Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
112/05.4TBTND-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARVALHO MARTINS
Descritores: INVENTÁRIO
INCIDENTE
RECLAMAÇÃO
RELAÇÃO DE BENS
REVELIA
CONFISSÃO
NOTIFICAÇÃO
MANDATÁRIOS
Data do Acordão: 02/14/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.229-A, 260-A, 1349 CPC
Sumário: 1.- O inventário é um processo complexo, de natureza mista, tanto graciosa como contenciosa, inserindo-se o incidente de reclamação contra a relação de bens no âmbito contencioso.

2. Acusada a falta de relação de bens em processo de inventário, se o cabeça de casal notificado, nada diz no prazo legal, tem-se por confessada a existência de tais bens, devendo proceder-se ao aditamento da relação de bens apresentado.

3. Integra o conceito de “requerimento autónomo”, previsto no art.229-A nº1 do CPC ( redacção do DL nº 183/2000 de 10/8 ), qualquer peça (entendida esta em sentido amplo, como os requerimentos recursivos, as alegações, as contra-alegações, os requerimentos probatórios, etc...) que seja emanada do escritório de um dos mandatários judiciais para ser junta ao processo e que a parte contrária deva tomar conhecimento, nomeadamente para poder exercer o princípio do contraditório ou para preparar a sua defesa.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A Causa:

A (…), Cabeça-de-Casal nos autos de Inventário que correm termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Tondela - Proc. nº 112/05.4TBTND-A - V/Ref 1277083 - ; por não se conformar com a decisão proferida no incidente da reclamação à relação de bens que pôs termo a este incidente, do mesmo vem agora interpor o competente recurso de apelação, alegando e concluindo que:

I. A reclamação à relação de bens apresentada pela reclamante e co- interessada nos presentes autos de inventário configura um incidente do inventário com regularização expressa.

II. Assim, e de acordo com a norma adjectiva do artigo 1349º, n 1 do CPC, quando seja deduzida reclamação contra a relação de bens é o cabeça-de-casal notificado para relacionar os bens em falta ou dizer o que se lhe oferecer sobre a matéria da reclamação, no prazo de dez dias.

III. No âmbito deste incidente do inventário esta notificação não se mostra feita.

IV. Razão por que a decisão recorrida enferma de nulidade, a qual deve, aliás, ser conhecida oficiosamente nos termos do artigo 202º do CPC..

V. Acresce referir que a notificação feita nos termos do artigo 229º-A do CPC pela reclamante não pode operar nos termos e para os efeitos do artigo l349º, nº 1, do mesmo diploma legal dado ter sido absolutamente anómala e indevida,

VI. Desde logo porque tal notificação não continha a advertência expressa, prevista na norma do artigo 1349º, n 1 do CPC.

VII. E, por outro lado, as notificações a que alude o artigo 229ºA do CPC apenas são feitas de actos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes após a notificação da contestação do Réu ao Autor, o que não é o caso dos autos.

VIII. A douta decisão recorrida violou assim as normas dos artigos 1334º l349º e 229º-A do CPC.

M (…) notificada das alegações do recorrente, veio apresentar as suas contra-alegações, que pugnaram pela improcedência do recurso interposto, por sua vez concluindo que:

- Importa ainda referir que o recorrente suporta a sua posição com base em preceitos legais da parte geral do CPC, o que é contraditório, já que entende que não tem aplicação o preceituado no artigo 229AdoCPC.

- Tendo o cabeça de casal sido notificado da reclamação da relação de bens e não tendo apresentado resposta nos termos do preceituado no artigo 1349 n°. i, bem andou a Meritíssima Juiz ao dar os factos constantes da reclamação da relação de bens como confessados por aplicação do preceituado no artigo 484 n°.1 do CPC.

- Tal como conclui o recorrente dúvidas não há que a reclamação da relação de bens configura um incidente.

- Daí que, ao fundamento da Meritíssima Juiz acresce ainda o preceituado no artigo 1334° do CPC, o qual manda aplicar à tramitação dos incidentes do processo de inventário, não especialmente regulados na lei, o disposto nos artigos 302° a 304° do CPC, o que impõe que o julgador, no silêncio do recorrente, dê como confessados os factos constantes da reclamação da relação de bens.

