Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4129/19.3T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CAUSAS DE PEDIR
INCOMPATIBILIDADE SUBSTANCIAL
Data do Acordão: 03/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 186º, Nº 2, AL. C) DO NCPC.
Sumário: A incompatibilidade substancial entre causas de pedir que é fundamento de ineptidão da petição inicial nos termos da alínea c) do nº 2 do art.º 186º do CPC traduz-se na impossibilidade prática e lógica da sua coexistência perante a descrição fáctica que integra cada uma dessas causas, sendo independente da qualificação jurídica que sobre elas recaia.
Decisão Texto Integral:







Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

D... intentou no Juízo Central Cível de Leiria, Comarca de Leiria, uma acção sob a forma de processo comum contra C..., S.A., A... e R..., alegando, em síntese, o seguinte:

Na sequência da morte do pai e da prisão da mãe, ocorridas em 2001, o A., então com 8 anos de idade, ficou entregue aos cuidados da sua avó materna, a aqui 2ª Ré A...; nesse ano e em 2008 foram abertas duas contas em seu nome numa agência da 1ª Ré C..., S.A.; contas nas quais foram sendo depositados os montantes relativos à pensão mensal de sobrevivência atribuída ao A., e, posteriormente, os relativos a uma bolsa de formação que viria a ser-lhe atribuída; quando em 16.05.2010 o A. atingiu a maioridade a Ré A... pressionou-o a outorgar-lhe uma autorização para poder continuar a movimentar as referidas contas; sendo o A. portador de uma incapacidade motora global de 72%,  a referida autorização foi prestada e assinada pelo 3º R., declaradamente a rogo do A., em acto notarial de 17.05.2010, no Cartório Notarial do ... a cargo da ...; todavia, nunca o A. aí compareceu, tendo sido falsamente atestada a sua presença bem como o rogo por ele dado ao 3º R. para assinar aquela autorização; apurou o A. que, a coberto de tal autorização, entre 21.10.2010 e 10.01.2012 foram retirados da conta primeiramente aberta €30.970,00; que em 17.08.2009 dela já também haviam sido levantados €13.000,00; e que de ambas as contas saiu um total não inferior a €85.000,00, não tendo conseguido apurar o valor exacto; só com a participação de todos os RR. foi possível à 2ª Ré A… apoderar-se dos valores depositados nas contas bancárias abertas em seu nome.

Rematou pedindo a condenação solidária de todos os RR. a pagar-lhe, a título de danos patrimoniais, os montantes que se vierem a apurar como tendo sido levantados de todas as suas contas bancárias, cujo valor não é inferior a €85.000,00, e, bem assim, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 15.000,00, montantes estes acrescidos de juros vincendos desde a citação até efectivo e integral pagamento.                

Citados, todos os Réus contestaram, negando a prática de qualquer facto ilícito gerador da sua responsabilidade e terminando com a improcedência da ação (tendo ainda a 3ª Ré deduzido reconvenção). A Ré A... invocou também a ineptidão da petição inicial e a consequente nulidade de todo o processo porquanto a causa de pedir não só seria ininteligível como estaria em contradição com o pedido.

O Autor respondeu refutando a alegada ineptidão da petição, pugnando pela improcedência das exceções adversadas pelos RR. e pela inadmissibilidade ou improcedência da reconvenção deduzida pela 3ª Ré. Requereu ainda a condenação de todos os RR. como litigantes de - em multa e indemnização, no mais concluindo como na petição inicial.  

Dispensada a audiência prévia, proferiu-se despacho saneador no qual se julgou procedente a exceção da ineptidão da petição inicial, se declarou nulo todo o processo e se absolveram os Réus da instância.

Inconformado, desta decisão recorreu o Autor, recurso admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

Os pressupostos de facto a ter em consideração são os que decorrem do relatório que antecede.

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respetiva alegação, o Autor e agora apelante circunscreve o objecto recursivo à questão de saber se não se verifica nenhum dos dois fundamentos que levaram o tribunal recorrido a declarar inepta a petição inicial: contradição entre o pedido e a causa de pedir delineada quanto à Ré A... e incompatibilidade substancial entre as causas de pedir carreadas quanto a cada um dos RR..

Não houve contra-alegações.

Apreciando o objecto recursivo.

Começa a decisão recorrida por considerar que a causa de pedir da ação quanto à Ré A... respeitaria à “utilização” que esta fez de quantias pertencentes às contas do Autor enquanto este era menor e estava à guarda de facto desta Ré (avó materna).

Esta premissa não se ajusta à matéria alegada.

Na verdade, se é certo que o A. alega no art.º 39 da p.i que em 17.08.2009 – numa altura em que ainda era menor – foram levantados das suas duas contas €13.000,00, levantamentos que no art.º 42 da mesma peça imputa à Ré sob a expressão “apoderar-se” – no art.º 38 situa entre 21.10.2010 e 10.01.2012 – período situado na sua maioridade – a “retirada” de €30.970,00 de uma dessas contas.

Depois alude no art.º 40 a um total de levantamentos de €85.000,00 de ambas as contas sem precisar os períodos em que eles se teriam operado.

A decisão recorrida alude a uma “guarda de facto” exercida pela Ré A... no período da menoridade do Autor.

Só que em nenhum ponto da p.i. se alude ao estatuto da aludida Ré relativamente às responsabilidades parentais do A. enquanto menor, não sendo, por isso, legítimo ou razoável asseverar que este estava à “guarda de facto” daquela.

Aliás, lendo a petição não se compreende – e, por isso, logo aí se impunha que o A. o esclarecesse – como foi possível a movimentação das contas do A. pela Ré A… durante a menoridade daquele.

