Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2009/05.9TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: RESPONSABILIDADE HOSPITALAR
RESPONSABILIDADE MÉDICA
CONCAUSALIDADE
Data do Acordão: 01/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ - 3º JUÍZO

Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 483, 487, 563 CC
Sumário: Na repartição de responsabilidades por actuação negligente médica/hospitalar terá de ser dimensionada a culpa e a participação de cada uma das omissões ou não prontidão de condutas, no processo causal que conduziu à maior das lesões.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                            I
M (…), casado, reformado, residente na Rua de ...,, K..., propôs a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra HOSPITAL DISTRITAL DA K..., E.P.E., com sede em ..., K....
No essencial, alegou o demandante que, no dia e hora indicados na douta petição inicial recorreu ao serviço de urgência do Réu Hospital, onde foi atendido pelo Dr.  (…) que aí se encontrava a prestar serviço, exercendo a sua profissão de médico, por conta, sob a direção e orientação do aludido Réu Hospital; nessa ocasião, o demandante contou ao Dr. (…) que no dia em questão, pelas 19 horas, quando se encontrava a rachar lenha, bateu com o machado numa pedra, saltando um objeto para o seu olho direito.
O Dr. (…), após ter observado a olho nu a vista direita do A., efetuou-lhe um teste com “Fluoresceína” e diagnosticou-lhe um traumatismo ocular à direita com ulceração superficial sobre a pupila direita; assim, com base em diagnóstico de ulceração superficial sobre a pupila direita, o aludido médico prescreveu ao A. “Terramicina Oftálmica” e deu-lhe alta às 22 horas e 20 minutos do dia em causa.
Pelas 3 horas e 30 minutos do dia seguinte, o A. dirigiu-se de novo ao serviço de urgência do Réu, por sentir que o estado de saúde do seu olho direito se havia agravado, pois que se encontrava então completamente tapado e ensanguentado; ali chegado, foi de novo atendido pelo Dr. (…), o qual constatou que o olho direito do A. se encontrava bastante edemaciado e com lesões internas, motivo por que ordenou a transferência do demandante para os serviços de oftalmologia do Centro Hospitalar de W..., o que veio efetivamente a acontecer, sendo submetido a intervenção cirúrgica ao olho direito, nos ditos serviços, pelas 13 horas do mesmo dia, na sequência da qual foi extraído um aço, que ali se encontrava alojado, após ter perfurado a córnea.
Devido ao crítico estado do demandante, foi este submetido a novas intervenções cirúrgicas nos dias seguintes, sendo-lhe feita a enucleação (remoção) do olho direito, vindo posteriormente a ser-lhe colocada uma prótese ocular amovível.
Ora, na perspetiva do A., o alastramento da infeção ocorrida no olho direito do demandante e a consequente extração do globo ocular ficou a dever-se ao facto de o médico que o atendeu não ter seguido os procedimentos médicos adequados e que se impunham no caso concreto, em face dos sintomas pelo demandante apresentados quando se dirigiu, pela primeira vez, ao serviço de urgência. Concretizando, deveria logo o médico ter colocado a possibilidade de algum objeto estranho se encontrar alojado no olho direito do A. ou, pelo menos, poderia e deveria ter realizado exames com vista a confirmar ou infirmar tal possibilidade ou, ainda, caso os ditos exames não pudessem ser levados a cabo no Réu Hospital, sempre se imporia àquele profissional determinar a transferência do A. para os Hospitais da Universidade de W..., onde os mesmos exames seriam efetuados. Foi, portanto, incipiente e errado o diagnóstico feito pelo Dr. (…), e inadequada a terapia prescrita no primeiro atendimento, revelando-se ainda incorreto o diagnóstico de alta por ele ensaiado.
Como consequência da descrita conduta do médico, o demandante perdeu a funcionalidade total do olho direito e passou a apresentar diminuição acentuada da acuidade visual esquerda, sequelas que o acompanharão durante o resto da sua vida e o fizeram não poder exercer mais a sua profissão de cozinheiro em navios de alto mar.
Aliás, o episódio em questão levou a que, logo após os factos, fosse o A. reformado por invalidez, com tudo o que isso implicou em termos de rendimentos futuros.
Assim, e para além ainda do conjunto de despesas efetuadas com a assistência médica e medicamentosa a que teve de submeter-se (despesas essas descritas na douta petição), o A. padeceu danos de cariz não patrimonial (igualmente especificados no seu douto articulado inicial) que, atenta a sua relevância e gravidade, não poderão deixar de ser compensados.
Em suma, pediu o demandante a procedência da ação, devendo ser o Réu declarado o único e exclusivo responsável pelos danos sofridos pelo A. e, em consequência, condenado a pagar-lhe a quantia global de € 167.549 (sendo € 142.549 a título de danos patrimoniais e € 25.000 de danos não patrimoniais), acrescida de juros moratórios até efetivo e integral pagamento, e ainda todas as quantias que vierem a ser posteriormente liquidadas.
                                                            *
Contestando, defendeu-se o Réu Hospital por exceção e impugnação.
Excecionando, disse estar o pretenso direito do demandante prescrito.
Por impugnação, disse o Réu, e em síntese, que o Dr. (…) atendeu, observou e diagnosticou ao A. o que, de acordo com as regras e procedimentos ditados pelas leges artis vigentes na matéria, lhe era exigível. E quando o viu na primeira observação, no serviço de urgência, o mencionado médico aconselhou o demandante a nova observação caso houvesse agravamento dos seus sintomas, razão pela qual lhe deu alta provisória, pois parecia estar em causa, unicamente, uma ulceração superficial sobre a pupila direita do A., mais aconselhando este a deslocar-se às instalações do Réu Hospital na manhã seguinte, para observação pelo serviço de oftalmologia, como é, aliás, prática institucional.
No entanto, quando o demandante recorreu de novo ao serviço de urgência do Réu Hospital, pelas 3 horas e 12 minutos – isto é, na madrugada – do dia seguinte, o Dr.  (…)submeteu o A. a outra observação e só então pôde perceber ter havido, entretanto – ou seja, após a primeira observação –, sinais de agravamento da situação, razão por que, não dispondo o serviço de urgência do Réu Hospital da presença física dos serviços de oftalmologia (maxime, de uma lâmpada de fenda), e não sendo o Dr.  (…) especialista de tal área médica, entendeu transferir de imediato o doente para a instituição hospitalar com especialidade de oftalmologia em serviço de urgência mais próxima, a saber, o Centro Hospitalar de W..., onde deu entrada pelas 5 horas da manhã. Acontece que o demandante, ao invés de ser submetido a intervenção cirúrgica no mais curto espaço de tempo, apenas veio a ser operado, no referido Centro Hospitalar de W..., ao início da tarde seguinte, pelas 13 horas.
