Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
53/13.1GESRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: COACÇÃO
COACÇÃO SEXUAL
ACTO SEXUAL DE RELEVO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
Data do Acordão: 01/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (INSTÂNCIA CENTRAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 154.º, 163.º E 171.º, N.º 3, AL. B), DO CP
Sumário: I - O bem jurídico protegido [no crime de coacção] é a liberdade de decidir e de actuar: liberdade de decisão (formação) e de realização da vontade. Numa perspectiva estrutural poder-se-á dizer que a liberdade pessoal se analisa em dois âmbitos essenciais: a liberdade de decisão e de acção e a liberdade de movimento.

II - Esta liberdade de decisão e liberdade de acção são como que o lado interno e o lado externo da liberdade de acção. Nesta medida, o crime de coação não só abrange as acções que apenas restringem a liberdade de (decisão) e de acção – as acções de constrangimento em sentido estrito, ou seja a tradicional vis compulsiva –, mas também as acções que eliminam, em absoluto, a possibilidade de resistência – a chamada vis absoluta – bem como as acções que afectem os pressupostos psicológico-mentais da liberdade de decisão, isto é a própria capacidade de decidir.

III - Quer a acção de violência, quer a ameaça com mal importante, devem ser adequadas ao resultado do constrangimento (isto é, à acção, omissão ou tolerância de uma actividade).

IV - O bem jurídico protegido [no crime de coacção sexual] é a liberdade da pessoa escolher o seu parceiro sexual e de dispor livremente do seu corpo.

V - “Acto sexual de relevo” será todo aquele comportamento que de um ponto de vista essencialmente objectivo pode ser reconhecido por um observador comum como possuindo carácter sexual e que em face da espécie, intensidade ou duração ofende em elevado grau a liberdade de determinação sexual da vítima.

VI - Entende-se que para o homem médio, a quem são dirigidas as normas penais, conversa pressupõe diálogo, troca de impressões, de opiniões entre duas pessoas, o que cremos não se verificar quando uma pessoa dirige palavras à outra e esta não lhe responde, não comunica com o emissor.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

 Relatório

Pela Comarca de Castelo Branco – Instância Central de Castelo Branco, Secção Criminal – J2, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, o arguido

A... , casado, reformado, filho de (...) e de (...) , nascido a 01/06/1948, na freguesia de (...) , concelho da Sertã, residente em (...) , Cernache do Bonjardim,

imputando-se-lhe a prática, em autoria material e em concurso efectivo, de:

- um crime de coacção sexual, p. e p. pelo artigo 163º, n.º 1, do Código Penal, e de

- um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, n.º 1, do Código Penal, na pessoa da ofendida C... , e de

- três crimes de abuso sexual de crianças, ps. e ps. pelos artigos 171º, n.º 1, e 171º, n.º 3, alíneas a) e b), por referência ao disposto no artigo 170º, todos do Código Penal, na pessoa de B... .

            A ofendida C... , por si e na qualidade de representante legal da sua filha B... , deduziu pedido de indemnização civil de fls. 259 a 261, requerendo a condenação do arguido A... no pagamento da quantia de € 7.700,00.

Realizada a audiência de julgamento - no decurso da qual foi comunicada ao arguido uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação e uma alteração da qualificação jurídica, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 358º, n.º 1 e 3, do C.P.P. -, o Tribunal Colectivo, por acórdão proferido a 4 de Maio de 2015, decidiu:

Julgar parcialmente improcedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência:

- absolver o arguido A... da prática do crime de coacção sexual, p. e p. pelo artigo 163º, n.º 1, do Código Penal, do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, n.º 3, alínea a), por referência ao disposto no artigo 170º, ambos do Código Penal, e do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, n.º 3, alínea b), do Código Penal, que lhe foram imputados;

- condenar o arguido A... pela prática, como autor material e em concurso efectivo, de um crime de coacção, p. e p. pelo artigo 154º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa; de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa; e de um crime abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;

- proceder ao cúmulo jurídico das três penas aplicadas nestes autos ao arguido e, em consequência, condenar o arguido A... na pena única de 170 (cento e setenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante de € 850,00 (oitocentos e cinquenta euros), e de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão; e

- suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido pelo período de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses, com sujeição a regime de prova, de acordo com o plano que vier a ser elaborado pelos serviços de reinserção social.

Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelas demandantes e, em consequência:

- condenar o demandado A... a pagar à demandante B... a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros) e a pagar à demandante C... a quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais e absolver o mesmo do pagamento da restante quantia peticionada.

Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o Ministério Público, apresentando as seguintes conclusões retiradas da motivação:

1.ª Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido A... imputando-lhe a prática, como autor material e em concurso efectivo, de um crime de coacção sexual, p. e p. pelo artigo 163°, n.º 1, do Código Penal, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143°, n.º 1, do Código Penal, e de três crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171°, n.º 1, e 171°, n.º 3, alíneas a) e b), por referência ao disposto no artigo 170°, todos do Código Penal.

2.ª Submetido a julgamento decidiu o Tribunal a quo:

- Julgar parcialmente improcedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência, absolver o arguido A... da prática do crime de coacção sexual, p. e p. pelo artigo 163°, n.º 1, do Código Penal, do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171°, n.º 3, alínea a), por referência ao disposto no artigo 170°, ambos do Código Penal, e do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171°, n.º 3, alínea b), do Código Penal, que lhe foram imputados.

- Julgar parcialmente procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência, condenar o arguido A... pela prática, como autor material e em concurso efectivo, de um crime de coacção, p. e p. pelo artigo 154°, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143°, n.º 1, do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, e de um crime abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171°, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão.

3.ª É exclusivamente quanto à absolvição do arguido da prática dos crimes de coacção sexual p. e p. pelo artigo 163°, n.º 1, do Código Penal e de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171°, n.º 3, alínea b), do Código Penal, que lhe foram imputados que se insurge o Ministério Público.

4.ª Na fundamentação de facto do douto acórdão recorrido, e com relevo para o que agora se impugna, foi dada como provada a seguinte matéria de facto:

1. A ofendida B... nasceu no dia 2 de Setembro de 2002 e é filha de C... e de D... .

   2. No dia 3 de Julho de 2013, cerca das 21h00, a ofendida C... dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado K... , situado em (...) , Cernache do Bonjardim, acompanhada dos seus filhos B... e E... , com o intuito de aí confraternizar e tomar um café com o seu namorado F..., tendo permanecido nesse local até cerca das 23h30 do mesmo dia.

   3. Depois de sair do mencionado estabelecimento comercial, a ofendida C... , acompanhada dos seus dois filhos, dirigiu-se a pé para a sua residência, situada na (...) , em (...) , Cernache do Bonjardim.

4. A dada altura do percurso, a ofendida e os seus filhos cruzaram-se, por várias vezes, com o arguido, que circulava na via pública, fazendo-se transportar num velocípede.

   5. Já próximo da residência da ofendida, o arguido imobilizou o velocípede e dirigiu-se apeado para junto da ofendida C... e dos seus filhos.

   6. De súbito, o arguido abordou a ofendida C... , agarrou-a pelas costas, prendeu-lhe ambos os braços junto do tronco, impedindo-a assim de se mover.

   7. Após, o arguido tentou beijá-la à força, enquanto a ofendida C... tentava libertar-se do arguido.

   8. O arguido acabou por conseguir beijar a ofendida C... na face, após o que lhe mordeu a orelha direita, enquanto oscilava as ancas para trás e para a frente, encontrando-se já de frente para a ofendida.

   9. Na tentativa de ajudar a sua mãe a libertar-se do arguido, a ofendida B... aproximou-se da mãe e do arguido, conseguindo que este largasse a sua mãe, afastando-se dela, após o que a mesma caiu no chão.

   10. De seguida, o arguido aproximou-se da ofendida B... , então com 10 anos de idade, agarrou-a e colocou a mão direita entre as pernas da mesma, apalpando-a, por cima da roupa que trazia vestida, no seu órgão genital.

   11. Acto contínuo, o arguido imobilizou a ofendida B... e beijou-a na face direita, ao mesmo tempo em que movimentava as ancas para trás e para a frente, tocando no corpo da ofendida.

   12. Quando a mãe da ofendida B... se aproximou do arguido, o mesmo pegou no seu velocípede e abandonou o local.

   13. No dia 15 de Julho de 2013, cerca das 22h00, na esplanada do mesmo estabelecimento comercial, iniciou-se uma discussão entre o arguido e a testemunha F... , namorado da ofendida C... .

   14. No intuito de evitar maior confusão, a ofendida C... levantou-se e colocou-se entre os dois, tendo o arguido desferido um murro na zona do peito da ofendida C... , pontapés nas pernas e arranhões no pescoço da mesma.

   15. Em consequência dos factos praticados pelo arguido, a ofendida C... sofreu hematomas e dores.

   16. No dia 20 de Agosto de 2013, cerca das 22h30, no interior do café denominado K... , quando a ofendida B... se encontrava sentada num sofá a ver televisão, o arguido, que se encontrava sentado numa cadeira, começou a fazer gestos com a língua e, dirigindo-se à ofendida B... , proferiu a seguinte expressão: “ó pequenina, eu quero-te foder”

   17. De imediato, a ofendida B... saiu do interior do estabelecimento comercial, tendo corrido em direcção à sua mãe, que se encontrava na esplanada do mesmo, relatando-lhe o sucedido.

