Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
302/10.8GBAND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: INQUÉRITO
DESPACHO DE ARQUIVAMENTO
RESTITUIÇÃO DE BENS
COMPETÊNCIA MATERIAL
VIOLAÇÃO
NULIDADE INSANÁVEL
PRINCÍPIO DA SUFICIÊNCIA DO PROCESSO PENAL
Data do Acordão: 02/27/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV ÁGUEDA JIC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: NULIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 7.º, 71.º E SS., 119.º, ALÍNEA E), 178.º, N.º 6, DO CPP, 20.º E 202.º, N.º 2, DA CRP
Sumário: I. O artigo 178.º, n.º 6, do CPP, introduzido pela reforma de 98 [Lei n.º 59/98, de 25-08], apenas permite a modificação ou revogação da medida de apreensão.

II. Decorrendo dos autos que:

- No decurso do inquérito, foram apreendidas à denunciada 488 paletes;

- A final, o Ministério Público arquivou o inquérito, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2, do CPP, e determinou a restituição das paletes à sociedade queixosa, por ser a sua legítima proprietária;

- Na sequência de requerimento apresentado pela denunciada, o Juiz de Instrução declarou juridicamente inexistente o referido despacho de arquivamento, na parte em que decidiu o conflito sobre a propriedade dos bens apreendidos nos autos e determinou a entrega dos mesmos à denunciante;

- Em momento posterior, no âmbito de “incidente sobre o destino de bens apreendidos”, o Juiz de Instrução, nos termos do disposto nos artigos 178.º, n.º 6 e 186.º, n.º 1, do CPP, reconheceu a denunciada como legítima proprietária das paletes e determinou que estes objectos lhe fossem restituídos,

estando em causa matéria de reserva jurisdicional, é justificada a intervenção do JIC ao declarar inexistente o dito segmento do despacho de arquivamento;

III. Ainda no quadro exposto, o mesmo não sucede quanto ao mais, porquanto, neste contexto, o JIC enxertou uma verdadeira acção cível num processo penal já findo, sem quadro legal que lho permitisse.

IV. Por outro lado, o invocado “princípio da suficiência”, consagrado no artigo 7.º do CPP, não consente semelhante ingerência em competência alheia, quer porque no caso em apreço a “causa” se mostrava finda, quer porque, tratando-se de uma questão prejudicial de natureza não penal (como é a da titularidade, nos termos da decisão da “propriedade”, dos bens), tendo já sido os autos objecto de despacho final por parte do MP, não tem aplicação o n.º 2 da referida norma.

V. Assim, no domínio em análise, ocorre nulidade insanável da decisão do JIC, prevista na alínea e) do artigo 119.º do CPP, resultante da violação das regras da competência em razão da matéria.

VI. Quanto às paletes, no quadro controvertido, que subsiste, respeitante à sua titularidade, em consonância com o despacho de arquivamento do inquérito, devem ser restituídas à sociedade que as detinha e a quem foram apreendidas, sem prejuízo de as “partes” virem a dirimir o litígio que as opõe no foro próprio, isto é, recorrendo aos meios civis.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes em conferência na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do inquérito n.º 302/10.8GBAND, que correu termos nos Serviços do Ministério Público na Comarca do Baixo Vouga – Anadia, no qual, além do mais – na sequência de queixa apresentada por A..., SAU (LPR) - se investigou a prática de um crime de furto qualificado ou de abuso de confiança qualificado, findo o mesmo o Ministério Público, considerando não se mostrar suficientemente indiciada a prática pela sociedade B...- dos sobreditos crimes, ao abrigo do disposto no artigo 277.º, n.º 2 do CPP, determinou o arquivamento dos autos, ordenando, ainda [no mesmo despacho] a restituição das 488 paletes apreendidas nos autos à sociedade LPR «enquanto legítima proprietária das mesmas» - [cf. fls. 144 a 153].

2. Não se conformando com a decisão, no segmento em que determinou a restituição das ditas paletes apreendidas à sociedade LPR «enquanto legítima proprietária das mesmas», reagiu a B... –, em requerimento dirigido ao Juiz de Instrução Criminal, invocando a nulidade, nessa parte, do despacho do Ministério Público, o qual encerraria «contradição evidente», ou, quando assim se não entendesse, de «séria irregularidade», que urgia corrigir, adiantando, mesmo, tratar-se de decisão, ferida do «vício de inexistência».

Terminou pedindo que fossem os invocados vícios declarados e, por via disso, o «despacho proferido revogado no que respeita à restituição das paletes à LPR, e, em substituição, fosse ordenada a restituição das paletes em causa à B... …, proprietária, possuidora e detentora daqueles bens à data da apreensão efectuada.» - [cf. fls. 169 a 175].

3. Decorrido o prazo para requerer a abertura da fase da instrução, sem que tal se tenha verificado, e após proceder à audição de A..., S.A.U., a qual se pronunciou nos termos de fls. 204 a 207, defendendo o indeferimento do requerido com a, consequente, manutenção da decisão do Ministério Público no segmento em que determinou que as paletes apreendidas lhe fossem restituidas – sendo que o Ministério Público já havia, antecipadamente, mantido integralmente o teor do despacho de arquivamento [cf. fls. 178] – pronunciou-se o Juiz de Instrução conforme fls. 225 a 227, decidindo:

«1. Declarar juridicamente inexistente o despacho de arquivamento na parte em que decide o conflito sobre a propriedade dos bens apreendidos nos autos determinando a sua entrega à ofendida A..., devendo os bens permanecer apreendidos nos autos até decisão judicial transitada em julgado que venha a dirimir o referido conflito;

2. ordenar a autuação, por apenso através de certidão, como «incidente sobre destino de bens apreendidos», do processado a fls. 153, parte final, 169 a 194, 197 a 224 e do presente despacho;

3. notificar os intervenientes no referido incidente para, querendo e em 10 dias, juntarem e/ou requererem a produção de prova que ainda não tenha sido junta aos autos em vista à decisão sobre o destino dos bens apreendidos.

(…)».

4. Após ter sido recolhida/produzida, no âmbito do «incidente sobre o destino de bens apreendidos» prova pessoal e documental, por despacho de fls. 481 a 484, decidiu o Juiz de Instrução:

«Face ao exposto, nos termos do disposto nos artigos 178.º n.º 6 e 186º nº 1 do CPP, reconhece-se a LPR – A... SAU como legítima proprietária das paletes apreendidas nos autos, determina-se que lhe sejam restituídas.