Acresce, por fim, que o próprio A. não valorizou a lesão, dado que esteve desde as 19 horas (momento em que ocorreu o acidente com o rachar da lenha) até às 22 horas sem recorrer ao Réu Hospital. Mas nada permite concluir que o desfecho do caso não fosse o mesmo se a transferência para o Centro Hospitalar de W... ocorresse imediatamente depois da primeira consulta, já que, antes de seis horas após o traumatismo não há (pelo menos normalmente) sinais de infeção.
Em suma, não pode afirmar-se, na perspetiva do Réu Hospital, que o lapso de cinco horas entre o primeiro e o segundo atendimento nas instalações do contestante seja causal da lesão sofrida pelo demandante, porquanto a evolução da infeção em função de um aço é totalmente imprevisível, dependendo do seu grau de contaminação ou virulência.
Pelo que – e caso não vingue a exceção de prescrição invocada – tendo o Dr.  (…) atuado segundo a normalidade e adequação da prática clínica ao caso concreto, usando de todos os cuidados medicamente exigíveis, nada lhe pode ser assacado – e, por conseguinte, ao Réu Hospital – em termos de responsabilidade, antes se impondo in casu o naufrágio da ação.
Replicando, manteve o A. a tese por si veiculada em sede de douta petição inicial, com a improcedência da exceção invocada no processo.
Findos os articulados, elaborou-se despacho saneador.
Em tal peça (e com os fundamentos aí constantes, ora dados por reproduzidos no seu teor), julgou o Tribunal improcedente a exceção de prescrição do direito do Autor, no mais julgando a validade e a regularidade da instância.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente provada e consequentemente:
– Condenou o Réu Hospital Distrital da K..., E.P.E. a pagar ao A. M (…) a quantia de € 34.279,62 (trinta e quatro mil, duzentos e setenta e nove euros e sessenta e dois cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, contados da notificação desta sentença até efetivo e integral pagamento;
– Condenou o mesmo Réu Hospital Distrital da K..., E.P.E. a pagar ao A. M (…)o montante que vier a ser liquidado em sede de execução de sentença pelos danos patrimoniais inerentes às despesas referidas supra no ponto 43 (dos factos assentes da presente sentença) (e na proporção de 40% dos custos de tais despesas);
– Absolveu o Réu Hospital Distrital da K..., E.P.E. do demais contra si peticionado pelo demandante M (…) nestes autos.

Inconformadas, recorreram ambas as partes.
O Réu Hospital concluiu do seguinte modo as suas alegações de recurso:
(…)

Concluiu o Autor do seguinte modo as suas alegações de recurso:
(…)

                                                            II
É a seguinte a factualidade julgada provada pelo tribunal a quo:
1 – No dia 2 de Setembro de 1999, o demandante recorreu ao serviço de urgência do Réu Hospital Distrital da K..., onde foi atendido pelo Dr.  (…), que aí se encontrava a prestar serviço, exercendo a sua profissão de médico, por conta, sob a direção e orientação do aludido Réu Hospital;
2 – o Dr(…) é médico generalista e não da especialidade de oftalmologia;
3 – o Réu Hospital não possui a valência de oftalmologia no serviço de urgência;
4 – ao ser atendido, o A. relatou ao Dr.  (…) que nesse dia (2 de Setembro de 1999), pelas 19 horas, quando se encontrava a rachar lenha com um machado, saltou um pequeno objeto (que o A. não soube identificar) para o olho direito do demandante;
5 – o Dr(…), após ter observado, a olho nu, a vista direita do demandante, efetuou-lhe um teste com “Fluoresceína” e diagnosticou-lhe um traumatismo ocular à direita com ulceração superficial sobre a pupila direita;
6 – com base em diagnóstico de ulceração superficial sobre a pupila direita, o Dr.  (…) prescreveu ao demandante “Terramicina Oftálmica” e deu-lhe alta às 22 horas e 20 minutos;
7 – ao observar o A., na ocasião referida nos pontos 1 e 5 – e mesmo perante o relato, mencionado no ponto 4 (todos dos presentes factos assentes), que lhe foi feito pelo demandante –, o Dr.  (…), apesar da sua formação na ciência médica, não colocou  a possibilidade de algum objeto estranho se encontrar alojado no olho direito daquele demandante;
8 – ao observar o demandante, na ocasião referida nos pontos 1, 4 e 5 (da presente factualidade provada), o Dr.  (…), apesar da sua formação na ciência médica, para além do teste com “Fluoresceína” mencionado no ponto 5 (dos mesmos factos assentes), não realizou exames (ou uma análise mediante o recurso a Raio X) com vista a confirmar ou infirmar a possibilidade de algum objeto estranho se encontrar alojado no olho direito do A.;
9 – ao observar o A., na ocasião aludida nos pontos 1, 4 e 5 (desta matéria factual assente), o Dr.  (…), apesar da sua formação na ciência médica, não determinou a transferência do demandante para os Hospitais de W..., para aí se realizarem os exames necessários a apurar se algum objeto estranho se encontrava alojado no olho direito do A.;
10 – na ocasião mencionada no ponto 1 (desta factualidade provada), o demandante esteve no serviço de urgência do Réu Hospital entre as 22 horas e 01 minutos e as 22 horas e 20 minutos do dia 2 de Setembro de 1999, sendo-lhe então diagnosticado pelo médico de serviço (doutor (…)), nos termos do ponto 5 (dos presentes factos assentes), um traumatismo ocular à direita com ulceração superficial sobre a pupila direita;
11 – o Dr.  (…), na observação que fez do A., detetou apenas aquilo que lhe pareceu ser uma pequena ulceração superficial sobre a pupila direita do demandante;
12 – ao Dr(…) o olho direito do A. pareceu não ter sinais inflamatórios, confirmando o teste de “Fluoresceína” apenas aquilo que àquele médico (doutor (…)) aparentou ser uma pequena ulceração superficial sobre a pupila direita;
13 – porque deduziu que se tratava de uma ulceração superficial sobre a pupila direita o Dr.  (…) fez ao A. o penso oftálmico com “Terramicina” aludido no ponto 6 (desta factualidade provada), ou seja, administrou-lhe um antibiótico de largo espectro com ação local;
14 – após a administração do antibiótico mencionado nos pontos 6 e 13 (da presente matéria fáctica assente), o Dr.  (…) deu alta ao A.;
15 – concluindo ter sido o traumatismo por si diagnosticado ao A. provocado por uma partícula vegetal (pedaço de madeira), o Dr.  (…) entendeu não haver necessidade de realizar outros exames, designadamente o de Raio X, não sendo habitualmente revelada por este tipo de exame (Raio X) a presença de partículas vegetais (como, por exemplo, pequenas lascas de madeira), mas já sendo habitualmente revelada por tal exame a presença de partículas de aço alojadas no globo ocular;