   18. Ao agir da forma descrita, o arguido pretendeu dar um beijo à ofendida C... , bem sabendo que actuava contra a vontade desta, recorrendo ao uso da força física para a impedir de resistir.

   19. O arguido actuou com o propósito de satisfazer os seus impulsos libidinosos, bem como de provocar a excitação sexual da ofendida B... , apesar de saber que esta era menor de 14 anos e que a sua actuação era idónea para produzir dano no desenvolvimento psicológico da mesma.

   20. O arguido actuou ainda com o propósito concretizado de molestar a integridade física da ofendida C... , bem sabendo que lhe provocava dores e lesões no corpo.

   21. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a ofendida B... tinha apenas 10 anos de idade e que lhe estava vedada a prática de actos sexuais com a mesma.

   22. O arguido sabia que as suas condutas são censuráveis, proibidas e criminalmente punidas.

5.ª E, de relevante para o que ora se impugna, deu como não provado que:

   “O arguido actuou com o propósito de manter conversação de cariz sexual com a ofendida B... .”

6.ª Porém, analisando os factos dados como provados no acórdão recorrido à luz do disposto nos art°s 163°, n° l, do Código Penal e 171°, n° 3, al. b) do Código Penal, que tipificam respectivamente os crimes de coacção sexual e abuso sexual de crianças que ao arguido vinham imputados na acusação pública, entendemos que o tribunal a quo mesmo violou estes normativos legais ao estabelecer um patamar de exigência de preenchimento dos conceitos de “acto sexual de relevo”, por um lado e de “actuar sobre menor de 14 anos por meio de conversa pornográfica”, por outro, completamente desajustada do grau de exigência legalmente consagrado para o efeito, e isto não obstante o sentido da evolução legislativa verificada nesta matéria no nosso ordenamento jurídico-penal.

7.ª Quanto ao crime de coacção sexual: É sabido que não se deve adoptar nesta sede uma perspectiva moralista. Refere a este propósito FIGUEIREDO DIAS: “A interpretação do elemento típico tem por isso hoje de ocorrer - e esta é a modificação essencial - à margem de todo o conteúdo ou significado moralista. Ela não pode ser levada a cabo apelando para as representações moralistas da sociedade, mutáveis e conflituantes, mas apenas para as valorações materiais que suportam a ordenação jurídica vigente e nela encontram expressão.”

8.ª De resto, tal conclusão já resultaria dos próprios trabalhos preparatórios das normas que nos ocupam. Veja-se quanto aos trabalhos preparatórios, designadamente no ponto 3 - “Crimes contra a liberdade sexual”, do Relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias:

    Muito longe de corresponder a simples formalidade, a alteração tem subjacente uma notável mutação da filosofia jurídica sobre esta matéria, e possui, portanto, implicações na interpretação de todos os tipos penais aqui contidos. A ideia foi depurar os chamados crimes sexuais de referências éticas de que o Direito Penal deve ser alheio e tomar apenas os comportamentos que inequivocamente agridem a chamada “liberdade sexual”.(...)

9.ª Ora, no caso em apreço é também esta a questão que cumpre esclarecer: se os factos praticados pelo arguido sobre a ofendida C... no dia 3 de Julho de 2013 (pontos 4 a 8 dos factos provados) se podem considerar “acto sexual de relevo”, pois só assim se recairá no âmbito de previsão do crime de coacção sexual e não já no de coacção simples como entendeu o Tribunal a quo.

10.ª Entendemos como especialmente pertinentes as palavras de Simas Santos, no Ac. S.T.J. de 12.07.2005, onde podemos ler:

(...) Este Supremo Tribunal de Justiça não se tem afastado muito deste entendimento, ponderando que o acto sexual de relevo é um conceito indeterminado, que confere alguma margem de apreciação aos julgadores, em função das realidades sociais, das concepções reinantes e da própria evolução dos costumes, mas não deixa de cobrir as hipóteses de actos graves, nomeadamente aqueles que atentam com os normais sentimentos de pudor dos ofendidos, intoleráveis numa sociedade civilizada. O que, no entanto, não exclui a relatividade da gravidade, o que explica a grande amplitude da moldura penal (prisão de 1 a 8 anos) ou mesmo a irrelevância de um beliscão passageiro, (cfr. neste sentido o Ac. de 31.10.1995, proc. n.º 48119) Considerou que acto sexual de relevo terá de ser entendido como o acto que tendo relação com o sexo (relação objectiva), se reveste de certa gravidade e em que, além disso, há da parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais (cfr. Acs. de 24.10.96, proc. n.° 606/96 e de 12/03/1998, proc. n.º 1429/97) Para justificar a expressão “de relevo” terá a conduta de assumir gravidade, intensidade objectiva e concretizar intuitos e desígnios sexuais visivelmente atentatórios da auto-determinação sexual; de todo o modo, será perante o caso concreto de que se trate que o "relevo” tem de recortar-se

11.ª Acrescentamos ainda, citando aqui o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.03.2015, relatado pela Exma Sr.ª Desembargadora Maria José Nogueira, consultável in www.dgsi.pt:

   “ (...) Importa não esquecer que o «acto sexual de relevo» terá de configurar, em primeiro lugar, um acto sexual. Mas não só. E o carácter grave, de «importância» do acto que o faz transportar para o iter criminis, quando é este acto que está em causa no tipo de crime» - [cf. “Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual no Código Penal”, Coimbra Editora, 4.a edição, pág. 23 e ss.].

12.ª  Isto para dizer que, se por um lado o acto sexual tem de ser grave, de importância, por outro lado, não está excluída a relatividade dessa mesma gravidade, e, de todo o modo, será perante o caso concreto de que se trate que o “relevo” tem de recortar-se.

13° No caso concreto dos autos, sem apelar ou cair em qualquer subjectivismo, nenhuma dúvida se pode colocar no sentido de que a actuação do arguido, traduzida nos seguintes factos dados como provados, que se relembram, integra o conceito de acto sexual de relevo:

(...)

4. Já próximo da residência da ofendida, o arguido imobilizou o velocípede e dirigiu-se apeado para junto da ofendida C... e dos seus filhos.

5. De súbito, o arguido abordou a ofendida C... , agarrou-a pelas costas, prendeu-lhe ambos os braços junto do tronco, impedindo-a assim de se mover.

6. Após, o arguido tentou beijá-la à força, enquanto a ofendida C... tentava libertar-se do arguido.

7. O arguido acabou por conseguir beijar a ofendida C... na face, após o que lhe mordeu a orelha direita, enquanto oscilava as ancas para trás e para a frente, encontrando-se já de frente para a ofendida.

8. Na tentativa de ajudar a sua mãe a libertar-se do arguido, a ofendida B... aproximou-se da mãe e do arguido, conseguindo que este largasse a sua mãe, afastando-se dela, após o que a mesma caiu no chão.

9. De seguida, o arguido aproximou-se da ofendida B... , então com 10 anos de idade, agarrou-a e colocou a mão direita entre as pernas da mesma, apalpando-a, por cima da roupa que trazia vestida, no seu órgão genital.

(...)

14.ª Ora, abordar a ofendida C... , pelas 23h30m da noite, na via pública junto à casa desta, agarrando-a pelas costas, prendendo-lhe os braços, impedindo-a assim de se mover, beijando-a à força, mordendo-lhe a orelha direita, ao mesmo tempo que oscilava as ancas para trás e para a frente - simulando assim o acto de cópula - encerra um acto com manifesta conotação sexual dotado de gravidade objectiva, o qual, conjugado com a intenção do arguido de, assim, satisfazer os seus instintos libidinosos, integra, naturalmente, o conceito de «acto sexual de relevo».

15.ª Tal actuação do arguido, provado que ficou o recurso ao uso da violência, de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação da ofendida C... , não se traduzindo numa actuação insignificante ou bagatelar, mas antes grave, de relevo.

16.ª Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02.02.2011, «o acto sexual de relevo é (...) todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas e a relevância ou irrelevância de um acto sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade (...) que considerará relevante ou irrelevante um determinado acto sexual consoante ofenda, com gravidade ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas, (in www.dgsi.pt. proc. n.º 889/09.8.TAPBL.C1).

17.ª Donde, reiteramos, a actuação do arguido sobre a ofendida C... , ocorrida durante a noite, junto à sua casa, para onde a mesma se dirigia com os seus dois filhos menores, que a tudo assistiram, não só encerra um acto com manifesta conotação sexual, como que ofende, objectivamente, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas.

18.ª E tal gravidade, objectiva, decorre ainda do facto de, logo de seguida, o arguido ter abordado a menor B... quando esta foi em defesa da mãe, tal como ficou provado sob os pontos 10 e 11, da fundamentação de facto, persistindo no comportamento destinado à libertação e satisfação dos seus impulsos sexuais.

19.ª Entendemos pois que o tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação do art° 163°, n° 1, do Código Penal face à definição do conceito de acto sexual de relevo legalmente consagrado no nosso ordenamento jurídico-penal, redundando tal interpretação em evidente violação do espírito e da letra daquela norma jurídica.

20.ª Não podendo assim aceitar, como razoável e válida, a conclusão da fundamentação da sentença recorrida no sentido de “(...) não ter resultado demonstrado que, através da violência exercida sobre a ofendida C... , o arguido visou constrangê-la a sofrer acto sexual de relevo (...)”