(…)».

5. Inconformada com o assim decidido recorreu “B... – Comércio de Produtos de Embalagem Unipessoal Lda.”, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1.º Na sequência da tomada de posição por parte da LPR no presente apenso, no âmbito do exercício do direito ao contraditório veio a B... apresentar o requerimento de fls. …, em que se pronunciou relativamente aos requerimentos apresentados pela LPR em 13/01/2012 e em 13/02/2012, impugnando a genuinidade de vários documentos juntos pela LPR em tais requerimentos, bem como invocando a sua impossibilidade de se pronunciar em relação a muitos de tais documentos por os mesmos estarem redigidos em idioma estrangeiro que não se domina.

2.º Nos termos do previsto no art. 139.º e 140.º do CPC aplicável ex vi art. 4.º do CPP, o idioma a empregar nos autos é o português, devendo os documentos redigidos em idioma estrangeiro serem traduzidos.

3.º No caso concreto afigura-se não só que inexiste qualquer tradução dos documentos redigidos em idioma estrangeiro, bem como, foram devidamente impugnados uma série de documentos relativamente à sua genuinidade e teor.

4.º No entanto, verifica-se que ao que parece o Julgador na sua decisão terá levado em conta os documentos redigidos em idioma estrangeiro sem que os mesmos fossem traduzidos para português, mesmo quando a B... havia salientado, invocando por requerimento, que não dominava tal idioma e que estava assim impossibilitada de exercer o contraditório.

5.º Uma vez que o Julgador entendeu tais documentos como relevantes para a boa decisão da causa, encontrando-se tais documentos redigidos em idioma que não o português, sempre se impunha que fosse oficiosamente ordenada a sua tradução para o português, por forma a permitir às partes em litigio entender a forma e sentido como como o julgador possa ter interpretado os documentos em que se estriba a sua decisão.

6.º Ao não o ter feito foi preterida uma formalidade processual legalmente imposta pelos art. 139.º e 14.º do CPC aplicáveis ex vi art. 4.º do CPP, o que consubstancia uma irregularidade processual prevista no art. 123.º do CPP, que não obstante ser de conhecimento oficioso (art. 123º n.º 2 do CPP) expressamente se invoca. Bem como, ao que parece, alicerçando-se a decisão em tais documentos redigidos em idioma estrangeiro juntos pela LPR e sendo omissa a decisão relativamente ao sentido em que os mesmos foram interpretados igualmente se verificará a nulidade prevista no art. 379.º n.º 1 do CPP por referência ao art. 374.º n.º 2 no que respeita à ausência do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, designadamente dos documentos redigidos em idioma estrangeiro, até porque atento o alegado pela LPR no ponto 3 do seu requerimento de 13/02/2012 nunca surgir a sua (LPR) identificação em qualquer documento estrangeiro, mas sim, e conjugado com o que alegou, a identificação de uma terceira entidade.

7.º Não se concebendo assim como é que a LPR acabou por ser considerada titular de quaisquer direitos no âmbito do CPI sobre o que quer que seja …

8.º A B... no seu requerimento igualmente invocou taxativamente a ilegitimidade processual da LPR, uma vez que a mesma expressamente confessou não ser proprietária das paletes em causa. (cfr. art. 22 a 28 do requerimento apresentado pela arguida B...).

9.º No entanto, a decisão proferida é totalmente omissa em relação a tal excepção de ilegitimidade processual invocada pela B....

10.º Referindo inclusivamente no seu início que “Não há questões prévias que importe conhecer.”.

11.º Perante a ilegitimidade processual da LPR invocada nos presentes autos pela arguida B..., sempre teria o julgador de se pronunciar sobre tal questão.

12.º Ao não o fazer igualmente se verifica a nulidade prevista no art. 379.º nº 1 alínea c) do CPP, por referência ao não conhecimento de tal questão suscitada pela arguida B.... O que expressamente se invoca.

13.º Por referência à decisão a proferir, a mesma deverá referir-se apenas e tão só sobre a questão de decidir a quem entregar os bens apreendidos nos presentes autos.

14.º Caso contrário, estaríamos a impor ao tribunal penal que decidisse questões que são indubitavelmente do foro cível. O que não se concebe. Desde logo atento o teor indiciário da prova produzida, e o previsto no art. 186.º do CPP.

15.º No entanto, a decisão proferida refere expressamente que reconhece a LPR como legitima proprietária das paletes em causa. Extrapolando em absoluto a delimitação da questão a decidir, que se prendia apenas e tão só com “a quem deverão ser entregues os bens apreendidos?”

16.º Qualquer decisão acerca da efectiva propriedade das paletes em causa apenas poderia ser proferida por um tribunal cível. Nunca no âmbito do processo penal, e muito menos no âmbito de um “incidente sobre destino de bens apreendidos”, sob pena de o tribunal agir fora da sua competência. O que se verificou no caso concreto, e expressamente se invoca. Consubstanciando tal a nulidade prevista no art. 119.º alínea e) do CPP. Que expressamente se invoca.

17.º Não se concebe como alegando expressamente a LPR no seu requerimento 13/02/2012 que não é proprietária das paletes, mas identificando como tal uma entidade terceira, pode o julgador, em clara e evidente contradição com a confissão dos factos apresentada pela LPR, reconhecê-la proprietária de algo que aquela expressamente afirma não ser.

18.º A decisão recorrida, atentas as disparidades entre os vários depoimentos produzidos, para além dos mesmos não serem consonantes mas sim contraditórios (como aliás já foi demonstrado), é totalmente omissa quanto aos critérios e raciocínios que levaram o Julgador a considerar uns depoimentos verdadeiros em detrimento de outros.

19.º Por exigência do art. 205.º n.º da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente devem ser fundamentadas nos termos legais. Por sua vez, os requisitos da sentença, nos termos do art. 347.º n.º 2 do CPP, impõem que ao relatório se siga a fundamentação, com a enumeração dos factos provados e não provados, e com uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

20.º Tal imposição de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e do seu exame crítico, tem por finalidade garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada por impressões, ou desconforme às regras da experiência. Por isso, o dever constitucional de fundamentação da sentença exige, também, a explanação dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou para que valorasse de determinada forma os meios de prova.

