Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4856/15.4TDLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: INSTRUÇÃO
INADMISSIBILIDADE LEGAL DA INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 02/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA SERTÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 287.º, N.ºS 1, ALS. A) E B), 2 E 3, E 286.º, N.º 3, DO CPP
Sumário: I - No fundamento de rejeição “inadmissibilidade legal da instrução” (parte final do n.º 3 do artigo 287.º do CPP) cabem apenas as seguintes situações:
• A prevista no n.º 3 do artigo 286.º daquele diploma;

• Falta de legitimidade para requerer a instrução (interpretação, a contrario, do disposto no artigo 287º, n.º 1, als. a) e b), ainda do mesmo corpo normativo;

• Incumprimento do disposto no artigo 287º, nº 2, também do dito compêndio legislativo.

II – Deste modo, só razões de natureza formal e adjectiva determinam a rejeição da instrução, e não também questões de mérito do próprio requerimento, as quais apenas podem justificar o indeferimento de diligências que hajam sido requeridas por não serem necessários à realização das finalidades da instrução (cfr. artigo 291º, n.º 1, do CPP).

III – Quanto às questões de mérito, constituem o cerne do objecto do debate instrutório, única diligência que obrigatoriamente tem de ser realizada (cfr. artigos 289.º, nº 1, e 298.º, ambos do CPP).

Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo 4856/15.4TDLSB da Comarca de Castelo Branco, Juizo de Competência Genérica da Sertã a arguida A... foi acusada em processo sumaríssimo da prática de um crime de apropriação ilegítima p. e p. pelo artigo 209º, nº 1 do Código Penal por despacho de 7 de Julho de 2016.

 A arguida opôs-se à aplicação da pena proposta tendo o processo sido reenviado para outra forma processual em 26.10.2016.

Em 28 de Novembro de 2016 a arguida requereu instrução nos seguintes termos:

A... , arguida nos autos, vem, nos termos do art. 287° nº 1 do C.P.P, muito respeitosamente requerer contra E... , identificado nos autos, ABERTURA DE INSTRUÇÃO nos termos e com os fundamentos seguintes:

RAZÕES DE FACTO DE DISCORDÂNCIA RELATIVAMENTE À ACUSAÇÃO

1 - A requerente não praticou os factos porque foi acusada,

2 - Considera também que não foram realizadas todas as diligências tendentes ao apuramento dos factos.

3 - Ficando desde logo prejudicada a verdade material e os seus legítimos interesses.

4 - Nunca quis nem quer apoderar-se de nada do denunciante.

5 - É rotundamente falso que a requerente tivesse decidido utilizar em beneficio próprio a quantia de € 1.654,90. Antes, em entendimento com o denunciante, o gastou em alimentos dos filhos a que ele judicialmente estava obrigado e de que a requerente imperiosamente necessitava.

6 - A requerente tentou saber que valores maiores eram esses que recebeu e o diretor da segurança social da Sertã não conseguiu explicar o que a levou a pensar que era do fundo dos alimentos da segurança social, já que na transferência não se mostrava que era subsídio de desemprego.

7 - O denunciante devia abonos dos filhos que utilizou em proveito próprio.

8 - Quando se esclareceu que os montantes se destinavam ao denunciante, como ele devia pensões aos filhos, e tinha outras dívidas para com a requerente no total de € 10.269,90, concordou ele em que fosse deduzida a esta quantia o montante das quantias recebidas de 1.654,00, ficando, assim, ainda ele a dever à requerente a quantia de € 8.615,00.

9 - Mostra isto, com toda a clareza e transparência que a referida quantia foi utlizada em proveito dos filhos da requerente e do denunciante, que este não tem vergonha em mal querer tanto a seus filhos que, deste modo, lhes tira da boca o pão que lhes deve e ainda flagela a mãe exaurida de forças com depressão, sucessivas intervenções cirúrgicas após acidente automóvel e com o sustento e cuidados de três filhos adolescentes.

