Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
115/2000.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: DEPÓSITO IRREGULAR
CONSULADO PORTUGUÊS
ESTRANGEIRO
FORMA
USURA
ANULABILIDADE
OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
ACTUALIZAÇÃO
Data do Acordão: 03/29/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 281º, 550º, 1142º, 1185º, 1205º, 1206º E 207º DO CÓD. CIVIL
Sumário: I – Apesar de se regerem pelo disposto no Regulamento Consular Português aprovado pelo Decreto nº 6.462, de 21/03/1920 (Diário do Governo nº 57, de 21/03/1920), os contratos integrados pelas entregas por parte dos AA. nos Consulados de Portugal nas cidades da Beira e de Maputo, em Moçambique, devem ser qualificados como depósitos irregulares, qualificação esta que vem sendo assumida maioritariamente pela jurisprudência (artºs 1185º, 1205º e 207º do Cód. Civil).

II - O artº 1206º do CC não equipara, pura e simplesmente, o contrato de depósito irregular ao contrato de mútuo, antes manda aplicar àquele as normas relativas a este, «na medida do possível». O que inculca que, apesar de se tratar de uma razoável extensão do regime do mútuo ao depósito irregular, existem normas relativas ao primeiro que não se aplicam ao segundo.

III - No caso de depósitos efectuados em 1976, de quantias monetárias de escudos moçambicanos nos Consulados de Portugal nas cidades da Beira e de Maputo, em Moçambique, tendo estas entidades recebido aqueles depósitos no cumprimento do seu dever de ajuda consular, deve entender-se que as entregas das ditas quantias, bem como o seu recebimento por parte dos Consulados, foram feitas ao abrigo do artº 2º, nº 13 do Regulamento Consular Português, aplicando-se-lhes, pois, essa lei especial, que não exigia que os respectivos contratos fossem celebrados por escritura pública.

IV - Sendo destes concretos contratos que se cuida, submetidos ao indicado regime, quanto a eles não poderá deixar de ser conferida especial força à expressão «na medida do possível» usada no artº 1206º do CC, de modo a concluir que não lhes era aplicável a exigência de forma imposta pelo artº 1143º do CC para os contratos de mútuo nele previstos.

V - Tendo esses contratos por objecto coisas fungíveis, ao R. competia guardá-las e restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (artºs 207º e 1142º).

VI - Preceitua o artº 282º, nº 1 do CC que é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, aproveitando conscientemente a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.

VII - Para que haja negócio usurário, no amplo sentido que a Lei deu a esta categoria, exige-se, como requisito da anulabilidade, a consciência da situação de necessidade, inexperiência, dependência, ou deficiência psíquica de alguém.

VIII - A anulabilidade não resulta, portanto, apenas dum daqueles estados. É necessário que haja a consciência (conhecimento) de que se está a tirar proveito da inferioridade de outrem. Só assim o negócio pode ser havido como usurário.

IX - Em segundo lugar é necessário que a situação de inferioridade de uma das partes tenha sido aproveitada pela outra para alcançar a promessa ou a concessão de um benefício, em proveito desta ou de terceiro.

X - E, por último, exige-se ainda que estes benefícios sejam manifestamente excessivos ou injustificados – determinação que fica entregue, caso por caso, ao prudente arbítrio do julgador.

XI - Em matéria de obrigações pecuniárias vigora entre nós o princípio nominalista (artº 550º CC), segundo o qual o cumprimento dessas obrigações faz-se em moeda que tenha curso legal no País à data em que for efectuado e pelo valor nominal que a moeda nesse momento tiver, salvo estipulação em contrário.

XII - Só excepcionalmente é admitida no nosso ordenamento jurídico a actualização, como resulta do artº 551º, norma onde se prevê que “quando a lei permitir a actualização das prestações pecuniárias, por virtude das flutuações do valor da moeda, atender-se-á, na falta de outro critério legal, aos índices dos preços, de modo a restabelecer, entre a prestação e a quantidade de mercadoria a que ela equivale, a relação existente na data em que a obrigação se constituiu”.

XIII - O devedor desonera-se desde que entregue o número de moedas (com curso legal) necessárias para, atendo o seu valor facial ou nominal, perfazer o montante ou quantia em dívida.

XIV - As desvalorizações ou valorizações da moeda, nomeadamente as alterações do seu valor de troca ou aquisitivo, não interessam. Só interessa o valor nominal da moeda e o seu curso legal no País.

XV - Se houver modificação do sistema monetário, o princípio nominalista significará que o devedor há-de pagar em espécies monetárias do novo sistema, calculadas segundo a norma de equivalência que se tiver estabelecido na lei entre a nova e a antiga moeda.

XVI - Traduzindo-se a obrigação de restituição do R. numa dívida pecuniária e não numa dívida de valor, não há legalmente lugar à actualização ou correcção monetária.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         A…, residente em Quelimane, Moçambique, B…, residente na Beira, Moçambique, C…, residente na Quinta …, D…, residente em …, E…, residente na Rua, F…, residente na Avenida … e G…, residente em …, intentaram, em 19/04/2000, acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra o ESTADO PORTUGUÊS, pedindo que:

a) Se conceda aos AA. … o benefício do apoio judiciário;

b) Sejam declarados nulos por falta de observância da forma legalmente imposta, os contratos que os autores celebraram com o réu, bem como as posteriores renúncias aos juros ou;

c) Sejam as renúncias anuladas, por usura, ou declaradas nulas, por abuso de direito ou;

d) Seja o réu condenado a pagar aos autores os juros de mora vencidos desde a data da interpelação, até à data da devolução dos montantes depositados, os quais se liquidam em esc. 11.097.390$00, bem como os juros que se vencerem desde esta última data, até ao momento do seu efectivo pagamento e, ainda;

e) Seja o réu condenado a restituir aos autores as quantias pagas a título quer de emolumentos, quer de acréscimos, no caso de proceder o pedido da alínea b), que liquidam no montante de esc. 60.564.017$00;

f) Seja o réu condenado a pagar aos autores uma indemnização pelos danos morais e patrimoniais emergentes do não cumprimento atempado da obrigação de restituição dos depósitos, em montante a liquidar oportunamente.

