Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
11/17.7T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: NOTA DE CULPA
DIFERENTE ENQUADRAMENTO JURÍDICO
PRINCÍPIO DO TRABALHO IGUAL SALÁRIO IGUAL
Data do Acordão: 05/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO DO TRABALHO DA COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 24º, 25º/5 E 357º/4 DO CT/2009
Sumário: I – O diferente enquadramento jurídico dos factos imputados ao trabalhador na nota de culpa, permanecendo estes inalterados, não consubstancia qualquer invocação de factos não constantes da nota de culpa vedada pelo artº 357º/4 do CT/2009.

II – O princípio constitucional ‘a trabalho igual salário igual’ visa que nenhum trabalhador seja discriminado, em termos de retribuição, relativamente a outros trabalhadores que executem igual trabalho em termos de quantidade, natureza e qualidade, registando-se violação desse princípio se a diferenciação da retribuição não resultar de critérios objectivos.

III – A aplicação do artº 25º/5 do CT/2009 exige que o trabalhador alegue e prove factos que revelem o tratamento diferenciado e aqueles que constituam factores característicos de discriminação enunciados no artº 24º/1 do CT/2009.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 6.ª secção social do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

O autor propôs contra a ré a presente acção com a forma de processo comum e emergente de contrato de trabalho pedindo que seja dada sem efeito a sanção disciplinar de repreensão escrita, por desobediência e desrespeito ao superior hierárquico do autor, que lhe foi aplicada pela ré.

Como fundamento da sua pretensão alega, em resumo, que na nota de culpa do procedimento disciplinar não foi imputado ao autor qualquer facto praticado pelo mesmo no exercício de funções de telefonista que não tenha realizado com zelo e diligência, cujo dever se afirma ter sido violado, acabando por ser punido disciplinarmente por desobediência e desrespeito ao superior hierárquico e, assim, por violação do dever de obediência que não vem referido na nota de culpa, pelo que a decisão disciplinar se encontra ferida de invalidade.

A ré contestou, pugnando pela improcedência da acção.

Alegou, em resumo, que o autor violou, realmente, o dever de obediência a que estava obrigado, com a consequente necessidade da sanção disciplinar aplicada, sendo que não se verifica a invalidade da decisão disciplinar invocada pelo autor.

O processo seguiu os seus regulares trâmites, acabando por ser proferida sentença de cujo dispositivo consta, designadamente, o seguinte:

Pelo exposto, julga-se procedente a presente ação e em consequência da-se sem efeito a sanção disciplinar de repreensão escrita, aplicada pela ré Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de (....) ao autor A... .


*

Custas pela ré – cfr. o disposto no número 1 do artigo 527º do Novo Código de Processo Civil, ex vi artigo 1.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho”.

Não se conformando com o assim decidido, apelou a ré, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:
a) Não ocorreu nenhuma dissonância entre a Nota de Culpa e a Decisão Diciolinar comunicada ao A.
b) O A. foi acusado na Nota de Culpa e sansionado em sede decisória do processo disciplinar, de direito, com fundamento no disposto no artigo 128º nº 1 al. c) do C. T.
c) A tarefa de transporte de um doente na ausência de outros motoristas nas circunstâncias dos autos integra-se no âmbito do contrato de trabalho do A.
d) A ordem dada pelo Sr. Comandante da R. foi legitima
e) Não pode, agora, o A. excessionar o dever de zelo e diligência com a invocação da não atribuição da remuneração compensatória atribuída aos restantes telefonistas com estatuto remuneratório diferente
f) A Meritissima Juiz a quo decidindo como decidiu errou na apareciação e valoração dos factos provados e, com isso, violou, pelo menos, as disposições legais constants dos artigos 357º nº 4 e 382º nº 2 al. d) e 128º nº 1 al. c) todos do C. Trabalho.”.
Contra-alegou o autor, pugnando pela confirmação da sentença apelada.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 – NCPC – aplicável “ex-vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho – CPT), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:
1ª) se o apelado foi condenado por factos distintos dos que constavam da nota de culpa;
2ª) se foi lícita a recusa do apelado a cumprir a ordem que lhe foi dirigida.