10 - O denunciante, que apenas paga € 50,00 mensais de alimentos a cada um dos três filhos, tendo já elevada dívida para com eles, está a incorrer na prática do crime de denúncia caluniosa pois que já aceitou o desconto da quantia que reclama e que já lhe foi feito pela requerente.

11 - A requerente apresentou ao denunciante a seguinte discriminação da dívida, após o desconto de € 1.654,90:

(….)

12. Ainda que o denunciante não beneficiasse do desconto - mas irrefutavelmente beneficia - sempre operaria a compensação nos termos legais.

Com efeito, o crédito por alimentos aos filhos do denunciante e arguida, acordado e homologado pelo Tribunal de Família, é exigível judicialmente.

13 - "Tal como prevê o artigo 847.º do Código Civil, a compensação é uma forma de extinção das obrigações quando os obrigados são simultaneamente credor e devedor, operando-se o que, em linguagem coloquial, se apoda de "encontro de contas". 2) Então, o compensante, se demandado (ou interpelado) para cumprir exonera-se do seu débito através da realização do seu crédito, na mesma lide. 3) A compensação legal ali prevista não é automática mas sempre potestativa, por depender de uma declaração de vontade, ou pedido, do titular do crédito secundário" (Ac. STJ de 11/01/2010).

RAZÕES DE DIREITO DE DISCORDÂNCIA RELATIVAMENTE À ACUSAÇÃO

14 - O tipo de crime do artº 209º, nº 1, de que vem acusada a arguida, impõe que haja apropriação ilegítima de coisa alheia que tenha entrado na sua posse ou detenção por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer maneira independente da sua vontade.

15 - Ora, pela descrição factual acima exposta se vê que nunca se verificou apropriação ilegítima de coisa alheia que tenha entrado na sua posse ou detenção por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer maneira independente da sua vontade.

16 - Quando foi conhecida a origem do dinheiro logo se tratou de o destinar aos menores para amortização da divida de alimentos.

17 - Nestes termos, para melhor e mais completo esclarecimento da verdade dos factos, devem ser ouvidas as testemunhas abaixo indicadas, e, apurada toda a verdade, deverá necessariamente ser proferido despacho de não pronuncia da arguida.

18 - Deve ser extraída certidão para procedimento por denúncia caluniosa.

TESTEMUNHAS:

1 - B... ;

2 - C... ;

3 - D... , todos residentes na (...) ;

Em 10 de Fevereiro de 2017 foi proferido despacho que rejeitou o requerimento de instrução do seguinte teor:

O Tribunal é o competente.

 

Findo o inquérito, em 07.07.2016, o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida A... ,imputando-lhe os factos descritos a folhas 220 a 223, suscetíveis de configurar a prática, em autoria material, de um crime de apropriação ilegítima, previsto e punido pelo art. 209.º, n.º1, do Código Penal.

O Ministério Público veio, inicialmente, requerer a aplicação à arguida, em processo sumaríssimo, de pena não privativa da liberdade, mas a arguida manifestou oposição; seguindo-se tramitação sob a forma de processo comum (cfr. folhas 255).

A arguida A... veio requerer abertura de instrução (cfr. folhas 261 a 269).

Pela instância central de instrução criminal de Lisboa foi proferido despacho declarando a incompetência territorial para a instrução e remetendo os autos ao Juízo de Competência Genérica da Sertã (cfr. folhas 274 e 275).

O requerimento para abertura de instrução foi apresentado tempestivamente.

 

O art. 286.º do Código de Processo Penal dispõe, no seu n.º 1, que:

«A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».

Em termos gerais, na fase processual da instrução (autónoma e de carácter facultativo) visa-se a comprovação judicial ou controlo jurisdicional das seguintes decisões:

i) da acusação do Ministério Público, a requerimento do arguido;

ii) da acusação do assistente, em procedimento por crime particular, a requerimento do arguido; e/ ou

iii) do despacho de arquivamento do Ministério Público, nos procedimentos por crime público ou semipúblico, a requerimento do assistente.

