Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
933/06.0TBSCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: USUCAPIÃO
POSSE
BENS COMUNS
INVENTÁRIO
Data do Acordão: 06/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SANTA COMBA DÃO 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 1252º Nº1 DO CC
Sumário: I – À pergunta sobre se o A. e a Ré, sua ex-mulher, cultivaram o quintal da forma que entenderam, o segmento da resposta de que procederam ao seu cultivo por intermédio dos pais da ré, cabe nessa resposta;

II – Trata-se de um lícito facto instrumental revelador do corpus da posse em nome próprio, ainda que por intermédio de outrem (art.º 1252.º, n.º 1, do CC);

III – Só a partilha dos bens comuns põe fim à comunhão conjugal, que não a dissolução do casamento por divórcio;

IV – A posse usucapível sobre determinado bem, iniciada pelo casal, prolonga-se até à adjudicação dos bens a cada um dos cônjuges, em processo de inventário para partilha dos bens comuns.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

A... propos, no 1.º Juízo do TJ da comarca de Santa Comba Dão, acção com forma de processo ordinário contra B... e C..., pedindo a sua condenação a reconhecer que é dono do terreno (quintal) anexo à sua casa de habitação e à casa de arrumações, nele construída, inscrito (hoje) na matriz predial urbana sob o artº. n.º w..., a demolir o muro que edificaram, a restituir, devoluto, esse terreno e casa de arrumações e pagar ao A. os prejuízos que ulteriormente vierem a liquidar-se.

Alegou, para tanto, ser dono e possuidor do prédio urbano (casa de habitação) sito em Albergaria, a confrontar de norte com JC..., nascente com JC..., poente e sul com caminhos, inscrito na matriz predial (urbana), da freguesia de Oliveira do Conde, sob o art.º n.º x... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Carregal do Sal sob o n.º y..., sendo que em 1973 ele e a R. C..., então marido e mulher, construíram aquela casa e ocuparam-na em 1974, vindo, em 1975, a construir, no terreno junto à casa de habitação, uma casa de arrumações, com a área de 40 m2, murando o terreno do caminho público (deixando apenas uma entrada para veículos) e dos referidos vizinhos, com comunicação directa, a sul, com a aludida casa de habitação, nomeadamente através de uma pequena escada.

O terreno é o correspondente à “terra de cultura”, a confrontar do norte com JC... e casa de arrecadação do próprio, do nascente com JC... e do sul e poente com caminho público e urbano do próprio, inscrito na matriz rústica da freguesia de Oliveira do Conde sob o art. z... e omisso na Conservatória do Registo Predial.

 Desde então, por mais de 20 anos, continuadamente, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse e na convicção de estarem a exercer um direito próprio, sem ofensa do direito de terceiros quer ele, quer a R. C... habitaram a casa, ocuparam a casa de arrumações nomeadamente com lenhas, utensílios, alfaias, cultivaram e ocuparam o resto do terreno (quintal) da forma que entenderam, deles tirando as utilidades e/ou frutos de que são susceptíveis, como prédio único (misto).

Tal prédio, após o decretamento do divórcio entre ambos, foi licitado pela mencionada C..., sendo que, não tendo a mesma procedido ao pagamento das tornas, foi promovida a execução respectiva para o recebimento das mesmas, vindo, a final, o mesmo a ser-lhe adjudicado, por aceite a sua proposta em carta fechada para o efeito, todavia, tendo-se a ré recusado a proceder à entrega do prédio, a mesma só ocorreu após a intervenção do tribunal em Fevereiro de 2002.

Numa das suas vindas a Portugal veio a aperceber-se que a R. B..., ou ambas as RR., após aquela entrega, procederam à construção de um muro de vedação, em blocos de cimento, mesmo encostado à parede norte da casa de habitação, muro esse que corta o acesso desta para o quintal e casa de arrumações, tendo ainda colocado junto deste um cão que se encontra preso.