21.º No caso sub judicio as inúmeras contradições entre os depoimentos das testemunhas apresentadas pela B... e pela LPR, para além de nem sequer serem referidos na sentença recorrida, igualmente tão pouco são alvo de análise ou explicitação do motivo pelo qual não foram levadas em conta.

22.º Nos termos dos artigos 374º nº 2 e 379º nº 1 a) do Código de processo Penal, é nula a sentença que, ao proceder ao exame crítico das provas, o faz de modo a não permitir que os sujeitos processuais fiquem a conhecer os motivos porque não considerou na sua decisão determinado depoimento, não permitino desse modo ao tribunal de recurso a possibilidade de sindicar o seu juízo sobre esse meio de prova. Nulidade que no caso concreto se verifica e expressamente se invoca.

23.º Foram violados os artigos 205.º da Constituição da República Portuguesa, e o artigo 374.º n.º 2 do CPP, uma vez que o Julgador interpretou tais normas no sentido de não ser necessário proceder ao exame crítico das provas, nos termos acima descritos, não permitindo assim com a sua decisão que os sujeitos processuais fiquem a conhecer os motivos porque não considerou na sua decisão determinado depoimento, não permitindo desse modo ao tribunal de recurso a possibilidade de sindicar o seu juízo sobre esse meio de prova. Devendo tê-lo sido.

24.º Não obstante as supra invocadas nulidades, certo é que nunca poderiam ter sido dados como provados os factos descritos em “D”, “E” (no que se refere às paletes serem fabricadas pela LPR, e obedecerem a um processo específico de fabrico), “F”, e “H”.

25.º No que respeita aos factos mencionados em “D”, a decisão parece remeter para a prova documental em língua estrangeira carreada para os autos, sendo que por motivos de economia processual, desde já se dá por integralmente reproduzido o supra alegado relativamente a tal matéria, designadamente a irregularidade processual supra invocada.

26.º Não se concebe o alcance do entendido em tal alínea (“D”) dos factos provados ao ser referido que a LPR terá registado a seu favor “… o produto LPR A... ”. O que é, em que consiste o produto LPR? Qual o alcance de tal registo que a decisão entendeu dar como provado?

27.º Sob a epígrafe “O Direito”, a decisão faz alusão à figura jurídica da patente ou modelo de utilidade. No entanto, nunca esclarece se entende que o tal “produto LPR que alegadamente estaria registado” (sem referir onde, ou com que alcançe), se trata de uma patente ou de um modelo de utilidade. Sequer dá como provados quaisquer factos de onde se possa aferir tal conclusão.

28.º Verificando-se igualmente no que respeita a tal matéria, uma situação de insuficiência da matéria de facto para concluir em tal sentido. O que expressamente se invoca.

29.º No que respeita aos factos dados como provados em “E” – no que se refere às paletes serem fabricadas pela LPR, e obedecerem a um processo específico de fabrico, a prova produzida refere expressamente o contrário. Como aliás o próprio Julgador salientou em plena audiência!

30.º A decisão proferida ao ter dado como provado que a LPR fabrica paletes quando ficou expressamente esclarecido pela testemunha ... e pelo Julgador que a LPR não fabrica mas sim compra as paletes, enfrema de erro notório na apreciação da prova, previsto no art. 410 n.º 2 al. c).

31.º Não poderia nunca ser dado como provado que a LPR fabrica paletes.

32.º Da prova produzida não foi mencionado por qualquer fabricante de paletes qualquer processo específico de fabrico relativamente à produção de paletes que são posteriormente vendidas à LPR.

33.º A única referência ao processo de feitura das paletes que são vendidas à LPR teve que ver com a gravação de dizeres, e pintura das paletes em cor vermelha.

34.º Face à total ausência de prova produzida relativamente a processos específicos de feitura/produção de paletes, a decisão proferida ao ter dado como provado que as paletes fabricadas (que já vimos igualmente não seer verdade) pela LPR obedecem a um processo específico de fabrico, enferma de erro notório na apreciação da prova, previsto no art. 410 n.º 2 al. c).

35.º Igualmente os factos dados como provados em “F” e “H” nunca o deveriam ter sido.

36.º O depoimento da testemunha …, não foi minimamente levado em conta na decisão proferida, demonstrando claramente que as paletes que o mesmo comercializa lhe são oferecidas pelos destinatários das mesmas.

37.º O depoimento da testemunha  ,,, foi interpretado sem qualquer correspondência com o seu real teor, uma vez que tal testemunha referiu expressamente que de forma geral os “paleteiros”não têm conhecimento de qualquer limitação à transacção comercial das paletes de cor vermelha ou qualquer outra cor.

38.º Constata-se, mais uma vez, estarmos perante uma situação de erro notório na apreciação da prova, previsto no art. 410 n.º 2 al. c). O que expressamente se invoca.

39.º Não podendo por via de tal ser considerado provado que existem no mercado paletes que não podem ser livremente comercializáveis, e cuja comercialização está exclusivamente afecta à LPR.

40.º Existe uma contradição evidente que resulta da simples leitura dos factos dados como provados em “G” e “H” dos factos provados.

41.º Em “G” é dado como provado que é frequente a comercialização de paletes “de marca” por camionistas, e em “H” é dado como provado que tais paletes são transacionadas em exclusivo pela LPR.

42.º Se as paletes são transacionadas em exclusivo pela LPR, não pode ser frequente a sua comercialização por camionistas!!

43.º Resultando assim evidente a contradição insanável, nos termos previstos no art. 410.º n.º 2 alínea b) do CPP, entre os factos dados como provados em “G” e “H”. O que igualmente se invoca.

44.º Não se concebe como é que o Julgador entendeu aplicar o regime legal relativo a patentes ou modelos de utilidade – sendo certo que o mesmo nunca esclarece se entende estarmos perante uma patente ou modelo de utilidade – quando nada consta nos presentes autos que nos permita concluir em tal sentido.

45.º Foi assim erroneamente aplicado o regime dos art. n.º 97, 140.º, 101.º, 144.º, todos do CPI. Quando tais normativos não tem aplicação ao caso concreto.