16 – em 2 de Setembro de 1999 o serviço de urgência do Réu Hospital não dispunha de presença física dos serviços de oftalmologia (não dispondo, por exemplo, de uma lâmpada de fenda que permitisse uma análise visual adequadamente ampliada da vista dos seus utentes);
17 – pelas 3 horas e 30 minutos do dia seguinte (3 de Setembro de 1999), o A. dirigiu-se de novo ao serviço de urgência do Réu Hospital, por sentir que se tinha agravado o estado de saúde do seu olho direito, o qual se encontrava agora completamente tapado e ensanguentado;
18 – lá chegado, o demandante foi de novo atendido pelo Dr.  (…), que constatou que o olho direito do A. se encontrava bastante edemaciado e com lesões internas, motivo pelo qual ordenou a sua transferência para os serviços de oftalmologia do Centro Hospitalar de W..., o que veio efetivamente a acontecer;
19 – tendo dado entrada no Centro Hospitalar de W... pelas 4 horas e 57 minutos do dia 3 de Setembro de 1999, ao A. foi diagnosticada, após observação, uma endoftalmite (infeção intra-ocular) e detetado, através do recurso ao Raio X, um aço alojado no interior do globo ocular direito com perfuração da córnea, vindo a ser o mesmo A. submetido a intervenção cirúrgica, pelas 13 horas do dito dia 3 de Setembro de 1999, na sequência da qual lhe foi extraído tal aço;
20 – o A. deu entrada no Centro Hospitalar de W... pelas 4 horas e 57 minutos do dia 3 de Setembro de 1999 (como aludido no ponto 19 da presente factualidade assente), tendo sido entretanto sujeito, até à realização da intervenção cirúrgica, pelas 13 horas do mesmo dia, a diversos atos médicos (vários deles destinados à preparação do demandante para tal intervenção cirúrgica, como a sujeição do mesmo à realização de exames, análises clínicas, radiografias, eletrocardiogramas);
21 – a maior parte dos atos referidos no ponto 20 (destes factos provados) foi realizada até cerca das 7 horas do dia 3 de Setembro de 1999, sendo que as salas do bloco operatório só começaram a ser utilizadas (na realização de intervenções médicas a outros pacientes) alguns minutos após as 9 horas e até depois das 12 horas desse mesmo dia;
22 – havendo infeção, como existia quando deu entrada no Centro Hospitalar de W..., deveria o demandante ter sido submetido a intervenção cirúrgica no mais curto espaço de tempo, de acordo com os procedimentos médicos adequados;
23 – em algumas úlceras traumáticas não existe corpo estranho, ocorrendo também casos de lesões intraoculares sem sinais externos conclusivos;
24 – existem situações em que os sinais de infeção só se manifestam passadas algumas horas após o traumatismo;
25 – em virtude de se manter a infeção no olho direito do demandante, foi este submetido a novas intervenções cirúrgicas, nos dias 7 e 13 de Setembro de 1999, no Centro Hospitalar de W...;
26 – no dia 13 de Setembro de 1999 foi feita a enucleação do olho direito do demandante;
27 – posteriormente, foi colocada no olho direito do A. uma prótese ocular amovível;
28 – a circunstância de o Dr.  (…) não ter adotado os procedimentos referidos nos pontos 7, 8 e 9 (da presente factualidade provada) contribuiu para que ocorresse o que se descreve nos pontos 19, 25, 26 e 27 (igualmente destes factos assentes);
29 – em parte devido à descrita conduta do médico (doutor (…)), o demandante apresenta diminuição acentuada da acuidade visual esquerda e ostenta na órbita direita uma prótese ocular com ausência do globo ocular direito por enucleação cirúrgica anterior, com algumas secreções mucopurulentas e perda funcional total do olho direito (acuidade visual de zero), sendo que no olho esquerdo a restrição do campo visual do lado nasal é até aos 60º, verificando-se também escotomas centrais no mesmo olho esquerdo (presença de drusas retinianas);
30 – em consequência das lesões descritas o A. ficou afetado de uma incapacidade permanente parcial de 45%;
31 – as lesões descritas determinaram ao A. um período de incapacidade temporária profissional fixável em 532 dias;
32 – o A. encontrava-se já, em Setembro de 1999, de baixa médica;
33 – o A. era marítimo, tendo exercido a profissão de cozinheiro em navios da empresa “U.E.C.C. (…), Lda.”, onde auferiu, no ano de 1998, um salário mensal ilíquido na importância equivalente a € 1.102;
34 – também depois de 2 de Setembro de 1999 o A. não mais voltou a exercer a sua profissão, sentindo-se desconfortável, na sua prótese ocular, com as condições climatéricas existentes no mar (o ar do mar, o sal e os ventos);
35 – o demandante é pensionista do Instituto da Segurança Social, I.P. (Centro Nacional de Pensões) e reformado por invalidez com efeitos desde 20 de Novembro de 1998, recebendo, em 2002, uma pensão mensal de € 577;
36 – antes do descrito no ponto 1 (destes factos provados) o A. era uma pessoa dinâmica, tendo tido gosto pela sua profissão;
37 – em consequência das lesões e sequelas verificadas, o demandante teve que continuar a ser seguido em consultas regulares no Centro Hospitalar de W...;
38 – de consultas hospitalares o A. pagou € 53,62;
39 – em deslocações às consultas gastou em combustível € 29,93;
40 – em medicamentos despendeu a quantia de € 46,88;
41 – teve que adquirir uns óculos para proteção da prótese ocular e correção do olho esquerdo, pelos quais pagou € 249,40;
42 – despendeu ainda o demandante € 319,23 na aquisição de três próteses oculares;
43 – no futuro, terá o A. que continuar a adquirir próteses oculares, uma vez que as mesmas têm um prazo de duração limitado, bem como medicamentos para aplicação e limpeza da citada prótese;
44 – as intervenções a que o A. foi sujeito causaram-lhe pavor e angústia, e teve dores, incómodos e aborrecimentos;
45 – como a falta do olho direito lhe diminui o campo de visão o A. passou a sentir-se com receio de conduzir o seu veículo automóvel, sobretudo em ambiente de cidade e em momentos de tráfego mais congestionado, por temer poder colocar em risco a sua integridade física bem como a dos outros utentes da via pública;
46 – como a falta do olho direito lhe diminui o campo de visão o A. passou a não conseguir ler e ver televisão (hobbies que lhe eram queridos) com a duração e a frequência com que o fazia antes;
47 – antes de 2 de Setembro de 1999 o A. era uma pessoa alegre e que gostava de conviver com os outros;
48 – devido à falta do seu olho direito o demandante passou a ser uma pessoa mais triste e desgostosa com a vida;
49 – devido ao facto de ter somente o olho esquerdo e uma prótese na vista direita o demandante sente-se por vezes diminuído fisicamente perante as outras pessoas;
50 – o A. nasceu no dia 2 de Julho de 1948.