Para além disso, veio também saber que já os pais da R. C..., a ora R. B... e marido D..., entretanto falecido, haviam feito uma escritura notarial, em 1998, justificando, “pela usucapião”, ser donos e possuidores daquele prédio rústico (art. n.º z...), que haviam adquirido por compra e venda não titulada em 1969.

Apesar de várias vezes interpeladas para demolir tal muro de vedação e retirar tudo, incluindo o cão, do terreno (quintal) e da dita casa de arrumações, as RR. não o fizeram, nem mostram vontade de o fazer, o que tem impedido o A. de usar o quintal (anexo) da casa de habitação bem como a casa de arrumações.

Citadas, contestaram as RR., por impugnação e dedução de reconvenção, pedindo se declare que os prédios inscritos na matriz predial urbana da freguesia de Oliveira do Conde sob os artigos n.ºs x... e w... e descritos na Conservatória do Registo Predial do Carregal do Sal sob os nºs. y.../040504 e 5560/20060120, respectivamente, são autónomos e distintos entre si e consequentemente se reconheça serem as mesmas as únicas donas e legítimas possuidoras ( meação da R. B... e comunhão hereditária de ambas na outra metade) do prédio inscrito na matriz sob o artigo n.º w..., devendo ainda o reconvindo abster-se de perturbar o pleno e exclusivo gozo por parte das reconvintes.

Alegaram, para tanto, em síntese, que desde 12 de Setembro de 1969, data em que a R. B... e marido D... adquiriram o terreno onde autorizaram a construção da casa de habitação e passaram a agricultá-lo, aí secando o milho, o que vem fazendo até ao presente a R. B... e até ao seu falecimento seu marido, tendo nele procedido à construção de uma casa que inicialmente servia de arrecadação, actos esses que ocorreram à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, incluindo do ora A. e na convicção por parte da R. B... e marido de exercerem um direito próprio.

Houve lugar a réplica onde o A. concluiu pela improcedência da reconvenção e ampliou o pedido inicial, requerendo a eliminação do artigo matricial urbano nº w... da freguesia de Oliveira do Conde e o cancelamento na Conservatória do Registo Predial da respectiva descrição do mesmo e inscrição da aquisição a favor da R. B... e marido.

As RR. apresentaram tréplica para considerarem infundada a ampliação do pedido que, contudo, foi admitida.

Foi proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto considerada assente (FA) e organizada a base instrutória (b. i.), de que houve reclamação, sem êxito, de ambas as partes, afora uma ligeira rectificação à alín. A) dos FA.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi respondida a matéria de facto, de que não houve reclamação.

Proferida sentença, veio a acção a ser julgada parcialmente procedente e as RR. condenadas a reconhecer que o A. é dono do terreno anexo à casa de habitação e da casa de arrumações enquanto partes integrantes do prédio objecto da adjudicação ocorrida na sequência de partilha entre si e a Ré C..., esta Ré condenada a proceder à demolição do muro a que se reporta o ponto XX da factualidade provada e consequentemente restituir ao A. devoluto aquele terreno e casa de arrumações e ordenado o cancelamento do registo de aquisição do prédio actualmente inscrito na matriz predial urbana sob o art.º n.º   w... e que resultou da alteração da natureza do prédio rústico inscrito sob o art.º n.º z... a favor da Ré B... e marido D..., do demais peticionado, absolvendo as RR.

A reconvenção foi julgada improcedente e o A. absolvido do respectivo pedido.