Para tanto alegou, em brevíssima síntese, que no período imediatamente posterior à declaração de independência de Moçambique os AA. entregaram nos Consulados de Portugal no Maputo e na Beira determinadas quantias em escudos moçambicanos, quantias essas que discriminam; que o réu, abusando da sua necessidade, apesar de interpelado para as devolver, apenas lhes restituiu essas quantias, sem qualquer actualização, muitos anos mais tarde, exigindo-lhes ainda, para o efeito, que declarassem que renunciavam aos juros; e que os contratos em que se traduziram aquelas entregas de quantias bem como as declarações de renúncia exigidas pelo R. são inválidas.

O réu, representado pelo Ministério Público, contestou por excepção e por impugnação.

Por excepção, invocou o pagamento; as renúncias aos juros, que defendeu serem válidas e eficazes; a prescrição dos hipotéticos juros de mora; e a caducidade do prazo de arguição da anulabilidade, nos termos do art. 287º do Cód. Civil, uma vez que os depósitos foram realizados em 1976 e as renúncias foram subscritas em 1995 e 1996, anos em que também foram reembolsados os depósitos e atendendo a que a acção foi instaurada em 2000.

Por impugnação, o réu alegou, em resumo, que o Estado Português tinha, por imposição legal, de proceder ao depósito em instituições bancárias das quantias que recebeu em depósito nos Consulados do Maputo e da Beira; que não usou tais importâncias para financiar qualquer actividade, já que os consulados nem são entidades bancárias, nem prosseguem quaisquer fins de semelhante natureza; que o réu nunca assumiu, nem podia, a obrigação de proceder à transferência de tais verbas para fora de Moçambique, já que a Lei interna daquele país o proibia; que os montantes referenciados como depositados pelos AA. foram entregues nos Consulados Gerais de Portugal em Maputo e na Beira com o fim único e exclusivo de aqueles consulados os conservarem em “depósito” e à sua guarda; que a finalidade exclusiva visada, quer pelos AA. quer pelo Réu, com a entrega das quantias em dinheiro foi tão só proteger os capitais entregues nos Consulados pelos autores, atento o clima de insegurança instalado após a independência da República Popular de Moçambique.

Concluiu, pedindo a procedência das excepções e a sua absolvição do pedido.

Os autores replicaram, pugnando pela improcedência das excepções e concluindo como na petição inicial.

Foi proferido despacho saneador em que se entendeu verificarem-se todos os necessários pressupostos processuais e se relegou para final o conhecimento das excepções.

Seleccionou-se a matéria de facto já assente e organizou-se a base instrutória, peças processuais que não foram objecto de reclamações.

Passada a fase da instrução, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo decurso os AA. ampliaram o pedido formulado em e) da parte final da petição inicial, de modo a que o mesmo ficasse com a seguinte redacção:

“Condenar-se o Réu a restituir aos Autores, devidamente actualizadas por aplicação dos índices de preço estabelecidos anualmente pelo Instituto Nacional de Estatística desde as datas dos respectivos depósitos até à data da sentença, as quantias por estes depositadas nos Consulados-Gerais de Portugal na Beira e no Maputo, bem como as quantias pagas, quer a título de emolumentos, quer de acréscimos, no caso de proceder o pedido da alínea b), que no seu conjunto ascendiam a 60.564.017$00 (sessenta milhões quinhentos e sessenta e quatro mil e dezassete escudos) à data da entrada em Juízo da presente acção, correspondente a € 302.092,04 (trezentos e dois mil e noventa e dois euros e quatro cêntimos).”

Tal ampliação foi admitida.

Também no âmbito da audiência de discussão e julgamento foi proferido o despacho de fls. 509 a 521 respondendo aos quesitos da base instrutória e, desse modo, decidindo a matéria de facto controvertida.

Foi depois emitida a sentença de fls. 556 a 598, julgando a acção improcedente e absolvendo o Réu do pedido.

Irresignados, os AA. … interpuseram recurso que foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Os apelantes apresentaram alegação que encerraram com as conclusões seguintes:

O apelado respondeu, defendendo a manutenção do julgado.

Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 691º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as questões seguintes:

         a) Nulidade, por falta da forma legal, dos contratos em que se traduziram as entregas das quantias e das declarações subscritas pelos AA.;

         b) Anulabilidade, por usura, das declarações referidas;

         c) Actualização monetária das quantias entregues;

         d) Obrigação de pagamento de juros;

         e) Indemnização por danos.


***

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         Na 1ª instância foi considerada provada a factualidade seguinte:

1. Após a independência, a antiga colónia de Moçambique entrou em guerra civil e muitos portugueses levantaram o dinheiro que tinham depositado nos bancos e entregaram-no nos Consulados de Portugal no Maputo e na Beira (alínea A) da matéria assente);

2. Os funcionários dos Consulados asseguravam aos portugueses que os valores entregues lhes seriam restituídos em Portugal, logo que o solicitassem (resposta ao n° 1 da base instrutória);

3. Os autores não dispunham de outro meio seguro, para as suas integridade física e própria vida, para pôr a salvo as suas economias (resposta ao nº 2 da base instrutória);

4. O Autor … entregou, em 1978, no Consulado-Geral de Portugal na Beira a quantia de 1.000.000$00 (um milhão de escudos moçambicanos) (alínea B) da matéria assente);

5. O Autor … efectuou, em Março de 1976, duas entregas no Consulado-Geral de Portugal no Maputo, uma no valor de 407.166$00 (quatrocentos e sete mil, cento e sessenta e seis escudos moçambicanos) e outra no valor de 417.000$00 (quatrocentos e dezassete mil escudos moçambicanos) (alínea C) da matéria assente);

