Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
476/11.0PBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: DEMANDADA CIVIL
CASO JULGADO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 02/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 32.º DA CRP; ART. 3.º DO CPC; ARTS. 61.º E 74.º DO CPP
Sumário: I - Não tendo a demandada cível sido admitida a intervir, em tempo oportuno, no processo, não teve oportunidade de ser ouvida nem exercer o contraditório, em audiência, sobre os fundamentos da responsabilidade civil conexa com a criminal.

II - Não pode o responsável civil ser vinculado, automaticamente, a um caso julgado sobre os pressupostos sobre os quais não teve oportunidade de se pronunciar ou de intervir, exercendo, além do mais, o princípio básico do contraditório.

III - Se a decisão da ação penal não constitui caso julgado em relação a quem nela não participou e se ao demandado civil é reconhecido o direito de recorrer da decisão final, independentemente de o arguido o fazer, aproveitando o eventual recurso ao próprio arguido, não faria sentido, no caso, impor o caso julgado à demandada cível antes de ser ouvida e sem que tenha tido oportunidade de intervenção na discussão da causa.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I.

Na sequência da defesa apresentada pelo arguido, o demandante cível, A..., requereu a INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA da Cª de Seguros B..., S.A., a fim de assegurar a legitimidade passiva para o pedido de indemnização formulado nos autos com fundamento em responsabilidade civil conexa com a criminal - CFR. FLS. 453.

O requerimento foi indeferido, tendo o demandante cível interposto recurso desse despacho para o Tribunal da Relação.

Na apreciação do recurso foi decidido: “No provimento do recurso, revoga-se a decisão recorrida e admite-se a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros B... , S.A., cabendo ao tribunal e 1ª instância promover os actos processuais subsequentes e inerentes a essa admissão da intervenção”.

Uma vez que o recurso teve subida imediata, em separado e com efeito devolutivo – cfr. despacho de fls. 503 dos autos – após a subida do recurso ao tribunal da relação, o processo prosseguiu os seus trâmites, com a audiência de discussão e julgamento e prolação da sentença.

Na sequência da baixa do recurso à 1ª instância, dando execução ao acórdão do tribunal da relação foi então proferido o seguinte despacho(ora recorrido):

Conforme decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.04.2014, onde se admitiu a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros B... , S.A. e se ordenou ao Tribunal a quo a promoção dos atos processuais subsequentes e inerentes a essa admissão, importa tramitar o processado em conformidade com o aí ordenado.

Termos em que se determina a citação da chamada Companhia de Seguros B... , S.A. e se dão sem efeito os atos susceptíveis de influir no processado sem a intervenção daquela, como sejam audiência de julgamento, sentença de 14 de Março de 2014 e todos os termos posteriores.

Notifique todos os intervenientes processuais”.

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Recorre do aludido despacho o demandante cível, A... , formulando, na respectiva motivação, as seguintes CONCLUSÕES:

1. A Recorrente perfilha o entendimento, salvo melhor opinião, de que o douto despacho a quo que determinou a citação da chamada Companhia de seguros B... , S.A e deu sem efeito os atos susceptíveis de influir no processado sem a intervenção daquela, como sejam a audiência de julgamento, sentença de 14 de Março de 2014 e todos os termos posteriores, não decidiu de forma acertada, atendendo à factualidade dos factos e aos normativos legais aplicáveis ao presente caso.

2. O Recorrente, desde logo, considera que o despacho deverá ser revogado na medida em que se devem manter os actos e as decisões na parte em que respeitam à acção penal.

3. Promovendo-se todos os demais actos, desde a citação da Companhia de Seguros B... ,, S.A. ou seja,

4. A promoção de todos os actos que sejam susceptíveis de influenciar o apuramento da responsabilidade civil que há-de culminar na decisão de atribuição, ou não, da indemnização aos lesados - a causa cível.

5. A circunstância de a situação factual provada vir a integrar ou não o conceito de "acidente de viação" não releva para efeitos de apuramento da responsabilidade penal.

6. Apenas releva, em sede de responsabilidade civil, para ajuizar da legitimidade passiva da seguradora, e consequentemente, para saber se a intervenção desta é necessária para uma melhor decisão da causa cível.

7. A sentença de lª instância, no articulado relativo à decisão penal, em momento algum faz o enquadramento dos factos em "acidente de viação" ou "agressão em que o veículo é usado como arma": esta consideração é irrelevante para efeitos da decisão penal (quer para o enquadramento jurídico-penal dos factos, quer para a escolha e determinação da pena).