21.ª Pelo que, face à factualidade dada como provada e com os fundamentos supra referidos, divergindo assim do entendimento do tribunal a quo, estão, em nosso entender, reunidas todas as condições e pressupostos legais (concretamente, os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal) para se responsabilizar criminalmente o arguido pelos factos dados como provados, que correspondem ao crime de coacção sexual p. e p. pelo art° 163°, n° 1, do Código Penal.

22.ª Quanto ao crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art° 171°, n° 3, al. b), do Código Penal, analisada a estrutura típica do crime em referência, e relativamente à concreta actuação do arguido sobre a menor B... resultou provado da discussão e julgamento que:

   “ (...) 16. No dia 20 de Agosto de 2013, cerca das 22h30, no interior do café denominado K... , quando a ofendida B... se encontrava sentada num sofá a ver televisão, o arguido, que se encontrava sentado numa cadeira, começou a fazer gestos com a língua e, dirigindo-se à ofendida B... , proferiu a seguinte expressão: “ó pequenina, eu quero-te foder ”.

Entendendo contudo o Tribunal a quo dar como não provado que:

    “ (...) 8. O arguido actuou com o propósito de manter conversação de cariz sexual com a ofendida B... . ”

23.ª Fundamenta o tribunal a quo este segmento da decisão, no sentido da absolvição do arguido, entre o mais do seguinte modo:

   “ (...). A conversa pornográfica é a troca de palavras mantida pelo agente com a criança ou com terceiro diante da criança de modo adequado a excitar sexualmente a vítima. Não está incluído o monólogo. ”.

(...)

Com efeito, conforme resulta do que já foi mencionado, embora o arguido tenha proferido a expressão “ó pequenina, eu quero-te foder ”, que dirigiu à ofendida B... , o certo é que tal expressão não se encontra integrada em qualquer conversa que o arguido tenha mantido com a ofendida ou com terceiro na presença da mesma.

Na verdade, conversa significa, de acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa, “troca de palavras, conversação, diálogo”, “troca de palavras ou de frases entre dois ou mais interlocutores ” .

Por essa razão, não resultando da fundamentação de facto que antecede que o arguido tenha executado a conduta típica consistente em “actuar sobre menor de 14 anos por meio de conversa pornográfica”, impõe-se absolver o mesmo da prática do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171°, n.° 3, alínea b), do Código Penal, que lhe foi imputado. (...)

24.ª Discordamos porém deste entendimento do tribunal a quo, resultante duma interpretação literal do preceito, ancorada na mera definição linguística do vocábulo “conversa”.

25.ª A criminalização do tipo de conduta prevista no art° 171°, n° 3, al. b), de actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos, visa a tutelar o desenvolvimento sem entraves da criança, designadamente ao nível do desenvolvimento harmonioso da sua sexualidade.

26.ª Sendo que, para efeitos da norma em causa, “conversa pornográfica” é a que tem uma intensidade pesada e baixamente sexual, idónea a prejudicar o desenvolvimento harmonioso da personalidade da criança - Neste sentido cfr. Acórdão da Relação de Guimarães, de 17.11.2014, relatado pela ExmaSr.ª desembargadora Ana Teixeira, citando Figueiredo Dias, consultável in www.dgsi.pt

27.ª De resto, esta conversa do arguido com a menor B... , consubstanciada em palavras que o mesmo lhe dirigiu, - relembramos: “ ó pequenina, eu quero-te foder” - ao mesmo tempo que lhe fazia gestos com a língua, ocorreu 17 dias depois dos factos também praticados pelo arguido sobre a menor e dados como provados pelo tribunal a quo, a saber:

(...)

   12. De seguida, o arguido aproximou-se da ofendida B... , então com 10 anos de idade, agarrou-a e colocou a mão direita entre as pernas da mesma, apalpando-a a, por cima da roupa que trazia vestida, no seu órgão genital.

   13. Acto contínuo, o arguido imobilizou a ofendida B... e beijou-a na face direita, ao mesmo tempo em que movimentava as ancas para trás e para a frente, tocando no corpo da ofendida. (...)

28.ª Ora, um arguido que actua da forma descrita e que, dias depois dirige aquelas palavras à menor está a actuar sobre a mesma através de conversa pornográfica e, ao fazê-lo actuou com o propósito, concretizado, de manter conversação de cariz sexual com a ofendida B... .

29.ª Com efeito, interessa para aferição da integração da conduta do arguido no crime em causa - art° 171°, n° 3, al.b) do Código Penal - avaliar se a interpelação pelo arguido da B... da forma como ficou provada, foi susceptível de perturbar o desenvolvimento harmonioso desta criança na esfera da sexualidade tal como o normativo em causa visa proteger.

30.ª E, a resposta não pode senão ser no sentido de que o arguido causou constrangimento à menor, de tal sorte que, tal como o tribunal a quo deu como provado sob o ponto 17. “De imediato, a ofendida B... saiu do interior do estabelecimento comercial, tendo corrido em direcção à sua mãe, que se encontrava na esplanada do mesmo, relatando-lhe o sucedido”, e, mais, pretendeu o arguido deste modo ofendê-la no seu pudor e nos seus sentimentos de moralidade sexual.

31a É verdade que o arguido não teve uma conversa no sentido em que este vocábulo vem definido nos dicionários citados no acórdão recorrido, mas o arguido interpelou a criança através de palavras e movimentos expressivos de anúncio de desejo sexual (fazendo gestos com a língua), de forma apta, idónea a perturbar, a comprometer o desenvolvimento harmonioso da mesma na sua esfera sexual,

32.ª Sendo certo que, socorrendo-nos aqui de novo do que vem dito no acórdão do STJ de 05.07.2007 «No abuso sexual de crianças será sempre relevante qualquer actuação objectivamente libidinosa por mais simples que ela seja ou pareça ser, em virtude de tais menores não disporem do discernimento suficiente para se relacionarem sexualmente em liberdade» - cfr., CJSTJ 2/07, 242.

33.ª Deste modo, impõe-se em concluir que o arguido ao proferir a expressão supra enunciada, acompanhada de gestos feitos com a língua de molde a vincar, explicitar, a sua pretensão sempre dirigidas à menor, cometeu o crime por que vinha acusado com conteúdo pornográfico e, consequentemente, a sua conduta integra a previsão normativa do art° 171°, n° 3, al. b) do Código Penal.

34.ª Pelo que, face à factualidade dada como provada e com os fundamentos supra referidos, divergindo assim do entendimento do tribunal a quo, estão reunidas todas as condições e pressupostos legais (concretamente, os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal) para responsabilizar criminalmente o arguido pelos factos dados como provados, que correspondem ao crime de coacção sexual p. e p. pelo 163°, n.° 1, do Código Penal e de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171°, n.° 3, alínea b), do Código Penal, pelos quais deve aquele ser condenado.

35.ª Ao decidir de modo diferente, como decidiu, o Tribunal a quo fez uma interpretação errada e desadequada dos artigos 163°, n° 1 e 171°, n° 3, al. b) acima indicados.
36.a Deve assim a decisão de absolver o arguido dos crimes de coacção sexual p. e p. pelo 163°, n.° 1, do Código Penal e de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171°, n.° 3, alínea b), do mesmo diploma legal que lhe vinham imputados ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática dos mesmos por se encontrarem preenchidos todos os elementos dos tipos legais respectivos e por não existir qualquer causa de justificação ou de exclusão da culpa, ou qualquer outro obstáculo à punição.

O arguido A... respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção integral da decisão recorrida.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer  no sentido de que o recurso deverá proceder, revogando-se o douto acórdão recorrido e condenando-se o arguido pelos crimes de coacção sexual e abuso sexual.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., não tendo o arguido respondido ao douto parecer.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

            A matéria de facto apurada e respectiva motivação constantes do acórdão recorrido é  a seguinte:

            Factos provados

1. A ofendida B... nasceu no dia 2 de Setembro de 2002 e é filha de C... e de D... .

2. No dia 3 de Julho de 2013, cerca das 21h00, a ofendida C... dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado K... , situado em (...) , Cernache do Bonjardim, acompanhada dos seus filhos B... e E... , com o intuito de aí confraternizar e tomar um café com o seu namorado F... , tendo permanecido nesse local até cerca das 23h30 do mesmo dia.

3. Depois de sair do mencionado estabelecimento comercial, a ofendida C... , acompanhada dos seus dois filhos, dirigiu-se a pé para a sua residência, situada na (...) , em (...) , Cernache do Bonjardim.

4. A dada altura do percurso, a ofendida e os seus filhos cruzaram-se, por várias vezes, com o arguido, que circulava na via pública, fazendo-se transportar num velocípede.

5. Já próximo da residência da ofendida, o arguido imobilizou o velocípede e dirigiu-se apeado para junto da ofendida C... e dos seus filhos.

6. De súbito, o arguido abordou a ofendida C... , agarrou-a pelas costas, prendeu-lhe ambos os braços junto do tronco, impedindo-a assim de se mover.

7. Após, o arguido tentou beijá-la à força, enquanto a ofendida C... tentava libertar-se do arguido.

8. O arguido acabou por conseguir beijar a ofendida C... na face, após o que lhe mordeu a orelha direita, enquanto oscilava as ancas para trás e para a frente, encontrando-se já de frente para a ofendida.

9. Na tentativa de ajudar a sua mãe a libertar-se do arguido, a ofendida B... aproximou-se da mãe e do arguido, conseguindo que este largasse a sua mãe, afastando-se dela, após o que a mesma caiu no chão.

10. De seguida, o arguido aproximou-se da ofendida B... , então com 10 anos de idade, agarrou-a e colocou a mão direita entre as pernas da mesma, apalpando-a, por cima da roupa que trazia vestida, no seu órgão genital.