 [Nota: a factualidade descrita no ponto 50 dos factos provados desta sentença foi dada como assente devido ao teor da certidão do assento de nascimento junta a fls. 261 dos presentes autos].

                                                            III
Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artigo 635º nº 4 do NCPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608º nº 2 do mesmo, in fine), são as seguintes as questões a decidir:
- Do recurso do Réu Hospital Distrital da K...
- Impugnação da matéria de facto e consequências jurídicas, nomeadamente, ausência de nexo de causalidade entre a conduta do Hospital (através do seu médico) e o resultado ocorrido e, a ausência de culpa.
- Do recurso do Autor M (…)
- da responsabilidade exclusiva do Réu Hospital na produção do dano.

I - Do recurso do Réu Hospital
Impugna o Réu apelante o julgamento de facto relativamente aos seguintes pontos da matéria de facto:
(…)
Assim, podemos concluir, os elementos probatórios produzidos nos autos apontam para a confirmação das respostas dadas, improcedendo, por consequência a impugnação da matéria de facto.

Realidade diversa mas correlacionada com o nexo naturalístico é o apuramento do nexo de causalidade.
Não se ignora que o êxito do resultado médico depende de vários fatores, daí que se diga, por vezes, ser a atividade médica uma atividade rodeada de circunstancialidade. O êxito do resultado depende, para além da intervenção médica em si, do estado de saúde do doente, dos seus próprios antecedentes genéticos, de fatores imunológicos, reações alérgicas, etc., um número sem fim de fatores, endógenos e exógenos que concorrerão em cada situação concreta.
E, porque cada organismo responde individualmente à doença e ao tratamento médico, a obrigação médica não pode ser considerada uma “obrigação de resultado” mas sim uma “obrigação de meios”.
Como se salientou na decisão de 1ª instância, citando Drª Rute Teixeira Pedro, “A responsabilidade civil do médico. Reflexões sobre a noção de perda de chance e a tutela do doente lesado, p.90”, a obrigação médica é uma “obrigação de meios”, pois que, «em regra o profissional compromete-se a empregar os seus esforços, a utilizar o seu saber e as técnicas que a ciência coloca à sua disposição, respeitando as leges artis, em ordem a alcançar a saúde do doente. Mas a consecução desta finalidade não é garantida. A obrigação assumida constitui, portanto, uma obrigação de diligência ou de cuidado».
Neste contexto e, com tais reservas, importa apurar se, para lá duma causalidade naturalística, se pode considerar verificado o nexo causal de natureza jurídica entre a conduta médica e o evento danoso.
De acordo com a versão mais corrente da teoria da causalidade adequada, deve ser tida como causa do dano aquela circunstância que, dadas as regras da experiência e o circunstancialismo concreto em que se encontrava inserido o agente (tendo em atenção as circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis pelo agente), se mostrava apta, idónea ou adequada a agravar o risco desse dano (…os danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fora a lesão – art. 563º do CC).
É então necessário que o facto seja adequado à produção do dano, isto é, que o facto tenha tornado mais provável a verificação do prejuízo, ou seja, tenha agravado o risco da sua verificação.
O que esta teoria da causalidade adequada pretende alcançar é, não responsabilizar o agente por danos que se produziram em consequência de um conjunto de circunstâncias atípicas, anormais, imprevisíveis, que o agente não conhecesse ou não pudesse conhecer.
Ocorrendo omissão de conduta ou omissão de procedimentos, a ideia de causalidade adequada assenta nos mesmos parâmetros.
Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho, Omissão e Dever de Agir em Direito Civil, Almedina, p. 49, refere que «existe nexo de causalidade entre omissão e certo evento quando, dadas as regras da experiência e as circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis pelo sujeito, a prática do ato omitido teria segura ou muito provavelmente, evitado esse evento, previsto ou previsível pelo sujeito».
Quem omite, embora não ocasionando diretamente o evento, não impede a causa de o provocar, determinando, assim, uma condição equivalente à causal ao ponto de poder juridicamente identificar-se com esta.
Transpondo-se os princípios expostos para o caso em apreço, evidencia-se o nexo de causalidade adequada nos pontos 28 e 29 dos factos provados, podendo, concluir-se que, se o Dr. (…) (médico do Réu) tivesse adotado os procedimentos referidos nos pontos 7, 8 e 9 da factualidade provada, segura ou muito provavelmente, ter-se-ia evitado o evento, em particular a enucleação do globo ocular.
Evento, esse que, por sua vez, ainda que não previsto pelo médico, pois que, este, nem sequer colocou a possibilidade de algum objeto estranho se encontrar alojado o olho direito do Autor (ponto 7), era contudo previsível, considerando a sua formação na ciência médica e as informações prestadas pelo paciente de que, quando se encontrava a rachar lenha com um machado, saltou um pequeno objeto para seu o olho direito (ponto 4).
Não pode, por isso afirmar-se, ter sido adequada a terapêutica prescrita pelo médico do HD K... no primeiro atendimento, ou correto o diagnóstico de alta então efetuado, sendo antes de afirmar que, tivesse então ocorrido um diagnóstico adequado e uma terapêutica adequada, e o resultado lesivo muito provavelmente não teria ocorrido.
Verificado está, pois, o nexo de causalidade – adequada – entre a conduta omissiva do agente e o evento danoso.
Daqui nos remetemos para a culpa.
Segundo o apelante Hospital em face da sintomatologia apresentada, o médico do HD K... observou, quer ao nível do diagnóstico quer ao nível da escolha da terapia as legis artis, assim como os demais e gerais deveres de cuidado do tráfego médico, não tendo omitido o dever objetivo de cuidado.
A culpa corresponde ao juízo de censurabilidade do comportamento adotado e pressupõe o dolo ou a negligência.
Agir com culpa significa atuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação do direito.
E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.