O objeto do presente processo encontra-se delimitado pela acusação pública, daí constando, no essencial, a narração dos seguintes factos:

- "( ... ) nos dias 22 de abril de 2015 e 21 de maio de 2015, o Instituto da Segurança Social, IP., transferiu os montantes de €969,40 (novecentos e sessenta e nove euros, e quarenta cêntimos) e €685,50 (seiscentos e oitenta e cinco euros e cinquenta cêntimos), respetivamente, perfazendo o valor global de €1.654,90 (mil, seiscentos e cinquenta e quatro euros, e noventa cêntimos), a título de prestações sociais por desemprego".

- "Que foram creditadas na conta com o n.º0 (...), da "Caixa (...)", titulada pela arguida, e que se encontra associada ao NIB indicado ( ... )".

- "Ao aperceber-se que as referidas importâncias haviam sido creditadas na sua conta bancária, a arguida decidiu utilizá-las em benefício próprio".

- "Apesar de saber que as mesmas não lhe pertenciam e que não existia nenhum motivo para as referidas transferências bancárias se terem concretizado".

- "E sem cuidar de diligenciar pela sua devolução ao respetivo proprietário, como lhe competia".

- "Na sequência desses desígnios, a arguida gastou em proveito próprio tais quantias, efetuando pagamentos e levantamentos".

- "A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o intuito concretizado de se apoderar do dinheiro pertencente a E... , bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que não estava autorizado a integrá-lo no seu património pelo legítimo proprietário".

É certo que a narração fáctica constante da acusação pública se foca nos gastos feitos pela arguida, em proveito próprio, enquanto esta, no requerimento para abertura de instrução, defenda que gastou aquelas quantias monetárias "em alimentos dos filhos", apesar de, no ponto 8.º do requerimento para abertura de instrução, já referir que também "tinha outras dívidas para com a requerente no total de €10.269,90".

A apontada discrepância é absolutamente inócua para efeitos de responsabilização criminal da arguida, e consequentemente sujeição, ou não, da mesma a julgamento, na medida em que o tipo objetivo previsto pelo n.º 1 do art. 209.º do Código Penal (''Quem se apropriar ilegitimamente de coisa alheia que tenha entrado na sua posse ou detenção por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer maneira independente da sua vontade, é punido...") consiste na apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que tenha entrado na posse ou detenção do agente por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou qualquer outra maneira, independente da sua vontade, ou que tenha sido por ele encontrada (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, pp. 576), sendo irrelevante o destino dado, a não ser que tenha existido restituição (cfr. art. 206.º, ex vi do n.º3 do art. 209.º, ambos do Código Penal).

No mais, a versão trazida aos autos no requerimento para abertura de instrução não encontra apoio nas declarações que foram prestadas pela mesma arguida, neste processo; em concreto, no ponto 8.º do requerimento para abertura de instrução, surge alegado que ''Quando se esclareceu que os montantes se destinavam ao denunciante, como ele devia pensões dos filhos, e tinha outras dívidas para com a requerente no total de €10.269,90, concordou ele em que fosse deduzida a esta quantia o montante das quantias recebidas de 1.654,00, ficando, assim, ainda ele a dever à requerente a quantia de €8.615,00"- sublinhado nosso; enquanto a arguida declarou a folhas 155, que "cerca de 2 ou 3 meses depois de na sua conta ter sido depositado os montantes acima referidos o seu ex-marido telefonou-lhe chamando-a de 'ladra ': dizendo-lhe que esta lhe tinha roubado o dinheiro", tendo ainda sido esclarecido pelo ofendido, a folhas 190, que "não pretende fazer qualquer acerto de contas, uma vez que a dívida alegada está a ser paga através de penhora do Tribuna!'.