Inconformada, recorreu a Ré C..., apresentando alegações que rematou com as seguintes conclusões:

a) O Tribunal a quo julgou procedente a acção, decidindo que o A. é dono do terreno anexo à casa de habitação e casa de arrumações enquanto partes integrantes do prédio objecto da adjudicação ocorrida na sequência de partilha entre si e a R. C..., tomando, desta forma, conhecimento de questão que não foi sujeita à sua apreciação e decidindo de forma não sustentada no pedido que lhe foi formulado pelo A. e nos fundamentos por este invocados, violando, desta forma o principio do dispositivo, incorrendo em nulidade;

b) Os pontos XVII, parte final – “mas também para proceder ao seu cultivo por intermédio dos pais da R. C...” – e XVIII, da matéria de facto da sentença, estão incorrectamente julgados;

c) O ponto XVII por não constar da matéria alegada pelo A., ou tão pouco pelas RR., e não ter sido, sequer, questionada, devendo tais factos, que, enquanto principais, necessitariam ter sido alegados, ser eliminados;

d) O ponto XVIII, uma vez que não resultou demonstrado o lapso temporal aí referido, impondo decisão diversa quanto a ele a conjugação dos depoimentos das testemunhas, E..., F..., G..., H..., e do documento – certidão da sentença do divórcio proferida nos autos de processo nº17/1993 – junto aos autos com o requerimento probatório apresentado pelo autor;

e) Deverá, por isso, ser julgado não provado que a actuação descrita em 11e 12 ocorre há mais de 20 anos;

f) O A. invoca a contitularidade do direito de propriedade, fruto da comunhão conjugal, alegando a prática de actos materiais pelo casal, os quais, por revelarem a actuação correspondente à titularidade desse direito, teriam conduzido, pelo decurso do tempo, à aquisição originária do mesmo – usucapião;

g) Contudo, tal actuação, fruto da conjugação dos elementos de prova acima referidos, não perdurou por tempo superior a 20 anos, ou, considerando a própria alegação do autor em sede de acção de divórcio, sequer, por mais de 15 anos;

h) O que permite concluir que, pelo modo descrito na petição inicial, o A. não adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio inscrito na matriz sob o artigo nº. z..., actual nº w..., o que conduzirá à improcedência da acção.

Na resposta apresentada o A. suscitou as questões prévias da extemporaneidade das alegações e da falta de indicação das normas jurídicas violadas ou sentido da sua interpretação e aplicação e, quanto ao mérito do recurso, pugnou pela manutenção da sentença recorrida

Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões a apreciar:

a) – As questões prévias arguidas pelo recorrido;

b) – A nulidade da sentença por violação do princípio dispositivo (excesso de pronúncia);

c) – A impugnação da matéria de facto quanto às respostas dadas aos art.ºs 12.º e 13.º da b. i., respectivamente por resposta excessiva e incorrecção de julgamento.


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            2. Fundamentação

            2.1. De facto

            A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos, que como tal importa manter, como à frente melhor se dirá:

I - O autor é dono de um prédio urbano (casa de habitação) sito em Albergaria, a confrontar do norte com JC..., nascente com JC..., poente e sul com caminhos, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Oliveira do Conde, sob o artigo x...º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Carregal do Sal, sob o nº y... (al. A) da factualidade assente e rectificação de fls. 240);

II - O autor e ré C..., então marido e mulher, construíram a casa mencionada em A) em 1973 e ocuparam-na em 1974 (al. B));

III - Correu termos na 2ª secção do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão o inventário para separação de meações com o nº 17-A/93, no qual figurava como requerente o autor A... e como requerida C... (al. C));

IV - No âmbito do inventário aludido em C) foi relacionada sob a verba nº 14: Uma casa de habitação com dois pavimentos, no rés-do-chão, loja e 1º andar com três divisões (quartos), um salão, uma cozinha, uma casa de banho, sita nas Chancas, Albergaria, com a área coberta de 116,8 m2, a confrontar do norte com JC..., do sul e do poente com caminho público e do nascente com JC..., inscrita na matriz predial urbana da freguesia de Oliveira do Conde sob o artigo nº x....(al. D));

V - No inventário aludido em C) a ré C... licitou na verba mencionada em D) (al. E));