8. A opção por um ou outro entendimento não prejudica o facto de o arguido ter agido "de forma consciente, livre e deliberada", únicos elementos que o tribunal valorou na determinação do dolo que presidiu à conduta do arguido.

9. E a intervenção da Companhia de Seguros B... , S.A. em caso algum poderia alterar qualquer dos factos em que o tribunal se baseou para fundamentar, quer o preenchimento do tipo de ilícito, quer a determinação concreta da pena, ou seja, em caso algum poderia alterar os fundamentos da decisão de condenação penal.

10. Estamos perante dois tipos de ilícitos fundamentalmente diferentes: a ilicitude penal, de natureza eminentemente pública; e a ilicitude civil, de natureza essencialmente privada.

11. Embora unidos pelo mesmo facto gerador de responsabilidade, certo é que, no processo penal, este facto integra um tipo de ilícito criminal, previsto e punido no Código Penal,

12. Sendo, no processo civil, uma violação de um dever de respeito por direitos alheios, que origina uma obrigação de indemnizar a pessoa cujo direito se violou.

13. Estes dois tipos de responsabilidade não se determinam da mesma maneira.

14. No processo penal, é feito um juízo acerca da violação de bens jurídico-penais, isto é, de bens que, pela sua fundamental relevância, a sociedade protege especialmente através da sua tipificação na lei penal;

15. No processo civil, é feito um juízo sobre a violação de interesses jurídicos que dizem eminentemente respeito às relações interpessoais, privadas, e daí que esta violação gere a obrigação de indemnizar o lesado.

16. A relevância da intervenção da Companhia de Seguros B... , S.A. no processo prende-se com a relação contratual que esta estabeleceu com o arguido, autor material do crime.

17. A transferência de responsabilidade visada por este contrato entre a seguradora e o arguido não exonera este último de responsabilidade pelos crimes que pratique,

18. Ainda que, pelos mesmos factos, a seguradora possa igualmente ser responsável, no âmbito cível e nunca penal, desde que aqueles fundem um direito de indemnização. Ora,

19. A intervenção da seguradora em nada pode mudar, quer as circunstâncias em que ocorreram os factos, quer a culpa do arguido.

20. Logo, não pode influir na decisão de condenação penal.

21. Na verdade, no direito penal há outros interesses a considerar para além da reparação do direito violado.

22. Há exigências de prevenção do ilícito que não se verificam no direito civil.

23. Daí que possamos conceber a hipótese de existir diferentes decisões no que ao arguido respeita, quer no processo-crime, quer na acção cível ali enxertada.

24. O princípio da adesão determina que a acção de indemnização pela prática de crime seja formalmente enxertada no processo penal.

25. Cite-se Maia Gonçalves referido no Acórdão do STJ nº1/2013, processo nº1187/09.2TDL5B.12-A.Sl-3ªa (dgsi.pt): "A unidade da causa impõe entre as duas acções uma estreita conexão. Mas é certo que não se confundem/ e por isso mesmo se tem discutido se deverão ser objecto do mesmo processo/ ou se deverão antes ser decididas em processos autónomos/ e mesmo em jurisdições diferentes."

26. No entanto esta acção indemnizatória não perde a sua estrutura material de acção cível. Como se refere naquele Aresto “No plano do direito adjectivo, o actual Código de Processo Penal (CPP), mantendo o sistema de adesão/ veio conferir àquela acção de indemnização pela prática de um crime/ formalmente enxertada no processo penal, a estrutura material de uma autêntica acção cível, acolhendo/ inequivocamente/ os princípios da disponibilidade e da necessidade do pedido (arts. 71º, 74°, 77 e 377 do CPP)...”.

27. Tal como, adiantamos, a acção penal não perde a sua estrutura material de acção penal.

28. O próprio Código de Processo Penal estabelece uma separação clara entre a matéria cível e penal, como o demonstra o facto de a decisão relativa ao pedido de indemnização cível estar em articulado próprio (cfr. os artigos 375º, 376º e 377º do CPP).

29. Ora, como se viu acima a questão que deu origem à decisão que vem agora declarar sem efeito os actos praticados no processo, foi uma questão que se originou, desenvolveu e terminou como questão cível, nunca extravasando o âmbito da instância cível.

30. E que em nada é susceptível de influir na matéria probatória que fundamentou a decisão que considera preenchido o tipo de ilícito e que determina, em concreto, a pena a aplicar ao arguido.