É, portanto, de concluir pela manifesta improcedência do requerimento para abertura de instrução e encontra-se legalmente vedada a prática de atos inúteis.

A este propósito, não podemos deixar de trazer à colação a relevância da celeridade processual na própria realização das finalidades da punição, sendo consabida a maior eficácia das penas quando a sanção correspondente à conduta desvaliosa é aplicada num período temporalmente próximo da prática dos factos.

Acresce que as garantias de defesa da arguida não serão minimamente "beliscadas", porquanto a realização de audiência de julgamento garante, em pleno, todas essas garantias.

Constata-se, assim, a inexequibilidade da instrução, por falta de objeto; tudo implicando que seja totalmente rejeitado, nos termos do art. 287.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, por inadmissibilidade legal da instrução.

 

Decisão:

Pelo exposto, e nos termos das normas legais acima citadas, decido rejeitar, por ser legalmente inadmissível, o requerimento para abertura de instrução apresentado pela arguida, A... .

Fixo a taxa de justiça devida pela arguida em 1 (uma) UC, dada a escassa complexidade das questões decididas (art. 8.0 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa).

Notifique.

Dê baixa e, oportunamente, remeta os autos para Julgamento.

Inconformada com o teor de tal despacho, dele recorreu a arguida, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1º - A recorrente alegou e tem o direito de provar que, em entendimento com o denunciante, gastou o dinheiro em alimentos dos filhos, abatendo-o ao que ele judicialmente devia - e ainda deve grande parte.

2° - Ora, se a referida quantia foi descontada ao denunciante, abatendo a dívida dele para com a arguida, ficou ele ressarcido do montante exato que lhe era devido.

3° - De mais a mais sempre seria aplicável ao caso o instituto da compensação nos termos do artº 847º do Código Civil visto que denunciante e a denunciada são reciprocamente credor e devedor

4° - Acresce que o denunciante devia abonos dos filhos que utilizou em proveito próprio, não se prontificando a entregá-los pelo que ele é que é apropriador ilegítimo.

5º - Quando se esclareceu que os montantes se destinavam ao denunciante, como ele devia pensões dos filhos, e tinha outras dívidas para com a requerente no total de € 10.269,90, concordou ele em que fosse deduzida a esta quantia o montante das quantias recebidas de l.654,00, ficando, assim, ainda ele a dever à requerente a quantia de € 8.615,00.

6º - O denunciante, que apenas paga € 50,00 mensais de alimentos a cada um dos três filhos, tendo já elevada dívida para com eles, está a incorrer na prática do crime de denúncia caluniosa pois que já aceitou o desconto da quantia que reclama e que já lhe foi feito pela requerente.

7º - A Arguida apresentou ao denunciante a discriminação da dívida depois de ter descontado € 1.654,90, ficando ele ainda a dever € 10.269.90.

8º - O tipo de crime do artº 209º, nº 1, de que vem acusada a arguida, impõe que haja apropriação ilegítima de coisa alheia que tenha entrado na sua posse ou detenção por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer maneira independente da sua vontade.

9° - Não há, nem de perto nem de longe, apropriação ilegítima de coisa alheia, pois que o denunciante, com o destino da quantia aos filhos, se libertou de lhes pagar igual quantia.

10º - No caso, nem acusação devia haver, mas, quanto muito, remessa da questão para o foro cível.

11° - No caso de assim não ser entendido, deve ser produzida a prova oferecida.

12º Não tendo sido indicada norma que decrete a inadmissibilidade legal da instrução, foi violado o artº 287º, nº 3 do Código de Processo Penal.

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o despacha recorrido e ordenando-­se a sua substituição por outro que admita a abertura da instrução, assim se fazendo inteira e sã JUSTIÇA

O recurso foi objecto de despacho de admissão.

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:

1. Por despacho de fls. 286 e ss., ora, objecto de recurso pela Mma Juiz de Instrução foi rejeitado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Arguida, A... .