6. Tendo pago de emolumentos e acréscimos aos mesmos a importância de 21.684$00 (vinte e um mil, seiscentos e oitenta e quatro escudos moçambicanos) (alínea D) da matéria assente);

7. O Autor … entregou, em 16 de Dezembro de 1976, no Consulado-Geral de Portugal na Beira, a quantia de 200.000$00 (duzentos mil escudos moçambicanos) (alínea E) da matéria assente);

8. Tendo pago de emolumentos e acréscimos aos mesmos a importância total de 10.400$00 (dez mil e quatrocentos escudos moçambicanos) (alínea F) da matéria assente);

9. O Autor … entregou, em 2 de Abril de 1976, no Consulado-Geral de Portugal em Maputo, a quantia de 100.000$00 (cem mil escudos moçambicanos) (alínea G) da matéria assente);

10. Tendo pago de emolumentos e acréscimos aos mesmos a importância total de 5. 200$00 (cinco mil e duzentos escudos moçambicanos) (alínea H) da matéria assente);

11. O Autor … entregou, em 16 de Dezembro de 1976, no Consulado-Geral de Portugal no Maputo, a quantia de 150.000$00 (cento e cinquenta mil escudos moçambicanos) (alínea I) da matéria assente);

12. Tendo pago de emolumentos e acréscimos aos mesmos a importância total de 7.800$00 (sete mil e oitocentos escudos moçambicanos) (alínea J) da matéria assente);

13. A Autora … entregou, no Consulado-Geral de Portugal no Maputo, em 24 de Fevereiro de 1976, o montante de 135.000$00 (cento e trinta e cinco mil escudos moçambicanos) (alínea L) da matéria assente);

14. A autora … entregou, em 25 de Fevereiro de 1976, no Consulado-Geral de Portugal na Beira, a quantia de 1.100.000$00 (um milhão e cem mil escudos moçambicanos) (alínea M) da matéria assente);

15. Tendo pago de emolumentos e acréscimos aos mesmos a importância total de 57.200$00 (cinquenta e sete mil e duzentos escudos moçambicanos) (alínea N) da matéria assente);

16. A finalidade com que os autores procederam aos depósitos dos montantes referidos nos arts. 62, 63, 66, 68, 70, 72 e 73 da petição inicial, nos Consulados Gerais de Portugal em Maputo e na Beira, também foi a de protegerem os capitais entregues, atento o clima de insegurança entretanto instalado, após a independência da República Popular de Moçambique (respostas aos nºs 27 e 28 da base instrutória);

17. Todos estes depósitos foram efectuados mediante o preenchimento de impressos próprios dos Consulados, intitulados Depósitos voluntários de numerário (alínea O) da matéria assente);

18. Nos quais os Autores declararam entregar certas quantias em dinheiro, e o agente consular certificou o recebimento dessas quantias (alínea P) da matéria assente);

19. Sobre o valor entregue, os Autores pagaram 4%, a título de emolumentos, e sobre o valor dos emolumentos pagaram mais 30%, a título de acréscimo (alínea Q) da matéria assente);

20. Não foi convencionado o lugar da restituição; nem o respectivo prazo e também não foi estipulado em que moeda deveria ser feita a restituição (alínea R) da matéria assente);

21. Um escudo moçambicano valia, na data da entrega, um escudo português e esta paridade manteve-se até 25 de Fevereiro de 1977 (alínea T) da matéria assente);

22. O réu manteve sempre, antes da independência do Ex-Estado Português de Moçambique, o curso legal do escudo moçambicano confinado ao território de Moçambique (resposta ao n° 17 da base instrutória);

23. Os Consulados depositaram as quantias recebidas dos Autores no Banco X... e noutras instituições bancárias de Moçambique (resposta ao n° 13 da base instrutória);

24. E depositaram-nas em seu próprio nome, sem consentimento para tal (resposta ao n° 14 da base instrutória);

25. Para que os Bancos as aplicassem e movimentassem como bem entendessem, o que os Bancos efectivamente fizeram (resposta ao n° 15 da base instrutória);

26. Em 1977, o Réu Estado Português acrescentou ao saldo da conta de «depósito» do autor … no Consulado-Geral de Portugal na Beira, a título de juros, o montante de 5.597$60 (cinco mil, quinhentos e noventa e sete escudos e sessenta centavos) (alínea U) da matéria assente);

27. No ano de 1979, o Consulado-Geral da Beira justificava a impossibilidade da continuação do crédito de juros devido à reestruturação da Banca, remetendo em consequência, um certificado de saldo aos respectivos titulares dos “depósitos” (resposta ao nº 19 da base instrutória);

28. O Estado Moçambicano tinha em 1979 vedado aos Consulados Gerais de Portugal, em Moçambique o levantamento das importâncias ali depositadas por cidadãos portugueses não residentes naquele país (resposta ao n° 10 da base instrutória);

29. Por ordens do Estado Moçambicano e de legislação aprovada, para vigorar naquele país, passou a estar vedado o acesso aos depósitos consulares efectuados no Consulado-Geral de Portugal na Beira e no Maputo, quer mediante a proibição de movimento de contas, transferência de conta à ordem para conta a prazo, levantamentos de quantias, bem como de novos depósitos (resposta ao n° 18 da base instrutória);

30. Em 1981, o Ministério dos Negócios Estrangeiros comunicou aos Espoliados de Moçambique, mediante circular, que a entidade competente pelo andamento do processo referente aos “depósitos” efectuados nos Consulados-Gerais em Moçambique era o Instituto para a Cooperação Económica, a quem de futuro se deveriam dirigir para resolver qualquer assunto (alínea V) da matéria assente);

31. Em 1992, foi entregue à Comissão de petições da Assembleia da República uma petição com mais de mil assinaturas, solicitando a restituição dos montantes “depositados” (alínea X) da matéria assente);