31. Seguindo este entendimento, este Venerando Tribunal apenas decidiu que a pretensão indemnizatória teria que ser dirigida contra a seguradora B... , S.A.

32. Uma vez que materialmente distintos, os processos-penal e civil não se confundem, isto é, permanecem como dois processos de natureza diferente até ao fim (apesar de formalmente serem tramitados como um só).

33. Não se percebe qual a necessidade de considerar sem efeito actos que dizem respeito ao processo-crime.

34. Quando a Companhia de Seguros B... , S.A. não é parte do processo­ crime.

35. Pois que é "pessoa com responsabilidade meramente civil", nos termos e para os efeitos do nº 1 do art. 73° do CPP.

36. A sua intervenção no processo é acessória, tendo uma posição idêntica à do arguido, mas só quanto à sustentação e à prova das questões cíveis debatidas no processo para que tenham legitimidade." (cf. Maia Gonçalves, CPP anotado e comentado, l8ª ed., pg.212)

37. O que aliás é explicitado pelo nº 3 do art. 74° do CPP que dita que "os demandados e os intervenientes têm posição processual idêntica à do arguido, quanto à sustentação e à prova das questões civis julgadas no processo, sendo independentes cada uma das defesas”, norma esta que o despacho a quo confronta.

35. Inviabilizando assim a manutenção dos pilares em que assentou a decisão proferida no processo penal, sem qualquer necessidade.

36. Porquanto se podem manter todos os actos e toda a prova já produzida no âmbito deste processo penal, e, assim, a decisão condenatória.

37. De acordo com o princípio do aproveitamento dos actos no processo.

38. A decisão relativa à condenação do arguido fica prejudicada pelo facto da Companhia de Seguros B... , S.A. não ter intervindo no processo?

39. O pedido de indemnização, a contestação, a resposta a esta, o despacho do Mmo. Juiz que indefere a intervenção da seguradora, o recurso deste despacho pelo arguido/recorrido e o Acórdão do Tribunal da Relação que vem admitir a intervenção principal da B... , são todos eles actos com incidência directa e exclusiva na acção de indemnização civil.

40. Acção em que a seguradora B... , S.A. é parte interessada na respectiva relação material controvertida.

41. Nada podendo contribuir, e em nada podendo modificar, aquilo que já foi decidido em sede de processo penal,

42. Pois a prova produzida, julgada, provada e não provada e Que baseou a decisão de condenação não se confunde com a prova produzida em sede de processo civil, em que a seguradora pode e deve intervir.

43. Porque a intervenção da Companhia de Seguros B... , S.A. só para esta última prova pode contribuir, e porque só a decisão final tomada na acção cível pode influenciar,

44. Devem manter-se os actos e as decisões na parte em que respeitam à acção penal, como corolário do princípio do máximo aproveitamento dos actos processuais.

45. Ou seja, revogando a decisão que saneia o processo e dá sem efeito a audiência de julgamento e sentença,

46. Devendo-se manter os factos, na parte criminal, dados como provados na douta sentença e que aqui se reproduzem

3. No dia 13 de Agosto de 2011 cerca das 19h00, A... , chefe da PSP, conduzia o seu veículo pessoal pela EN 18, Km 51,9 no sentido Fundão/Covilhã, seguindo imediatamente à sua frente o arguido C... , que conduzia o seu veículo de passageiros da marca PEUGEOT com a matrícula (...) ZC.

4. Porquanto se desentenderam, por motivos relacionados com a condução, uma vez que o arguido se deslocava, em marcha lenta, ocupando alternadamente e por vezes simultaneamente as duas faixas do mesmo sentido de trânsito, após uma troca de palavras, o ofendido e o arguido pararam os seus veículos na faixa de rodagem, naquele local.

7. Encontrando-se ambos no exterior dos veículos, o ofendido identificou-se como chefe da PSP, exibindo a sua carteira profissional ao arguido, ao mesmo tempo que solicitou a identificação a este.

8. Nesse momento, o arguido introduziu-se no interior do seu veículo, colocando-o em marcha, enquanto A... se posicionou em frente deste para impedir que tal acontecesse.

9. Não obstante o arguido não deteve a marcha do veículo, vindo a colher A... com a parte frontal do veículo, atingindo-o na perna esquerda, prostrando-o no chão.

10. No entanto, ainda que tivesse representado que o ofendido necessitava de cuidados médicos, o arguido não se coibiu de prosseguir o seu caminho, não providenciando por auxiliar aquele, tão pouco providenciou por chamar socorro, como poderia e deveria ter feito.