2. O requerimento de abertura de instrução tinha como objectivo comprovar qual o destino dado ao dinheiro que o I.S.S. havia depositado na conta da Arguida, por erro, e que esta, segundo alega, afectou às prestações em dívida por parte do queixoso/progenitor dos seus filhos, a título de pensão de alimentos.

3. Refere-se no Despacho recorrido que o destino dado ao dinheiro é inócuo para efeitos de responsabilização criminal da arguida, e consequentemente sujeição, ou não, da mesma a julgamento, na medida em que o tipo objectivo previsto pelo n.º 1 do art. 209.º do Código Penal consiste na apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que tenha entrado na posse ou detenção do agente por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou qualquer outra maneira, independentemente da sua vontade, ou que tenha sido por ele encontrada sendo irrelevante o destino dado, a não ser que tenha havido restituição (cfr. art. 206.º, ex vi do n.º 3 do art. 209, ambos do Código Penal.

4. O crime consuma-se com a intenção do agente em não devolver o dinheiro, afectando-o a interesses próprios ou de terceiros.

5. Ao afectar as quantias erroneamente transferidas pelo I.S.S., ao desconto na dívida que o Arguido tinha para consigo a título de pensão de alimentos a Arguida atuou com intenção de não devolver o dinheiro em causa, afectando-o a interesses de terceiros.

6. Não resulta das declarações do ofendido qualquer acordo que tenha existido quanto a eventual «encontro de contas» no que concerne à dívida que o mesmo tem em sede de prestações de alimentos – veja-se o por si relatado a fls. 190 - «não pretende fazer qualquer acerto de contas, uma vez que a dívida alegada está a ser paga através de penhora do Tribunal».

7. A prova que, com a presente Instrução pretendia fazer, em que efectivamente ficou com as quantias em benefício dos filhos, não terá procedência, atendendo, desde logo que, ainda assim se encontra preenchido o elemento do tipo objectivo de ilícito

8. Pelo que a sua eventual responsabilidade criminal sempre será aferida em sede de Julgamento, sendo certo que a Instrução visa comprovar, entre outros, a decisão do Ministério Público em submeter o Arguido a julgamento.

9. Tendo, assim, sido alegados factos porém, que não se abstraem da responsabilidade objectiva pela prática do crime em apreço e, nada mais tendo sido alegado em sede de requerimento de abertura de instrução, este deixa de ter objecto conforme indicado pela Mma Juiz de Instrução.

10. É que se a Arguida utilizou tais montantes para benefício próprio ou de terceiros é uma questão que só a si diz respeito, não deixando, outrossim, de estar verificada, em termos objectivos, a prática do crime.

11. O destino que a Arguida deu ao dinheiro em causa é irrelevante para efeitos do preenchimento do tipo objectivo de ilícito.

12. Em face do que se deixou exposto, consideramos não ter o Tribunal a quo violado qualquer norma ou princípios jurídico-penais ou constitucionais.

Termos em que Vossas Excelências farão a habitual JUSTIÇA!

Nesta Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer do seguinte teor:

Diz o artigo 287.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do CPP que a abertura da instrução pode ser pedida pelo arguido relativamente a factos pelos quais o Ministério Público tiver deduzido acusação, não estando o requerimento sujeito a formalidades especiais, mas devendo conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação e sempre que disso for o caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, espera provar.

Ora resulta do RAI que a arguida discorda dos factos que constam do n.º 12.º e do n.º 13 da acusação pública, ou seja, que tenha gasto em proveito próprio as quantias referidas no n.º 7.º e que não estava autorizada a integrá-las no seu património pelo legítimo proprietário.

