Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1627/20.0T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOAQUIM JOSÉ FELIZARDO PAIVA
Descritores: RESOLUÇÃO
JUSTA CAUSA
DECLARAÇÃO RECEPTÍCIA
FALTA DE PAGAMENTO PONTUAL DA RETRIBUIÇÃO
PRESUNÇÃO DE CULPA
PRESUNÇÃO INILIDÍVEL
PRESUNÇÃO ILIDÍVEL
Data do Acordão: 01/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DA COVILHÃ DO TRIBUNAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 394.º, N.º 1, N.º 2, ALÍNEA A), N.º 3, ALÍNEA C), E N.º 5, DO CT DE 2009
ARTIGO 224.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I) É receptícia a declaração de resolução do contrato de trabalho com invocação de justa causa subjectiva.
II) Em face do referido em I), é por referência à data da recepção da comunicação pelo empregador que se deve aferir sobre se o trabalhador beneficia ou não de presunção de culpa iure et de iure por falta do pagamento pontual da retribuição, por terem decorrido ou não mais de sessenta dias sobre a constituição do empregador em mora quanto à obrigação do pagamento da retribuição.

III) Se no momento do envio da comunicação ainda não tinham decorrido aqueles sessenta dias, mas no momento da recepção da comunicação já os mesmo tinham decorrido, o trabalhador beneficia da presunção de culpa iure et de iure consagrada no art. 394.º, n.º 5, do CT de 2009.

Decisão Texto Integral:


Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A., residente em Rua ..., …intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra B., UNIPESSOAL, LDA., com sede em …, …, pedindo que a ré seja condenada a:

a) – A reconhecer que o Autor esteve ao seu serviço ininterruptamente desde 2 de Dezembro de 2015 até à resolução do contrato de trabalho;

b) - A reconhecer que o Autor auferia mensalmente a retribuição líquida de 1.000,00 €, a que corresponde o valor ilíquido de 1.156,00 €;

c) – A reconhecer que o Autor fez cessar o contrato de trabalho com justa causa, por carta datada de 24 de Janeiro de 2020, recebida pela Ré no dia 31 de Janeiro do mesmo ano;

d) - A reconhecer que dada a justa causa da resolução tem o Autor direito a receber da Ré a indemnização legal no valor de 2.540,00 €;

e) - A pagar ao Autor as remunerações de Novembro e Dezembro de 2019, no valor ilíquido de 2.312,00 €;

f) - A pagar ao Autor as diferenças do subsídio de férias de 2018 e 2019, no valor de 295,00 €;

g) - A pagar ao Autor 4 dias de férias não gozadas em 2019, no valor de 213,44 €;

h) - A pagar ao Autor as férias vencidas no dia 1/1/2020 e o correspondente subsídio, no valor de 2.312,00 €;

i) - A pagar ao Autor 15 dias de trabalho de 2020, no valor de 578,00 €;

j) - A pagar ao Autor os proporcionais de férias e de subsídio de férias referentes a 2020, no valor de 192,67 €;

k) - A pagar ao Autor o proporcional de subsídio de natal, referente a 2020, no valor de 52,92 €;

l) - A pagar ao Autor o crédito correspondente à formação profissional não ministrada, no valor de 1.067,20 €.

m) - A pagar ao Autor os juros vencidos e vincendos desde 1/2/2020 até integral pagamento, sobre as quantias atrás referidas, à taxa legal de juros moratórios;

Para tanto alega, em síntese, que procedeu à resolução do contrato de trabalho que mantinha com o réu, com justa causa, sendo-lhe devido o pagamento dos créditos supra discriminados.


***

II – Designada a audiência de partes, veio esta a frustrar-se por não ter sido possível obter a composição amigável do litígio pelo que se ordenou a notificação da ré para contestar.

Contestou esta impugnando a versão dos factos oferecida pelo autor, alegando que não se verifica justa causa de resolução contratual operada por este, devendo, aliás, ser considerada a existência de denúncia contratual, sem respeito pelo prazo de aviso prévio, pelo que, deve, ao invés, o autor ser condenado a pagar-lhes o valor de €2.000,00, correspondentes ao período de pré-aviso em falta, pedido que formula, por via reconvencional.