13. Na sequência daquela agressão, A... F sofreu dores e incómodos, bem assim as lesões descritas e examinadas a fls. 6 a 9, 85 a 93 e 105 a 107, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

Designadamente, em tais relatórios, foram assinaladas as seguintes lesões:

15. Resultado da TAC em 10/10/2011: ligamento cruzado anterior fino e irregular, sequela de ruptura ligamentar, não recente, pelo menos parcial. Menisco externo irregular e degenerado sequela de contusão meniscal com fractura meniscal associada.

16. Tais lesões foram causa direta e necessária de, pelo menos, 58 dias de doença, todos com afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.

O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com intenção de molestar fisicamente o ofendido A... , bem sabendo que este era chefe da PSP e que atuava no exercício das suas funções, o que logrou conseguir, bem sabendo que a sua conduta era adequada a neste causar as referidas lesões.

18. Sabia o arguido que tal comportamento lhe era proibido e punido pela lei penal como crime.

47. Retome-se as sábias palavras explanadas no Acórdão do TRL no processo 3417/0a.9TVL5B.Ll-l (dgsipt), "... uma vez que a função constitucional dos Juízes é administrar a Justiça em nome do Povo (nº 1 do art. 202º da Constituição da República Portuguesa) tanto basta para que, dentro dos limites da Lei e obedecendo às regras interpretativas previstas nos três números do art. 9º do Código Civil - mas dando particular ênfase ao nº 3 que faz apelo às ''soluções mais acertadas", os mesmos tudo façam para dirimir/eliminar os conflitos que são submetidos ao seu julgamento."

48. E é essa decisão mais acertada que se pretende, a bem da boa Administração da Justiça.

Por isso se conclui, pedindo,

Nos termos expostos e no mais que o douto suprimento de V. Ex.as sugerir, deve revogar-se a decisão proferida em primeira instância, e, consequentemente, alterada de igual modo, de Direito, dando-se provimento ao presente recurso nos estritos termos supra requeridos.

*

Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido, sufragando a motivação do recurso e sustentando a sua procedência.

Neste Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se pronuncia do sentido da improcedência do recurso. Ponderando em síntese: “a chamada tem todo o direito a exercer os seus direitos processuais, em toda a plenitude, designadamente questionando e instando as testemunhas acerca do contexto em que ocorreram os factos com incidência na verificação do grau de culpa. Em face da decidida intervenção provocada, só havia que dar sem efeito todos os actos praticados sem essa intervenção”.

Corridos vistos, cumpre decidir.


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II.

Constitui objecto do presente recurso apurar se, como pretende o recorrente, apesar da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.04.2014 - que admitiu a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros B... , S.A. e ordenou ao Tribunal de 1ª instância a promoção dos actos processuais subsequentes e inerentes a tal decisão – deve manter-se a decisão penal, com a consequente definição da matéria de facto provada relativa ao ilícito penal e cível. Ou, pelo contrário, se decorre da decisão a necessidade de anular o julgamento, entretanto efectuado sem a participação da interveniente.

A prática de um crime, para além da responsabilidade penal, pode ainda dar origem a outros tipos de responsabilidade, seja civil, seja disciplinar.

Para os casos em que a responsabilidade penal surge cumulada com a responsabilidade civil, dispõe o art. 129º do C. Penal que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil. Considerando, pois, o legislado a indemnização civil por danos emergentes de crime, não um mero efeito da condenação penal mas uma indemnização de natureza estritamente civil e portanto, sujeita à lei civil.

Na responsabilidade criminal e civil conexa com aquela, existe coincidência de pressupostos quanto ao facto ilícito, imputação subjectiva do facto ao agente e nexo de causalidade entre o facto e o dano.

No regime processual, para a relação entre a acção penal e a acção civil emergentes do mesmo facto, de entre os vários modelos possíveis – sistema de independência absoluta, sistema de adesão alternativa e sistema de adesão obrigatória – o legislador português adoptou o sistema de adesão obrigatória.

Com efeito, sob a epígrafe «Princípio de adesão», postula o art. 71º do CPP: O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

As excepções ao princípio são apenas as previstas no art. 72º, nº 1: quando ocorra demora excessiva no andamento do processo penal, quando este tiver sido arquivado ou extinto antes do julgamento, quando o procedimento respeite a crimes semi-públicos e particulares, quando, ao tempo da acusação, não houver danos ou notícia da sua existência, quando a sentença penal não se tenha pronunciado sobre o pedido, quando a forma de processo o não comporte.