O art. 487 nº 2 CC dispõe que a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, sendo este um homem medianamente sensato, avisado, razoável e capaz.
Os comportamentos positivos impostos pelo dever de diligência são aqueles cuja omissão determinaria provavelmente a lesão de interesses alheios; os comportamentos proibidos por esse dever são aqueles cuja prática determinaria provavelmente a lesão, na definição de Pessoa Jorge, Pressupostos da Responsabilidade Civil, Separata de Ciência e Técnica Fiscal, 1968, p. 67.
Ora, como se referiu no Ac. do S.T.J. de 4-3-2008 (Fonseca Ramos), revista n.º 183/08 in C.J., 2008, 1, pág. 134 «na atividade médica, na prática do ato médico, tenha ele natureza contratual ou extracontratual, um denominador comum é insofismável - a exigência de prestação que observe os deveres gerais de cuidado».
A culpa médica corresponderá, assim, à desconsideração das regras concretas da arte médica e do tipo de ato médico em questão, cuja observância o bom profissional ou o bom médico nunca podem prescindir.
Exposto o enquadramento dogmático, passemos aos factos, que existem, indiciadores da culpa do Réu apelante.
Provou-se que, no dia 2 de Setembro de 1999, pelas 22 horas e 01 minutos, o A. recorreu ao serviço de urgência do Réu Hospital, tendo sido então atendido pelo Dr.  (…), que aí se encontrava a prestar serviço, exercendo a sua profissão de médico, por conta, sob a direção e orientação do aludido Réu Hospital;
O Dr.  (…) é médico generalista, sendo que o Réu Hospital não possuía valência de oftalmologia no serviço de urgência (não dispondo, por exemplo, de uma lâmpada de fenda que permitisse uma análise visual adequadamente ampliada da vista dos seus utentes).
Ao ser atendido o A. relatou ao Dr.  (…) que, naquele dia 2 de Setembro de 1999, pelas 19 horas, quando se encontrava a rachar lenha com um machado, saltou um pequeno objeto (que o A. não soube identificar) para o seu olho direito.
O Dr.  (…), após ter observado, a olho nu, a vista direita do Autor , efetuou a este um teste com “Fluoresceína”, tendo diagnosticado aquilo que lhe pareceu ser um traumatismo ocular à direita com ulceração superficial sobre a pupila direita.
Ao Dr.   (...) o olho direito do A. pareceu não ter sinais inflamatórios, confirmando o teste de “Fluoresceína” apenas aquilo que àquele médico aparentou ser uma pequena ulceração superficial sobre a pupila direita.
Ao observar o A., e não obstante o relato que lhe foi feito pelo Autor de que andara a rachar lenha com um machado e lhe saltara um pequeno objeto (que o A. não soube identificar), o Dr.  (…), apesar da sua formação na ciência médica, não colocou a possibilidade de algum objeto estranho se encontrar alojado no olho direito do A.
Do mesmo modo, ao ter efetuado a mencionada observação do A., para além do dito teste com “Fluoresceína”, o Dr(…) não realizou exames (ou uma análise mediante o recurso a Raio X) com vista a confirmar ou infirmar a possibilidade de algum objeto estranho se encontrar alojado no olho direito do A., nem determinou a transferência deste para os Hospitais de W..., para aí se realizarem os exames necessários a apurar se algum objeto estranho se encontrava alojado no seu olho direito.
Ou seja, concluindo ter sido o traumatismo por si diagnosticado provocado por uma partícula vegetal (pedaço de madeira), que naturalmente se soltara, o Dr.  (…) entendeu não haver necessidade de realizar outros exames, como o de Raio X.
Provou-se, complementarmente, a propósito deste tipo de exame que, não é habitualmente revelado pelo mesmo (Raio X), a presença de partículas vegetais (como, por exemplo, pequenas lascas de madeira), mas já é habitualmente revelado por tal exame a presença de partículas de aço alojadas no globo ocular.
Assim, com base no referido diagnóstico de traumatismo ocular à direita com ulceração superficial sobre a pupila direita, o Dr. (…) prescreveu ao demandante “Terramicina Oftálmica” (administrando-lhe este antibiótico de largo espectro com ação local) e deu-lhe alta às 22 horas e 20 minutos do apontado dia 2 de Setembro de 1999.
Contudo, pelas 3 horas e 30 minutos do dia seguinte (3 de Setembro de 1999), o A. dirigiu-se de novo ao serviço de urgência do Réu Hospital, por sentir que se tinha agravado o estado de saúde do seu olho direito, o qual se encontrava agora completamente tapado e ensanguentado. Lá chegado, o A. foi de novo atendido pelo Dr(…), que constatou que o olho direito do A. se encontrava bastante edemaciado e com lesões internas, tendo então ordenado a sua transferência para os serviços de oftalmologia do Centro Hospitalar de W..., o que veio a acontecer.
Tendo dado entrada no Centro Hospitalar de W... pelas 4 horas e 57 minutos do dia 3 de Setembro de 1999, ao A. foi diagnosticada, após observação, uma endoftalmite (infeção intra-ocular) e detetado, através do recurso ao Raio X, um aço alojado no interior do globo ocular direito com perfuração da córnea, vindo a ser o mesmo A. submetido a intervenção cirúrgica, pelas 13 horas do mencionado dia 3 de Setembro de 1999, na sequência da qual lhe foi extraído tal aço.
Apurou-se ainda que em algumas úlceras traumáticas não existe corpo estranho, ocorrendo também casos de lesões intraoculares sem sinais externos conclusivos, mais existindo situações em que os sinais de infeção só se manifestam passadas algumas horas após o traumatismo.
Em virtude de se manter a infeção no olho direito do Autor, foi este submetido a novas intervenções cirúrgicas, nos dias 7 e 13 de Setembro de 1999, no Centro Hospitalar de W..., sendo-lhe feita a enucleação do olho direito do A. na segunda das datas ora referidas. Posteriormente, foi colocada no olho direito do demandante prótese ocular amovível.
Ora, do descrito quadro fáctico não pode deixar de proceder a um juízo de censura ao comportamento profissional do médico do Réu/Hospital.
Como exemplarmente se refere na decisão recorrida «o acidente em que o A. se viu envolvido tocou um dos sentidos fundamentais do ser humano – a visão –, com tudo o que isso implica. Ou seja (…), a visão constitui um dos bens mais preciosos da saúde humana, de valor e utilidade absolutamente inestimáveis, mas, ao mesmo tempo, dotado de uma aura de fragilidade e vulnerabilidade iniludíveis (…) Parecerá, portanto, relativamente óbvio que em sede de urgência, e mesmo não sendo o Dr.  (…) especialista em oftalmologia, a observação e indagação do estado da visão do A. se afiguraria como uma tarefa a levar a cabo de modo exaustivo e esgotante, dentro das possibilidades fornecidas pelo serviço de urgência e pela capacidade de domínio médico-científico da matéria do próprio Dr.  (…)».