+

II – No despacho saneador não se admitiu o pedido reconvencional deduzido pela ré, na parte em que esta peticiona a condenação do autor a pagar-lhe no valor de €10.000,00 correspondente ao valor dos prejuízos causados pela alegada conduta do autor, violadora dos deveres a que se encontrava adstrito, apenas se admitindo o pedido reconvencional na parte em que é pedido a condenação do autor no pagamento de €2.000,00 decorrente da alegada não observância do prazo de aviso prévio.

Prosseguiram os autos sem enunciação do objecto do processo e dos temas da prova tendo, a final, sido proferida sentença de cujo dispositivo consta o seguinte.

Pelo exposto, julgo procedente a presente acção, condenando a ré B., UNIPESSOAL, LDA. a reconhecer que o Autor A. esteve ao seu serviço ininterruptamente desde 2  de Dezembro de 2015 até à resolução do contrato de trabalho e que fez cessar o contrato de  trabalho com justa causa, por carta datada de 24 de Janeiro de 2020, recebida pela Ré no dia 31  de Janeiro do mesmo ano, e, consequentemente a pagar-lhe:

_ A indemnização prevista no n.º 1 do artigo 396.º do Código do Trabalho no valor de 2.540,00 €

_ as remunerações de Novembro e Dezembro de 2019, no valor ilíquido de  2.312,00 €;

_ as diferenças do subsídio de férias de 2018 e 2019, no valor de 295,00 €;

_ 4 dias de férias não gozadas em 2019, no valor de 213,44 €;

_ as férias vencidas no dia 1/1/2020 e o correspondente subsídio, no valor de  2.312,00 €;

_ 15 dias de trabalho de 2020, no valor de 578,00 €;

_ os proporcionais de férias e de subsídio de férias referentes a 2020, no valor de  192,67 €;

_ o proporcional de subsídio de natal, referente a 2020, no valor de 52,92 €;

_ o crédito correspondente à formação profissional não ministrada, no valor de  1.067,20 €.

 No total de €9.563,23 (nove mil quinhentos e sessenta e três euros e vinte e três cêntimos) e até integral e efectivo pagamento, à taxa legal de 4%, absolvendo o réu do mais peticionado pela autora”.


***

III – Inconformada veio a ré apelar, alegando e concluindo:

            (…)

Recebida a apelação, o Exmº PGA emitiu fundamentado parecer no sentido da improcedência da apelação.


+

Corridos os vistos legais cumpre decidir.

***

IV – A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

1. O Autor trabalhou sob as ordens autoridade e direcção da Ré desde 2 de Dezembro de 2015.

2. O Autor, tem por função contactar clientes, promover e entregar os produtos e receber o valor dos mesmos, na região norte do país, saindo da sede da empresa de manhã e regressando à noite.

3. Às sextas- feiras ia directamente para a sua residência, onde passava o fim-de-semana.

4. O Autor, comunicou, por carta enviada à Ré no dia 24 de Janeiro de 2020, que rescindia o contrato de trabalho;

5. Era assim o teor da referida carta:

(dá-se por integralmente por reproduzido o teor carta junta com a p.i. como doc nº 2 [p. 459 a 461 do processo electrónico] através da qual o autor comunicou à ré a sua vontade de resolver o contrato de trabalho).

6. O Autor, declarou que rescindia o contrato de trabalho pelo facto de no dia 24 de Janeiro a Ré ainda não lhe ter pago as remunerações referentes aos meses de Novembro e Dezembro de 2019.

7. O Autor na semana de 16 a 20 de Dezembro procurou por várias vezes junto da responsável pelo processamento de salários saber quando lhe seria paga a remuneração, sem que tenha conseguido que lhe fosse dada uma resposta;

8. No dia 9 de Janeiro de 2020 o Autor, agora por e-mail, pediu mais uma vez que lhe fosse comunicado quando lhe seria feito o pagamento.

9. No dia 11 de Fevereiro de 2020, a Ré, através de carta enviada ao Autor, viria a responder por carta assinada por C..

10. No dia 17 de Janeiro, no seguimento da consulta atrás referida, foi-lhe atribuída baixa médica.

11. Em 2019 o Autor não gozou a totalidade dos dias de férias, tendo ficado por gozar 4 dias úteis.

12. O atraso no pagamento dos salários causou-lhe um conjunto de constrangimentos porque contava com o recebimento das remunerações a que tinha direito para fazer face às suas despesas, nomeadamente com o pagamento da casa, para pagar despesas com deslocações, etc., etc..

