Freitas do Amaral in “Curso de Direito Administrativo”, 2012, págs. 370/371 e Mário Esteves de Oliveira in “Direito Administrativo”, Vol. I, 1984, pág. 213), como a jurisprudência deste Tribunal (cf. Ac. de 2/10/2008, proferido no Conflito n.º 010/08) tem entendido que se trata de uma pessoa colectiva pública. E, efectivamente, cremos que não pode deixar de assim ser qualificada, atendendo a que foi criada por acto normativo e iniciativa estadual, para assegurar a prossecução necessária de interesses públicos, na vertente da previdência, em benefício de um determinado universo delimitado funcionalmente, sendo dotada de prerrogativas de direito público, isto é, exorbitantes de direito privado”.
            Como referido in supra a CPAS não deixa de estar sujeita à tutela dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da justiça e da segurança social – artigo 97º do respectivo Regulamento – e goza das isenções e regalias previstas na lei para as instituições de segurança social e de previdência social e de previdência estabelecidas na alínea c) do nº 1 do art 9º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas – artigo 98º do seu Regulamento”, ou seja, é uma pessoa colectiva de direito público e, as relações que se estabelecem entre ela e os seus associados no âmbito do respectivo regulamento, que define os direitos e deveres recíprocos, implica que tais relações assumam natureza administrativa e não privatísticas (cfr. neste sentido Ac. de Conflitos Proc. n.º 37/16, supra citado, no mesmo sentido Ac. Rel. do Porto de 20/6/2016, relatado por Alberto Ruço, in
www.dgsi.pt, ao escrever “As relações jurídicas estabelecidas entre a CPAS e os seus associados são relações de natureza administrativa e cabem na competência geral mencionada na referida al. o), do n.º 1, do art.º 4 do ETAF”.

            Invoca a recorrente para fortalecer o seu ponto de vista a comunicação da Autoridade Administrativa que não existia lei que a autorizasse a execução fiscal de tal tipo de dívida.

            Porém, tal informação não constitui argumento suficientemente forte para os tribunais comuns aceitarem a competência e em consequência executar tal tipo de dívida, sendo que, como se escreve no Ac. da Rel. de Lisboa supra citado de 9/3/2017: “ (…) É certo que a aqui apelante terá “esbarrado” com a indisponibilidade da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) para propor os processos executivos para cobrança das contribuições em dívida à CPAS, por entender verificar-se falta de norma habilitante para o efeito, como resulta da comunicação da AT acima referida, entendendo a mesma que «essa possibilidade não tem cabimento no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), nem está expressamente consagrada em legislação avulsa especial, designadamente no Regulamento da CPAS, aprovado pelo Decreto-lei n.º 119/2015, e 29 de Junho ».

O radicalismo desse entendimento não parece, no entanto, ter em consideração que a remissão para «os requisitos previstos no CPPT», que resulta do nº 5 do art 81º do referido Regulamento - «disposição especial» que, nos termos da al d) do art 703º CPC, visa permitir que a certidão de dívida de contribuições emitida pela direcção da CPAS valha como título executivo - não pode deixar de implicar a expressa previsão para a utilização do processo de execução fiscal a que alude o nº 2 do art 148º do CPPT, ao dispor que «poderão ser igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei: a) outras dívidas ao Estado e a outras pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo (…)”.
            Sendo a CPAS como supra referido uma pessoa colectiva de direito público, a competência para solucionar tal tipo de litígios recai nos tribunais administrativos e fiscais.

Nos termos da al. o), do n.º 1, do art.º 4.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, já citado, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a «Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores».

Esta norma, dada a forma genérica como o seu conteúdo se encontra descrito, dá cobertura a qualquer falta de previsão expressa na lei sobre o tribunal competente para solucionar um litígio, desde que se trate de «relações jurídicas administrativas e fiscais».

As relações jurídicas estabelecidas entre a CPAS e os seus associados (como é o caso dos autos, pretendendo-se aqui cobrar coercivamente uma dívida composta por quotas vencidas e não pagas pelo réu), são relações de natureza administrativa e cabem na competência geral mencionada na referida al. o) do n.º 1 do art.º 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Assim, ao contrário do referido pela recorrente não foi violado o art.º 20, n.º 1, da C.R.P., desde logo, por existir norma para a recorrente obter a sua pretensão.

No caso em apreço, reportando-se o litígio à cobrança coerciva de contribuições não pagas por beneficiário da CPAS (pessoa colectiva de direito público), ele emerge de uma relação jurídica administrativa e fiscal e não de uma relação de direito privado, dado que nela a Caixa intervém no exercício de um poder de autoridade que lhe é conferido directamente pela lei sendo, em consequência, competentes os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos dos artºs. 212.º, n.º 3, da CRP e 1.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1, al. o), ambos do ETAF. E estando em causa contribuições para um regime de segurança social, embora de natureza especial, são aqui aplicáveis, por força dos artºs. 106.º, da Lei n.º 4/2007 e 1.º, do regulamento anexo ao DL n.º 119/2015, o disposto no art.º 60.º, da Lei n.º 4/2007 e, com as necessárias adaptações, no DL n.º 42/2001, pelo que será através do processo de execução fiscal nos termos que ficaram referidos para a cobrança coerciva das dívidas à segurança social que o direito da CPAS terá de ser exercido.

Assim, face ao exposto não vemos razão para alterar a decisão recorrida.
                                              
4. Decisão

Desta forma, por todo o exposto, acorda-se em julgar a presente apelação improcedente e, nesta medida, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 16/1/2018

Pires Robalo (relator)

Sílvia Pires (adjunta)

Jaime Ferreira (adjunto)