Perante a informação que lhe foi prestada pelo Autor e sintomas associados, incumbia ao Dr(…), tentar perceber se, efetivamente, se introduzira ou não no dito olho qualquer partícula vegetal ou metálica, pois que, não estava apenas em causa madeira, mas igualmente o acionamento com força e fricção, de um objeto metálico.
O Dr. (…) limitou-se, a olho nu, a observar a vista direita do Autor e, efetuou a este último um teste com “Fluoresceína”, diagnosticando-lhe aquilo que lhe pareceu ser um traumatismo ocular à direita com ulceração superficial sobre a pupila direita.
Ao Dr.  (…) o olho direito do A. pareceu não ter sinais inflamatórios, confirmando o teste de “Fluoresceína” apenas o que àquele médico aparentou tratar-se de uma pequena ulceração superficial sobre a pupila direita.
Sendo certo que o serviço de urgência do Réu Hospital não dispunha de uma lâmpada de fenda que permitisse uma análise visual adequadamente ampliada da vista dos seus utentes, também é certo que o Dr.  (…) não era especialista em oftalmologia.
Assim, perante as informações que o paciente lhe forneceu do ocorrido, o exame efetuado com os elementos de que dispunha, que eram limitados, e os conhecimentos que possuía, que não eram especializados, e por isso também necessariamente limitados relativamente a oftalmologia, deveria o médico ter colocado a hipótese de a lesão do olho do Autor, obrigar a uma observação e diagnóstico mais especializado, nomeadamente para averiguação da existência ou não de algo no interior do olho direito do A..
E tal cuidado se impunha independentemente de, em algumas úlceras traumáticas não existir corpo estranho, ocorrendo também casos de lesões intraoculares sem sinais externos conclusivos, e existindo ainda situações em que os sinais de infeção só se manifestam passadas algumas horas após o traumatismo, como resultou provado.
Concordamos, pois, com a sentença recorrida ao concluir que, no quadro factual em causa, não estava o médico em condições de se tranquilizar com a tese da inexistência do corpo estranho no olho do Autor, ou de que este olho nada sofrera para além de uma pequena ulceração.
Ao médico impunha-se fazer algo mais, o que no caso, se traduzia em mandar o Autor para um centro clínico especializado, dispondo de tecnologia adequada e profissionais especializados, o que só veio a fazer na segunda entrada do Autor nas urgências, cerca de 5 horas mais tarde, tendo então, o A. sido enviado para o Centro Hospitalar de W..., onde lhe foi diagnosticada uma endoftalmite (infeção intra-ocular) e detetado, através do recurso ao Raio X, um aço alojado no interior do globo ocular direito com perfuração da córnea.
A “obrigação de meios” que impendia sobre o Dr.  (…) teria exigido uma conduta mais exaustiva e rigorosa no apuramento da dimensão e natureza da lesão, por parte do mesmo.
Agiu, por isso, o Hospital (através do seu médico) culposamente.
Confirmados os factos objeto de impugnação, reafirmada a existência de nexo de causalidade e culpa, pressupostos da responsabilidade civil extracontratual postos em causa, nas alegações do apelante Hospital e, nada mais havendo a apreciar deste recurso, impõe-se concluir pela falta de fundamento do recurso do Réu.

II – Do Recurso do Autor.
Alega o Autor inexistirem factos provados que permitam co-responsabilizar o A. na produção do dano no seu olho direito. Do mesmo modo, objeta, não colhem os argumentos aduzidos na sentença que alicerçam a co-responsabilidade do Centro Hospitalar de W... na produção do mesmo dano no olho do A.
Pretende assim o Autor que a responsabilidade do Réu Hospital Distrital da K... é exclusiva, não concorrendo com qualquer responsabilidade de outrem, seja ela da parte do A. lesado, seja ela do Centro Hospitalar de W..., terceiro nos autos, ao contrário do decidido. E, assim sendo, o montante indemnizatório a fixar, da responsabilidade do Réu, deve ser calculado sem reduções, em 100%.
Lê-se na sentença recorrida a propósito:
« Já se deu a entender que a própria atuação do A. não está, também ela, isenta de críticas.
O ponto é este: para além da óbvia temeridade que constitui o ato de rachar lenha, com um machado, sem proteção adequada na zona da visão, o que dizer também do comportamento de quem, por causa de tal atividade, sente entrar-lhe um corpo estranho (de aço, como veio a revelar-se mais tarde) no olho e apenas três horas depois do ocorrido decide apresentar-se perante um médico?
Crê-se que a resposta parecerá clara: uma pessoa medianamente diligente e preocupada com a sua própria saúde não “aguardaria” durante três horas até se “decidir” pela consulta de uma instituição hospitalar (notando-se não ter sido feita qualquer prova, por parte do A., de haver ocorrido um eventual impedimento, de cariz extraordinário, de um recurso mais atempado ao Réu Hospital). Três horas que, pelo retardamento representado no processo de socorro e tratamento do próprio A., demonstram o contributo deste último para o resultado lesivo de que veio a ser vítima»
Considerando ter havido entre a atuação do Dr.  (…) e do próprio A. uma concorrência efetiva de responsabilidades na produção dos danos, imputou a sentença recorrida, a este, a percentagem de 20% na responsabilidade global fixada.
Vejamos.
O art. 570 nº 1 do C.C. estabelece que «quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».
Como se lê em Direito das Obrigações, 7ª ed. p. 692 de Mário Júlio Almeida Costa: «Prevê tal norma as situações em que o lesado tenha contribuído culposamente para a produção ou o simples agravamento dos prejuízos por ele sofridos e de que outrem seja responsável. Haverá então, conculpabilidade ou co-responsabilidade entre a pessoa obrigada a reparar um dano e a que tem direito a essa reparação».
E ainda:
«A formulação legal afasta, pois, os atos do lesado que, embora constituindo concausa do dano, não mereçam um juízo de reprovação ou censura. Quer dizer, a redução ou exclusão da indemnização só ocorre quando o prejudicado não adote a conduta exigível com que poderia ter evitado a produção do dano ou o agravamento dos seus efeitos» (sublinhados nossos).
Vejamos os factos.