13. O não pagamento das remunerações desestabilizou a saúde do Autor.

14. Dada a falta de respostas da Ré e o agravamento da situação o Autor decidiu pôr termo ao contrato de trabalho.

15. No ano de 2018, a Ré pagou ao Autor, em Fevereiro 1.000,27 €, em Março 1.000,35 €, em Abril 1.000,31 € e em Dezembro 1.000,31 €;

16. No ano de 2019, a Ré pagou ao Autor, em Abril 1.000,25 €, em Junho 1.000,17 €, em Julho 1.000,01 €, em Setembro 1.000,29 €, em Outubro 1.000,28 €;

17. A retribuição do autor, constante dos recibos de vencimento do autor continha as seguintes componentes: (dá-se por reproduzido o demais teor deste nº 17)

18. A Ré pagava ao Autor Subsídio de Férias em duodécimos, que perfazem o valor do vencimento base, no caso 580,00 € em 2018 e 600,00 € em 2019.

19. No dia 24 de Janeiro de 2020 ainda nenhuma das retribuições referidas estava paga.

20. Só depois de recebida a carta - o que ocorreu no dia 31 de Janeiro – é que a Ré procurou solucionar o problema.

21. O Subsídio de férias pago ao Autor nos anos de 2018 e 2019 não integrava o valor da Isenção de Horário de Trabalho;

22. No ano de 2019 a Ré não atribuiu ao Autor a totalidade das férias, tendo ficado por gozar 4 dias úteis;

23. No mês de Janeiro de 2020 o Autor trabalhou até ao dia 15 de Janeiro.

24. No dia 16 de Janeiro de 2020 o Autor foi a uma consulta médica pelo facto não se sentir bem;

25. No dia 17 de Janeiro, no seguimento da consulta atrás referida, foi-lhe dada baixa médica;

26. Na pendência do contrato de trabalho a Ré não realizou nenhuma acção de formação profissional.

27. Nos finais de 2019 houve um aumento das dificuldades de tesouraria da empresa.

28. Foram emitidos pela ré, dois cheques, com datas de 12 de Dezembro e 10 de Janeiro, à ordem do autor, respectivamente no valor de €1.000,16 e €1.000,20.

29. A responsável do processamento dos vencimentos, informou o Autor, que os seus cheques estavam na posse da gerência da Ré e que era esta que iria fazer o pagamento;

30. As remunerações de Novembro e Dezembro de 2019 foram pagas aos demais colegas de trabalho do autor.

31. De 23/12/2019 a 3/1/2020, o autor esteve de férias, recomeçando o trabalho de 6 a 15 de Janeiro;


***

V - Conforme decorre das conclusões da alegação da recorrente que, como se sabe, delimitam o objecto do recurso, a questão a decidir reside em saber se:

1. Se a sentença é nula.

2.Se há lugar à alteração da matéria de facto.

3. Se o autor resolveu com justa causa o seu contrato de trabalho e, no caso afirmativo, se tem direito a uma indemnização e em que montante

Da nulidade da sentença:

Na conclusão C) invoca o recorrente que decisão “a decisão padece de omissão de pronúncia uma vez que a douta sentença, não se debruçou sobre todas as provas juntas aos autos, nomeadamente a prova documental, nem apreciou questões alegadas pela Ré, nomeadamente a questão do abuso de direito por parte do Autor

Em primeiro lugar, como é jurisprudência consolidada, o vício ou vícios atinentes à matéria de facto não se enquadram ou geram a nulidade da sentença.

Por outro lado, não se verifica qualquer omissão de pronúncia, da qual o recorrente, curiosamente, não extrai qualquer consequência, relativa a um pretenso abuso de direito do autor.

O abuso de direito é chamado à colação no artº 69º da contestação no qual a ré se limita a transcrever o conceito legal de abuso de direito consignado no artº 334º do CC alegando ainda que o a autor se apressou a rescindir o CT unicamente para alcançar uma indemnização que não lhe era devida por lei, violando desta forma os limites impostos pela boa-fé e pelo fim económico e social do direito invocado.