11. Acto contínuo, o arguido imobilizou a ofendida B... e beijou-a na face direita, ao mesmo tempo em que movimentava as ancas para trás e para a frente, tocando no corpo da ofendida.

12. Quando a mãe da ofendida B... se aproximou do arguido, o mesmo pegou no seu velocípede e abandonou o local.

13. No dia 15 de Julho de 2013, cerca das 22h00, na esplanada do mesmo estabelecimento comercial, iniciou-se uma discussão entre o arguido e a testemunha F... , namorado da ofendida C... .

14. No intuito de evitar maior confusão, a ofendida C... levantou-se e colocou-se entre os dois, tendo o arguido desferido um murro na zona do peito da ofendida C... , pontapés nas pernas e arranhões no pescoço da mesma.

15. Em consequência dos factos praticados pelo arguido, a ofendida C... sofreu hematomas e dores.

16. No dia 20 de Agosto de 2013, cerca das 22h30, no interior do café denominado K... , quando a ofendida B... se encontrava sentada num sofá a ver televisão, o arguido, que se encontrava sentado numa cadeira, começou a fazer gestos com a língua e, dirigindo-se à ofendida B... , proferiu a seguinte expressão: “ó pequenina, eu quero-te foder”.

17. De imediato, a ofendida B... saiu do interior do estabelecimento comercial, tendo corrido em direcção à sua mãe, que se encontrava na esplanada do mesmo, relatando-lhe o sucedido.

18. Ao agir da forma descrita, o arguido pretendeu dar um beijo à ofendida C... , bem sabendo que actuava contra a vontade desta, recorrendo ao uso da força física para a impedir de resistir.

19. O arguido actuou com o propósito de satisfazer os seus impulsos libidinosos, bem como de provocar a excitação sexual da ofendida B... , apesar de saber que esta era menor de 14 anos e que a sua actuação era idónea para produzir dano no desenvolvimento psicológico da mesma.

20. O arguido actuou ainda com o propósito concretizado de molestar a integridade física da ofendida C... , bem sabendo que lhe provocava dores e lesões no corpo.

21. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a ofendida B... tinha apenas 10 anos de idade e que lhe estava vedada a prática de actos sexuais com a mesma.

22. O arguido sabia que as suas condutas são censuráveis, proibidas e criminalmente punidas.

23. Em consequência dos factos praticados pelo arguido, as ofendidas C... e B... sentiram desgosto, mágoa e vergonha.

24. Em consequência dos mesmos factos, ambas as ofendidas ficaram nervosas e inquietas, sentindo perturbação do sono.

25. O arguido sabia que a ofendida C... é de nacionalidade estrangeira e estava acompanhada de dois filhos menores de idade.

26. No âmbito dos presentes autos, a ofendida C... deslocou-se a Tribunal e à Unidade Local de Saúde de Castelo Branco, para a realização de um exame psicológico à sua filha B... .

27. O arguido é tido, por aqueles com quem priva, como uma pessoa pacata, que não provoca conflitos com terceiros.

28. Há cerca de oito meses, o arguido deixou de ingerir bebidas alcoólicas com regularidade.

29. O arguido faz parte de um conjunto de sete irmãos.

30. O arguido completou a 3ª classe, concluindo mais tarde, no âmbito do cumprimento do serviço militar obrigatório, a 4ª classe.

31. Aos 12 anos de idade, o arguido começou a acompanhar o seu pai na execução da actividade de extracção de resina, a qual desenvolveu durante alguns anos.

32. Com 21 anos de idade, o arguido ingressou no serviço militar.

33. A 17 de Setembro de 1971, o arguido contraiu casamento, tendo dois filhos maiores de idade que constituíram agregados familiares autónomos.

34. O arguido esteve emigrado no Norte de França e, mais tarde, na Alemanha, onde trabalhou predominantemente no corte de madeiras.

35. Quando regressou a Portugal, o arguido passou a trabalhar na agricultura, para vizinhos, até se reformar aos 65 anos de idade.

36. O arguido vive em casa própria com a sua esposa, que se encontra reformada.

37. O arguido aufere uma pensão de reforma de cerca de € 250,00 e a sua esposa recebe uma pensão de reforma de € 328,00.

38. Por decisão transitada em julgado a 28/10/2013, proferida no âmbito do processo sumaríssimo n.º 152/13.0GBSRT, do Tribunal Judicial da Sertã, o arguido foi condenado na pena de 70 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de quatro meses, por ter incorrido na prática, a 16/07/2013, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

Factos não provados

            Após a realização da audiência de julgamento nos presentes autos, não ficaram provados quaisquer outros factos relevantes para a decisão a proferir, não se tendo demonstrado, designadamente:

   1. Enquanto oscilava as ancas, na ocasião mencionada em 8. dos factos considerados provados, o arguido chegou a atingir, com as ancas, o corpo da ofendida C... .

   2. No momento indicado em 9. dos factos considerados provados, o arguido empurrou a ofendida C... .

   3. Alguns momentos antes de terem ocorrido os factos descritos em 2. a 12., quando ainda todos se encontravam no interior do café denominado K... , o arguido olhou fixamente para a ofendida B... e, mostrando-lhe a língua de fora, passou com as mãos entre as suas próprias pernas, acariciando os órgãos genitais, ao que a ofendida B... desviou o olhar, o que não impediu o arguido de prosseguir com a mesma conduta.

   4. Para além das pernas, o arguido atingiu outras zonas do corpo da ofendida C... com pontapés.

   5. Na ocasião mencionada em 16. dos factos considerados provados, o arguido lambia os seus próprios lábios.

   6. O arguido pretendeu submeter a ofendida C... a um acto de cópula, actuando em detrimento da liberdade e autodeterminação sexual da mesma, propósito que apenas não concretizou em virtude de ter aparecido a ofendida B... .

   7. O arguido quis satisfazer os seus apetites libidinosos quando pretendeu constranger a ofendida C... a praticar consigo relações de cópula completa, o que apenas não conseguiu graças à reacção da ofendida B... .

   8. O arguido actuou com o propósito de manter conversação de cariz sexual com a ofendida B... .

   9. Em consequência dos factos praticados pelo arguido, as ofendidas sofreram depressão.

10. A ofendida C... despendeu quantia não inferior a € 100,00 com as deslocações mencionadas em 26. dos factos considerados provados.

            Convicção do Tribunal

            Para formar a sua convicção acerca dos factos considerados provados, o Tribunal Colectivo atendeu a toda a prova produzida em audiência de julgamento, a cuja análise crítica e conjugada procedeu.

            Antes de mais, importa esclarecer que as alegações constantes do pedido de indemnização civil formulado nos presentes autos que não se encontram incluídas no elenco dos factos considerados provados e não provados contêm apenas alusões de natureza genérica ou conclusiva, matéria de direito ou factos irrelevantes para a decisão a proferir.

            Por outro lado, importa salientar que o arguido negou ter praticados os factos que se encontram descritos na acusação, esclarecendo que, relativamente à ocasião em que lhe é imputada a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, embora se recorde de ter sido abordado pela ofendida C... , não se lembra de lhe ter batido.

            Em todo o caso, a prova testemunhal e documental produzida nos presentes autos revela, sem qualquer margem para dúvida, que os factos descritos no elenco dos factos considerados provados ocorreram nos moldes aí mencionados.

            Desde logo, a certidão do assento de nascimento que se encontra junta a fls. 221 e 222 permitiu apurar a data de nascimento e a filiação da ofendida B... .

            No que diz respeito aos factos ocorridos no dia 3 de Julho de 2013, assumiram relevo, por um lado, as declarações prestadas pelas demandantes civis C... e B... e, por outro lado, os depoimentos das testemunhas E... e F... .

            Na verdade, tanto as demandantes civis, como as testemunhas citadas prestaram depoimentos que se afiguraram sinceros, convictos e coincidentes entre si, revelando um esforço no sentido de transmitir ao Tribunal os factos por si presenciados.

            Assim, tendo as demandantes civis e as duas testemunhas a que se aludiu relatado ao Tribunal factos de que tiveram conhecimento directo, não poderia deixar de lhes ser concedida credibilidade.

            Ora, os factos descritos em 2. a 4. foram relatados, em moldes coincidentes, pelas demandantes civis e pelas testemunhas a que se aludiu, não subsistindo, portanto, qualquer dúvida a respeito dos mesmos.

            De facto, embora não tenha acompanhado as demandantes civis e a testemunha E... no percurso pelas mesmas efectuado entre o café e a respectiva residência, a testemunha F... garantiu que se encontrou com a demandante civil C... e com os filhos desta, enquanto efectuavam o mencionado percurso a pé, numa altura em que também o arguido se cruzou com os mesmos.

            Refira-se ainda que, relativamente às concretas circunstâncias de tempo em que ocorreram os factos, a demandante civil C... revelou ter melhor memória da data e das horas indicadas na acusação, razão pela qual, coincidindo as que foram pela mesma indicadas com as que constavam já da denúncia por si apresentada a fls. 2 a 4, não subsistem dúvidas a esse respeito.

            Já os factos descritos em 5. a 12. foram presenciados apenas pela própria demandante civil C... e pelos seus filhos B... e E... .

            No entanto, impõe-se notar que apenas as ofendidas C... e B... lograram descrever, com pormenor, os factos de que foram vítimas, nos moldes que se encontram indicados em 7. e 8. relativamente à primeira e em 10. e 11. relativamente à segunda.