VI - Consta do edital certificado a fls. 27 destes autos que, no âmbito do inventário aludido em C), “(…) foi resolvida a venda por meio de propostas em carta fechada” da verba supra identificada sob o nº 14, constando ainda do auto de abertura de propostas certificado a fls. 28 destes autos que, relativamente a tal verba, foi aceite a proposta apresentada pelo interessado e credor A..., a qual lhe foi, posteriormente, adjudicada (al. F));

VII - O autor reside no estrangeiro, onde é emigrante, há muitos anos, vindo a Portugal de vez em quando, mas não todos os anos (al. G));

VIII - No dia 5 de Março de 1998, no Cartório Notarial de Carregal do Sal, foi celebrada a escritura denominada “Justificação”, certificada a fls. 158 e ss e na qual, além do mais aí exarado, os primeiros outorgantes D... e B..., declararam que:“(…) são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, de um prédio rústico sito em Chancas, freguesia de Oliveira do Conde, concelho de Carregal do Sal, composto de terra de cultura, com a área de quinhentos e quinze metros quadrados, a confrontar do norte com JC... e casa de arrecadação do próprio, do sul caminho público e urbano do próprio, do nascente com JC... e do poente com caminho público, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Carregal do Sal, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo k... em nome do justificante marido (…) que o mesmo foi por eles adquirido, por compra e venda, feita no ano de mil novecentos e sessenta e nove (…)”.(al. H));

IX - Da certidão emitida pelos Serviços de Finanças de Carregal do Sal, relativa ao prédio aí mencionado, junta a fls. 17 e ss destes autos, consta ter sido eliminado A... como titular do direito ao rendimento, aí passando a constar, nessa qualidade, D..., mostrando-se aposta em tal certidão a menção “eliminado passou ao artigo urbano w...” (al. I));

X - No dia 12 de Setembro de 1969, no Cartório Notarial de Carregal do Sal, foi celebrada escritura pública, denominada pelos outorgantes como “Compra e Venda”, na qual, além do mais aí exarado, I...e J..., declararam vender a JC..., casado com M... segundo o regime da comunhão geral de bens e a D... casado com C..., sob o regime da comunhão geral de bens: “(…) uma terra bravia, sita às Chancas, limite de Albergaria, freguesia de Oliveira do Conde, concelho de Carregal do Sal, a confrontar do nascente com caminho público, bem como do poente e do sul, e do norte com Herdeiros de AA..., inscrita na matriz predial rústica sob os artigos números dois mil, duzentos e quarenta seis, um quarto, dois mil duzentos e quarenta e oito, um quarto, e dois mil duzentos e cinquenta e dois, um quarto (…) não descrita na Conservatória do Registo Predial de Santa Comba Dão (…)”(al. J));

XI - Por ocasião das novas avaliações prediais, no início dos anos 80, o artigo rústico z... foi atribuído a A... (al. L));

XII - No ano de 1975, o autor e a ré C... construíram no terreno junto ao prédio urbano mencionado em A), uma casa de arrumações, com a área aproximada de 40 m2 (resp. aos arts.1.º e 2.º);

XIII - O terreno junto à casa de habitação mencionada em A), veio a ser murado a toda a sua volta, sendo que na parte que confronta com o caminho público foi deixada uma entrada para veículos (resp. aos arts.3.º e 4.º);

XIV - O mencionado terreno tem comunicação directa, a sul, com a aludida casa de habitação, nomeadamente através de uma pequena escada (resp. ao art.5.º);

XV - O terreno mencionado no art.º 1.º da b. i. corresponde à terra de cultura que confronta do norte com JC... e casa de arrecadação referida nos arts.1.º e 2.º, do nascente com JC..., do sul e poente com caminho público e casa de habitação referida em A), inscrita na matriz rústica da freguesia de Oliveira de Conde sob o art.º n.º z... e omisso na Conservatória do Registo Predial (resp. aos art.ºs 6.º, 7.º,8.º,9.º e 10.º);