Como o tribunal entendeu, e bem, como se verá a mais adiante, que ocorreu uma resolução lícita com direito a indemnização, prejudicado ficou, pelo menos implicitamente, o conhecimento do invocado abuso de direito por força do disposto no artº 608º nº 2 do CPC.

Improcede, pois, a arguida nulidade.

Da alteração da matéria de facto:

No corpo das alegações ao recorrente identifica a matéria[1] (cfr artº 11º a 14º das alegações[2]) que pretende fazer aditar ao rol da matéria provada.

Acontece, porém, que nas conclusões a recorrente omite por completo referência a essa matéria, que não concretiza, limitando- se a tecer considerações sobre o modo como foi aquela matéria decidida[3].

Nos termos do art. 639º, nº 1 do CPC, “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.”.

Resulta daquele primeiro normativo a imposição ao recorrente de dois ónus, a saber: 1º) o de alegar; 2º) o de formular conclusões.

Assim, com vista à satisfação daquele primeiro ónus, o recorrente deve apresentar a alegação onde: a) expõe os motivos e argumentos da sua impugnação, explicitando as razões pelas quais considera que a decisão está errada ou é injusta, seja do ponto de vista da apreciação da prova produzida e do julgamento da matéria de facto levada a efeito com base nela, seja do ponto de vista da interpretação e da aplicação do direito aos factos que devem considerar-se provados; b) enuncia o objectivo que visa alcançar com o recurso.

Por seu turno, para satisfação do segundo dos enunciados ónus, o recorrente deve terminar a sua minuta com a formulação de conclusões, por via das quais deve indicar resumidamente, através de proposições sintéticas, os fundamentos, de facto e/ou de direito, com base nos quais pede a alteração ou anulação da decisão – as conclusões são, assim, proposições onde se sumaria a exposição analítica do corpo das alegações.

Assim, em caso de recurso com impugnação da decisão sobre a matéria de facto são as conclusões que delimitam o seu âmbito.

Prescreve o art. 640º, nº 1, do mesmo diploma que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”.

“No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;” – art. 640º, nº 2, al. a).

Conjugando as exigências legais referentes ao ónus de alegar e formular conclusões com as exigências enunciadas no artº 640, nºs 1 e 2, do CPC, relativamente ao recurso incidindo sobre a matéria de facto, facilmente se depreende que nas conclusões do recurso o recorrente tem de identificar, ainda que de modo sumário, os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

No sentido de que para que a Relação conheça da impugnação da matéria de facto é imperioso que o recorrente, nas conclusões da sua alegação, indique os concretos pontos de facto incorrectamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre aqueles concretos pontos de facto (respostas alternativas) vejam-se os acórdãos do STJ (Secção Social) de 7/7/2016, Proc. 220/13.8TBCL.G1.S1, de 13/10/2016, Proc. 98/12.9TTGMR.G1.S1, de 3/11/2016, Proc. 342/14.8TTLSB.L1.S1, e de 27/10/2016, Proc. 3176/11.8TBBCI.G1.S1.

No presente recurso, a recorrente, nas respectivas conclusões, não indica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados. Não complementa a sua alegação com a indicação dos pontos factuais que, no seu entender, se encontram mal julgados, nem invoca matéria que deva ser dada como provada, propondo a correspondente redacção.

Não tendo sido devidamente cumprido o ónus de impugnação previsto no mencionado artigo 640º e não sendo caso para prolação de despacho de aperfeiçoamento, há que rejeitar o recurso quanto à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Da justa causa de resolução e do direito do autor a receber uma indemnização:

No caso dos autos, como fundamento para a resolução do seu contrato de trabalho, invocou o autor a falta do pagamento pontual das retribuições relativas aos meses de Novembro e Dezembro de 2020, tendo dado conta desta sua vontade à empregadora através de carta que lhe enviou comunicando-lhe a sua intenção de resolver o contrato de trabalho, com efeitos imediatos e com justa causa, carta aquela que a empregadora recebeu.

A falta de pagamento ou a falta de pagamento pontual da retribuição constitui motivo de resolução contratual por parte do trabalhador.