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III – Fundamentação

A) De facto

A primeira instância descreveu como provados os factos seguidamente transcritos:

1. O Autor intentou nos termos do disposto no artigo 170º do Código do Processo de Trabalho Ação de Impugnação Judicial de Decisão Disciplinar.

2. Tal Ação correu termos na 2ª Secção de Trabalho J1 deste Tribunal sob o número de processo 976/16.6T8CVL, tendo a Ré sido absolvida da instância.

3. Nos autos de processo disciplinar instaurado pelo Comandante dos Bombeiros Voluntários de (....) contra o Autor, foi deduzida "NOTA DE CULPA" pelo já mencionado Comandante, referindo que:

" artº1º - O arguido, no dia 23 de Fevereiro prestava a sua atividade de bombeiro na Central do Quartel dos Bombeiros Voluntários de (....)

artº 2º - Na circunstância encontrava-se sob as ordens e instruções do Comando dos Bombeiros Voluntários

artº 3º - No referido dia 23 de Fevereiro o Comando, por seu mail emitido às 11:47 dirigiu ao arguido a seguinte ordem: "Em virtude de ter surgido um numero elevado de serviço de transporte e não haver motoristas disponíveis, e ter aparecido um transporte do Centro de Saúde para (....) , venho por este meio e tal como já fiz verbalmente solicitar ao Srº A..... que execute o referido transporte e peça ao Srº B.... que o fique a substituir na Central, como ainda fez durante toda a tarde a substituir o operador E... e há dias a substituir o operador D...

O Comandante

C... "

No mesmo dia o arguido, em resposta ao comando, enviou-lhe um e-mail às 15:00 com os seguintes dizeres:

"Acuso a receção do presente email. Em relação ao conteúdo do mesmo, queiram V.Exas compreender que não faz parte no âmbito do desempenho da minha categoria profissional efetuar serviços de transporte, ainda assim, também não é do meu conhecimento a existência de uma escala de serviço prevista para quando exista falta de motoristas, para evitar situações desagradáveis e porque é benéfico para ambas as partes, queiram pois clarificar esta situação.

Os melhores cumprimentos.

A... "

Art.5º- Os factos descritos em 3º e 4º representam uma violação do dever do arguido previsto no artigo 128º nº 1 al. c) do Código do Trabalho ..."

4. Ora, o Autor foi admitido ao serviço da Ré para exercer as funções de Motorista em 01/07/20071.

5. Por motivos de falta de saúde o Autor deixou de exercer as funções de Motorista e passou a exercer as funções de Telefonista.

6. Os restantes Operadores da Central (telefonistas) recebem, para efetuar quando necessário as funções de motoristas, para além do seu salário, uma prestação remuneratória fixa mensal, conforme consta do ANEXO A - QUADRO DE PESSOAL afixado na Ré.

7. O Relatório junto com a notificação do Despacho nº COM/01/2016 refere no penúltimo parágrafo “ ... reforçam o facto de a ordem lhe ter sido transmitida em dois momentos ... sendo acrescida a gravidade da desobediência e desrespeito ao sr. Comandante seu superior hierárquico ”.

8. No dia 23 de Fevereiro de 2016 o Comandante dos Bombeiros, Sr. C... , deu ordem ao A. para efetuar um transporte do Centro de Saúde de (....) nos termos que constam do artigo 5º da p.i. com referência ao art. 3º da Nota de Culpa e que aqui se dão por reproduzidos.

9. Na circunstância dos autos de processo disciplinar, o A. encontrava-se a prestar serviço na Central Telefónica dos Bombeiros Voluntários de (....)

10. A A. como os restantes operadores da Central, quando necessário, exercem também as tarefas de motorista sendo que, na circunstância não havia motoristas disponíveis.