32. No dia 8 de Setembro de 1994, foi publicada no jornal “Correio da Manhã”, uma nota informativa do Gabinete de Apoio aos Espoliados, anunciando o pagamento de depósitos efectuados por cidadãos portugueses nos Consulados-Gerais de Portugal, nas cidades da Beira e Maputo, decorrentes do processo de descolonização (alínea Z) da matéria assente);

33. Esta entidade do Ministério dos Negócios Estrangeiros informou os espoliados que tinha actuado junto das suas representações consulares na Beira e no Maputo no sentido de estas lhe enviarem um documento com a relação dos titulares de depósitos consulares, para desta forma se proceder à restituição dos mesmos (alínea AA) da matéria assente);

34. O conteúdo dessa nota informativa consistia na descrição de uma série de documentos comprovativos da realização desses mesmos depósitos, e mediante a sua apresentação o Estado possibilitaria a entrega dos montantes depositados (alínea BB) da matéria assente);

35. Constava ainda desses elementos a exigência de uma declaração assinada pelos destinatários com um texto pré-definido pelo Estado Português (alínea CC) da matéria assente);

36. Esta declaração tinha um conteúdo de um recibo, identificando o devedor, o credor, a quantia em dívida e a que título tinha sido contraída a dívida (alínea DD) da matéria assente);

37. Continha ainda, como elemento condicional obrigatório da restituição dos montantes «depositados», uma declaração referente aos «depósitos» (alínea EE) da matéria assente);

38. O conteúdo da declaração, expressamente redigido e constante em minuta enviada pelo Gabinete de Apoio aos Espoliados, constante de fls. 57 dos autos, era do seguinte teor: «(...) declara que nada mais reclamará do Estado Português, quanto aos depósitos efectuados naquele Consulado, a partir da data em que me for entregue o montante acima referido» (alínea FF) da matéria assente);

39. Os Autores assinaram as respectivas declarações (alínea GG) da matéria assente);

40. As declarações não foram assinadas pelos Autores perante notário, nem perante outro oficial dotado de fé pública (alínea HH) da matéria assente);

41. Os autores assinaram as declarações referidas em FF) e GG) como forma de, naquele momento, lhes serem restituídos os montantes que haviam depositado, uma vez que o Estado condicionou tal restituição à subscrição dessas declarações (respostas aos nºs 20 e 24 da base instrutória);

42. Os Autores apenas foram reembolsados das importâncias entregues cerca de vinte anos mais tarde, montantes esses que lhes foram devolvidos ao par, nos seguintes termos:

- … a quantia de 1 000 000$00, em 96-06-19;

- … a quantia de 200 000$00, em 95-10-27;

- … a quantia de 100 000$00, em 95-10-27;

- … a quantia de 150000$00, em 95-10-24;

- … o valor de 135 000$00, em 96-03-05;

- … o montante de 1 100 000$00 em 95-10-03.

(alínea S) da matéria assente);

43. No dia 14 de Junho de 2004, foi elaborado um despacho conjunto dos Ministérios das Finanças (Maria Manuela Ferreira Leite), dos Negócios Estrangeiros (Teresa Patrício Gouveia) e da Segurança Social (António Bagão Félix), através do qual era constituído um grupo de trabalho, pelo prazo de um ano, com vista à resolução dos «(…) problemas e injustiças que afectam um significativo número de portugueses que se viram forçados a regressar a Portugal durante e por causa do processo de descolonização.» (alínea II) da matéria assente);

44. No dia 3 de Fevereiro de 2005, foi publicado no Diário da República, II Série, um despacho bastante similar ao datado de 14 de Junho de 2004, desta feita datado de 4 de Janeiro de 2005 e assinado pelo Ministro das Finanças e da Administração Pública (António José de Castro Bagão Félix), pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas (António Victor Martins Monteiro) e pelo Ministro da Segurança Social, da Família e da Criança (Fernando Mimoso Negrão) (alínea JJ) da matéria assente);

45. Nos termos deste novo despacho de 4 de Janeiro de 2005, o Governo volta a afirmar que não pode, «em obediência à sua filosofia humanista e personalista, deixar de tornar as iniciativas que vão ao encontro do propósito de tentar reparar, tanto quanto possível, injustiças que foram consumadas» durante e por causa do processo de descolonização, pelo que se determinou a criação, «na dependência do Ministro das Finanças e da Administração Pública, de um grupo de trabalho que tem por objectivo estudar e propor soluções para as questões pendentes relativas aos cidadãos portugueses residentes nos antigos territórios ultramarinos, no período compreendido entre 25 de Abril de 1974 e a data da transferência plena de soberania para os novos Governos dos Estados sucessores, cujos direitos ou interesses legítimos tenham sido directamente afectados pelos processos de descolonização» (alínea LL) da matéria assente).

 


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         2.2. De direito

         2.2.1. Nulidade por falta de forma legal

         Foi na sentença entendido que, apesar de se regerem pelo disposto no Regulamento Consular Português aprovado pelo Decreto nº 6.462, de 21/03/1920 (Diário do Governo nº 57, de 21/03/1920), então em vigor[1], os contratos integrados pelas entregas por parte dos AA. das quantias discriminadas na factualidade provada nos Consulados de Portugal nas cidades da Beira e de Maputo, em Moçambique, devem ser qualificados como depósitos irregulares.

         Os recorrentes não discordam dessa qualificação, que vem sendo assumida maioritariamente pela jurisprudência[2], também nós não vendo, face à factualidade provada e ao disposto nos artºs 1185º, 1205º e 207º do Cód. Civil[3], fundamento para a afastar.