- Termos em que, deve negar-se provimento ao recurso.

II. Os Fundamentos:

Colhidos os Vistos legais, cumpre decidir:

São ocorrências materiais, com interesse para a decisão da causa:

Nos presentes autos de inventário, para partilha dos bens do casal dissolvido, requerido por A (…), o qual foi nomeado cabeça-de-casal, veio a requerida, M (…) reclamar contra a relação de bens apresentada, pelo cabeça-de-casal, nos termos constantes de fls. 24 e seguintes.

Assim, o requerido/reclamante, vem impugnar o relacionamento do passivo, considerando que devem ser excluídas as verbas 1, 2, e 13 da relação de bens e acusar a falta de relacionamento da auto caravana a que alude a verba 3 e cujo relacionamento requer.

Ofereceu prova documental e testemunhal.

-

Apresentada a relação de bens nos presentes autos e notificado da apresentação da mesma veio a requerida reclamar da mesma por requerimento electrónico que deu entrada na secretaria deste Tribunal em 16/06/2011;

 no qual consta a declaração electrónica de que foi cumprido o artigo 229°-A do CPC, designadamente ao mandatário da contraparte;

a decisão da reclamação foi proferida após o decurso do prazo do contraditório (nº 1 do 1349° do CPC).

*

Nos termos do art. 684°, n°3 e 690º, n°1, do CPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n°2 do art. 669°, do mesmo Código.

As questões suscitadas, na sua própria matriz constitutiva e redactorial, consistem em apreciar se:

I. A reclamação à relação de bens apresentada pela reclamante e co- interessada nos presentes autos de inventário configura um incidente do inventário com regularização expressa.

II. Assim, e de acordo com a norma adjectiva do artigo 1349º, n 1 do CPC, quando seja deduzida reclamação contra a relação de bens é o cabeça-de-casal notificado para relacionar os bens em falta ou dizer o que se lhe oferecer sobre a matéria da reclamação, no prazo de dez dias.

III. No âmbito deste incidente do inventário esta notificação não se mostra feita.

IV. Razão por que a decisão recorrida enferma de nulidade, a qual deve, aliás, ser conhecida oficiosamente nos termos do artigo 202º do CPC..

V. Acresce referir que a notificação feita nos termos do artigo 229º-A do CPC pela reclamante não pode operar nos termos e para os efeitos do artigo 1349º, nº 1, do mesmo diploma legal dado ter sido absolutamente anómala e indevida,

VI. Desde logo porque tal notificação não continha a advertência expressa, prevista na norma do artigo 1349º, nº 1 do CPC.

VII. E, por outro lado, as notificações a que alude o artigo 229ºA do CPC apenas são feitas de actos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes após a notificação da contestação do Réu ao Autor, o que não é o caso dos autos.

VIII. A decisão recorrida violou assim as normas dos artigos 1334º l349º e 229º-A do CPC.

Apreciando, diga-se - também na emergência do disposto no art. 1349º CPC (decisão das reclamações apresentadas) que o inventário é um processo complexo, de natureza mista, tanto graciosa como contenciosa. Quanto às questões nele decididas, o processo de inventário assume o aspecto contencioso, funciona como uma acção, é uma verdadeira causa. Deste modo, o requerimento em que um interessado deduz incidente de falta de relacionação de determinados bens no inventário, reconduz-se a uma verdadeira reivindicação (Ac. RL, de 25.6.1992: Col. Jur., 1992. 3.°-216).

Nesta conformidade, conceitualmente, haverá de levar-se em consideração que a ideia que esteve subjacente à criação dos arts. 229.°-A (notificações entre os mandatários das partes) e 260°-A (notificações entre os mandatários) do CPC, foi de contribuir para o combate da morosidade processual, dando maior incremento à celeridade processual, libertando, desse modo, os tribunais de tarefas ou da prática de actos de expediente que podem perfeitamente ser praticados pelas partes. Tal novo regime pressupõe, desde logo, que as partes tenham constituído no processo mandatários judiciais, e aplica-se a qualquer tipo ou natureza de processos. Por outro lado, esse regime de notificações (entre os mandatários das partes) só se aplica quando se reportarem a articulados ou a requerimentos autónomos. O conceito de “requerimento autónomo” deve ser entendido em sentido amplo, por forma a abranger qualquer “peça” (v.g. requerimentos recursivos, alegações, contra-alegações, e documentos probatórios, etc.) que seja emanada do escritório de um dos mandatários judiciais, para ser junta ao respectivo processo, e que a parte contrária deva tomar conhecimento, nomeadamente para poder exercer o princípio do contraditório ou preparar a sua defesa.