46.º Igualmente foi aplicada a sanção de nulidade às compras e vendas celebradas pela B... na aquisição das paletes em causa, quando tal sanção não é cominada em nenhuma das disposições legais aplicadas pelo Julgador.

47.º Não obstante o já supra alegado em 13.º a 16.º das conclusões, foi violado o previsto no art. 187.º n.º 2 do CPP, ao não ter sido decidida a entrega dos bens à B... atenta a forma, provada lícita, como a mesma os adquiriu.

48.º Até porque como consta do contrato de aluguer junto aos autos, e da prova testemunhal produzida, os clientes da LPR quando não lhe devolvem as paletes que contratam indemnizam esta última pelo montante contratualmente previsto, verificando-se assim que as paletes em causa que foram alvo de apreensão já terão sido pagas pelos seus clientes à LPR.

49.º Assim, e tendo em conta o facto dado como provado de que a B... estava na posse das paletes em causa mediante vários contratos de compra e venda que realizou com diversas entidades, caso se entenda que a decisão proferida não padece das nulidades e irregularidades acima invocadas, sempre deverão tais paletes serem-lhe restituídas.

Assim, e face a todo o exposto, revogando a decisão proferida e ordenando a entrega dos bens apreendidos à arguida B..., farão Vossas Excelências inteira e costumada Justiça.

Tudo com as legais consequências.

6. Ao recurso respondeu A... ., S.A.U., concluindo:

1.º A convicção do julgador formou-se pela ponderação dos documentos relativos ao regista da marca LPR e do produto LPR A..., referido em D) dos Factos Provados, no mais tendo o Tribunal a quo suportado a sua convicção na prova testemunhal produzida.

2.º Os documentos de suporte do registo referido em D) dos Factos Provados não foram impugnados pela ora recorrente B...,

3.º Nem lhes foi oposta ininteligibilidade em razão do idioma, requerida a sua tradução, ou colocada em causa a sua exactidão, pelo que os mesmos ter-se-ão por genuínos;

4.º O Tribunal a quo, valora os demais documentos no âmbito da sua livre apreciação.

5.º A invocação da alegada irregularidade processual é extemporânea.

6.º As irregularidades, a existirem, mostram-se sanadas se não invocadas no prazo a que alude o art. 123.º do CPP, produzindo nestas circunstâncias os efeitos típicos do acto perfeito.

7.º A recorrente aproveitou-se do conteúdo desses mesmos documentos no art. 33.º do seu requerimento de 01.05.2012 e nas próprias motivações de recurso (pág. 4) para sustentar a alegada ilegitimidade da recorrida,

8.º Pelo que a alegada irregularidade sempre se teria por sanada por referência ao artigo 121.º, n.º 1 do CPP, extensível ao regime das irregularidades.

9.º A legitimidade processual, tal como a define o CPCiv. no seu art. 26.º, aplicável ex vi art. 4.º CPP, é aferida em relação aos sujeitos processuais pela verificação do interesse directo que esse sujeito tem em demandar ou contradizer.

10.º A recorrida detém a marca e o produto apreendido nos autos, que explora sob o regime de locação e não venda, estando esta proibida.

11.º A constatação de que a recorrida detém a titularidade dos bens e que, em regime de exclusividade, os explora comercialmente é verificação bastante do requisito de legitimidade processual, tal como definida no referido art. 26.º do CPCiv.

12.º A nulidade por omissão de pronúncia a que se refere o art. 379.º, n.º 1, al. c) do CPP verifica-se “Quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.

13.º O Tribunal não tem de responder a toda e qualquer questão, mas apenas às questões com relevo jurídico para o objecto dos autos suscitadas pelos sujeitos processuais.

14.º O Tribunal a quo não tem necessidade de se pronunciar sobre a expressão jurídica “ilegitimidade” escrita pela recorrente no seu requerimento superveninete,

15.º Tal expressão mostra-se esvaziada do seu conteúdo fáctico/substantivo, pelo que não se verifica a nulidade por omissão de pronúncia a que se refere o art. 379.º, n.º 1, al. c) do CPP.

16.º O princípio da suficiência do processo penal, previsto no art. 7.º do CPP, impõe que no processo penal se resolvam todas as questões que interessam à decisão da causa, mesmo que isso implique conhecer de uma questão não penal.

17.º Quando o Tribunal de competência criminal conhece de matérias de natureza cível conexas com o objecto do processo de natureza penal, não extravasa as suas competências nem viola as regras de competência em razão da matéria.

18.º O Tribunal a quo não pode sustentar a decisão de entrega dos bens apreendidos, sem apreciar qual dos sujeitos processuais tem a legitima titularidade dos mesmos.

19.º Ao assim pronunciar-se, respondendo à questão da titularidade para fundamentar a decisão final o Tribunal a quo deu cumprimento à estatuição dos artigos 7.º, n.º 1, 97.º, n.º 5 e 374.º, todos, do CPP,

20.º Não se verificando a invocada nulidade por violação das regras de competência do Tribunal.

21.º Não se verificam quaisquer “disparidades” entre depoimentos que impusessem que o Tribunal tivesse de tecer considerações relativamente a quais dos depoimentos foram considerados verdadeiros e quais os que assim não foram.

22.º O Tribunal a quo levou em linha de conta todos os depoimentos prestados como verdadeiros.

23.º Sendo a questão fundamental a da titularidade das paletes, não tem o Tribunal de escrutinar o conteúdo dos contratos existentes entre a LPR e os seus clientes.

24.º A decisão recorrida, atenta a sua natureza e âmbito, expõe suficientemente o raciocínio lógico do julgador de modo a que os destinatários compreendam as razões de facto e de Direito na base da decisão.

25.º Não padece a decisão recorrida da nulidade prevista nos art. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1 al. a), ambos, do CPP.

26.º O alcance do registo da marca e modelo de utilidade é o que deriva da legislação aplicável e a que a decisão alude – art. 101.º a art. 144.º do CPI.

27.º A constatação da existência deste registo é um facto em si mesmo, não é uma conclusão jurídica que deva derivar de matéria de facto.

28.º A expressão “paletes fabricadas pela LPR” usada no facto E) tem o alcance de estas paletes serem fabricadas por iniciativa da LPR, por determinação da LPR, por direito da LPR.

29.º O erro notório na apreciação da prova não se tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que a recorrente entende que seria adequada.