         Prescrevendo o artº 1206º que se consideram aplicáveis ao depósito irregular, na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo e dispondo o artº 1143º, na redacção vigente na data das entregas das quantias, que os contratos de mútuo de valor superior a esc. 20.000$00 (vinte mil escudos) só eram válidos se fossem celebrados por escritura pública, sustentam os recorrentes que os contratos outorgados através das mencionadas entregas de quantias em dinheiro enfermam de nulidade, nos termos do artº 220º. E que as declarações que assinaram – cfr. nºs 35 a 41 do elenco da factualidade provada – porque também não revestiram a forma de escritura pública, são igualmente nulas, nos termos do artº 221º, nº 2.

         Vejamos.

         O artº 1206º não equipara, pura e simplesmente, o contrato de depósito irregular ao contrato de mútuo, antes manda aplicar àquele as normas relativas a este, «na medida do possível». O que inculca que, apesar de se tratar de uma razoável extensão do regime do mútuo ao depósito irregular[4], existem normas relativas ao primeiro que não se aplicam ao segundo[5].

         No caso concreto em apreciação, tratou-se de depósitos efectuados pelos recorrentes, em 1976, de quantias monetárias de escudos moçambicanos nos Consulados de Portugal nas cidades da Beira e de Maputo, em Moçambique, tendo estas entidades recebido aqueles depósitos no cumprimento do seu dever de ajuda consular. As entregas das ditas quantias por parte dos recorrentes, bem como o seu recebimento por parte dos Consulados, foram feitas ao abrigo do artº 2º, nº 13 do Regulamento Consular Português, já atrás referido, aplicando-se-lhes, pois, essa lei especial, que não exigia que os respectivos contratos fossem celebrados por escritura pública[6].

         É destes concretos contratos que se cuida nestes autos, submetidos ao indicado regime, pelo que, quanto a eles, não poderá deixar de ser conferida especial força à expressão «na medida do possível» usada no artº 1206º, de modo a concluir que não lhes era aplicável a exigência de forma imposta pelo artº 1143º para os contratos de mútuo nele previstos.

         A circunstância, esgrimida pelos recorrentes, de os documentos juntos com a petição inicial sob os nºs 10 e 11 (fls. 49 e 50 dos autos), relativos às entregas de quantias pelas apelantes M... e N... não estarem, diferentemente dos restantes, intitulados de «Depósitos Voluntários em Numerário», afigura-se-nos irrelevante, não afectando minimamente a validade desses depósitos. Apesar de intitulados de «Recibos», são, como do respectivo teor resulta claramente, documentos equivalentes aos demais.

         Tanto assim que, após os articulados, se deu logo como assente [cfr. al. O)], sem reacção dos AA., constando, pois, da factualidade provada, que todos os depósitos dos AA. foram efectuados mediante o preenchimento de impressos próprios dos Consulados, intitulados Depósitos Voluntários de Numerário.

         Mercê, por um lado, da circunstância de o Regulamento Consular Português ser lei especial relativamente ao Código Civil que é lei geral e, por outro, da salvaguarda resultante da expressão «na medida do possível» constante do artº 1206º, é nosso entendimento que, no caso, tendo os depósitos sido feitos ao abrigo do Regulamento Consular Português então vigente, está afastada a aplicação da exigência de forma imposta pelo artº 1143º.

         O que leva á conclusão de que os depósitos em causa não são, contra o defendido pelos recorrentes, nulos por falta de forma[7].

         Os recorrentes assinaram as declarações a que aludem os nºs 35 a 41 do elenco da factualidade provada, nas quais, após identificarem os respectivos depósitos (data, Consulado e montante), declararam que nada mais reclamariam do Estado Português, quanto a depósitos efectuados nos Consulados indicados, a partir da data em que lhes fosse “entregue o montante acima referido”.

         Não se trata, contra o que os recorrentes sustentam, de mero compromisso, violável, de não reclamar outras importâncias ao Estado Português.

         Ao propor-se restituir as quantias depositadas exigindo um documento assinado pelos destinatários, com o conteúdo de um recibo e contendo, como elemento condicional obrigatório da restituição, o texto «(…) declara que nada mais reclamará do Estado Português, quanto aos depósitos efectuados naquele Consulado, a partir da data em que me for entregue o montante acima referido», o R. apenas estava a esclarecer qual o conteúdo da obrigação que entendia recair sobre si e em que termos pretendia cumprir.

         E ao aceitarem tais termos, os recorrentes deram quitação total, abdicando de qualquer outra exigência e reconhecendo que o R. nenhuma outra obrigação tinha para com eles.

         A proposta feita pelo R. e a aceitação da mesma pelos recorrentes integra um negócio declarativo (artºs 224º e seguintes), a que poderá chamar-se reconhecimento negativo de dívida[8].

         Atribua-se à declaração dos recorrentes a natureza jurídica que se atribuir – renúncia abdicativa, remissão, ou reconhecimento negativo de dívida[9] – o certo é que ao emitirem-na os recorrentes vincularam-se e, a não ser que logrem demonstrar a sua falta de validade, carecem de fundamento para demandar o R. exigindo o cumprimento de obrigações que anteriormente reconheceram não existirem.

         Um dos fundamentos invocados pelos recorrentes para a pretendida invalidade das declarações em apreciação é a falta de forma legal.

         Contudo, atenta a conclusão a que atrás se chegou relativamente à inexistência de nulidade dos depósitos por falta de forma e o disposto no artº 221º, nº 2, forçoso se torna concluir também que – mesmo que revistam a natureza de estipulações posteriores aos depósitos, como sustentam os recorrentes – as declarações em causa não careciam de ser formalizadas por escritura pública, bastando os documentos particulares que as integram[10] e [11].

        

         Não se reconhece, pois, razão aos recorrentes quanto à questão acabada de analisar.


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         2.2.2. Anulabilidade, por usura, das declarações

         Contrariando a decisão da 1ª instância, os recorrentes insistem na tese que sustentam desde o início da acção, de que, não sendo nulas por falta de forma, as declarações que subscreveram serão, então, anuláveis por usura.