11. Os Operadores da Central encontram-se sob as ordens diretas do Comando dos Bombeiros

12. O Comando dispõe de poder disciplinar sobre os Operadores da Central, além de outros, sob o seu Comando.

13. O autor recusou-se a prestar o serviço pela forma que consta igualmente do artigo 5º da petição inicial com referência ao artigo 4º da Nota de Culpa e aqui se dá por integralmente reproduzido

14. As tarefas de motorista, quando necessárias, também são exercidas por todos os operadores da Central, não sendo o A. remunerado com uma prestação mensal fixa por auferir uma remuneração correspondente à sua categoria profissional de origem, a de motorista.

15. Razões de saúde que justificaram em 2010 a colocação do A. na Central, sendo frequentes as queixas do A. por não integrar a escala de serviço dos piquetes, conduzindo veículos pesados e acudindo a situações mais exigentes, tais como acidentes de viação, transporte urgente de doentes, incêndios, etc. a fim de por essa forma auferir acréscimos remuneratórios.”.

*
B) De direito

Primeira questão: se o apelado foi condenado por factos distintos dos que constavam da nota de culpa.
Na nota de culpa deduzida contra o trabalhador consta o seguinte:

" artº1º - O arguido, no dia 23 de Fevereiro prestava a sua atividade de bombeiro na Central do Quartel dos Bombeiros Voluntários de (....)

artº 2º - Na circunstância encontrava-se sob as ordens e instruções do Comando dos Bombeiros Voluntários

artº 3º - No referido dia 23 de Fevereiro o Comando, por seu mail emitido às 11:47 dirigiu ao arguido a seguinte ordem: "Em virtude de ter surgido um numero elevado de serviço de transporte e não haver motoristas disponíveis, e ter aparecido um transporte do Centro de Saúde para (....) , venho por este meio e tal como já fiz verbalmente solicitar ao Srº A... que execute o referido transporte e peça ao Srº B... que o fique a substituir na Central, como ainda fez durante toda a tarde a substituir o operador E... e há dias a substituir o operador D...

O Comandante

C... "

No mesmo dia o arguido, em resposta ao comando, enviou-lhe um e-mail às 15:00 com os seguintes dizeres:

"Acuso a receção do presente email. Em relação ao conteúdo do mesmo, queiram V.Exas compreender que não faz parte no âmbito do desempenho da minha categoria profissional efetuar serviços de transporte, ainda assim, também não é do meu conhecimento a existência de uma escala de serviço prevista para quando exista falta de motoristas, para evitar situações desagradáveis e porque é benéfico para ambas as partes, queiram pois clarificar esta situação.

Os melhores cumprimentos.

A... "
Art.5º- Os factos descritos em 3º e 4º representam uma violação do dever do arguido previsto no artigo 128º nº 1 al. c) do Código do Trabalho ...".
Do relatório do instrutor do procedimento disciplinar, acolhido na decisão disciplinar, consta, designadamente, o seguinte:

(…)





Em face do que antecede, ponderou-se na sentença recorrida o seguinte:
Na verdade, da conjugação dos pontos 3) e 7) da matéria de facto provada vemos que a entidade empregadora considerou que factos descritos em 3º e 4º, da nota de culpa, representam uma violação do dever do trabalhador previsto no artigo 128º nº 1 al. c) do Código do Trabalho8, quando, já em sede decisória, é considerado o facto de a ordem ter sido transmitida, ao autor, em dois momentos sendo “acrescida a gravidade da desobediência e desrespeito ao sr. Comandante seu superior hierárquico”.
(…)
Na nossa situação os factos imputados ao trabalhador são os mesmos, quer na nota de culpa, quer no relatório preliminar ao despacho de aplicação da sanção disciplinar, sendo que o que diverge, é o juízo valorativo dos mesmos factos, na primeira considera-se que está em causa a violação do dever de zelo e diligencia do trabalhador e, no segundo, a violação a ordens diretas do superior hierárquico.
(…)

O que se pretende evitar é que o trabalhador seja surpreendido com a introdução de novos factos na decisão final do processo disciplinar, factos, esses que não lhe foram anteriormente dados a conhecer e, relativamente aos quais não pode exercer o contraditório.