30.º O processo de fabrico engloba o controle da matéria prima, o tratamento da madeira, a aplicação de uma determinada tinta especifica e uniformizada em todo o Mundo, a marcação a fogo com símbolos distintivos, como se extrai do facto E), cuja redacção não merece censura.

31.º A convicção do Tribunal sobre o conhecimento generalizado no mercado relativamente ao cariz não transacionável das paletes LPR suportou-se em depoimentos directos, de pessoas que operam no mercado e conhecem não só as características das paletes, como a sua inalienabilidade.

32.º A testemunha  … não representa o mercado em que opera a recorrente, quando confrontado o seu depoimento com o de pelo menos de outros três () que operam nesse mercado.

33.º Não se verifica na decisão recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova previsto no art. 410.º, n.º 2 al. c) do CPP.

34.º Na matéria dada como assente há uma distinção entre o comércio ilegítimo de paletes «de marca» e a exploração comercial lícita que delas é feita pelo seu legítimo titular.

35.º As alíneas G) e H) da matéria de facto, em conjunto com a alínea F), são complementares lógica e textualmente.

36.º Para aferir da titularidade das paletes o Tribunal procedeu à aplicação do regime do CPI, partindo da prova que se verifica nos autos do registo da marca e do produto a favor da recorrida.

37.º Os efeitos derivados desse registo são, designadamente, o de não se poder considerar a recorrente B... como um terceiro de boa fé na aquisição que terá feito de tais paletes a outros paleteiros.

38.º A compra e venda das paletes LPR, sem o consentimento da recorrente consubstancia a venda de bens alheios e, não podendo a B... ser considerada nesta venda um terceiro de boa fé, essa venda ter-se-á por nula nos termos dos art. 144.º do CPI e art.º 892.º do C. Civil.

39.º A recorrente é terceira e estranha à relação contratual estabelecida entre a LPR e os seus clientes e em particular quanto aos mecanismos de compensação pelas perdas de paletes – art. 406.º, n.º 2 do C. Civil.

40.º Tais mecanismos de compensação não excluem a titularidade da LPR sobre as suas paletes nem configuram uma situação de comercialização das paletes, para os efeitos do art. 146.º do CPI.

41.º A indemnização pela perda da rastreabilidade da palete é inferior ao custo da palete,

42.º E destina-se a compensar a recorrida pelos custos acrescidos que tem com a procura e recuperação de tais paletes que “saem” do circuito normal e conhecido da locação.

43.º As paletes LPR não são objectos fungíveis por referência a qualquer outra palete que não tenha as mesmas características, designadamente matéria – prima e cor.

44.º As paletes da recorrida são passíveis de individualização e identificação no mercado de operadores logísticos, pelas suas características protegidas pelo competente registo.

45.º A expressão “propriedade inalienável” marcada a fogo nas paletes LPR é uma das características e marcas distintivas, protegidas por registo de propriedade industrial, que dão publicidade e atestam da sua titularidade, designadamente, entre os operadores do mercado da logística.

46.º Os bens móveis não sujeitos a registo são passíveis de direito de propriedade.

47.º Não se verifica qualquer sub-rogação nos direitos sobre as paletes por parte dos clientes que pagam a “indemnização”, posto que tal mecanismo não equivale a uma venda das paletes.

48.º Não possui a recorrente legítima posse sobre as paletes, posto que a compra dessas paletes que terá efectuada tem-se por nula pela aplicação das disposições dos art. 144.º do CPI e 892.º do C. Civil.

49.º Bem andou assim o Tribunal a quo ao determinar a restituição à recorrida das paletes apreendidas nos autos, não padecendo a decisão de qualquer vício de nulidade ou irregularidade.

Termos em que,

Deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, fazendo-se assim a acostumada

JUSTIÇA.

7. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este Tribunal.

8. Na Relação o Exmo. Procurador – Geral Adjunto apôs visto.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

Neste quadro as questões que, em princípio, urge responder traduzem-se em saber se ocorre:

- Irregularidade processual resultante da não tradução para português dos documentos;

- Nulidade por violação do artigo 374º.º, n.º 2 do CPP;

- Omissão de pronúncia relativamente à suscitada ilegitimidade processual da LPR;

- Nulidade insanável, por violação das regras de competência material do tribunal, do artigo 119.º, al. e) do CPP;

- Insuficiência da matéria de facto para a decisão;

- Contradição insanável da fundamentação;

- Erro notório na apreciação da prova;

- Violação dos artigos 97.º, 140.º, 101.º e 144.º do Código da Propriedade Industrial;

- Violação do artigo 186.º, nº 2 do CPP.

2. A decisão recorrida

É o seguinte o teor da decisão recorrida:

«I – Relatório e saneamento:

No âmbito dos autos principais foram apreendidas 488 paletes nas instalações da sociedade requerente B... –, Lda.

No final do Inquérito foi proferido despacho de arquivamento que, quanto ao destino dos bens apreendidos concluiu pela sua restituição à sociedade LPR – A... SAL enquanto sua legítima proprietária.

Na sequência de requerimento da referida B... opondo-se a tal destino e reclamando-se seu legítimo proprietário, alegando, em síntese, que adquiriu por compra e venda a terceiros as paletes em causa.

Cumprido o contraditório, também referida LPR se arrogou titular dos bens em causa, alegando, em síntese, que as paletes em causa são um seu exclusivo comercial, não sendo transaccionáveis por terceiros, facto que é conhecido em geral e era conhecido da B....

Foi proferido o despacho de fls. 56 que, concluindo pela existência de vício de «inexistência» de despacho anterior do MP, determinou a tramitação sob a forma de «incidente sobre destino de bens apreendidos» do conflito sobre a propriedade dos bens apreendidos nos autos.

Notificadas as partes foi apresentada prova testemunhal pela requerente B... e testemunhal e documental pela LPR.

Não há questões prévias que importe conhecer.

As questões a decidir versam a definição dos direitos de propriedade sobre as paletes em causa, nomeadamente atentas as seguintes questões:

- saber se as referidas paletes eram ou não livremente comercializáveis;

- saber se a B... adquiriu as paletes em causa de terceiros;

- em caso afirmativo, saber se a B... deve considerar-se terceiro de boa fé;

- nessa hipótese quais os efeitos jurídicos daquela aquisição.