         Preceitua o artº 282º, nº 1 que é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, aproveitando conscientemente a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.

         Como ensinam P. Lima – A. Varela[12], “para que haja negócio usurário, no amplo sentido que a Lei deu a esta categoria, exige-se, como requisito da anulabilidade, a consciência da situação de necessidade, inexperiência, dependência, ou deficiência psíquica de alguém. A anulabilidade não resulta portanto, apenas dum daqueles estados. É necessário que haja a consciência (conhecimento) de que se está a tirar proveito da inferioridade de outrem. Só assim o negócio pode ser havido como usurário”.

         “Em segundo lugar – continuam os mesmos Mestres – é necessário que a situação de inferioridade de uma das partes tenha sido aproveitada pela outra para alcançar a promessa ou a concessão de um benefício, em proveito desta ou de terceiro. E, por último, exige-se ainda que estes benefícios sejam manifestamente excessivos ou injustificados – determinação que fica entregue, caso por caso, ao prudente arbítrio do julgador”.

         Concordando com a 1ª instância, afigura-se-nos que, em face da factualidade provada, nenhum dos requisitos se verifica.

         Em primeiro lugar, não está demonstrado que o R. tenha, com os depósitos dos recorrentes, obtido qualquer benefício.

         Com efeito, o R., por si ou através dos respectivos Consulados, não exerce a actividade bancária, não tendo os depósitos recebidos dos recorrentes sido efectuados no seu interesse. Antes o foram, inquestionavelmente, no interesse dos depositantes.

         A obrigação principal do R., como depositário das quantias em escudos moçambicanos recebidas dos recorrentes era guardá-las e, quando tal lhe fosse exigido, restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (artºs 1206º e 1142º). Cabia ao R. decidir a melhor forma de guardar aquelas quantias, nada impedindo que optasse, como optou, mesmo sem consentimento dos depositantes, por sub-depositá-las em instituições bancárias[13]. E, embora nada o obrigasse a tal, há indícios nos autos de que o R., enquanto os sub-depósitos renderam juros, não se apropriou deles, antes os tendo acrescentado ao saldo das contas de «depósito» (cfr. nºs 26 e 27 do elenco da factualidade provada).

         E, apenas tendo a obrigação de restituir escudos moçambicanos (ou os correspondentes meticais, moeda que substituiu aquela), acabou por restituir uma quantidade de escudos portugueses numericamente igual à recebida em escudos moçambicanos, o que se traduziu numa vantagem para os recorrentes.

         Repetindo-nos, não está demonstrado, portanto, que o R. tenha obtido para si ou para terceiro qualquer benefício excessivo ou injustificado.

         E também não está demonstrado, por um lado, que os recorrentes estivessem em qualquer das situações previstas no nº 1 do artº 282º e, consequentemente, por outro, que o R. delas tivesse conhecimento para delas se aproveitar.

Há que ter em atenção que a situação dos recorrentes que releva é a existente na década de noventa do século passado, quando ocorreu a restituição das quantias e a assinatura da declaração e não a verificada na década de setenta do mesmo século, quando as quantias foram entregues nos Consulados. E é a situação dos recorrentes, eles próprios, e não a situação genérica dos “espoliados de Moçambique”.

Ora, os recorrentes alegaram que estavam em situação de necessidade e essa factualidade foi levada à base instrutória. Contudo, como resulta das respostas negativas aos quesitos formulados (quesitos 21º a 26º), os recorrentes não lograram fazer prova dessa factualidade, sendo certo que sobre si recaía o respectivo ónus (artº 342º, nº 1).

Acresce que a subscrição das declarações de quitação por parte dos recorrentes e a restituição das quantias por parte do R. tiveram lugar entre 1994 e 1996 e a acção apenas foi intentada em 2000, muito para além do prazo de arguição da anulabilidade previsto no nº 1 do artº 287º (um ano).

Os recorrentes sustentam que a invocação pelo R. da caducidade decorrente da ultrapassagem desse prazo de arguição constitui abuso de direito.

Embora o conhecimento desta questão esteja prejudicado pela solução dada à anterior, sempre se dirá que aos recorrentes não assiste razão.

Com efeito, os despachos referidos nos nºs 43 a 45 do elenco dos factos provados são muito posteriores à propositura da acção e à apresentação da contestação e nada garante que neles o R. estivesse a incluir as situações dos recorrentes ou outras análogas, ou seja, que entendesse que aos recorrentes tivesse sido feita qualquer injustiça.

Por isso, nem os recorrentes ultrapassaram o prazo previsto no nº 1 do artº 287º por causa de qualquer esperança depositada no teor desses despachos, nem o R., ao arguir a caducidade decorrente do excesso daquele prazo, incorreu em abuso de direito, nomeadamente na modalidade de venire contra factum proprium (artº 334º).


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         2.2.3. Actualização monetária

         Como atrás se deixou consignado, os contratos celebrados entre os recorrentes e o R. por força das entregas pelos primeiros e do recebimento pelo segundo das quantias em escudos moçambicanos devem ser qualificados como contratos de depósito irregular (artºs 1206º e 1207º).

         Tendo esses contratos por objecto coisas fungíveis, ao R. competia guardá-las e restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (artºs 207º e 1142º).

         Como não foi estipulado em que moeda deveria ser feita a restituição (nº 20 do elenco dos factos provados), ao R. competia restituir outro tanto do mesmo género e qualidade do recebido, isto é, quantidades de escudos moçambicanos (ou os correspondentes meticais, moeda que substituiu aquela) numericamente iguais às recebidas.

         Tendo a restituição sido feita em escudos portugueses, em quantidades correspondentes às recebidas em escudos moçambicanos, a questão da moeda em que devia ser efectuada a prestação está ultrapassada[14].

         Em matéria de obrigações pecuniárias vigora entre nós o princípio nominalista (artº 550º), segundo o qual o cumprimento dessas obrigações faz-se em moeda que tenha curso legal no País à data em que for efectuado e pelo valor nominal que a moeda nesse momento tiver, salvo estipulação em contrário.