Todavia, apenas a falta culposa dá direito ao pagamento de uma indemnização (artº 394º nº 1 e 2 alínea a) e nº 3 al. c) do CT).

A falta de pagamento ou a falta de pagamento pontual não culposo, embora possa constituir justa causa de resolução, não confere direito à indemnização.

Quando a mora no pagamento se prolonga por mais de 60 dias, o incumprimento presume-se culposo (nº 5 do dito normativo), presunção esta que assume a característica de jure et de jure de acordo com acórdão desta Relação 923/11.TTLRA.C1, subscrito pelo ora relator como 1º adjunto, para o qual se remete para uma melhor fundamentação e que tem vindo a ser seguido por esta Relação, consultável em www.dgsi.pt/jtrc.

Neste sentido também se pronuncia, por exemplo Joana Vasconcelos em anotação ao artigo 394º in Cód. do Trabalho Anotado, 8ª edição – 2009 de Pedro Romano Martinez e outros, págª 1019 e 1020 e, ao que conhecemos, a jurisprudência ou, pelo menos, a sua esmagadora maioria.

Se a mora não atingir os sessenta dias o incumprimento presume-se culposo juris tantum face ao disposto no artº 799º do C. Civil, ou seja, é permitido à empregadora devedora ilidir a presunção, provando o contrário.

No caso em análise os salários de Novembro e Dezembro de 2019, à míngua de outros elementos, deviam ter sido pagos, até ao dia 29 de Novembro e até ao dia 31 de, respectivamente Dezembro, ambos de 2019 (cfr. artigo 278.º n.ºs 1 e 4 do Código do Trabalho).

Na data em que o autor enviou a carta pela qual operou a resolução do contrato (24/01/2020), não tinham ainda decorrido mais de sessenta dias sobre o vencimento do salário do mês de Novembro de 2019 e muito menos sobre o salário de Dezembro desse ano.

Contudo, conforme se evidencia na sentença “a comunicação da cessação do contrato de trabalho pelo trabalhador ao empregador consubstancia uma declaração negocial unilateral e reptícia do trabalhador em que este transmite àquele a sua vontade de fazer cessar o contrato de trabalho: como declaração negocial que é, nela tem o trabalhador que manifestar, inequivocamente, a sua vontade de fazer cessar o contrato de trabalho; é unilateral, uma vez que não depende da aceitação do empregador; é receptícia, na medida em que carece de ser recebida pelo destinatário - empregador - para produzir os seus efeitos (art. 224º, nº 1, do Cód. Civil), pelo que a data de produção de efeitos, a cessação poderá ocorrer na data da sua recepção pelo destinatário/empregador, se o trabalhador nada disser em contrário, ou posteriormente, no momento em que o trabalhador o fixa na comunicação”

Deste modo a resolução só se efectivou ou operou os seus efeitos no dia 31/01/2020, data em que aquela comunicação foi recebida pela empregadora ora recorrente.

Daí que mora no pagamento da retribuição de Novembro de 2019 tivesse perdurado por mais de sessenta dias, o que leva a que definitivamente se tenha o incumprimento como culposo dado que, nesta situação, funciona a presunção iure et de iure do nº 5 do artº 394º do CT.

Relativamente ao salário do mês de Dezembro de 2019, o seu não pagamento presume-se culposo podendo a recorrente ilidir a presunção que decorre do artº 799º do C dada sua natureza juris tantum.

Ora apenas se provou que nos finais de 2019 houve um aumento das dificuldades de tesouraria da empresa (facto 27) e que foram emitidos pela ré, dois cheques, com datas de 12 de Dezembro e 10 de Janeiro, à ordem do autor, respectivamente no valor de €1.000,16 e €1.000,20 (facto 28).

Ora esta matéria é manifestamente insuficiente para ilidir a presunção de culpa que sobre a empregadora recai relativamente ao pagamento dos salários referidos.

É que o simples aumento das dificuldades de tesouraria, só por si, não justifica o inadimplemento quando, note-se, a recorrente pagou aos demais colegas de trabalho as remunerações de Novembro e Dezembro de 2019.

Por outro lado, a simples emissão dos cheques, que ficaram na posse do gerente, nada acrescenta ao caso porquanto não sabemos se foram entregues ao autor e muito menos se obtiveram boa cobrança.