II – Fundamentação

Factos provados:

A) Na sequência de uma busca realizada às instalações da B... – foram apreendidas 488 paletes em várias pilhas no interior das instalações, 7 dos quais no parque exterior.

B) As referidas paletes têm cor avermelhada e contêm nomeadamente as inscrições LPR e a expressão «propriedade inalienável».

C) A referida expressão está escrita, em algumas das paletes, em língua portuguesa, inglesa e francesa.

D) A LPR tem registado a seu favor a marca LPR e bem assim o produto LPR A... .

E) As referidas paletes fabricadas pela LPR obedecem a um processo específico de fabrico e são identificadas pelas inscrições LPR e pela cor avermelhada, sendo cedidas temporariamente em regime de locação.

F) É do conhecimento comum entre os operadores no mercado de paletes que existem paletes livremente comercializáveis e paletes «de marca» e que estas últimas não são livremente comercializáveis.

G) Não obstante é frequente a comercialização de paletes «de marca», nomeadamente por camionistas de transporte de mercadorias.

H) É do conhecimento comum entre os operadores no mercado de paletes que as paletes com as características referidas em E) são fabricadas e transaccionadas em exclusivo pela da LPR.

I) A B... comprou as paletes referidas em A) a pessoa indeterminada.

J) A B... dedica-se à comercialização de produtos de embalagem.


*

Motivação:

Prova documental junta aos autos quanto ao registo indicado em D) e testemunhas ouvidas em Inquérito e em Instrução quanto ao mais que, nomeadamente, referiram ser normal aparecerem motoristas e outras pessoas a venderem paletes que não foram recolhidas, mas que é do conhecimento de quem anda no meio que as paletes de cor avermelhada e letras LPR não podem ser livremente comercializáveis e que estas são perfeitamente identificáveis (quanto a estes últimos aspectos cfr. em especial depoimento das testemunhas  …………pois que tinham cabal razão de ciência e sem interesse na causa).

O Direito:

Resulta dos autos que a LPR tem registado a seu favor o produto LPR A... Rouge.

Nos termos do disposto nos artigos 97º, e 140º do CPI se a patente ou modelo de utilidade disserem respeito a um processo os direitos conferidos abrangem os produtos obtidos directamente pelo processo patenteado.

Por outro lado a patente e o modelo de utilidade conferem o direito exclusivo de exploração em qualquer parte do território português e, se for um processo confere ao seu titular designadamente o direito de proibir a terceiros, sem o seu consentimento, a oferta para venda, a venda do produto obtido directamente por esse processo – arts. 101º e 144º do CPI.

É certo que os direitos conferidos ao titular de uma patente ou modelo de utilidade estão sujeitos ao «esgotamento» a que se refere o art. 146º do CPI mas a comercialização de que ali se trata implica a colocação no mercado em termos do titular ter abdicado da sua exploração directa, o que, no caso do mero aluguer por parte do titular dos direitos, não se verifica. Efectivamente, pretende-se com a restrição à protecção não obstar à livre comercialização dos produtos patenteados uma vez introduzidos nmercado com esse destino.

No caso dos autos resulta dos autos que a LPR manteve para si a titularidade das paletes em causa, explorando-as mas sob o regime de aluguer e não de venda que está expressamente excluída. Deve pois concluir-se que estava vedada a venda por terceiros das paletes em causa, em face da protecção conferida pelo registo atrás referido.

Por outro lado, deve concluir-se que a B... adquiriu, por compra e venda, as referidas paletes de terceiros que a contactaram, como alías, resultou ser prática habitual.

Visto que a exploração exclusiva das referidas paletes se encontrava protegida nos termos descritos, estando designadamente proibida a venda, deve entender-se que a referida compra e venda é nula.

Mas deverá a referida B... ser considerada como terceiro de boa fé gozando de tutela?

Dos autos retira-se que era conhecida do meio a proibição de venda das paletes em causa, que tal proibição estava expressamente aposta nas paletes e também consta que a B... tem por objecto o comércio de produtos de embalagem.

Ora, sendo indubitavelmente terceiro o certo é que não pode considerar-se como terceiro de boa fé pois que face ao conhecimento generalizado no meio da referida proibição e à sua actividade era-lhe exigível que conhecesse que as paletes em causa não poderiam ser livremente comercializadas, nomeadamente não poderiam ser vendidas sem consentimento da LPR.

Também não estão verificados quanto à requerente os pressupostos do regime de inoponibilidade a terceiros constantes do CPI pois que, desde logo, os factos ocorreram já após o registo efectuado a favor da LPR do produto em causa.

Decisão

Face ao exposto, nos termos do disposto nos artigos 178º nº 6 e 186º nº 1 do CPP, reconhece-se a LPR – A..., SAL como legítima proprietária das paletes apreendidas nos autos, determina-se que lhe sejam restituídas.

Custas do incidente pela requerente B... fixadas em 3 UC´s.

Notifique e após trânsito, devolva os autos ao MP.»

3. Apreciando

De entre as várias questões suscitadas pela recorrente ressalta a que respeita à nulidade prevista no artigo 119.º, alínea e) do CPP, a qual, a proceder, pelas respectivas consequências conduz a que por aí se inicie o conhecimento do recurso.

Defende a recorrente ter ocorrido violação das regras de competência em razão da matéria na medida em que o tribunal decidiu a questão relativa à restituição dos objectos apreendidos nos autos, reconhecendo, para tanto, a recorrida [ A…] como sua proprietária, o que lhe estava vedado pois que tratando-se de matéria de natureza civil exorbitou a decisão da sua esfera de competência, cabendo esta ao foro cível.

Com vista à cabal compreensão do caso necessário se torna proceder a um esquisso dos aspectos processuais, para o efeito, relevantes.

Vejamos, pois.

No âmbito do inquérito n.º 302/10.8GBAND dos Serviços do Ministério Público da Comarca do Baixo Vouga – Anadia, com origem numa queixa apresentada pela A...[indicando como suspeita a B...], foi – além do mais - investigada a eventual prática de um crime de furto ou abuso de confiança em relação a um número não concretamente determinado de paletes.

No decurso da investigação vieram as ditas paletes [em número de 488] a ser apreendidas nas instalações da empresa B... [ora recorrente], conforme resulta do auto de fls. 64.