         Só excepcionalmente é admitida no nosso ordenamento jurídico a actualização, como resulta do artº 551º, norma onde se prevê que “quando a lei permitir a actualização das prestações pecuniárias, por virtude das flutuações do valor da moeda, atender-se-á, na falta de outro critério legal, aos índices dos preços, de modo a restabelecer, entre a prestação e a quantidade de mercadoria a que ela equivale, a relação existente na data em que a obrigação se constituiu”.

         Como referem P. Lima e A. Varela[15], citando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/10/1979[16], “o devedor desonera-se desde que entregue o número de moedas (com curso legal) necessárias para, atendo o seu valor facial ou nominal, perfazer o montante ou quantia em dívida”.

         Prosseguindo, ensinam os referidos Autores que “as desvalorizações ou valorizações da moeda, nomeadamente as alterações do seu valor de troca ou aquisitivo, não interessam. Só interessa o valor nominal da moeda e o seu curso legal no País”. E, “se houver modificação do sistema monetário, o princípio nominalista significará que o devedor há-de pagar em espécies monetárias do novo sistema, calculadas segundo a norma de equivalência que se tiver estabelecido na lei entre a nova e a antiga moeda”.

         Traduzindo-se a obrigação de restituição do R. numa dívida pecuniária e não numa dívida de valor, não há legalmente lugar à pretendida actualização ou correcção monetária, não podendo, por conseguinte, também quanto a esta questão, dar-se razão aos recorrentes[17].


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         2.2.4. Juros

         Não tendo entre os recorrentes e o R. sido estipulado prazo para os «depósitos» (cfr. nº 20 do elenco dos factos provados), o R. só era obrigado a restituir após interpelação para esse efeito, só a partir desse momento entrando em mora (artº 805º).

         Embora tenham alegado factos no sentido de que realizaram a referida interpelação, os recorrentes não lograram prová-los, como decorre das respostas negativas aos quesitos 5º a 9º da base instrutória.

         Os recorrentes, confessando que não foi feita prova directa de que, como haviam alegado, tenham reclamado ao R. as quantias depositadas nos Consulados logo que chegaram a Portugal, sustentam que tal matéria devia ter sido dada como provada, por recurso ao senso comum, aos factos que são do conhecimento público, à experiência do Juiz e às presunções, que permitem concluir dos factos conhecidos aqueles que o não são (conclusão 59ª).

         E esgrimem argumentos que, sem o dizerem expressamente, apelam à alteração da decisão sobre a matéria de facto no tocante à existência da questionada interpelação, nomeadamente, no que tange à resposta negativa ao quesito 5º, onde se perguntava se “logo que chegaram a Portugal, os Autores reclamaram ao Réu as quantias depositadas nos Consulados”.

         A alteração pela Relação da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto está limitada pelo estatuído no artº 712º do Cód. Proc. Civil, sendo que “in casu” se não verifica qualquer das situações previstas nessa disposição legal.

         E, tendo a matéria em causa sido levada à base instrutória e, consequentemente, tendo sido objecto de produção de prova perante o tribunal e de contraditório das partes, não podem as respostas que foram dadas aos quesitos respectivos ser alteradas com base em presunções judiciais[18].

         Os recorrentes fazem grande alarde duma passagem da obra Direito das Obrigações, de Ribeiro de Faria, citada na sentença recorrida, onde se afirma que, “em termos gerais, nas obrigações sujeitas a um prazo certo, é, em princípio, dispensada a interpelação, ao contrário do que sucede com as chamadas obrigações puras, que são exigíveis desde o momento da sua constituição. Nestas, contudo, a mora do devedor só existe a partir do momento em que é interpelado, sendo certo que «a interpelação só é dispensável quando o devedor não precisa de ser lembrado para cumprir»”. E, com o argumento de que o R. não precisava de ser lembrado para cumprir, concluem que a interpelação era dispensável, o que implicaria a condenação do R. no pagamento de juros de mora.

         A nosso ver, o devedor que não precisa de ser lembrado para cumprir é o que se enquadra em qualquer das situações previstas no nº 2 do artº 805º – e o R. não se enquadra nessas previsões – ou o que cumpre sem interpelação. Mas, neste último caso, em que se pode incluir o R., é manifesto que não chegou a existir mora e que, portanto, não há lugar a juros (artº 806º).

         Embora o R. não pudesse deixar de saber que tinha a obrigação de restituir as quantias recebidas em depósito, não lhe era exigível, não tendo sido estipulado prazo, que, com vista ao cumprimento, procedesse a averiguações no sentido de saber se os recorrentes eram vivos ou mortos, se regressaram ou não a Portugal, quando o fizeram e onde era o seu paradeiro.

         Ou seja, em resumo, tendo procedido à restituição das quantias e sem que se tenha provado que tivesse sido anteriormente interpelado para cumprir, o R. não chegou a constituir-se em mora, não havendo fundamento para o condenar no pagamento de juros.

         Também quanto a esta questão se nega razão aos recorrentes.


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         2.2.5. Indemnização por danos

Os recorrentes haviam pedido ainda a condenação do R. a pagar-lhes uma indemnização pelos danos morais e patrimoniais emergentes do não cumprimento atempado da obrigação de restituição dos depósitos, em montante a liquidar oportunamente.

Não tendo, também neste ponto, logrado êxito na 1ª instância, insistem no recurso (conclusão 70ª) em que “Se esse Venerando Tribunal não conceder provimento à pretensão dos recorrentes de correcção monetária das verbas depositadas, mas considerar que o Réu restituiu as verbas tardiamente e, em consequência, o condenar a pagar juros de mora, deve então o Réu ser condenado ainda a compensar os apelantes por todos os danos morais, sofridos com a atraso na restituição das verbas a que estava obrigado, a liquidar em execução de sentença”.