De todo o modo, o que o Autor imputa a esta Ré é uma “apropriação” de montantes que integravam as suas contas. É o que está plasmado no art.º 41 da p.i.: “(…) foi possível à 2ª Ré apoderar-se dos valores depositados (…)”.  É, assim, perfeitamente incompreensível – e mesmo gerador de estupefação – que a partir da premissa da imaginária “guarda de facto” o Sr. Juiz conclua que esta Ré actuou no quadro de uma “gestão de negócios” de que resultaria estar apenas obrigada a uma prestação de contas pela actividade que desenvolveu nesse âmbito.

Mesmo que o enquadramento qualificativo da causa de pedir quanto a esta Ré fosse o da “gestão de negócios” tal não implicaria a sua contradição com o pedido.

Com efeito, o pedido de restituição das quantias levantadas nem seria inconciliável com a fonte obrigacional que incorrectamente foi tomada pela decisão recorrida.

Como tem sido entendido, a contradição que para este efeito releva é meramente lógica, o que significa que é independente ou alheia à inadequação da qualificação jurídica da fonte obrigacional concretamente explanada na petição.

Não havia que trazer para a lide o instituto da “gestão de negócios” dos dinheiros do A., pois esta figura que é absolutamente excluída pela teia factual em que o A. envolve os RR., e, em particular, a Ré A...

A “gestão de negócios” é uma fonte obrigacional geradora de responsabilidade extracontratual por um facto lícito.

Ora o que está alegado é uma conduta ilícita corporizada na alegada subtracção de dinheiros do A. levada a cabo pela 2ª Ré com a colaboração – aparentemente dolosa – dos restantes RR.. Ou seja, um facto ilícito da A. A... que terá sido causa dos danos peticionados pelo A..

Não há, por conseguinte, nenhuma contradição entre o pedido e a causa de pedir desenhada relativamente à Ré A... Sem embargo da necessidade de aperfeiçoamento da alegação produzida quanto aos períodos em que ocorreram os levantamentos e o estatuto desta Ré face à menoridade do A., é evidente que é o facto ilícito da apropriação o único fundamento do pedido de condenação da Ré A...

Vejamos agora o outro fundamento apontado para a ineptidão da petição inicial: a incompatibilidade substancial das causas de pedir em relação a cada um dos RR..

Entendeu-se na decisão recorrida que a causa de pedir desenhada para a Ré C... – o incumprimento do contrato de depósito – é incompatível com aquela que o A. utiliza quanto à 2ª Ré A... Não vemos onde se evidencie a referida incompatibilidade na causa de pedir que é delineada quanto à Ré C... No que concerne aos restantes Réus não é apontada qualquer incompatibilidade: são elencadas algumas insuficiências alegatórias que conduziriam a uma eventual improcedência da ação quanto a eles.

Ora a alínea c) do nº 2 do art.º 186º do CPC estabelece que a petição inicial é inepta “Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.

Causas de pedir incompatíveis são aquelas que, de um ponto de vista prático, são inconciliáveis por a demonstração de uma delas excluir óbvia ou necessariamente as outras ou uma das outras.

Não é o que sucede nos presentes autos.

A demanda dos Réus na ação tem por fundamento a alegação de diversa factualidade que, dizendo respeito a cada um deles, terá confluído ou contribuído para que fosse possível à 2ª Ré “apoderar-se” dos montantes reclamados. Não há entre as diversas causas de pedir esgrimidas uma exclusão necessária. No quadro funcional descrito pelo A. na p.i. cada uma das condutas atribuídas aos diversos Réus convergiu no resultado que foi alcançado pela 2ª Ré: todas essas condutas terão concorrido para o dano pretensamente sofrido pelo A., dano que está traduzido no pedido da condenação solidária de todos os RR. no pagamento dos valores pretensamente retirados das contas do A..

As actuações ilícitas imputadas pelo A. na p.i. a cada um dos RR. surgem, por conseguinte, como complementares entre si porquanto, segundo o A., terá sido a sua articulação que permitiu à Ré A... concretizar a apropriação dos valores que àquele pertenciam. Se essa actuação não foi cabal e inteligivelmente descrita, contendo algumas incongruências e insuficiências, isso não implica incompatibilidade entre as causas de pedir, mas eventualmente a necessidade da correção e aperfeiçoamento da respectiva alegação, o que ainda pode ser alcançado através do mecanismo corretivo do art.º 590º, nºs 2, al.ª b) e nº 4 do CPC.

Ou seja, também não ocorre a incompatibilidade substancial de causas de pedir que foi reconhecida na decisão recorrida.

Donde que a decisão impugnada não possa ser mantida.   

Pelo exposto, na procedência da apelação, revogam a decisão recorrida e, em função disso, determinam o prosseguimento dos autos, nomeadamente com o convite do A., ao abrigo do disposto no art.º 590º, nº 2, al.ª b) e nº 4 do CPC, ao aperfeiçoamento da petição nos aspectos ou pontos acima identificados (designadamente no esclarecimento da qualidade em que a 2ª Ré movimentou as contas do A. até à sua maioridade e na quantificação do montante do pedido que respeita a esse período).

Sem custas.

                                            Coimbra, 9 de Março de 2021

            Sumário:

A incompatibilidade substancial entre causas de pedir que é fundamento de ineptidão da petição inicial nos termos da alínea c) do nº 2 do art.º 186º do CPC traduz-se na impossibilidade prática e lógica da sua coexistência perante a descrição fáctica que integra cada uma dessas causas, sendo independente da qualificação jurídica que sobre elas recaia.