            Com efeito, os factos descritos em 7. e 8. foram confirmados apenas pela própria ofendida C... , enquanto os factos a que se reportam os números 10. e 11. foram relatados, de forma coincidente, por ambas as ofendidas, excepto no que respeita ao facto de o arguido ter beijado a ofendida B... na face, que foi confirmado apenas por esta.

            Mas, para além disso, é relevante salientar que a testemunha E... , com a sinceridade e espontaneidade próprias de uma criança de dez anos, esclareceu ter visto, na ocasião em apreço, que o arguido abraçou ambas as ofendidas contra a sua vontade, forçando-as a cumprimentá-lo, acrescentando ainda que a sua irmã B... bateu com um casaco no arguido, de forma a que o mesmo se afastasse da sua mãe.

            Afigurando-se plausível que a testemunha E... não se tenha apercebido dos restantes factos praticados pelo arguido, ou não tenha apreendido o significado dos mesmos, resultou, de forma inequívoca, do seu depoimento que o arguido agarrou, contra a sua vontade, as ofendidas C... e B... .

            Efectivamente, a sinceridade da testemunha E... é inquestionável considerando, desde logo, que, caso tivesse sido previamente estimulada a descrever uma versão dos factos diversa daquela que corresponde aos factos que presenciou, teria, decerto, procedido à descrição de factos mais graves do que aqueles que relatou e que coincidiriam com os que foram mencionados pela sua mãe e pela sua irmã.

            Mas, a circunstância de o arguido ter agarrado ambas as ofendidas não significa, necessariamente, que tenha praticado também os restantes factos que lhe foram imputados.

            Contudo, a esse propósito afiguram-se esclarecedoras as declarações prestadas quer pela ofendida C... , quer pela ofendida B... , as quais garantiram ao Tribunal que o arguido incorreu na prática dos factos atrás descritos.

            Com efeito, ambas as ofendidas prestaram as suas declarações de forma que se afigurou comovida, revelando algum sofrimento e constrangimento por recordar os factos que se encontram em apreciação nestes autos.

            Nestes termos, em face da sinceridade revelada por ambas as declarantes, e uma vez que também as testemunhas F... e E... confirmaram parte das circunstâncias referentes à permanência do arguido no local, não subsistem quaisquer dúvidas de que o arguido praticou os factos descritos em 5. a 12., razão pela qual foram os mesmos considerados provados.

            Já os factos ocorridos no dia 15 de Julho de 2013 foram confirmados não só pela ofendida C... , mas também pelas testemunhas E... , F... , G... e H... , embora as duas primeiras tenham visto apenas que o arguido desferiu um murro à ofendida, enquanto as duas últimas testemunhas garantiram que o mesmo desferiu ainda pontapés que a atingiram.

            Também as testemunhas G... e H... prestaram depoimentos que se afiguraram desinteressados, coerentes e credíveis, transmitindo ao Tribunal factos que foram por si presenciados.

            Assim, em face da coincidência verificada entre os depoimentos prestados pelas testemunhas citadas, não subsistem quaisquer dúvidas de que, tal como foi referido pela ofendida C... , a mesma sofreu um murro e pontapés desferidos pelo arguido.

            Para além disso, em face da sinceridade e credibilidade da própria demandante civil, não poderiam deixar de se considerar demonstrados os restantes factos pela mesma descritos, ao afirmar que o arguido, na mesma ocasião, também a arranhou no pescoço e que, em consequência dos factos a que se aludiu, sofreu hematomas e dores.

            É certo que as circunstâncias de tempo em que tais factos ocorreram não foram indicadas, de forma coincidente, por todas as testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento.

            De todo o modo, a esse propósito, afigurando-se que, por ter sido a pessoa atingida pelas agressões em causa, a demandante civil terá melhor memória das circunstâncias em que ocorreram os factos, foi atribuída prevalência às declarações pela mesma prestadas a esse respeito e que, de resto, coincidem com a indicação constante da denúncia apresentada apenas alguns dias após a data em que ocorreram os factos (cfr. fls. 2 a 4).

            Nestes termos, conjugando as declarações e depoimentos a que se aludiu, não poderiam deixar de se considerar demonstrados os factos descritos em 13. a 15. do elenco dos factos provados.

            Relativamente aos factos descritos em 16. e 17., confirmados pela ofendida B... , verifica-se que os mesmos não foram presenciados por nenhuma das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento.

            Em todo o caso, a declarante C... confirmou que, logo na ocasião mencionada, a sua filha a abordou, assustada, relatando-lhe o sucedido em moldes coincidentes com os que foram descritos pela própria ofendida B... nas declarações para memória futura por si prestadas.

            Assim, em face do que já foi mencionado a propósito da sinceridade de ambas as ofendidas e da credibilidade pelas mesmas merecida, não poderiam os factos em causa deixar de se considerar demonstrados.

            Analisando os factos praticados pelo arguido à luz das regras da experiência comum, dúvidas não restam de que o mesmo actuou com o propósito de beijar a ofendida C... contra a vontade desta, assim como de provocar a excitação sexual da ofendida B... , cuja idade, como foi admitido pelo próprio arguido, era por si conhecida.

            Já no que respeita aos factos ocorridos no dia 15 de Julho de 2013, é também manifesto que o arguido actuou com o propósito de molestar fisicamente a ofendida C... .

            Embora tenha sido mencionado, quer pelo arguido, quer por várias das testemunhas inquiridas que o mesmo, à data da prática dos factos, ingeria bebidas alcoólicas em excesso, o certo é que, como foi garantido pela ofendida C... , no momento em que ocorreram os factos, o arguido não aparentava encontrar-se de tal forma alcoolizado que se encontrasse impossibilitado de compreender o significado dos seus actos.

            Assim, não subsistindo quaisquer dúvidas a respeito dos factos a que aludem os números 18. a 22., não poderiam os mesmos deixar de se considerar demonstrados.

            Os sentimentos e sofrimento a que aludem os números 23. e 24., para além de, como decorre das regras da experiência comum, consubstanciarem consequência adequada da prática de factos idênticos aos que foram executados pelo arguido, resultaram, de forma manifesta, das declarações prestadas por ambas as ofendidas.

            Para além disso, também as testemunhas E... , G... e F... confirmaram ter-se apercebido do nervosismo e mágoa sentidos pelas ofendidas.

            Já o facto descrito em 25. foi admitido pelo próprio arguido, enquanto a comparência das ofendidas nos locais indicados em 26. do elenco dos factos considerados provados está documentada nos autos.

            Por outro lado, todas as testemunhas arroladas pelo arguido confirmaram, de forma que se afigura plausível e sincera, que o mesmo é uma pessoa pacata e que não costuma provocar quaisquer conflitos com terceiros.

            De igual forma, quer o próprio arguido, quer as testemunhas I... e J... garantiram que o mesmo já deixou de ingerir bebidas alcoólicas em excesso, como acontecia anteriormente.

            A demonstração das condições pessoais, económicas e sociais do arguido resultou da análise do teor do relatório social que se encontra junto a fls. 334 a 337 dos autos.

            No que concerne aos antecedentes criminais apresentados pelo arguido, assumiu relevo o CRC de fls. 306 a 309.

            Já a decisão proferida a respeito dos factos considerados não provados ficou a dever-se à circunstância de os mesmos não terem resultado confirmados em face da prova produzida em sede de audiência de julgamento.

            Em primeiro lugar, a própria ofendida C... esclareceu que o arguido não chegou a tocar-lhe com as ancas, motivo pelo qual ficou por demonstrar o facto descrito sob o número 1. do elenco dos factos não provados.

            Para além disso, embora confirmando que caiu no chão depois de ter sido abordada pelo arguido, a ofendida C... não confirmou que tal queda tenha sido provocada por qualquer empurrão desferido pelo arguido.

            Também no que respeita aos factos descritos em 3. e 4. se verifica que não foi produzida qualquer prova, em sede de audiência de julgamento, que os confirmasse.

            Relativamente à ocasião mencionada em 16., se é certo que a ofendida B... afirmou que o arguido “enrolava” a língua, não resultou das declarações por si prestadas que tenha lambido os seus próprios lábios, motivo pelo qual, não tendo sido produzida qualquer outra prova que confirmasse esse facto, ficou o mesmo por demonstrar.

            Tendo em conta os factos executados pelo arguido, e uma vez que os mesmos não se mostram susceptíveis de revelar que a sua intenção, no contexto atrás descrito, seria a de constranger a ofendida C... a praticar consigo actos de cópula, não poderiam deixar de se considerar não provados os factos a que aludem os números 6. e 7..

            Por outro lado, embora não restem dúvidas de que o arguido proferiu a expressão mencionada em 16. dos factos considerados provados, o certo é que ficou por demonstrar que tenha mantido ou que pretendesse manter qualquer conversação com a ofendida B... .

            Por fim, importa apenas acrescentar que, para além do sofrimento já mencionado, não resultou provado que alguma das ofendidas tenha sofrido depressão em consequência dos factos praticados pelo arguido, sendo certo ainda que a prova produzida em audiência de julgamento não permitiu apurar o valor despendido pelas ofendidas com as deslocações por si efectuadas no âmbito dos presentes autos.