         Essa pretensão não encontra fundamento, desde logo porque, como resulta de quanto atrás se deixou dito, se entende que o R. não restituiu as verbas tardiamente e que não tem obrigação de suportar quaisquer juros. Isto é, considera-se que não houve retardamento ilícito da prestação por parte do R., o que retira causa ao pagamento da pretendida indemnização com base em responsabilidade contratual.

         E se os recorrentes quiserem alicerçar o seu pedido de indemnização em responsabilidade extracontratual, igualmente se não vislumbra qualquer acto ilícito por parte do R. susceptível de gerar aquele tipo de responsabilidade.

         Aliás, para que o R. pudesse ser condenado no pagamento de qualquer indemnização, mesmo em montante a liquidar posteriormente, era mister que se tivessem provado danos, ainda que de valor não apurado (artº 661º, nº 2 do Cód. Proc. Civil).

         Sucede, contudo, que, recaindo sobre os recorrentes o respectivo ónus de prova, nenhuns danos eles provaram, pelo que, também por esta razão, sempre a pretensão em causa teria de soçobrar.

         Não logram, pois, êxito as conclusões da alegação dos recorrentes, o que conduz à improcedência da apelação e à manutenção da bem elaborada sentença recorrida.


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         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a sentença recorrida.

         As custas são a cargo dos recorrentes, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que gozam.


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Artur Dias (Relator)
Jaime Ferreira
Jorge Arcanjo


[1] Esse diploma veio a ser revogado pelo artº 2º do Decreto-Lei nº 381/97, de 30/12, cujo artº 1º aprova o novo Regulamento Consular.
[2] Cfr. Acórdãos do STJ de 25/11/1992 (Proc. 082051, relatado pelo Cons. Santos Monteiro) e de 21/05/1998 (Proc. 98A165, relatado pelo Cons. Fernando Fabião); e Acórdãos da Relação de Lisboa de 18/12/2002 (Proc. 9155/2002-7, relatado pelo Des. Abrantes Geraldes) e de 28/02/2008 (Proc. 10570/2007-2, relatado pelo Des. Ezaguy Martins), todos in www.dgsi.pt. O Acórdão do STJ de 12/02/2004 (Proc. 03B4195, relatado pelo Cons. Oliveira Barros, também in www.dgsi.pt) opta por considerá-los depósitos “sui generis”, mas não deixa de analisá-los também sob a perspectiva dos depósitos irregulares.
[3] Diploma a que pertencem todas as disposições legais adiante citadas sem menção da origem.
[4] Prof. Almeida e Costa, Noções de Direito Civil, Coimbra, 1991, pág. 374.
[5] Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, Almedina, 1998, págs. 183/184 e Pires de Lima – Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, pág. 700.
[6] Constando o Regulamento Consular Português de Decreto e tendo o Código Civil sido aprovado por Decreto-Lei (nº 47.344, de 25/11/1966), estamos perante leis de igual hierarquia, a primeira especial e a segunda geral, pelo que, de acordo com o artº 7º, nº 3, esta não revogou aquela.
[7] Cfr. Ac. STJ de 12/02/2004, já atrás mencionado.
[8] Pires de Lima – A. Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 2º edição, pág. 136 e A. Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 3ª edição, pág. 217.
[9] Qualificação jurídica que dependeria de factos não alegados nem provados, como, v. g., a convicção dos recorrentes, ao assinarem a declaração, de estarem a prescindir de direitos que entendiam ter ou a reconhecer que não tinham outros direitos.
[10] A circunstância de constar da minuta da declaração exigida pelo R. que as assinaturas deveriam ser reconhecidas por notário e ter sido dado como provado que as declarações não foram assinadas pelos Autores perante notário, nem perante outro oficial dotado de fé pública, apresenta-se-nos como irrelevante. Sempre se dirá, no entanto, que do cotejo das declarações emitidas pelos recorrentes, constantes, por fotocópias autenticadas, de fls. 111, 113 e 114 dos autos, se verifica que as assinaturas que exibem se mostram reconhecidas por notário (ainda que apenas por semelhança).
[11] Cfr. ainda o Ac. do STJ de 02/03/2011 (Proc. 5227/09.7TVLSB.L1.S1, relatado pelo Cons. Sérgio Poças), in www.dgsi.pt/jstj.
[12] Código Civil Anotado, Volume I, 3ª edição, pág. 259.
[13] Em alguns casos, em função dos montantes das quantias recebidas, os Consulados estavam até obrigados pelo Regulamento Consular (artº 626º, § único) a confiá-las a um “banco de reconhecido crédito”, onde ficariam “depositadas, em conta corrente simples, também à ordem do Consulado”.
[14] Com vantagem, como é notório – cfr. Ac. RL de 28/02/2008, já citado – para os recorrentes.
[15] Código Civil Anotado, Volume I, 3ª edição, pág. 528.
[16] Anotado por Vaz Serra, na R. L. J., Ano 113º, págs. 113 e seguintes.
[17] Neste sentido vejam-se os Acórdãos do STJ de 25/11/1992 e 21/05/1998, bem como os Acórdãos da Rel. de Lisboa de 18/12/2002 e de 28/02/2008, já atrás referidos. Em sentido oposto apenas encontrámos, em www.dgsi.pt/jtrl, o Ac. Rel. Lisboa de 22/01/2008 (Proc. 9163/2007-1, relatado pelo Des. Eurico Reis).
[18] Cfr. Acórdão do STJ de 25/03/2004, in R.L.J., Ano 135º, pág. 113 e seguintes e respectiva anotação de Calvão da silva; e Acórdãos do mesmo Tribunal de 24/05/2007 (Proc. 07A979, relatado pelo Cons. Silva Salazar) e de 22/01/2009 (Proc. 08B3404, relatado pelo Cons. Santos Bernardino), ambos in www.dgsi.pt/jstj.