Podemos, deste modo, afirmar que o incumprimento traduzido na falta de pagamento dos referidos salários de Novembro e Dezembro de 2019 revestiu a característica de culposo, gerando o direito do trabalhador a ser indemnizado, desde que prove que os incumprimentos em causa assumem uma gravidade tal que torne inexigível a manutenção do seu contrato de trabalho.

É que, seja o incumprimento culposo ou não culposo, a verificação da justa causa não prescinde da prova ou demonstração de que esse incumprimento tornou para o trabalhador inexigível a manutenção da relação de trabalho

Acrescente-se ainda que a justa causa de resolução deve ser apreciada (v. art. 394.º n.º 4) nos termos do n.º 3 do art. 351.º do CT/2009, isto é, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do trabalhador, ao carácter das relações entre este e o empregador e às demais circunstâncias relevantes.

Contudo, há que chamar a atenção para a circunstância do empregador dispor de sanções intermédias para censurar um determinado comportamento ilícito do trabalhador, ao passo que o trabalhador lesado por um comportamento ilícito do empregador não dispõe de formas alternativas à resolução para reagir, cabendo-lhe, apenas, a opção entre fazer cessar unilateralmente ou não o contrato de trabalho.

Por isso mesmo, face a esta disparidade de meios de reacção colocados à disposição do empregador e do trabalhador, o conceito de justa causa para efeitos de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador deve ser objecto de uma interpretação menos rigorosa que aquele que deve dispensar-se a esse mesmo conceito no âmbito da cessação do contrato de trabalho por iniciativa do empregador e por despedimento com fundamento em comportamento culposo do trabalhador.

O conceito de justa causa deve ser apreciado de modo diferente nas situações de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador com invocação de justa causa e de despedimento pelo empregador com igual invocação, pois na primeira dessas situações, ao contrário do que sucede nas segundas, não é necessário que a infracção do empregador torne prática e imediatamente impossível a subsistência da relação de trabalho, bastando que seja grave e torne inexigível para o trabalhador a manutenção do seu contrato de trabalho (V. Ac. da Relação de Lisboa de 20/3/2013, proferido no âmbito do processo 174/11.5TTCLD.L1, consultável em CJ “on line” Refª 6738/2013).

Como refere José Eusébio Almeida “… a compreensão de justa causa de resolução (…) indica-nos um conceito de inexigibilidade, bem mais do que um de gravidade e de culpa, sem prejuízo de, tantas vezes, estes estarem ínsitos no primeiro ou serem – mormente a culpa – expressamente exigidos nos exemplos típicos (…)”, razão pela qual “… em rigor, não faz inteiro sentido remetermos para a cláusula relativa à justa causa do despedimento.” – cfr. A Cessação Do Contrato De Trabalho Por Iniciativa Do Trabalhador, A Reforma do Código do Trabalho, Coimbra Editora, pags. 557/558.

De referir ainda que a situação económica e financeira do inadimplente tem mais a ver com requisito da culpa no incumprimento do que com o requisito da inexigibilidade.

Como se escreveu no Ac. desta Relação de 24.09.15, procº 355/14.0TTCBR.C1 [Relator: Ramalho Pinto], que reflecte a posição que esta Relação de forma uniforme tem vindo a seguir na matéria “… a permanência do incumprimento salarial é um das formas mais graves de incumprimento no contrato de trabalho, atendendo à dependência, na esmagadora maioria dos casos, para a sobrevivência do trabalhador, dos rendimentos de trabalho.

A retribuição ou salário representa para o trabalhador o seu principal senão mesmo único meio de subsistência, bem como do seu agregado familiar, sem o qual, a maior parte das vezes, não pode ter uma existência condigna. “O salário, se é certo que se não confunde com o direito à vida, traduz-se, porém, numa das suas mais significativas exigências, podendo dizer-se que constitui uma necessidade vital do trabalhador e respectiva família”, escreveu o Prof. Jorge Leite, citado no Ac. da Rel. de Lisboa de  3/10/2007 (…), disponível em www.dgsi.pt.