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                                                                        *

            O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1]e de 24-3-1999 [2]e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do Ministério Público as questões a decidir são as seguintes:

- se os factos praticados pelo arguido sobre a ofendida C... no dia 3 de Julho de 2013 (pontos 4 a 8 dos factos provados) integram a prática do crime de coacção sexual p. e p. pelo 163°, n.° 1, do Código Penal, pelo qual vinha acusado, e não apenas o crime de coacção, p. e p. pelo art.154.º, n.º 1 do mesmo Código; e

- se face à factualidade dada como provada no pontos n.º 16, sobre a ofendida B... , deve o arguido ser condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171°, n.° 3, alínea b), do Código Penal.


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            Passemos ao conhecimento da primeira questão.

O recorrente defende que o arguido A... com a sua conduta dada como provada praticou, não um simples crime de coacção, p. e p. pelo art.154.°, n.º 1, do Código Penal, mas sim um crime de coacção sexual, p. e p. pelo art.163.°, n.º 1, do Código Penal, tal como vinha acusado pelo Ministério Público.

Alega para o efeito, no essencial, o seguinte:

- Em sede de crime de coacção sexual não se deve adoptar uma perspectiva moralista, como resulta do ensinamento do Prof. Figueiredo Dias e dos trabalhos preparatórios das normas em causa.

- na jurisprudência são especialmente pertinentes as palavras de Simas Santos, no acórdão do  S.T.J. de 12.07.2005 - “(...) Este Supremo Tribunal de Justiça não se tem afastado muito deste entendimento, ponderando que o acto sexual de relevo é um conceito indeterminado, que confere alguma margem de apreciação aos julgadores, em função das realidades sociais, das concepções reinantes e da própria evolução dos costumes, mas não deixa de cobrir as hipóteses de actos graves, nomeadamente aqueles que atentam com os normais sentimentos de pudor dos ofendidos, intoleráveis numa sociedade civilizada. O que, no entanto, não exclui a relatividade da gravidade, o que explica a grande amplitude da moldura penal (prisão de 1 a 8 anos) ou mesmo a irrelevância de um beliscão passageiro, (cfr. neste sentido o Ac. de 31.10.1995, proc. n.º 48119). Considerou que acto sexual de relevo terá de ser entendido como o acto que tendo relação com o sexo (relação objectiva), se reveste de certa gravidade e em que, além disso, há da parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais (cfr. Acs. de 24.10.96, proc. n.º 606/96 e de 12/03/1998, proc. n.° 1429/97) Para justificar a expressão “de relevo” terá a conduta de assumir gravidade, intensidade objectiva e concretizar intuitos e desígnios sexuais visivelmente atentatórios da auto-determinação sexual; de todo o modo, será perante o caso concreto de que se trate que o “relevo” tem de recortar-se ” – e, ainda, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18.03.2015, relatado pela Exma Sr.ª Desembargadora Maria José Nogueira, consultável in www.dgsi.pt, em que se refere: “(...) Importa não esquecer que o «acto sexual de relevo» terá de configurar, em primeiro lugar, um acto sexual. Mas não só. E o carácter grave, de «importância» do acto que o faz transportar para o iter criminis, quando é este acto que está em causa no tipo de crime» - [cf. “Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual no Código Penal”, Coimbra Editora, 4.a edição, pág. 23 e ss.].

- se por um lado o acto sexual tem de ser grave, de importância, por outro lado, não está excluída a relatividade dessa mesma gravidade e, de todo o modo, será perante o caso concreto de que se trate que o “relevo” tem de recortar-se, referindo o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02.02.2011, que «o acto sexual de relevo é (...) todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas e a relevância ou irrelevância de um acto sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade (...) que considerará relevante ou irrelevante um determinado acto sexual consoante ofenda, com gravidade ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas,» (in www.dgsi.pt. proc. n.º 889/09.8.TAPBL.C1).

- No caso concreto, sem apelar ou cair em qualquer subjectivismo, os factos dados como provados, nos pontos n.ºs 4, 5, 6, 7, 8 e 9 do decisão recorrida, integram o conceito de acto sexual de relevo, pois ficou provado o recurso ao uso da violência, que de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação da ofendida C... , não se traduzindo numa actuação insignificante ou bagatelar, mas antes grave, de relevo.

- a gravidade objectiva, decorre ainda do facto de logo de seguida o arguido ter abordado a menor B... quando esta foi em defesa da mãe, tal como ficou provado sob os pontos 10 e 11, da fundamentação de facto, persistindo no comportamento destinado à libertação e satisfação dos seus impulsos sexuais.

- não se pode assim aceitar, como razoável e válida, a conclusão da fundamentação da sentença recorrida de “(...) não ter resultado demonstrado que, através da violência exercida sobre a ofendida C... , o arguido visou constrangê-la a sofrer acto sexual de relevo (...)”.

Vejamos.

O art.154.º, n.º 1, do Código Penal estatui que comete o crime de coação« Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade (…).». O seu n.º 2 do acrescenta que «A tentativa é punível.».

O bem jurídico protegido é a liberdade de decidir e de actuar: liberdade de decisão (formação) e de realização da vontade. Numa perspectiva estrutural poder-se-á dizer que a liberdade pessoal se analisa em dois âmbitos essenciais: a liberdade de decisão e de acção e a liberdade de movimento.

Esta liberdade de decisão e liberdade de acção são como que o lado interno e o lado externo da liberdade de acção. Nesta medida, o crime de coação não só abrange as acções que apenas restringem a liberdade de (decisão) e de acção – as acções de constrangimento em sentido estrito, ou seja a tradicional vis compulsiva –, mas também as acções que eliminam, em absoluto, a possibilidade de resistência – a chamada vis absoluta – bem como as acções que afectem os pressupostos psicológico-mentais da liberdade de decisão, isto é a própria capacidade de decidir.

O tipo objectivo de ilícito da coacção consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento: praticar uma acção, omitir determinada acção, ou suportar uma acção.

Os meios de coacção são a violência ou a ameaça com mal importante. A violência pode ser física ou psíquica, incluindo as formas não consentidas de domínio da vontade da vítima. A ameaça de um mal importante consiste na comunicação de um mal em sentido social e não jurídico nem, muito menos, jurídico-criminal.

Quer a acção de violência, quer a ameaça com mal importante, devem ser adequadas ao resultado do constrangimento (isto é, à acção, omissão ou tolerância de uma actividade).

No juízo de adequação devem ser ponderadas, por um lado, as características físicas e psíquicas da pessoa vítima do constrangimento e do agente do crime e, por outro lado, as competências técnicas da vítima para resistir à violência.[4]

O tipo subjectivo do ilícito consiste no dolo, em qualquer das suas formas enunciadas no art.14.º do Código Penal.

O crime de coacção sexual, p. e p. pelo artigo 163º do Código Penal, estabelece, por sua vez e na parte que aqui interessa o seguinte:

« 1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.».

O crime de coacção sexual integra os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual ( Capitulo V , Titulo I, do Livro II do Código Penal ), em que os bens jurídicos se prendem com a natureza sexual da pessoa, como parte integrante do direito geral de personalidade.

O bem jurídico protegido é a liberdade da pessoa escolher o seu parceiro sexual e de dispor livremente do seu corpo.

É um crime de execução vinculada, na medida em que o constrangimento da vítima só pode ser praticado por meio de violência, ameaça grave, ou depois de o agente ter tornado a vítima inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir.

O busílis maior do tipo objectivo é a definição de «acto sexual de relevo» e, em especial, a subsunção do facto a este conceito indeterminado.

A respeito do que releva como acto sexual para efeitos típicos, o Prof. Figueiredo Dias releva que existem a este propósito três posições: uma interpretação objectivista, segundo a qual constitui acto sexual típico aquele que, atenta a sua manifestação externa, revela uma conexão com a sexualidade; uma outra que exige não só a conexão objectivista, como ainda a subjectivista do conceito, traduzida na dita intenção libidinosa; e uma terceira, a menos exigente, que defende ser o conceito integrado tanto pela sua acepção objectivista como subjectivista.

Optando decididamente, por via de princípio, pela interpretação objectivista do acto sexual típico, concede que em casos excepcionais, como aqueles em que o significado do acto é ambivalente, àquela deva acrescer a interpretação subjectiva, traduzida na intenção do agente de despertar ou satisfazer, em si mesmo ou em outrem, a excitação sexual.

Prosseguindo na integração do conceito de «acto sexual de relevo», defende o mesmo Professor que a exigência de «relevo» para a tipificação do acto sexual não tem apenas uma função negativa, destinada a excluir do tipo os actos considerados insignificantes ou bagatelares, mas ainda uma função positiva, traduzida na exigência ao intérprete de investigação do seu relevo na perspectiva do bem jurídico protegido, isto é , se de um ponto de vista objectivo o acto representa um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima.

O valor decisivo neste contexto é o grau de perigosidade da acção para o bem jurídico, em função da sua espécie, intensidade ou duração.