XVI - O autor e a ré C... habitaram a casa e ocuparam a casa de arrumações, nela guardando, para além do mais, lenhas, utensílios e alfaias (resp. ao art.º 11.º);

XVII - O autor e ré C... passaram a ocupar o resto do terreno, não só para através do mesmo se deslocarem entre as casas de habitação e arrumação, mas também para proceder ao seu cultivo por intermédio dos pais da ré C... (resp. ao art.º 12.º);

XVIII - O descrito em 11º e 12º (da b. i.) ocorre, há mais de 20 anos, continuadamente (resp. ao art.º 13.º);

XIX - Os actos referidos nas respostas dadas aos art.ºs. 11.º e 12.º , foram sendo praticados pelo autor e ré C... à vista de toda e gente, sem oposição de ninguém e na convicção de ao assim actuarem exercerem um direito próprio, sem ofensa de terceiro. (resp. aos art.ºs.14.º e 15.º);

XX - A ré C... mandou proceder à construção de um muro de vedação, em blocos de cimento, sito a cerca de 0,40 m da parede norte da casa de habitação identificada em A) (resp. ao art.º 16.º);

XXI - Por força da construção de tal muro, ficou cortado o acesso da casa de habitação para o quintal e casa de arrumações (resp. ao art.º 17º);

XXII - Aquando da construção do muro foi colocado junto a este um cão que aí permaneceu durante algum tempo (resp. ao art.º 18º);

XXIII - O prédio referido em H) e I) corresponde à casa de arrumações referida em 1.º da b. i. (resp. ao art.º 19.º);

XXIV - Em data não concretamente apurada mas posterior à celebração do acordo referido em J), D... e esposa e B... e JC... e esposa delimitaram no solo as parcelas com que cada um dos casais veio a ficar na sequência da divisão a que procederam (resp. aos art.ºs. 22.º, 23.º e 24.º);

XXV - Na sequência da construção da casa pelo autor e ré C..., a ré B... e marido, este até ao seu falecimento, passaram a agricultar o terreno junto aquela e aí a secar milho (resp. ao art.º 25.º);

XXVI - O referido em 25.º, ocorreu à vista de toda a gente e nunca teve oposição de ninguém, incluindo do ora autor (resp. aos art.ºs 26.º e 27.º);


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            2.2. De direito

1. Começando pelas questões prévias, duas vêm suscitadas:

- Extemporaneidade das alegações, em 2 vertentes:

a) – Terem sido apresentadas ao fim de 81 dias (40+40+1) quando a prorrogação acordada entre as partes fora de 5 dias, sendo que a Ex.ma Juíza prorrogou por “igual período” [de 40 dias], com o que foi cometida nulidade;

b) – Ser o prazo de 30 dias, por falta de impugnação da matéria de facto e reapreciação de prova gravada:

2.ª – Falta de indicação, nas alegações, das normas jurídicas violadas ou do sentido da sua interpretação e aplicação.

Apreciando, quanto à alín. a), se é certo que as partes acordaram na prorrogação do prazo para apresentação das alegações por 5 dias (fls. 387), certo é também que a Ex.ma Juíza a quo deferiu o requerido por “igual período” [40 dias].

Fosse por não ter reparado no prazo mais curto solicitado, ou não, certo é que sempre a decisão seria de manter, de acordo com o princípio da confiança e, depois, porque , oportunamente não impugnada, sobre ela se formou caso julgado formal, que a todos obriga no processo - a que é aplicável a redacção do CPC anterior à reforma de 2007 (DL n.º 303/07, de 24.8).

Porque apresentadas ao 82.º dia e porque paga a respectiva multa (fls. 419), por atempado se tem o acto.

Indeferem, assim, a como tal arguida nulidade.