Na presente situação o trabalhador, é isso mesmo que acontece, uma vez que o trabalhador começa por ser acusado de não exercer com zelo e diligência as suas funções (de telefonista?...) e, depois, é surpreendido por uma decisão que o pune por ter desobedecido a uma ordem de superior hierárquico.
Ora, conjugando o teor da imputação e constante da nota de culpa com a constante da decisão, podemos concluir que o trabalhador foi confrontado com um facto novo na decisão que aplica a sanção disciplinar.”.
Não acompanhamos o tribunal a quo.
Não obstante as considerações feitas no relatório do instrutor disciplinar relativamente à circunstância de a ordem dirigida ao recorrido o ter ido primeiro verbalmente e só depois por mail, com o consequente agravamento da conduta indisciplinar do recorrido, por desobediente e desrespeitosa, importa não perder de vista que essa reiteração da ordem já resultava alegada no art. 3º da nota de culpa no segmento em que nele se alude a “…tal como já fiz verbalmente…”, sendo que o agravamento da conduta indisciplinar do recorrido a tanto associado e que se refere no relatório do instrutor não constitui em si um facto, constituindo antes mera decorrência conclusiva daquela reiteração que em nada altera, na sua essência, o substrato fáctico da conduta disciplinarmente relevante que foi imputada ao recorrido na nota de culpa.
Ainda que assim se não entendesse e se considerasse que essa reiteração da ordem e o consequente agravamento da conduta disciplinar não integravam o substrato fáctico imputado ao recorrido na nota de culpa, ainda assim não poderia concluir-se no sentido de que o recorrido foi sancionado por factos distintos dos invocados na nota de culpa, pois que, nesse enquadramento, que não é o nosso, sempre teria de concluir-se que a reiteração da ordem e o consequente agravamento da conduta disciplinar não foram valoradas na proposta de decisão que viria a ser acolhida na decisão disciplinar.
Na verdade, dessa proposta de decisão consta literalmente que “Por assim ser, o instrutor dos Autos mantém na íntegra a Nota de Culpa quanto aos factos e quanto ao direito …”.
A significar que apesar das considerações feitas no relatório do instrutor sobre o alegado na defesa do recorrido e do que daí se poderia extrair em termos de reiteração da conduta indisciplinar do recorrido e consequente agravamento da mesma, mesmo certo não é que na conclusão desse mesmo relatório o seu autor circunscreveu o âmbito fáctico e jurídico subjacente à sua proposta de sancionamento disciplinar do recorrido àquele que também já tinha sido invocado na nota de culpa.
Como assim, mesmo neste enquadramento que não é o nosso, não se procedeu na proposta de decisão que viria a ser acolhida na decisão disciplinar a qualquer espécie de alteração em relação aos factos aduzidos na nota de culpa, nem mesmo, ao contrário do sustentado na sentença recorrida, em relação ao enquadramento jurídico que dos mesmos nela se tinha efectuado em termos de identificação do dever do trabalhador que se considerava infringido pela conduta do mesmo.
Diga-se, aliás, que não acompanhamos o tribunal a quo quando sustenta que a alteração, na decisão disciplinar, da qualificação dos factos iguais aos aduzidos na nota de culpa, designadamente no que concerne aos concretos deveres laborais que se considerem violados com aqueles mesmos factos, representa uma alteração factual do tipo da vedada à decisão disciplinar pelo art. 357º/4 do CT/09.
Na verdade, o que se pretende nesta última norma, no que concerne à relação entre os factos aduzidos na nota de culpa e aqueles que depois se invocam na decisão disciplinar, é impedir que o trabalhador seja surpreendido com a introdução na decisão disciplinar de factos[1] que não lhe foram anteriormente dados a conhecer e em relação aos quais não pode exercer o contraditório.
Ora, o diferente enquadramento jurídico dos factos imputados ao trabalhador na nota de culpa, permanecendo estes inalterados, não consubstancia qualquer invocação de factos não constantes da nota de culpa.