– No dia 2 de Setembro de 1999, o Autor recorreu ao serviço de urgência do Réu Hospital Distrital da K..., pelas 22 horas. Ao ser atendido, o A. relatou ao Dr.  (…) que, nesse dia (2 de Setembro de 1999), pelas 19 horas, quando se encontrava a rachar lenha com um machado, saltou um pequeno objeto (que o A. não soube identificar) para o seu olho direito.
Ora, relatar que lhe saltou um pequeno objeto para o olho direito não é, salvo o devido respeito, o mesmo que relatar “sentir entrar um corpo estranho no olho”, como refere a sentença.
O A. sentiu saltar-lhe um pequeno objeto para o olho, o qual não conseguiu identificar, mas tal não permite concluir que o Autor teve a perceção de que o mesmo ali ficou alojado. O Autor pode ter-se convencido que o pequeno objeto apenas tocou o seu olho e saiu, bem como que o olho se regeneraria por si próprio em relação a eventual lesão causada pelo contacto com tal objeto.
Igualmente não se prova que, nesse período de tempo de 3 horas o Autor tivesse sensações que o devessem levar a concluir estar sob um mal eminente e, desse modo, deveria ter recorrido de imediato ao hospital.
Desconhece-se, de resto, o que o Autor sentiu, ou mesmo, se sentia nessas três horas, algo que levasse um cidadão medianamente responsável, a supor, a necessidade de recorrer a tratamento médico.
Poder-se-á pensar que o A. só recorreu ao Hospital Réu quando começou a sentir alguma impressão anormal ou dor no seu olho direito, o que corresponderá a uma situação comum.
Não se vê, assim, como possa imputar-se ao Autor - na sua não procura de tratamento imediato - um comportamento culposo, concorrente com a culpa do Réu.
Assim sendo, não é possível estabelecer em relação ao Autor a figura da concausalidade.
E, desse modo, não pode a indemnização fixada ser reduzida em função do seu comportamento.
Poder-se-á objetar que, não obstante não se ter demonstrado a culpa do Autor, ainda assim, a sua inércia de cerca de 3 horas, objetivamente considerada, não deixou de contribuir para o agravamento do dano, concorrendo assim, tal omissão, no plano do nexo de causalidade. E, ainda assim, o prejuízo causado pelo comportamento omissivo e negligente do Réu/Hospital deveria ser reduzido na medida dessa contribuição.
Mas também essa contribuição, com relevância jurídica, não resulta demonstrada.
É sabido que o instituto da responsabilidade civil rejeita uma pura causalidade em sentido naturalístico, fazendo apelo ao conceito de causalidade adequada, de acordo com o qual, considera-se causa de um prejuízo a condição que, em abstrato se mostra adequado a produzi-lo. É necessário, portanto, não só que o facto tenha sido, em concreto, condição «sine qua non» do dano, mas também que constitua, em abstrato, segundo o curso normal das coisas, causa adequada à sua produção.
Ora, nada permite supor que se o A. recorresse aos serviços de urgência mais cedo, o comportamento do Hospital seria outro, tanto mais que, se a observação a olho nu efetuada às 22h não permitiu visualizar mais do que uma ulceração superficial sobre a pupila direita, sem sinais inflamatórios, o mesmo tipo de observação efetuado mais cedo, decerto que, menos “lesão” permitiria visualizar.
Assim, não só porque não é possível imputar ao lesado, na sua inércia, um comportamento culposo, mas também porque não resulta evidente que a ausência dela (inércia), diminuiria ou evitaria o evento danoso, temos como desajustada e, merecedora de censura, neste particular, a decisão que imputou ao lesado uma co-responsabilidade na produção dos danos.
E, assim sendo, é de revogar a decisão que atribuiu ao Autor 20% de responsabilidade no sucedido, diminuindo na mesma percentagem a responsabilização do Réu Hospital.

Reagiu ainda o Autor, nas suas conclusões de recurso, contra a decisão de co-responsabilizar o Centro Hospitalar de W..., na produção do resultado lesivo.
A tal respeito, lê-se na sentença recorrida:
«O que dizer do comportamento do Centro Hospitalar de W... em todo este processo?
Recorde-se que tendo dado entrada em tal Centro pelas 4 horas e 57 minutos do dia 3 de Setembro de 1999, ao A. foi diagnosticada, após observação, uma endoftalmite (infeção intra-ocular) e detetado, através do recurso ao Raio X, um aço alojado no interior do globo ocular direito com perfuração da córnea, vindo a ser o mesmo A. submetido a intervenção cirúrgica, pelas 13 horas do dito dia 3 de Setembro de 1999, na sequência da qual lhe foi extraído tal aço.
Se deu entrada no Centro Hospitalar de W... pelas 4 horas e 57 minutos do dia 3 de Setembro de 1999, o A. foi entretanto sujeito, até à realização da intervenção cirúrgica, pelas 13 horas do mesmo dia, a diversos atos médicos (vários deles destinados à preparação do demandante para a intervenção cirúrgica, como a sujeição do mesmo à realização de exames, análises clínicas, radiografias, eletrocardiogramas); mas a maior parte desses atos foi realizada até cerca das 7 horas do dia 3 de Setembro de 1999, sendo que as salas do bloco operatório só começaram a ser utilizadas (na realização de intervenções médicas a outros pacientes) alguns minutos após as 9 horas e até depois das 12 horas desse mesmo dia.
Ora, havendo infeção, como existia quando deu entrada no Centro Hospitalar de W..., deveria o demandante ter sido submetido a intervenção cirúrgica no mais curto espaço de tempo, de acordo com os procedimentos médicos adequados.
E aqui bate também o ponto: como explicar – sem a formulação de um juízo de censura ao paradigma organizacional então vigente – que a sujeição do A. à necessária cirurgia tenha decorrido tanto tempo após a sua receção no Centro Hospitalar de W..., ainda para mais quando as salas do bloco operatório estiveram duas horas “devolutas” até serem ocupadas (presume-se, a bem de alguma racionalidade e humanismo na gestão hospitalar…) com cirurgias já agendadas e (supõe-se, uma vez mais…) reveladoras de um nível de urgência (pelo menos) tão grave quanto o do demandante?
Sabendo nós que o tempo urge quando a gravidade de uma determinada lesão carece de tratamento cirúrgico, como explicar, de facto, o enorme lapso de tempo que se verificou entre a entrada e a realização da primeira das operações ao A. no Centro Hospitalar de W...?
Tem o Tribunal para si que deparamos, também aqui, com mais um triste degrau na autêntica “via sacra” que acompanhou o A. desde o momento em que ocorreu o acidente com o corte da madeira e a sujeição à sua primeira intervenção cirúrgica.