Quanto à alín. b), é manifesto que a recorrente impugna a matéria de facto (com referência às respostas dadas aos art.ºs 12.º e 13.º da base instrutória – b. i.), pelo que o prazo de 30 dias para apresentação das alegações era acrescido de mais 10 (art.º 698.º, n.º 6, do CPC).

Quanto à 2.ª questão, a obrigatoriedade de indicação nas conclusões recursivas das normas jurídicas violadas e o sentido da sua interpretação e aplicação só rege para o recurso da matéria de direito (n.º 2, alín.s a) e b) do art.º 690.º do CPC).

Ora, o recurso da Ré versa substancialmente sobre matéria de facto (resposta alegadamente excessiva ao art.º 12.º da b. i. e ausência de prova quanto ao prazo da usucapião (resposta ao art.º 13.º).

Assim sendo, indeferem as questões prévias.


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2. Quanto à nulidade de sentença por alegada violação do princípio dispositivo, não se verifica.

De acordo com o n.º 2 do art.º 264.º do CPC, epigrafado como “princípio dispositivo” “o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos art.ºs 514.º [factos notórios] e 665.º [uso anormal do processo] e da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa”. [1]

No dizer de Manuel de Andrade[2], “o processo só se inicia sob o impulso da parte (...) mediante o respectivo pedido, e não sob o impulso do próprio juiz: nemo judex sine actore; ne judex procedat ex-officio. A isto se chama, por vezes, o princípio do pedido” e “as partes é que - através do pedido e da defesa – circunscrevem o thema decidendum. O juiz não tem que saber se, porventura, à situação das partes conviria melhor outra providência que não a solicitada, ou se esta poderia melhor fundar-se noutra causa petendi. É a doutrina da máxima: ne eat judex ultra vel extra partium”.

Constitui nulidade de sentença o conhecimento de questões de que o juiz não possa tomar conhecimento (excesso de pronúncia), nos termos da alín. d) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC, em desrespeito, aliás, à 2.ª parte do n.º 2 do art.º 660.º do mesmo diploma legal, que dispõe não poder o juiz ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se forem de conhecimento oficioso.

Ora, será que a sentença ultrapassou, na condenação, o thema decidendum?

- A presente acção configura uma acção de reivindicação (art.º 1311.º do CC), tendo como causa de pedir a usucapião e como objecto (pedido), além do mais que aqui não releva, “o terreno (quintal) anexo à casa de habitação do A. e à casa de arrumações nele construída, inscrito (hoje) na matriz predial urbana sob o art.º n.º w...”, cuja condenação no reconhecimento do direito de propriedade constitui o pedido da petição inicial, bem como a restituição desse terreno e da casa de arrumações ao A. e demolição de um muro separador.

A sentença recorrida interpretou que a verdadeira pretensão do A., de acordo com o por si alegado, ia no sentido do reconhecimento do direito de propriedade do terreno e casa de arrecadação, enquanto partes integrantes do prédio objecto da adjudicação subsequente à partilha do património conjugal entre o A. e a Ré C....

E na procedência da acção quanto a esse pedido condenou as RR. “a reconhecer que o A. é dono do terreno anexo à casa de habitação e da casa de arrumações enquanto partes integrantes do prédio objecto da adjudicação ocorrida na sequência de partilha entre si e a ré C...” e “condenar a ré C... a proceder à demolição do muro a que se reporta o ponto XX da factualidade provada e, consequentemente, a restituir ao autor totalmente devoluto, os mencionados terreno e casa de arrumações”.

O que a recorrente questiona é a consideração de o terreno e da casa de arrumações terem sido consideradas partes integrantes do prédio objecto da adjudicação [ao A.] ocorrida na sequência de partilha entre si e a Ré C....

E a sua discordância assenta em que essa conclusão não encontra suporte nos factos alegados pelo A.

Não é assim.