Os factos alegados pela arguida no RAI têm relevância ao nível da imputação do crime, tal como na escolha ou na medida da eventual pena que lhe possa vir a ser aplicada em julgamento, não podendo a M.ª JIC antecipadamente decidir, antes de abrir a instrução e de ordenar a produção de prova indicada pela arguida (que só agora foi indicada no processo e que não consta da acusação) que não é de alterar os factos descritos na acusação, porque para invocar a inadmissibilidade legal da instrução parte deste pressuposto.

Além disso, não se pode esquecer que a arguida alega que a conduta do arguido é susceptível de integrar o crime de denúncia caluniosa e que deve ser extraída certidão para procedimento criminal contra o queixoso, parecendo-me precipitado submeter a arguida a julgamento sem que na instrução sejam averiguados os factos e a imputação deduzida pela arguida no RAI, pois um arguido só deve ser submetido a julgamento quando, após produção no inquérito de todas s diligências de prova relevantes (e na instrução quando requerida), forem recolhidos indícios suficiente da prática de crime (art.º 283.º, n.º 1 e 2 e 308.º, n.º 1, ambos do CPP).

2. Nesta conformidade, sou de parecer que o requerimento para abertura de instrução está conforme ao disposto no artigo 287.º, n.º 2 do CPP, devendo ser dado provimento ao recurso da arguida, revogando-se o douto despacho recorrido, ordenando-se, consequentemente, a abertura de instrução.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não foi exercido o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

            II. Apreciação do Recurso

            Como é sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) e, vistas essas conclusões, suscita-se a questão de saber se requerimento de instrução de arguido pode ser rejeitado por razões de mérito; manifesta improcedência do alegado.

            Na tese do despacho recorrido o requerimento de instrução é manifestamente improcedente por não conter matéria que possa por em crise a acusação deduzida, o que corresponde a caso de inadmissibilidade legal da instrução, entendimento contra o qual se insurge a recorrente.

            Vejamos.

            Preceitua o artigo 287º, nº 3 do Código de Processo Penal que o requerimento de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

            No fundamento de rejeição “inadmissibilidade legal da instrução” cabem apenas as seguintes situações:

  • Previsão do artigo 286º, nº 3, formas de processo especiais em que não é admissível instrução;
  • requerimento de instrução por quem carece de legitimidade, a contrario do disposto no artigo 287º, nº 1;
  • falta de cumprimento do disposto no artigo 287º, nº 2 que estipula as formalidades do requerimento de instrução consoante seja requerida pelo arguido ou pelo assistente.

            Ou seja, apenas razões de natureza formal e adjectiva se encontram legalmente previstas como fundamento para rejeição da instrução, já não questões de mérito do próprio requerimento que apenas podem justificar o indeferimento de diligências que hajam sido requeridas por não serem necessários à realização das finalidades da instrução (cfr. artigo 291º, nº 1).

            Quanto às questões de mérito são o cerne do objecto do debate instrutório, única diligência que obrigatoriamente tem de ser realizada (cfr. artigo 289º, nº 1 e 298º do Código de Processo Penal).

            Cremos, pois, ser manifesto, perante as disposições legais citadas que, para além do mais, permitem a realização de instrução apenas para debate do fundamento da acusação, que a eventual manifesta improcedência dos argumentos aduzidos no requerimento de instrução pelo arguido não permite a sua rejeição porque não configura caso de inadmissibilidade legal da instrução.

            Não obstante, sempre se dirá ser manifesto em face do requerimento de instrução que a sua argumentação é, pelo menos, idónea a questionar o elemento subjectivo de tipo de crime imputado à arguida, o que também desmente o argumentário do despacho recorrido.

            Assim, importa conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que admita o requerimento de instrução.


***

            III. Decisão

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pela arguida, revogando o despacho recorrido que deve ser susbtituido por despacho que admita a requerida instrução.

Não há lugar a tributação em razão do recurso.


***

Coimbra, 28 de Fevereiro de 2018
Texto processado e revisto pela relatora

Maria Pilar de Oliveira (relatora)
José Eduardo Martins (adjunto)