São apontadas como vantagens ao modelo adoptado razões de economia processual e razões de prestígio institucional, na medida em que a existência de um único processo previne a possibilidade de julgados contraditórios.

A acção cível incorporada na acção penal, embora seguindo os trâmites do processo penal, com as especialidades previstas nos artigos 71º e segs. do CPP decorrentes da subordinação , mantém a sua autonomia, sendo os pressupostos do direito substantivo definidos, aliás, pela lei civil por força do disposto no art. 129º do C. Civil.

Decorre como efeito necessário da adesão que as partes civis têm que exercer os seus direitos, relativos aos pressupostos da sua responsabilidade no âmbito da acção penal.

Nos termos do art. 74º nº3 do CPP “Os demandados e os intervenientes têm posição processual idêntica à do arguido quanto à sustentação e à prova das questões cíveis julgadas no processo, sendo independentes cada uma das defesas”.

A referida identidade de posições e a independência de cada uma das defesas exigem sob pena de total esvaziamento da adesão e da sua obrigatoriedade, que ao demandado cível seja assegurado o direito ao contraditório, em toda a sua dimensão, relativamente a todos os pressupostos da sua responsabilidade.

A única subordinação é a do ritualismo específico do processo penal, ainda que com aproveitamento, por razões de economia processual, da produção de prova e discussão da causa relativas aos pressupostos coincidentes com os da acção penal.

Ora, no caso, não tendo a demandada cível sido admitida a intervir, em tempo oportuno, no processo, não teve oportunidade de ser ouvida nem exercer o contraditório, em audiência, sobre os fundamentos da responsabilidade civil conexa com a criminal.

Por outro lado, não pode o responsável civil ser vinculado, automaticamente, a um caso julgado sobre os pressupostos da su sobre os quais não teve oportunidade de se pronunciar ou de intervir, exercendo, além do mais, o princípio básico do contraditório.

Com efeito, nem numa acção cível que venha a ser instaurada com fundamento no mesmo facto ilícito, a sentença penal constitui caso julgado em relação a quem não participou na sua formação.

A condenação penal apenas constitui mera “presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição” – cfr. art. 623º do CPC.

Acresce que a própria lei reconhece ao demandado cível a faculdade de interpor recurso da decisão final, independentemente de o arguido o fazer. Estabelecendo o artº 402º, nº 2, alínea b), do C.P.P. que «o recurso interposto pelo responsável civil aproveita ao arguido, mesmo para efeitos penais».

Ora se a decisão da acção penal não constitui caso julgado em relação a quem nela não participou e se ao demandado civil é reconhecido o direito de recorrer da decisão final, independentemente de o arguido o fazer, aproveitando o eventual recurso ao próprio arguido, não faria sentido, no caso, impor o caso julgado à demandada cível antes de ser ouvida e sem que tenha tido oportunidade de intervenção na discussão da causa. Apenas com a restrição de que a discussão é subordinada à tramitação da acção penal e ao aproveitamento dos actos ali praticados.

Embora com aproveitamento, por uma questão de economia processual, dos actos praticados para efeitos penais, na parte em que existe coincidência de actos/pressupostos, haveria sempre que assegurar à interveniente o princípio fundamental do exercício do contraditório, consagrado no art. 32º, n.º5 da CRP, no art. 3º, nº3 do CPC e, em relação ao arguido, no art. art. 61º, n.º1, al. b) do CPP.

Também dos princípios inerentes ao direito a um processo justo e equitativo, consagrado no artigo 6º da C.E.D.H., entre eles o direito à tutela jurisdicional efectiva, decorre a exigência de as partes civis poderem exercer com efectividade os seus direitos, sendo ouvidas e exercendo o contraditório sobre os fundamentos da sua responsabilidade.

Assim, no caso, decorrendo do acórdão do Tribunal da Relação a necessidade de anulação dos actos entretanto praticados susceptíveis de afectar a decidida intervenção principal, não tendo a interveniente tido oportunidade de ser ouvida e de participar no julgamento, não pode prevalecer contra ela a decisão, entretanto tomada, sobre os pressupostos da sua responsabilidade. Pelo que não merece censura a decisão recorrida.


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III.

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso.

Custas cíveis, nos termos do artigo 523º do CPP, pelo recorrente.

Coimbra, 25 de Fevereiro de 2015

(Belmiro Andrade - relator)

(Abílio Ramalho - adjunto)