Lida a petição inicial, no seu art.º 6.º, o A. alegou os requisitos da usucapião (quer em relação a si, que à R. C..., enquanto sua mulher e no âmbito do casal que então constituíam) relativamente à casa de habitação (que aqui se não discute, mas construída no mesmo terreno em discussão), à casa de arrumações e ao “resto do terreno (quintal)” “(…) deles tirando, em suma, as utilidades e/ou frutos de que são susceptíveis, como prédio único (misto)” (sic).

Também no art.º 7.º alegaram não ter procedido “à eliminação do art.º rústico n.º z... por incorporação (como anexo) naquele prédio urbano apenas por desconhecimento e/ou ignorância”.

Que o A. sempre considerou a casa de habitação do casal (e que na sequência do divórcio lhe veio a ser adjudicada) como “um prédio misto” isso mesmo repetiu no art.º 7.º da réplica.

Daqui se conclui que contrariamente à alegação recursiva a precisão ou clarificação do dispositivo da sentença assentou na factualidade alegada pelo A., não incorrendo, pois, em excesso de pronúncia.


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            3. 1. Quanto à impugnação da matéria de facto, relativamente à resposta do art.º 12.º da base instrutória perguntava-se nele se “há mais de 20 anos que o autor e a ré C... cultivaram e ocuparam o resto do terreno (quintal) da forma que entenderam?” e respondeu-se que “provado que o autor e ré C... passaram a ocupar o resto do terreno, não só para através do mesmo se deslocarem entre as casas de habitação e arrumação, mas também para proceder ao seu cultivo por intermédio dos pais da ré C...”.

            É só da última parte da resposta que a recorrente dissente.

            Mas sem razão.

            É sabido que as respostas aos art.ºs da b. i. não têm que ser positivas ou negativas, podendo ser restritivas ou explicativas, desde que contidas no âmbito do facto a provar, sob pena de a parte excrescente ser considerada não escrita (art.º 646.º, n.º 4, do CPC, aplicável por analogia).

            Uma resposta é explicativa quando se dá ao facto alegado e controvertido o enquadramento necessário a uma melhor compreensão, podendo o tribunal servir-se de factos instrumentais resultantes da instrução e discussão da causa, como acima vimos, ao transcrever o n.º 2 do art.º 264.º do CPC.

            Por factos instrumentais entende-se aqueles que interessam indirectamente à solução do pleito por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes, não pertencem à norma fundamentadora do direito e são-lhe em si indiferentes, servindo apenas para da sua existência se concluir pela existência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção.[3]

            São factos cuja função é apenas probatória e não substanciam ou preenchem as pretensões jurídico - materiais do autor ou do réu. Da sua prova infere-se a existência dos factos principais.[4]

            Ora, à pergunta de que o A. e a Ré sua ex-mulher cultivaram o quintal da forma que entenderam, o segmento da resposta de que procederam ao seu cultivo por intermédio dos pais da ré C... cabe nessa resposta e trata-se de um facto instrumental, não essencial à decisão, revelador da realidade do corpus da posse em nome próprio dos membros do casal ainda que por intermédio de outrem (art.º 1252.º, n.º 1, do CC), resultante da instrução e discussão da causa, de onde fluiu que o A. e a Ré sua ex-mulher enquanto casal foram durante vários anos emigrantes em França e sendo essa ré filha única, natural era que os pais, que chegaram a viver na casa do casal, tratassem dos seus pertences.

            É isso, de resto, o que resulta da gravação dos depoimentos das testemunhas indicadas pela recorrente em sede de impugnação da matéria de facto.


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            3.2. Quanto à resposta positiva dada ao art.º 13.º da b. i., (“o descrito em 11.º e 12.º ocorre há mais de 20 anos continuadamente?” e à propugnada ausência de prova do prazo usucapível, igualmente falece razão à recorrente quando pugna por uma resposta negativa.

            Sustentou que o A. invocou a aquisição originária do terreno associada à comunhão conjugal, pelo que o período da usucapião terá que ser coincidente com a sua duração.