Só a omissão da notificação - que não aconteceu - a que se alude no citado art. 260.°-A, consubstanciaria (somente) a existência de uma mera irregularidade processual, importando, como consequência, que notificação em falta seja suprida pela secretaria judicial (se o mandatário faltoso entretanto notificado para o efeito o não fizer) e com a condenação da parte, que este último representa, na multa a que se alude nas disposições conjugadas dos arts. 152°, n.° 3, e 145°, n.° 5, er vi art. 260°-A, n.° 1, do CPC, acrescida do custo da actividade desenvolvida pela secretaria com vista a supra tal omissão (Ac. RC, de 21.6.2004: Proc. 1781/04.dgsi.Net). Sendo que tal, não tendo acontecido, não assumiu perfil circunstancial.

Tanto assim que com as alterações efectuadas nos arts. 229.°-A, n.° 1, e 260°-A, ambos do CPC, pelo DL n.° 183/2000, de 10-8, quebrou-se uma prática processual secular, em que até então o mandatário judicial remetia todas as peças que entendesse para o processo, competindo depois ao tribunal dar conhecimento das mesmas à parte contrária, assim se libertando os tribunais de tarefas que podem ser desempenhadas pelas próprias partes. Qualquer peça (entendida esta em sentido amplo, como os requerimentos recursivos, as alegações, as contra-alegações, os requerimentos probatórios, etc...) que seja emanada do escritório de um dos mandatários judiciais para ser junta ao processo e que a parte contrária deva tomar conhecimento, nomeadamente para poder exercer o princípio do contraditório ou para preparar a sua defesa, integra o conceito de “requerimento autónomo” para efeitos do disposto nos artigos citados. (cit. Ac. RC, de 22.6.2004: Proc. 178 1/04.dgsi.Net, e Col. Jur., 2004, 3.°-28).

O escopo legislativo visado pelas notificações entre mandatários judiciais reguladas no art. 229.°-A — introduzido no Cód. Proc. Civil pelo art. 2.° do Dec.-Lei n.° 183/2000, de 10-8 —, assim declarado no relatório preambular deste diploma, ao qual presidiu um propósito de simplificação tendente a combater a «morosidade processual», consistiu em «desonerar os tribunais da prática de actos de expediente que possam ser praticados pelas partes», tais como as comunicações da apresentação dos «articulados e requerimentos autónomos» referidos no mencionado preceito. A letra da lei é o «ponto de partida» e o «limite» de toda a interpretação. O resultado a que se chega, a partir dela, na determinação do pensamento legislativo, mediante a auscultação de vectores materialmente fundados, numa «espiral hermenêutica» que passa por momentos descritos no n.° 1 do art. 9.° do Cód. Civil, conferindo um peculiar relevo ao elemento teleológico, e faz regressar o intérprete ao texto legal, esse resultado substancial apenas tem de alcançar na letra da lei «um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (n.° 2 do mesmo artigo). O art. 229.°-A, teleologicamente orientado, pois, no sentido de «desonerar os tribunais da prática de actos de expediente que possam ser praticados pelas partes», tem aplicação, além do mais, relativamente a todos os «requerimentos autónomos», ou seja, àqueles cuja admissibilidade não depende de despacho prévio do juiz. O aludido artigo vem, por conseguinte, a abranger na sua teleologia - até - as alegações e contra-alegações de recurso. E a expressão «requerimentos autónomos», numa acepção do conceito em termos amplos (tal como supra explicitados), representa um mínimo de correspondência verbal, quiçá imperfeitamente expresso, no qual pode ancorar-se a interpretação teleológica do art. 229.°-A (Ac. STJ, de 5.5.2005: Proc. 04B419.dgsi.Net).

Em suma, a alteração introduzida pelo DL 303/2007 visou perfilhar a interpretação mais ampla que ao preceito vinha, embora com hesitações, sendo dada: todos os actos processuais escritos das partes são por ele abrangidos (Lebre e Freitas, CPC Anotado, volume 1º, 2ª edição, p. 404).