Após a realização das diligências probatórias consideradas pertinentes, o titular do inquérito decidiu pelo arquivamento dos autos, considerando não terem sido recolhidos suficientes indícios «da prática pela sociedade B... do crime de furto qualificado nem do crime de abuso de confinaça qualificado …».

Mais decidiu, na mesma ocasião, determinar a restituição das paletes apreendidas «à sociedade LPR, enquanto legítima proprietária das mesmas» [destaque nosso], o que fez no seguimento de haver consignado: «Perante a descrição factual … cumpre-nos concluir não existirem nos autos elementos indiciários suficientes para imputar à B... quer a prática do crime de furto qualificado, quer a prática do crime de abuso de confiança qualificado.

Desde logo, falece, em absoluto, o elemento subjectivo dos ilícitos em apreciação, sendo, aliás, plausível o cenário de a B... ter agido sem essa intenção dolosa.

Depois, e dos elementos probatórios carreados para o processo, verificamos que, nem relativamente ao preenchimento dos elementos objectivos do furto, nem do abuso de confiança, há indciação suficiente.

Em primeiro lugar, não resultam dos autos elementos que permitam imputar à B... a subtracção das paletes do domínio de facto da LPR, havendo, inclusive, indícios que sustentam a circunstância daquelas paletes poderem ter sido validamente vendidas à B..., sem prejuízo de não ter sido possível apurar em concreto quem terá efectuado tal venda.

Em segundo lugar, resulta dos autos que a B... se assumiu, desde sempre, legítima proprietária e detentora de todas e quaisquer paletes localizadas no seu estaleiro, maxime as referidas paletes LPR, não se tendo verificado qualquer entrega por título não translativo da propriedade.

Verifica-se, pois, uma ausência de indícios suficientes quanto à apropriação ilegítima daquelas paletes por parte da B....

De facto, não é pacífico nos autos que aquelas paletes tivessem carácter alheio. Aliás, da prova testemunhal recolhida resulta aliás que as mesmas poderão ter entrado validamente na esfera patrimonial da B... que, pelas mesmas, terá pago o respectivo preço …

Apesar de não constarem dos autos quaisquer documentos comprovativos dessa aquisição, certo é que, perante os depoimentos recolhidos não podemos afastar a existência dessas transacções para corroborar a versão da B... ao arrogar-se legítima proprietária das paletes em causa

…» [destaques nossos].

Na sequência do referido despacho não foi requerida a fase da instrução, tão pouco a intervenção hierárquica ou a reabertura do inquérito [cf. artigos 286.º, 278.º e 279.º do CPP].

Notificado do despacho de arquivamento, em requerimento dirigido ao Juiz de Instrução Criminal, arguiu a B... a nulidade, irregularidade e mesmo inexistência da decisão na parte em que reconheceu a A... como legítima proprietária dos objectos apreendidos, invocando, em síntese, não assistir ao Ministério Público o poder de «tomar decisões jurisdicionais sobre a propriedade ou posse de bens», acrescentando que «verificando-se a … desnecessidade de manutenção da apreensão … caso não fosse possível afirmar com certeza quem é o proprietário dos objectos, sempre deverá a situação ser reposta como se encontrava à data da apreensão, competindo às partes dirimir tal questão no direito civil».

 Nessa medida, solicitou que fossem reconhecidos os invocados vícios e, em consequência, revogado o dito despacho de arquivamento no segmento em que determinou a restituição das paletes à A..., o qual deveria ser substituído por outro que decidisse no sentido de lhe serem as mesmas restituídas, porquanto, ela sim, «proprietária, possuidora e detentora daqueles bens à data da apreensão efectuada».

Debruçando-se sobre o requerido, após cumprimento do contraditório, pronunciou-se o tribunal, nos termos constantes de fls. 225/227, decidindo, então:

«1 -declarar juridicamente inexistente o despacho de arquivamento na parte em que decide o conflito sobre a propriedade dos bens apreeendidos nos autos determinando a sua entrega à ofendida, devendo os bens permanecer apreendidos nos autos até decisão judicial transitada em julgado que venha a dirimir o referido o referido conflito;

2 – ordenar a autuação, por apenso através de certidão, como «incidente sobre destino de bens apreendidos», do processado a fls. 153, parte final, 169 a 194, 197 a 224 e do presente despacho;

3 – notificar os intervenientes no referido incidente para, querendo e em 10 dias, juntarem e/ou requererem a produção de prova que ainda não tenha sido junta aos autos em vista à decisão sobre o destino dos bens apreendidos.

(…)».

Instaurado o incidente, produzida prova testemunhal e documental, veio o JIC a proferir a decisão supra transcrita e, ora, em crise.

Desenhado que está o quadro dos acontecimentos, afigura-se-nos assistir razão à recorrente.

Com efeito, estando em causa matéria de reserva jurisdicional, se à luz das normas constitucionais [artigos 20.º e 202.º, n.º 2] se tem por justificada a intervenção do JIC, na sequência do requerimento a si dirigido, no qual foram suscitados os vícios, designadamente a inexistência do despacho do Ministério Público na parte em que determinou as restituição dos objectos apreendidos à denunciante, na medida em que, num contexto em que a titularidade dos bens surgia controvertida, a considerou sua «legítima proprietária», declarando inexistente tal segmento do despacho de arquivamento, já no que concerne ao âmbito da sua intervenção parece-nos ter exorbitado da respectiva competência, enquanto, em vez de se cingir aos elementos constantes dos autos, analisados no despacho de arquivamento, enxertou uma verdadeira acção cível – de resto bem patente na fundamentação expendida na decisão em crise – num processo de natureza penal findo, sem quadro legal que lho permitisse, decidindo reconhecer a LPR – A... … «como legítima proprietária das paletes apreendidas nos autos» [destaque nosso], determinando, em consequência, que as mesmas lhe fossem restituídas.

Os actos da competência do JIC no âmbito da fase de inquérito estão bem definidos no Código de Processo Penal [cf. artigos 268.º, 269.º do CPP, sendo que o caso concreto não é credor de nenhum dos regimes especiais disciplinados em legislação avulsa], sem que qualquer das normas, designadamente as convocadas na decisão, lhe atribuam a competência – resolver a questão controvertida da «propriedade» - que se propôs e veio a exercer.