+
Acresce dizer que nos próprios termos do relatório do instrutor, que nesse segmento não vem colocado em crise, a reiteração da conduta indisciplinar do arguido e o consequente agravamento dessa conduta resultavam do alegado pelo próprio arguido na defesa que apresentou por referência à nota de culpa contra si deduzida.

Nesse enquadramento, a ponderação que no relatório se tivesse feito – que não se fez efectivamente – da reiteração e do agravamento acabados de referir lograriam, ainda assim, acolhimento legal no art. 357º/4 do CPP, concretamente no segmento em que nele se permite a invocação de factos constantes da resposta do trabalhador, ainda que não constantes da nota de culpa.


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Flui de quanto vem de referir-se que deve ser negativa a resposta à questão em análise.


Segunda questão: se foi lícita a recusa do apelado a cumprir a ordem que lhe foi dirigida.

Cumpre considerar, antes de mais, que o autor foi admitido ao serviço da ré para exercer as funções de motorista (ponto 4º dos factos provados), apesar do que, por motivos de falta de saúde, o mesmo deixou de exercer as funções de motorista e passou a exercer as funções de telefonista (ponto 5º dos factos provados).

Importa não perder de vista, igualmente, que resulta da factualidade provada que, quando necessário, o autor e os demais telefonistas também exercem as tarefas de motorista (ponto 10º dos factos provados e 1ª parte do ponto 14º dos factos provados).

Conjugando-se o estatuído no art. 115º/1 do CT/09[2] com o que vem de referir-se tem de concluir-se no sentido de que: i) registavam-se condições de saúde do recorrido que eram conflituantes ou mesmo incompatíveis com o desempenho regular, continuado e principal das funções de motorista para que foi originariamente contratado; ii) por causa disso, ocorreu uma modificação consensual quanto ao objecto prestacional a que o autor se obrigou e de que a recorrente era credora: de um objecto prestacional originário correspondente exclusivamente às funções de motorista, passou-se consensualmente para um objecto prestacional integrado principalmente pela funções de telefonista, bem como, acessória e pontualmente, pelas de motorista; iii) as particulares condições de saúde do autor não eram conflituantes ou incompatíveis com o desempenho pontual e acessório das funções de motorista, tanto mais que eram frequentes as queixas do autor por não integrar a escala de serviço dos piquetes, conduzindo veículos pesados e acudindo a situações mais exigentes, tais como acidentes de viação, transporte urgente de doentes, incêndios … (ponto 15º dos factos provados).

Assim, ainda que acessória e pontualmente, o autor estava obrigado ao desempenho das funções de motorista (arts. 118º/1 e 126º/1 do CT/09).

Nesse enquadramento e tendo em conta que “Os Operadores da Central encontram-se sob as ordens diretas do Comando dos Bombeiros.” (ponto 11º dos factos descritos como provados), o autor estava, por princípio, obrigado a cumprir a ordem que lhe foi dirigida pelo Comandante dos Bombeiros da ré, no dia 23/2/2016, no sentido de, como condutor, efectuar um transporte para o Centro de Saúde de (....) (ponto 8º dos factos provados) – art. 128º/1/d do CT/09.

A decisão recorrida considerou lícita a recusa do recorrido a cumprir a ordem em questão, por ilegitimidade desta, com um duplo fundamento, a saber: i) a ordem representava da parte da recorrente a exigência de desempenho de funções não compreendidas no objecto do contrato; ii) o recorrido não auferia a compensação atribuída a outros trabalhadores, para além do respectivo salário, para realizar essas funções de motorista.

Não acompanhamos o tribunal a quo em qualquer desses argumentos.