Seguindo a jurisprudência alemã, que se pronuncia com textos legais análogos ao da lei portuguesa, o Prof. Figueiredo Dias refere a este respeito: « … um simples beijo ou a sua tentativa, ou um simples toque nas pernas, nos seios ou nas nádegas de outrem, ou mesmo no sexo – diferentemente do que sucederá em regra com o “beijo lingual”, a “carícia insistente”, o “apalpão” – não integrarão em princípio o conceito típico de acto sexual de relevo; tudo o que poderá ficar em aberto em casos tais, se ficar, para além do crime geral de coacção ( art.154.º s.), o tipo legal de importunação sexual  sob a forma de “contacto sexual” ( cf. Infra art.170.º)[5]

Também o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque segue esta interpretação, do tipo objectivo de coacção sexual, ao defender que «O acto sexual de relevo é a acção de conotação sexual de uma certa gravidade objectiva realizada na vítima. (...). Portanto, estão abrangidos actos em que a vítima assume uma posição sexual activa (constranger a “praticar”) ou passiva (constranger a “sofrer”), mas não os actos sexuais diante da vítima, que constituem “actos exibicionistas” (...). O acto sexual de relevo inclui a cópula vulvar e o toque, com objectos ou parte do corpo, nos órgãos genitais, seios, nádegas, coxas e boca (...).».[6]

Seguindo esta doutrina e o que cremos ser a maioria da jurisprudência[7] , diremos que “acto sexual de relevo” será todo aquele comportamento que de um ponto de vista essencialmente objectivo pode ser reconhecido por um observador comum como possuindo carácter sexual e que em face da espécie, intensidade ou duração ofende em elevado grau a liberdade de determinação sexual da vítima.

Os motivos do agente e as representações de moralidade da comunidade não integram nem com o tipo objectivo, nem com o tipo subjectivo, do crime de coacção sexual.

O que importa é saber se o acto sexual, em si, atentas as circunstâncias em que foi cometido tem capacidade de ofender gravemente a liberdade sexual da vítima.

Sendo o crime de coacção sexual um tipo doloso, o preenchimento do mesmo exige o conhecimento e vontade de constranger a vítima, através de qualquer dos meios supra referidos, a sofrer ou a praticar um acto sexual de relevo, com consciência da ilicitude da sua conduta, em qualquer das modalidades a que alude o art.14.º do Código Penal.

Apreciados sumariamente os elementos constitutivos do crime de coacção sexual, p. e p. pelo 163°, n.° 1, do Código Penal, pelo qual vinha acusado o arguido, e do crime de coacção, p. e p. pelo art.154.º, n.º 1 do mesmo Código, cumpre agora subsumir os factos provados ao direito.

Resulta da factualidade dada como provada, no essencial e a este propósito, que no dia 3 de Julho de 2013, cerca das 23h30, quando a ofendida C... , acompanhada dos seus dois filhos, seguia a pé para a sua residência, situada na (...) , em (...) , Cernache do Bonjardim, cruzou-se, por várias vezes, com o arguido, que circulava na via pública, fazendo-se transportar num velocípede ( pontos n.ºs 2, 3 e 4).

Já próximo da residência da ofendida, o arguido imobilizou o velocípede, dirigiu-se apeado para junto da ofendida C... e dos seus filhos e, subitamente, o abordou a ofendida C... , agarrou-a pelas costas, prendeu-lhe ambos os braços junto do tronco, impedindo-a assim de se mover, circunstância em que tentou beijá-la à força, enquanto a ofendida C... tentava libertar-se ( pontos n.ºs 5, 6 e 7).

O arguido acabou por beijá-la à força na face, após o que lhe mordeu a orelha direita, enquanto oscilava as ancas para trás e para a frente, encontrando-se já de frente para a ofendida ( ponto n.º 8). 

Esta oscilação das ancas simulava, evidentemente, o acto sexual.

O ponto n.º 8 não é muito claro sobre as circunstâncias em que o arguido oscilava as ancas para trás e para a frente, encontrando-se já de frente para a ofendida.

Pode perguntar-se se nessa altura tocava o corpo da ofendida. Note-se que em idêntica actuação sobre a pessoa da menor B... o Tribunal a quo consignou no ponto n.º 11 dos factos provados que quando o arguido movimentava as ancas para trás e para a frente tocava no corpo da menor. 

Na fundamentação de direito, o Tribunal a quo esclarece que o arguido oscilou “ … as ancas para trás e para a frente, sem, contudo, tocar o corpo da ofendida”.

Esclarecida aquela dúvida avancemos.

Da factualidade provada, supra referida, resulta inequívoco que o arguido ao agarrar, de surpresa, a ofendida C... pelas costas e ao prender-lhe ambos os braços junto do tronco, impedindo-a assim de se mover, constrangeu-a a suportar, contra a sua vontade ( ponto n.º 18), ou seja, por meio de violência, um beijo na face e seguidamente uma mordidela na orelha direita.

Já sem lhe tocar no corpo, de frente para a ofendida, oscilava as ancas para trás e para a frente.

Objectivamente, isto é, independentemente de se ter dado como provado no ponto n.º 19 que o arguido actuou com o propósito de satisfazer os seus impulsos libidinosos e sem se fazer apelo a qualquer “moralidade” sexual, não há dúvidas , em face do contexto, que o beijo na face e o morder da orelha direita à ofendida C... , é um comportamento de conotação sexual.

O preenchimento ou não dos elementos constitutivos do crime de coacção sexual depende dos actos praticados pelo arguido sobre a ofendida C... , ou seja dos actos sofridos por esta, não havendo aqui que chamar à colação - salvo o devido respeito pela posição do recorrente - os actos que a seguir o mesmo arguido praticou sobre a menor B... , pelos foi o arguido já condenado e em termos que não mereceram impugnação através de recurso.

Posto isto, entendemos que num contexto de surpresa, e de duração quase instantânea, dar um beijo na face da vítima, seguido do morder da orelha direita e simulação do acto sexual através do oscilar das ancas para trás e para a frente sem tocar no corpo da vítima, não atinge o grau de perigosidade necessário para se considerar este comportamento do arguido como integrador do conceito de “acto sexual de relevo”.

A liberdade de determinação sexual da vítima foi posta em causa através de violência exercida sobre a ofendida C... , mas parece-nos que não atingiu a gravidade pressuposta no bem jurídico defendido pelo tipo no art.163.º, n.º1 do Código Penal. 

Considerando os restantes factos que constam da factualidade dada como assente relativamente aos elementos subjectivos, entendemos assim que andou bem o Tribunal a quo ao convolar o crime de crime de coacção sexual, p. e p. pelo artigo 163º, n.º 1, do Código Penal para o crime geral de coacção , p. e p. pelo  art.154.º, n.º 1 do mesmo Código.

Assim, improcede esta questão.


-

            Segunda questão: do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171°, n.° 3, alínea b), do Código Penal.

O recorrente sustenta que face à factualidade dada como provada no ponto n.º 16, sobre a ofendida B... , deve ainda o arguido ser condenado pelo crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171°, n.° 3, alínea b), do Código Penal, alegando para o efeito, no essencial o seguinte:

- A criminalização do tipo de conduta prevista no art° 171°, n° 3, al. b), de actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos, visa a tutelar o desenvolvimento sem entraves da criança, designadamente ao nível do desenvolvimento harmonioso da sua sexualidade;

- para efeitos da norma em causa, “conversa pornográfica” é a que tem uma intensidade pesada e baixamente sexual, idónea a prejudicar o desenvolvimento harmonioso da personalidade da criança , conforme também é referido no acórdão da Relação de Guimarães, de 17.11.2014, relatado pela Exma Sr.ª desembargadora Ana Teixeira, citando Figueiredo Dias, consultável in www.dgsi.pt. Também no acórdão do STJ de 05.07.2007 vem dito que «No abuso sexual de crianças será sempre relevante qualquer actuação objectivamente libidinosa por mais simples que ela seja ou pareça ser, em virtude de tais menores não disporem do discernimento suficiente para se relacionarem sexualmente em liberdade» - cfr. CJSTJ 2/07, 242.

-  no caso em apreciação resultou provado da discussão e julgamento, no ponto n.º 16, que “ No dia 20 de Agosto de 2013, cerca das 22h30, no interior do café denominado K... , quando a ofendida B... se encontrava sentada num sofá a ver televisão, o arguido, que se encontrava sentado numa cadeira, começou a fazer gestos com a língua e, dirigindo-se à ofendida B... , proferiu a seguinte expressão: “ó pequenina, eu quero-te foder ”.

O Tribunal a quo entendeu contudo dar como não provado no respectivo ponto n.º 8, que “O arguido actuou com o propósito de manter conversação de cariz sexual com a ofendida B... . ”

- esta conversa do arguido com a menor B... , ao mesmo tempo que lhe fazia gestos com a língua, ocorreu 17 dias depois dos factos também praticados pelo arguido sobre a menor e dados como provados pelo Tribunal a quo nos pontos n.ºs 12 e 13 do acórdão recorrido;

- um arguido que actua da forma descrita e que, dias depois dirige aquelas palavras à menor está a actuar sobre a mesma através de conversa pornográfica e, ao fazê-lo actuou com o propósito, concretizado, de manter conversação de cariz sexual com a ofendida B... .

- o arguido causou constrangimento à menor, de tal sorte que, o Tribunal a quo deu como provado sob o ponto n.º 17 que “De imediato, a ofendida B... saiu do interior do estabelecimento comercial, tendo corrido em direcção à sua mãe, que se encontrava na esplanada do mesmo, relatando-lhe o sucedido”, e, mais, pretendeu o arguido deste modo ofendê-la no seu pudor e nos seus sentimentos de moralidade sexual.

- É verdade que o arguido não teve uma conversa no sentido em que este vocábulo vem definido nos dicionários citados no acórdão recorrido, mas o arguido interpelou a criança através de palavras e movimentos expressivos de anúncio de desejo sexual (fazendo gestos com a língua), de forma apta, idónea a perturbar, a comprometer o desenvolvimento harmonioso da mesma na sua esfera sexual,

- Deste modo, impõe-se concluir que o arguido ao proferir a expressão supra enunciada, acompanhada de gestos feitos com a língua de molde a vincar, explicitar, a sua pretensão sempre dirigidas à menor, cometeu o crime por que vinha acusado com conteúdo pornográfico e, consequentemente, a sua conduta integra a previsão normativa do art.171.°, n.º 3, al. b) do Código Penal.