Na verdade, o salário ou retribuição do trabalho assume uma importância tal do ponto de vista económico e social para o trabalhador que mereceu da parte do legislador uma especial protecção, atribuindo-lhe não só a dignidade de direito fundamental (artº 59º, nº 1, al. a), da C.R.P.), como também pela circunstância de não ter deixado de criar para o próprio Estado a obrigação de o assegurar (artº 59º, nº 2, da C.R.P.).

A própria Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 (aprovada sob a forma de resolução da Assembleia Geral) lhe reconhece o estatuto de Direito do Homem, ao consignar no respectivo artº 23º, nº 3, que “Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana (…)”.

Como se afirma no Ac. desta Relação proferido no processo 468/13.5TTVIS.C1 (Relator Azevedo Mendes), “considerando a natureza alimentícia do salário, essencial para a organização das necessidades mais básicas do trabalhador, a falta culposa e consecutiva do pagamento desse número de salários é excessiva e não pode deixar de considerar-se grave e apta a tornar imediatamente impossível a continuação do vínculo laboral. Os factos revelam uma situação crónica de remunerações em atraso. Um trabalhador não pode estar sujeito de forma persistente ao não recebimento pontual das remunerações de trabalho. A persistência no incumprimento é apta a causar danos sérios à segurança da sua subsistência e a uma vida digna”.

No caso, perante os factos provados, não podemos deixar de considerar que os incumprimentos em causa assumem uma gravidade que, no nosso entender, tornou inexigível a subsistência da relação laboral.

Estamos perante um incumprimento traduzido no não pagamento de dois meses de salário no total de mais de 2.000€, o que causou ao autor um conjunto de constrangimentos porque contava com o recebimento das remunerações a que tinha direito para fazer face às suas despesas, nomeadamente com o pagamento da casa, para pagar despesas com deslocações, etc., etc.(facto 12), sendo que essa falta de pagamento lhe desestabilizou a saúde (facto 13).

No caso em apreciação, entendemos que é incontroversa a existência de justa causa para a resolução por parte do autor atendendo a que os dois meses em que esteve sem receber o seu salário são claramente susceptíveis de pôr em causa a sua subsistência e do seu agregado familiar, retirando-lhe prestações retributivas com as quais legitimamente contava para esse efeito, tornando, assim, inexigível a manutenção da relação laboral.

Dispõe o artº 396º do CT, nos seus nºs 1 e 2:

“1 – Em caso de resolução do contrato com fundamento em facto previsto no n.º 2 do artigo 394º, o trabalhador tem direito a indemnização, a determinar entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau da ilicitude do comportamento do empregador, não podendo ser inferior a três meses de retribuição base e diuturnidades.

2 – No caso de fracção de ano de antiguidade, o valor da indemnização é calculado proporcionalmente”.

A 1ª instância decidiu fixar a indemnização por resolução lícita em 30 dias de retribuição base e diuturnidades “ considerando o grau de ilicitude da entidade empregadora, que se reputa médio/elevado e atento o n.º de retribuições não pagas, o tipo de relação em causa e a dimensão da actividade da ré e o facto de terem sido pagas as retribuições dos demais trabalhadores”.

Na verdade, atendendo aos valores dos salários não pagos (mais de € 2.000) e à ausência de resposta da parte da recorrente às solicitações do autor no sentido de que fosse efetuado o pagamento (cfr. factos 7 e 8), o que revela um desinteresse em resolver a situação (só posteriormente à recepção da comunicação de resolução é que respondeu ao autor – cfr facto 9), entendemos também que a ilicitude do comportamento da recorrente se revela como médio/elevado.

Deste modo, sufragamos também a decisão do tribunal que fixou a indemnização por resolução lícita em 30 dias de retribuição base e diuturnidades.


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IV - Termos em que se decide julgar a apelação totalmente improcedente com integral confirmação da sentença impugnada.

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Custas a cargo da recorrente.

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Coimbra, 28 de Janeiro de 2022

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(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Jorge Manuel da Silva Loureiro)

(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto)



[1] Matéria esta que para além de em parte ser conclusiva não tem interesse para decisão considerando as questões de direito a decidir.
[2] Alegada, respectivamente, nos atºs 15º, 27º, 23º e 21 da contestação.
[3] V.G. “o tribunal a quo incorreu em erro de apreciação da prova; “ignorou a prova documental, e quando não o fez, fez uma errada e contraditória interpretação da mesma”,