Quanto ao primeiro, resulta do já supra exposto que fazia parte do objecto contratual consensualmente modificado a que o autor estava obrigado, o desempenho das funções de motorista, ainda que pontual e acessório.

Quanto ao segundo, importa não perder de vista que apesar do autor ter deixado de exercer de modo regular, continuado e principal as funções de motorista, passando a exercer as de telefonista, o certo é que continuou a auferir a remuneração correspondente à categoria profissional de motorista (ponto 14º dos factos provados), sendo que os factos provados não permitem sustentar que o salário auferido pelo recorrido era, ainda assim, inferior ao auferido pelos demais telefonistas, somado o correspondente salário de base com a prestação remuneratória fixa mensal complementar que os mesmos auferem para o desempenho ocasional das funções de motorista que está referida no ponto 6º) dos factos provados.
Não se desconhece que nos termos do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (adiante, Constituição):
 “1 – Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”;
 “2 – Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.”.
Não se desconhece, igualmente, que prescreve o artigo 59º/1 da Constituição, que “Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito: a) À retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna; b) A organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal […]”.
Note-se, no entanto, que do princípio da igualdade a que se referem as normas acabadas de citar decorre, tão-só, a proibição do arbítrio, não impedindo, pois, em absoluto, toda e qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as diferenciações materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou justificação objectiva e racional, como são as baseadas nos motivos indicados no referido preceito constitucional – por exemplo, acórdãos do Tribunal Constitucional 46/2015, 294/2014, 282/2005, e 313/89; acórdãos do STJ de 14/12/2016, proferido no processo 4521/13.7TTLSB.L1.S1, 17/11/2016, proferido no processo 7388/15.7T8LSB.L1.S1, de 12/10/2011, proferido no processo 343/04.4TTBCL.P1.S1, de 14/3/2006, proferido no processo 05S3852.
Ou seja, devendo tratar-se por igual o que é substancial e essencialmente igual e desigualmente o que é essencialmente desigual, são legítimas as medidas de diferenciação de tratamento fundadas em distinção objectiva de situações, não baseadas em qualquer motivo constitucionalmente impróprio, que tenham um fim legítimo à luz do ordenamento constitucional positivo, e se revelem necessárias, adequadas e proporcionais à satisfação do objectivo prosseguido - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Abril de 2008, processo n.º 07S4100.
A diferenciação de tratamento é legítima sempre que não se fundamente em razão de «…ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social», como se refere exemplificativamente no n.º 2 do art. 13.º da Constituição, ou seja, sempre que se mostre razoável, racional e objectivamente fundada.
Especificamente, o princípio constitucional “a trabalho igual salário igual” visa que nenhum trabalhador seja discriminado, em termos de retribuição, relativamente a outros trabalhadores que executam igual trabalho em termos de quantidade, natureza e qualidade.
Haverá violação da igualdade em termos salariais na perspectiva deste princípio, se a diferenciação da retribuição não resultar de critérios objectivos, ou seja, se o trabalho prestado pelo trabalhador discriminado for igual ao dos restantes trabalhadores, não só quanto à natureza (tendo em conta a sua dificuldade, penosidade e perigosidade), mas também em termos de quantidade (duração e intensidade) e qualidade (de acordo com as exigências, conhecimentos, prática e capacidade).
Daí que a violação do referido princípio constitucional não decorra, necessariamente, da circunstância de trabalhadores da mesma empresa e com a mesma categoria profissional auferirem diferentes remunerações: é necessário que se demonstre, que para além da paridade formal das funções exercidas com uma certa categoria, existe também identidade ou equivalência no plano da quantidade e qualidade do trabalho produzido.
O CT/2009 procurou dar concretização legal ao comando constitucional ora em apreço nos correspondentes arts. 23º a 25º, sendo aqui se destacar: i) os conceitos de discriminação directa e indirecta, bem como o de trabalho igual, explicitados no art. 23º/1/a/b/c; ii) o direito à igualdade consagrado no art. 24º/1, designadamente em matéria salarial (art. 24º/2/c;) iii) a proibição de discriminação, designadamente em matéria retributiva, consagrada no art. 25º/1; iv) a regra distributiva do ónus da prova em matéria de igualdade e discriminação consagrada no art. 25º/5, que deve ser interpretada tendo por referência os factores de discriminação enunciados no artigo 24º/1, competindo ao trabalhador o ónus de alegação e prova de factos que revelem o tratamento diferenciado e aqueles que constituam factores característicos de discriminação[3], não podendo aplicar-se a referida presunção naqueles casos em que se não invocam quaisquer factos que, de algum modo, possam inserir-se na categoria desses factores.
Importa reter, ainda, que compete ao trabalhador, nos termos do artigo 342º/1 do CC, alegar e provar factos que permitam afirmar a prestação de trabalho objectivamente semelhante em natureza, qualidade e quantidade relativamente ao trabalhador (ou trabalhadores) face ao qual se diz discriminado e permitam concluir que a diferente progressão na carreira e o pagamento de diferentes remunerações viola o princípio da igualdade, não bastando, para o efeito do juízo comparativo a estabelecer, a prova da mesma categoria profissional e da diferença retributiva.
No caso em apreço, lidos os factos dados como provados, não se identifica: i) um só trabalhador da recorrente que execute objectivamente as mesmas funções desempenhadas pelo recorrido, em termos de natureza, quantidade e qualidade, auferindo, apesar disso, remuneração diferente da auferida pelo recorrido, sendo a diferenciação estabelecida com base num dos factores discriminatórios proibidos por lei; ii) um só tratamento desigual que ao autor tenha sido dispensado pela ré com base em qualquer dos factores de discriminação pressupostos na lei ou noutros qualitativamente equiparáveis, pelo que não tem aplicação o que dispõe o nº 5 do artigo 25º do CT/2009.
De resto, o tribunal recorrido deu como provada uma situação de diferenciação entre o recorrido e os demais telefonistas que, como ele, executam pontual e acessoriamente as funções de motorista, radicada na circunstância do autor continuar a auferir a retribuição correspondente à categoria de motorista.
Assim, não emergindo dos factos provados que o recorrido auferisse globalmente uma retribuição inferior à globalmente auferida pelos demais telefonistas que executavam ocasionalmente funções de motorista, e encontrando-se o autor numa situação remuneratória diferente daquela em que se encontravam os referenciados telefonistas, o princípio constitucional da igualdade a que se vem aludido não impunha à recorrente um tratamento igual do recorrido no que concerne à prestação complementar que a mesma paga aos demais telefonistas e que não paga ao recorrido.