Na verdade o artigo 178º, n.º 6 do CPP, introduzido pela Reforma Processual de 98 [Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto] no seguimento da Proposta de Lei n.º 157/VII [DAR, II série, nº 27, de 29.01.1998] na qual, na parte que ora releva, ficou a constar «Por outro lado, introduz-se a possibilidade de apreciação da medida de apreensão pelo juiz de instrução, dadas as restrições impostas ao direito de propriedade, que deve ser eficazmente tutelado.», apenas permite a modificação ou revogação da medida de apreensão, que pode ser ser requerida pelo titular do respectivo bem ou direito que se considere ilegitimamente lesado, circunstância que não ocorreu no âmbito dos autos, pois que há muito conhecedores da apreensão dos bens não reagiram as «partes», aspecto insusceptível de ser confundido com a pretensão que a final – aquando da determinação da restituição dos mesmos – veio a ser formulada pela ora recorrente, como, aliás, resulta inequívoco dos fundamentos em que, então, a fez suportar.

Por outro lado, o invocado «princípio da suficiência» – o qual, bem visto o teor dos despachos proferidos nos autos, cujo historial acima se esboçou, surge como a raiz do problema -, consagrado no artigo 7.º do CPP, não consente semelhante ingerência em competência alheia, quer porque no caso em apreço a «causa» se mostrava finda [n.º 1], quer porque, tratando-se de uma questão prejudicial de natureza não penal [como é a da titularidade, nos termos da decisão da «propriedade», dos bens], tendo já sido os autos objecto de despacho final por parte do Ministério Público – a qual em sede de responsabilidade criminal não mereceu contestação –, se impõe reconhecer não colher aplicação o disposto no n.º 2 do citado preceito legal, quando, em concretização do dito princípio [para questão prejudicial de natureza não penal] dispõe: «Quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente» - [destaque nosso].

Significa, pois, que na situação concreta a intervenção do JIC se tinha de confinar à decisão sobre a restituição dos bens apreendidos – e mesmo aqui tão só por via do vício assacado, e judicialmente reconhecido, ao despacho que pôs termo ao processo, na parte em que, surgindo o direito controvertido, reconheceu a denunciante como legitíma proprietária dos objectos e nessa medida determinou que lhe fossem restituídos – à luz dos elementos constantes dos autos, objecto de apreciação no despacho de arquivamento [pois que, não tendo havido lugar à fase da instrução, tão pouco tendo sido aquele objecto de «alteração» por via de reapreciação hierárquica, outro inexiste] e não já enveredar por um procedimento tendente ao reconhecimento da «propriedade» dos objectos, como veio a acontecer, enxertando, assim, nuns autos de inquérito, findos, uma acção de natureza cível – despojada, como é bom de ver, das garantias que a mesma oferece - para a qual falecia a competência do tribunal.

Na verdade, nesse domínio, no âmbito do processo de natureza penal, não se tratando de caso credor de regime especial, só pode o respectivo juiz conhecer de matéria cível, que surja controvertida, nos estritos termos contemplados nos artigos 71.º e ss. do CPP ou, em concretização do seu artigo 7.º, o que, já vimos, não sucedeu.

Afigura-se-nos, assim, ocorrer a nulidade insanável prevista na alínea e) do artigo 119.º do CPP, resultante da violação das regras da competência em razão da matéria, o que conduz à invalidade da decisão [em crise] e, bem assim, à de todos os actos processuais à mesma tendentes, designadamente à decisão de fls. 225 a 227 [e processado subsequente], subsistindo, contudo, esta, na parte em que foi declarado juridicamente inexistente o despacho de arquivamento no segmento em que decidiu o conflito sobre a propriedade dos bens apreendidos nos autos determinando, em consequência, a sua entrega à ofendida A... [artigo 122.º do CPP].

Sobrevive, pois, a questão da restituição dos objectos apreendidos [artigo 186.º, n.º 1 do CPP], a qual, no quadro controvertido, que subsiste, respeitante à titularidade dos bens, reflectido na análise levada a efeito no despacho de arquivamento, tem necessariamente de ser resolvida à luz dos princípios gerais, independentemente de as «partes» virem a dirimir o litígio que as opõe quanto à titularidade do direito no foro próprio, isto é recorrendo aos meios civis.

E aqui chegados, sendo incontestável terem sido os objectos [paletes] apreendidos à B... - nas respectivas instalações – atendo-nos à decisão que pôs fim ao inquérito, a qual incidindo sobre os elementos probatórios constantes dos autos discorreu conforme supra transcrito, impõe-se, em concordância com a mesma, determinar a sua restituição à B..., entidade que à data da apreensão as detinha, as possuía; se de boa ou má - fé, se entroncam em negócio nulo …, enfim se titular do direito é a recorrente ou, antes, a recorrida é matéria que as «partes», querendo, terão de ver respondida no foro próprio

É esta, aliás, a solução que, respeitando o quadro legal, se mostra em consonância com a fundamentação do despacho que pôs termo ao inquérito, donde resulta não estar inequivocamente demonstrada a «propriedade» da denunciante sobre os bens apreendidos, tão pouco a ilicitude da respectiva detenção/posse por parte da denunciada, a quem foram apreendidos.

Mostra-se, assim, prejudicado a apreciação das demais questões suscitadas pela recorrente.

III. Decisão

Termos em que acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, na procedência do recurso, em:

a. Julgar verificada a nulidade insanável resultante da violação das regras de competência em razão da matéria prevista no artigo 119.º, alínea e) do CPP e, em consequência, declarar inválida a decisão em crise e, bem assim, a de todos os actos processuais à mesma tendentes, designadamente à decisão de fls. 225 a 227 [e processado subsequente], subsistindo, contudo, esta, na parte em que declarou juridicamente inexistente o despacho de arquivamento no segmento em que decidiu o conflito sobre a propriedade dos bens apreendidos nos autos determinando, em consequência, a sua entrega à ofendida A... [artigo 122.º do CPP];

b. Determinar a restituição das paletes apreendidas nos autos à B... – entidade à qual [em cujas instalações] foram apreeendidas, sem prejuízo de as «partes» virem a recorrer aos meios comuns com vista a dirimir o conflito sobre a «titularidade» das mesmas.

c. Sem custas

Maria José Nogueira (Relatora)

Isabel Valongo