E, portanto, no que ora importa relevar, será absolutamente inafastável uma ideia de censura ético-jurídica a assestar ao Centro Hospitalar de W...».
A final, a sentença recorrida, considerando que ao Dr. (…) e ao Centro Hospitalar de W... teriam de ser imputados idênticos graus de responsabilidade, fixou a mesma em 40% para cada um.
Contrapõe o apelante os depoimentos das testemunhas Dr. (…) e Dr. (…) os quais afirmaram que a situação clínica do olho do A. aquando da sua chegada ao Centro Hospitalar de W... era já gravíssima uma vez que dois terços da câmara anterior do olho estavam cobertos com pus devido à infeção.
Na verdade, a testemunha Dr. (…) médico que teve intervenção na primeira cirurgia efetuada ao A. no Centro Hospitalar de W..., afirmou que o doente já praticamente não teria  visão quando foi observado. Foi logo proposto para o bloco operatório e terá feito os exames prévios necessários. O estado de infeção era gravíssimo na câmara anterior. A situação era gravíssima. Entrou às 4.57 e deu entrada no bloco às 12 h, a cirurgia deve-se ter realizado um pouco antes das 13 h. A realização da cirurgia ficou dependente do laboratório, da radiologia, do colega da anestesia que diz se o doente está ou não em condições, da disponibilidade do bloco operatório, etc. Não havia uma sala de cirurgia só para urgências. Infelizmente a situação de início já era desesperada. As 3 cirurgias destinaram-se a não deixar o A. perder o globo ocular.
Igualmente afirmou que: Se o doente tivesse sido logo enviado, havia diferença no resultado final. Se se soubesse que havia um corpo estranho intraocular havia diferença. Poderia ter-se salvo o olho. A visão é mais complicado. Todo o tempo influi contra.
Também o médico Dr. (…) afirmou que o ideal seria operar logo, mas havia que decidir, havia outros doentes ao lado.
Ora, perante tais depoimentos, coadjuvantes na ponderação de eventual concurso de responsabilidades e, perante a prova de que, a maior parte dos atos médicos a que o A. se sujeitou (vários deles destinados à preparação do A. para tal intervenção cirúrgica, como a sujeição do mesmo à realização de exames, análises clínicas, radiografias, eletrocardiogramas), foi realizada até cerca das 7 horas do dia 3 de Setembro de 1999, sendo que as salas do bloco operatório só começaram a ser utilizadas (na realização de intervenções médicas a outros pacientes) alguns minutos após as 9 horas e até depois das 12 horas desse mesmo dia; havendo infeção, como existia quando deu entrada no Centro Hospitalar de W..., deveria o Autor ter sido submetido a intervenção cirúrgica no mais curto espaço de tempo, de acordo com os procedimentos médicos adequados, (factos 20, 21 e 22), forçoso se mostra concluir que, bem andou a decisão recorrida na atribuição de um juízo de censura ético-jurídica ao comportamento deste Centro Hospitalar, pelo atraso na resposta dada à situação de urgência em causa.
Embora o A. tivesse sido logo proposto para cirurgia, ocorreram demoras nos procedimentos ao nível de várias especialidades como laboratório, radiologia, anestesia e também, da disponibilidade de sala, que levaram a que a entrada do A. no bloco operatório se verificasse apenas às 12 horas, tendo a cirurgia propriamente dita começado apenas pouco antes da 13 horas. Ora, a situação de urgência em causa não se compadecia com tal período de tempo.
Este compasso de espera entre a entrada do A. no Centro Hospitalar de W... e o começo da cirurgia é suscetível de ter agravado o estado de saúde do A. e bem assim contribuído para o resultado final verificado, isto é a enucleação do globo ocular, e isso, independentemente da sua situação clínica ser já gravíssima.
Por outro lado, afere-se da factualidade supra referida que tal compasso de espero está diretamente relacionado com o modelo organizacional deste Centro Hospitalar, e não com uma inevitabilidade decorrente dos próprios atos médicos em conjugação.
Assim, não pode deixar de se imputar a este Centro igualmente uma conduta culposa suscetível de agravar o dano.
Nesta repartição de responsabilidades terá de ser dimensionada a culpa e a participação de cada uma das omissões ou não prontidão de condutas, no processo causal que conduziu à maior das lesões: a retirada do olho.
Consideramos que tal concorrência de responsabilidades sendo real e, não podendo deixar de produzir efeitos no respeitante ao valor indemnizatório que caberá ao Réu assumir, não pode contudo, ser igualada entre o Hospital da K... e Centro Hospitalar de W..., sendo a deste inferior.
Neste Centro Hospitalar o Autor teve de ser sujeito a exames vários e a lesão da visão, à entrada, já se afigurava irreversível.
Cremos, assim que, o retardamento de cirurgia neste Centro não terá tido a mesma dimensão agravante no processo causal que conduziu ao evento danoso – a perda do olho -, comparativamente à omissão de um diagnóstico adequado atempado e intervenção médica a ocorrer no processo inicial de infeção.
Desse modo, e num critério de equidade, consideramos mais adequado fixar a responsabilidade deste Centro Hospitalar em 20%.
Face ao exposto, porque o montante indemnizatório foi fixado globalmente em € 85.699,06, considerando o concurso do Centro Hospitalar de W... na produção dos danos, em percentagem que se fixou em 20%, será o Réu Hospital responsável por 80% daquele montante, ou seja, por € 68.559,25, acrescido de juros de mora e, sem prejuízo do montante indemnizatório  a fixar em execução de sentença na proporção de 80% dos custos das próteses oculares e dos medicamentos para a respetiva aplicação e limpeza de que o demandante venha a carecer no futuro, como anteriormente decidido.

Em suma:
Na repartição de responsabilidades por negligência médica/hospitalar, terá de ser dimensionada a culpa e a participação de cada uma das omissões ou não prontidão de condutas, no processo causal que conduziu à maior das lesões.

                                                            IV
Termos em que, acorda-se em julgar improcedente a apelação do Réu Hospital e, parcialmente procedente a apelação do Autor, condenando-se o Réu Hospital Distrital da K... no pagamento ao Autor da quantia de € 68.559,25, (sessenta e oito mil quinhentos e cinquenta e nove euros e vinte e cinco cêntimos), em vez dos anteriormente fixados € 34.279,62, mantendo-se, em tudo o mais, a decisão recorrida.

Custas por A. e R. na proporção de 1/3 e 2/3, respetivamente.


 Anabela Luna de Carvalho( Relatora )
 João Moreira do Carmo
José Fonte Ramos