Tudo visto, não resulta demonstrada a discriminação salarial do autor relativamente aos demais telefonistas que constitui o suporte do segundo argumento aduzido pela sentença recorrida para concluir pela ilegitimidade da ordem que foi dirigida ao recorrido.

Em conclusão: não se verifica a ilegitimidade da ordem afirmada na sentença recorrida como fundamento da decisão ali tomada no sentido de ser dada sem efeito a sanção disciplinar imposta pela recorrente ao recorrido.


*
IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta sexta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e julgando-se improcedente a acção, dela se absolvendo a ré.

Custas pelo autor.

Coimbra, 25/5/2018.

........................................
(Jorge Manuel Loureiro)

..........................
(Paula Maria Roberto)


........................
(Ramalho Pinto)


[1] Não de enquadramentos jurídicos.
[2] “Cabe às partes determinar por acordo a actividade para que o trabalhador é contratado.”.
[3] Neste sentido, por exemplo, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14/12/2016, proferido no processo 4521/13.7TTLSB.L1.S1, de 18/12/2013, proferido no processo 248/10.0TTBRG.P1.S1, de 12/10/2011, proferido no processo 343/04.4TTBCL.P1.S1, e de 6/7/2011, proferido no processo n.º 428/06.2TTCSC.L1.S1.