Vejamos.

O art.171.º, do Código Penal estatui, designadamente, o seguinte:

« 1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.

   2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.

   3 - Quem:

       a) Importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no artigo 170.º; ou

        b) Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos;

      c) Aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a atividades sexuais;

é punido com pena de prisão até três anos.

(…)».

O bem protegido por este tipo penal, inserido na secção II « Dos crimes contra a autodeterminação sexual», do  já citado Capitulo V « Dos Crimes contra a autodeterminação sexual», do Titulo I do Livro II do Código Penal, é a autodeterminação sexual, que no ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, surge “ numa forma muito particular: não face a condutas que representem a extorsão e contactos sexuais por forma coactiva ou análoga (…), mas face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, em particular na esfera sexual.”.[8]

O n.º1 assume, perante o n.º 3, o lugar de uma espécie de crime fundamental.

Uma vez que está em causa apenas o possível preenchimento pelo arguido da alínea b), n.º 3, do art.171.º, do Código Penal , centremos a nossa atenção nesta norma.

A modalidade de acção no caso da alínea b), n.º 3, do art.171.º, do Código Penal, é o agente actuar sobre menor de 14 anos de idade, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos.

A aparente simplicidade destes pode dar lugar a dúvidas.

No dizer do Prof. Figueiredo Dias « A conversa abrangerá seguramente qualquer forma de comunicação coloquial, seja levada a cabo directamente ou por qualquer outra forma, v.g. telefonicamente ou por meio informático, em suma, neste sentido seja qual for o seu “suporte”. Já é duvidoso, porém, perante o princípio nullum crime, que neste elemento se possa integrar o fazer o menor ouvir canções “pornográficas”.».[9]

Ainda a este propósito refere o mesmo Professor que a utilização da palavra “sobre” menor não pressupõe a necessidade de contacto corporal entre o agente e a vítima e que “ Basta que o menor participe a qualquer título (…) da conversa, da leitura , do espectáculo (visual ou sonoro, v.g. certas hot lines ou certos discos) ou da observação do objecto pornográfico.”.[10]

O conceito de “pornográfico” terá que ver com a representação ou apresentação de pessoa envolvida em comportamento sexual explicito, nomeadamente para fins sexuais.

Mas só em face do concreto conteúdo da conversa, escrito, espectáculo ou objecto, e do seu circunstancialismo se poderá dizer se estes meios são pornográficos, pois o que poderia prima facie considerar-se prejudicial ao desenvolvimento do menor de 14 anos, na esfera sexual, poderá não o ser se estes meios tiverem por exemplo finalidade educativa.

Bem mais concludente, a propósito da interpretação do substantivo “conversa”, é o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, citado na fundamentação de direito douto acórdão recorrido em apoio da sua decisão, que  afirma expressamente que « A conversa pornográfica é a troca de palavras mantida pelo agente com a criança ou com terceiro diante da criança de modo adequado a excitar sexualmente a vítima. Não está incluído o monólogo.».[11]

Acerca  do crime de abuso sexual de criança descrito na alínea b), em apreciação, a ExmaDesemb. Maria do Carmo Silva Dias, em artigo doutrinal, refere que « …actuar por meio de conversa ( em princípio diálogo entre o agente e a vítima) …(…) pornográficos, são formas que o legislador considera idóneas a prejudicar o desenvolvimento do menor de 14 anos , na esfera sexual.».[12]

Mais ainda: « Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos, pressupõe exercer uma influência negativa – uma certa ideia de “corrupção”- sobre o desenvolvimento da vítima, na sua esfera sexual, merecedor de punição com pena de prisão de 1 mês até 3 anos ( artigo 171.º, n.º3, al. b, do Código Penal).

A lei deveria abranger qualquer meio de comunicação com a vítima, independentemente do seu formato (justificar-se-á uma futura alteração) e não apenas actuar por meio “ de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos.».[13]

O Tribunal da Relação entende que para o homem médio, a quem são dirigidas as normas penais, conversa pressupõe diálogo, troca de impressões, de opiniões entre duas pessoas, o que cremos não se verificar quando uma pessoa dirige palavras à outra e esta não lhe responde, não comunica com o emissor.

Como bem se anota no douto acórdão recorrido “… se pretendesse abranger, no tipo objectivo de ilícito, a actuação por meio de palavras dirigidas à criança ou proferidas na presença da mesma, o legislador teria certamente aludido à conduta consistente em proferir ou dirigir palavras a outra pessoa, à semelhança do que sucede com o tipo objectivo de ilícito do crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, n.º 1, do Código Penal.”.

A tutela penal caracteriza-se pelo seu o carácter fragmentário e em direito penal vigora o princípio da legalidade, enunciado designadamente no art.1.º do Código Penal.

Cremos que será algo temerário, por exceder a correspondência que um homem médio terá do termo “ conversa”, fazer uma interpretação extensiva deste substantivo de modo a incluir-se nele o significado de dirigir palavras a outra pessoa, sem que esta, por sua vez, estabeleça qualquer comunicação com o agente emissor.

O crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, n.º 3, alínea b), do Código Penal, é de natureza dolosa, pelo que se exige o conhecimento e vontade de preenchimento de todos os elementos to tipo objectivo do ilícito, designadamente dos meios da sua realização.

Retomando o caso concreto, verificamos que o Tribunal a quo deu como provado que « no dia 20 de Agosto de 2013, cerca das 22h30, no interior do café denominado K... , quando a ofendida B... se encontrava sentada num sofá a ver televisão, o arguido, que se encontrava sentado numa cadeira, começou a fazer gestos com a língua e, dirigindo-se à ofendida B... , proferiu a seguinte expressão: “ó pequenina, eu quero-te foder” » ( ponto n.º 16) e que, « de imediato, a ofendida B... saiu do interior do estabelecimento comercial, tendo corrido em direcção à sua mãe, que se encontrava na esplanada do mesmo, relatando-lhe o sucedido.» ( ponto n.º 17).

Por sua vez, deu como não provado que « Na ocasião mencionada em 16. dos factos considerados provados, o arguido lambia os seus próprios lábios.» (ponto n.º 5) e que « o arguido actuou com o propósito de manter conversação de cariz sexual com a ofendida B... .» ( ponto n.º 8).

A expressão dirigida pelo arguido à menor B... - “ó pequenina, eu quero-te foder” – tem , sem dúvidas, “ intensidade pesada e baixamente sexual”, como mencionado no supra referido acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães.

Porém, a expressãonão se mostra integrada numa conversa verbal mantida com a ofendida, ou mesmo com terceiro na presença desta, embora tais palavras.

A menor B... não quis estabelecer qualquer comunicação com o arguido A... ; saiu de imediato do local onde o arguido lhe dirigiu aquelas palavras, correndo em direcção à mãe a relatar-lhe o sucedido.

Não resultou provado, por outro lado, que o arguido A... ao dirigir-lhe aquelas palavras actuou com o propósito de manter conversação de cariz sexual com a ofendida B... .

Deste modo, entendemos que a conduta do arguido não integra os elementos objectivos e subjectivos previstos no art.171º, n.º 3, alínea b), do Código Penal – que é o objecto desta questão – e, consequentemente, não merece censura a absolvição do arguido pela prática deste crime.

Não se mostrando violadas pelo Tribunal a quo as disposições legais enunciadas nas conclusões da motivação do recurso, mais não resta que julgar também improcedente esta questão e, consequentemente, negar provimento ao recurso.

       Decisão

 Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e manter o douto acórdão recorrido.

 Sem custas.


*

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                 *

Coimbra, 13 de Janeiro de 2016

(Orlando Gonçalves – relator)

(Inácio Monteiro - adjunto)


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.

[4]Cfr. Prof. Taipa de carvalho, in “ Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, pág.s 568 e 569.
[5]Comentário Conimbricense do Código Penal , 2.ª edição, pág. 718 a 720.
[6]Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª edição, UCE, pág. 504.

[7]Cfr. entre outros, o acórdão do TRC de 27-06-2012: «O arguido que, procurando um local isolado, sem casas nem pessoas por perto, dentro do seu automóvel agarra com força o braço da ofendida, beija-a na cara ao mesmo tempo que, com a sua mão livre, lhe acaricia os seios, pratica, por meio de violência, ato sexual de relevo e, assim, o crime de coação sexual.» e o acórdão do TRP de 13-03-2013 : « I. Acto sexual é o comportamento que objectivamente assume um conteúdo ou significado reportado ao domínio da sexualidade da vítima, podendo estar presente um intuito libidinoso do agente, conquanto a incriminação persista sem esse intuito. II. Considera-se acto sexual de relevo o comportamento pelo qual um homem adulto dá beijos na boca, mexe nos seios, mexe na vagina de uma menor de doze anos, ainda que por sobre a roupa, e lhe exibe o pénis, perguntando-lhe se gostava do que tinha visto.». www.dgsi.pt.


[8] Obra citada, pág. 834.
[9] Obra citada, pág. 837.
[10] Obra citada, pág. 838.
[11] Obra citada, pág. 538
[12]“Notas substantivas sobre os crimes sexuais com vítimas menores de idade”, in Revista do CEJ, n.º 15, pág. 234.

[13]Obra citada, pág. 231