            E porque as testemunhas que indicou situam o seu início em 1975/76, considerando a separação de facto invocada pelo A. na respectiva acção de divórcio em 1987 ou a data do divórcio em 1993, não decorreu o prazo de “mais de 20 anos” vertido naquela resposta.

            A recorrente não põe em causa estar provado que foi em 1973 que o casal construiu a sua casa de habitação com comunicação directa para o terreno (quintal) (resp. ao art.º 5.º da b. i.) e passou a habitar desde 1974 (alín. B) dos FA), que foi em 1975 que construíram no terreno (quintal) a casa de arrumações (resp. art.ºs 1.º e 2.º da b. i.) (aliás, não foi posto em causa o documento camarário de fls. 20 comprovativo de ter sido ao A. concedida a licença para sua construção em 23.3.75).

            Mesmo as testemunhas indicadas, ouvida a gravação, é a data que apontam.

            A sentença de divórcio (fls. 205) data de 5.12.94 e dela não resulta (nem isso será o relevante) a separação de facto “por lapso de tempo superior a 6 meses”, como o supõe a recorrente.

            Quer dizer, desde que ocuparam a casa de habitação, desde logo com ligação directa para o terreno em litígio, repete-se, até à dissolução do casamento (ocorrida com o trânsito em julgado da sentença – art.º 1789.º, n.º 1, do CC), decorreram 20 anos.

            Mas não é a data do divórcio que releva para a usucapião no quadro que vem desenhado.

            É antes a partilha dos bens (se bem que o A. continuou na posse dos bens que lhe couberam, agora como proprietário único) e cuja decisão de adjudicação data de 17.1.01 (fls. 30) - até quando, decorreram cerca de 27 anos!..

            E é assim porque a dissolução do casamento em que existam bens comuns não faz cessar automaticamente a comunhão. Só com a partilha esta termina.

            Entre a acção de divórcio e a partilha a administração dos bens comuns passa a ser conjunta e sujeita às regras da compropriedade (art.ºs 1404.º e 1407.º do CC), de forma alguma constituindo a dissolução do casamento causa de perda da posse (art.º 1267.º do CC) tendente à usucapião, posse que se mantém enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar (art.º 1257.º do CC).

            Aqui chegados, a resposta de provado dada ao art.º 13.º não enferma de qualquer incorrecção de julgamento, por isso se mantendo, incólume assim ficando a factualidade que vinha considerada como provada pela 1.ª instância.

            Em suma, porque soçobram as conclusões recursivas, mister é manter-se a sentença recorrida.


*

            3. Resumindo e concluindo

            I – À pergunta sobre se o A. e a Ré, sua ex-mulher, cultivaram o quintal da forma que entenderam, o segmento da resposta de que procederam ao seu cultivo por intermédio dos pais da ré, cabe nessa resposta;

            II – Trata-se de um lícito facto instrumental revelador do corpus da posse em nome próprio, ainda que por intermédio de outrem (art.º 1252.º, n.º 1, do CC);

            III – Só a partilha dos bens comuns põe fim à comunhão conjugal, que não a dissolução do casamento por divórcio;

            IV – A posse usucapível sobre determinado bem, iniciada pelo casal, prolonga-se até à adjudicação dos bens a cada um dos cônjuges, em processo de inventário para partilha dos bens comuns.


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            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

            Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


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Francisco Caetano (Relator)

António Magalhães

Ferreira Lopes


[1] V, também a 2.ª parte do art.º 664.º do CPC.
[2] “Noções Elementares de Processo Civil”, 1976, pág. 372.
[3] Assim o entendeu o Ac. STJ de 23.9.03, Proc. 03B1987, in www.dgsi.pt.
[4] Remédio Marques, “Acção Declarativa à luz do Código Revisto”, 2.ª ed., pág. 227, nota 2.