No esquisso dos Autos, tendo o cabeça de casal sido notificado da reclamação da relação de bens e não tendo apresentado resposta nos termos do preceituado no artigo 1349 nº. 1, bem andou o tribunal ao dar os factos constantes da reclamação da relação de bens como confessados por aplicação do preceituado no artigo 484 n°.1 do CPC.

Com efeito, acusada a falta de relação de bens em processo de inventário, se o cabeça de casal notificado, nada diz no prazo legal, tem-se por confessada a existência de tais bens, devendo proceder-se ao aditamento da relação de bens apresentado (Ac. RC, de 19.6.2001: Col. Jur., 2001, 3.°-30).

Não sem deixar de referir, tudo visto, que, nulidades do processo «são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei e a que esta faça corresponder, embora não de modo expresso, uma invalidade mais ou menos extensa de actos processuais» (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Proc. Civil, 1956, pág. 165). Estes desvios de carácter formal podem revelar-se seja através da prática de um acto proibido, seja na omissão de um acto prescrito na lei, seja ainda na realização de um acto imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido (Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 166, e Antunes Varela, Manual Proc. Civil, 1984, pág. 376). Não assumindo perfil circunstancial qualquer destas hipóteses, não tem - para além do utilizado -, que se tornar operacional qualquer outro  mecanismo processual, designadamente do art. 202º (nem tão pouco o do art. 201º CPC).

Razões conjugadas que, inevitavelmente, atribuem resposta negativa às questões, todas as questões, suscitadas.

Podendo, assim, concluir-se, sumariando, que:

1.

O inventário é um processo complexo, de natureza mista, tanto graciosa como contenciosa. Quanto às questões nele decididas, o processo de inventário assume o aspecto contencioso, funciona como uma acção, é uma verdadeira causa. Deste modo, o requerimento em que um interessado deduz incidente de falta de relacionação de determinados bens no inventário, reconduz-se a uma verdadeira reivindicação.

2.

Com as alterações efectuadas nos arts. 229.°-A, n.° 1, e 260°-A, ambos do CPC, pelo DL n.° 183/2000, de 10-8, quebrou-se uma prática processual secular, em que até então o mandatário judicial remetia todas as peças que entendesse para o processo, competindo depois ao tribunal dar conhecimento das mesmas à parte contrária, assim se libertando os tribunais de tarefas que podem ser desempenhadas pelas próprias partes. Qualquer peça (entendida esta em sentido amplo, como os requerimentos recursivos, as alegações, as contra-alegações, os requerimentos probatórios, etc...) que seja emanada do escritório de um dos mandatários judiciais para ser junta ao processo e que a parte contrária deva tomar conhecimento, nomeadamente para poder exercer o princípio do contraditório ou para preparar a sua defesa, integra o conceito de “requerimento autónomo” para efeitos do disposto nos artigos citados.

3.

O art. 229.°-A, teleologicamente orientado, pois, no sentido de «desonerar os tribunais da prática de actos de expediente que possam ser praticados pelas partes», tem aplicação, além do mais, relativamente a todos os «requerimentos autónomos», ou seja, àqueles cuja admissibilidade não depende de despacho prévio do juiz. O aludido artigo vem, por conseguinte, a abranger na sua teleologia - até - as alegações e contra-alegações de recurso. E a expressão «requerimentos autónomos», numa acepção do conceito em termos amplos (tal como supra explicitados), representa um mínimo de correspondência verbal, quiçá imperfeitamente expresso, no qual pode ancorar-se a interpretação teleológica do art. 229.°-A.

4.

Em suma, a alteração introduzida pelo DL 303/2007 visou perfilhar a interpretação mais ampla que ao preceito vinha, embora com hesitações, sendo dada: todos os actos processuais escritos das partes são por ele abrangidos.

5.

Acusada a falta de relação de bens em processo de inventário, se o cabeça de casal notificado, nada diz no prazo legal, tem-se por confessada a existência de tais bens, devendo proceder-se ao aditamento da relação de bens apresentado.

III. A Decisão:

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

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António Carvalho Martins ( Relator )

Carlos Moreira

Moreira do Carmo