Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
358/13.1GAILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: CONCURSO DE CRIMES
CONTRA-ORDENAÇÃO
CÚMULO JURÍDICO
PENA ACESSÓRIA
Data do Acordão: 12/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA: BAIXO VOUGA (JUÍZO DE PEQUENA INSTÂNCIA CRIMINAL DE ÍLHAVO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDA
Legislação Nacional: ARTS.77.º E 78.º DO CP; ART. 134.º, N.º 3, DO CE
Sumário: I - Em caso de concurso de crimes puníveis também com pena acessória, o cúmulo jurídico a efectuar tem de englobar todas as penas parcelares aplicadas, em conformidade com as disposições dos artigos 77.º e 78.º do CP.

II - Diversamente, perante a previsão do art. 134.º, n.º 3, do CE, o concurso de contra-ordenações decorrentes de violação de normas regulamentadoras da circulação rodoviária implica a acumulação material quer das coimas quer de todas as sanções acessórias impostas, a cumprir sucessivamente.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

1. Após realização de audiência de discussão e julgamento, veio o arguido A... a ser condenado:

«1. Pela prática, em 28-08-2013, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, n.º1, alíneas a) e b) e 69º, n.º1, alínea a), ambos do Código Penal, por referência e em concurso aparente com os artigos 145º, n.º1, alíneas a), c) e f), 146º, alínea l) e 147º, n.º1 e 2, todos do Código da Estrada, na pena de 200 dias de multa;

2. Condenar A...  pela prática, em 28-08-2013, de um crime de crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347º, n.º2 e 69º, n.º1, alínea b), ambos do Código Penal, por referência e em concurso aparente com os artigos 4º, n.º1 e 3, 146º, alínea l) e 147º, n.º1 e 2, todos do Código da Estrada, na pena de um ano e seis meses de prisão.

3. Condenar A... pela prática, em 28-08-2013, de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo artigo 366º, n.º1 do Código Penal, na pena de 80 dias de multa.

4. Operar o cúmulo jurídico de penas e fixar em um ano e seis meses de prisão e 240 dias de multa, à taxa diária de €8,00, no montante global de €1.920,00, a pena única.

5. Suspender a execução da pena de prisão pelo período de um ano e seis meses.

6. Condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria por um período de 6 meses, nos termos do artigo 69º, nº 1, al. a), do Código Penal.

7. Condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria por um período de 8 meses, nos termos do artigo 69º, nº 1, al. b), do Código Penal.

8. Condenar A... pela prática, em 28-08-2013, de uma contra-ordenação p. e s. pelos artigos 61º, n.ºs 1 e 5, 145º, n.º1, alínea j) do Código da Estrada, na coima de €50,00 e na sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de 1 mês;

9. Condenar A... pela prática, em 28-08-2013, de oito contra-ordenações p. e s. pelos artigos 69º, n.º1, alínea a) do Regulamento de Sinalização do Trânsito e 146º, alínea l) do Código da Estrada, na coima de €110,00 relativamente a cada uma, e na sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de 2 meses relativamente a cada contra-ordenação;

10. Condenar A... pela prática, em 28-08-2013, de uma contra-ordenação p. e s. pelos artigos 16º, n.º1 e 136º, n.º1 e 2 do Código da Estrada, na coima de €100,00;

11. Condenar A... pela prática, em 28-08-2013, de duas contra-ordenações p. e s. pelos artigos 21º do RST e 146º, alínea n) do Código da Estrada, na coima de €150,00, para cada uma, e na sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de 2 meses relativamente a cada uma das contra-ordenações;

12. Condenar A... pela prática, em 28-08-2013, de uma contra-ordenação p. e s. pelos artigos 13º, n.º5 e 145º, n.º1, alínea a), todos do Código da Estrada, na coima de €300,00 e na sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de 1 mês;

13. Operar o cúmulo jurídico de coimas e fixar em €1.400,00 a coima única.».

2. Inconformado, recorre de tal sentença, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

«I. As penas acessórias, designadamente as de proibição de conduzir veículos com motor, são cumuláveis juridicamente segundo o critério estabelecido no nº 1 do artigo 77º do Código Penal. Revertendo ao caso concreto, em que a sentença recorrida apenas não operou o cúmulo jurídico dessas penas por entender que não seria legalmente admissível, verificando-se que tal inadmissibilidade não ocorre, haverá que proceder a esse cúmulo, dentro de uma moldura abstracta com um mínimo de 8 meses e um máximo de 14 meses.

II. No caso de concurso de contra-ordenações, haverá igualmente lugar à realização do cúmulo material das respectivas sanções (conforme o disposto no art. 134º nº 3 do Código da Estrada), pelo que deve proceder-se ao respectivo cúmulo material das sanções acessórias de inibição de conduzir veículos motorizados aplicadas ao arguido, sendo que, também neste caso, a douta Sentença recorrida omitiu tal mecanismo legal, nem sequer o justificando. Assim, o Tribunal a quo haverá que proceder a esse cúmulo material, dentro de uma moldura abstracta com um mínimo de 2 meses e um máximo de 22 meses.

III. Ao não decidir como supra pugnado, violou a douta Sentença recorrida o disposto no artigo 77º do Código Penal e do nº 3 do artigo 134º do Código da Estrada, pelo que deverá revogada e substituída por outra, em conformidade com o Direito.».

3. O Ministério Público (de futuro, apenas Mº Pº) respondeu, pugnando pela improcedência do recurso e CONCLUINDO:

«1. Não é legalmente admissível o cúmulo jurídico de penas acessórias.

2. Nos termos do art. 134º nº 3, do Código da Estrada, “as sanções aplicadas às contra-ordenações em concurso são sempre cumuladas materialmente”, não tendo assim que ser achada uma sanção única, estando também aqui afastado o cúmulo jurídico.

3. Em ambas as situações, tais períodos de proibição e inibição de conduzir são a cumprir de modo sucessivo.».

4. Já neste Tribunal da Relação, o Ex.mº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido do Mº Pº em 1ª instância.

Cumprido o art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal(de futuro, apenas CPP), o arguido nada disse.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

5. O MÉRITO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 412º nº 1 do CPP. [ ]

No caso, o objeto do recurso circunscreve-se a matéria de direito, atinente ao cúmulo jurídico, pelo que importa apenas ter em conta, em termos factuais, as condenações referidas no ponto “I.1”: deste acórdão.

QUESTÕES A RESOLVER:

• Se as penas acessórias de proibição de conduzir podem ser objeto de cúmulo jurídico

• Se nas sanções de inibição de conduzir também pode operar esse cúmulo jurídico

5.1. CÚMULO JURÍDICO e PENAS ACESSÓRIAS

A questão da (in)admissibilidade do cúmulo jurídico em caso de concurso de penas acessórias (rectius, concurso de crimes punidos com pena acessória) tem dividido a jurisprudência.

Numa consulta, não exaustiva, ao sítio http://www.dgsi.pt/, foi possível verificar: a favor dessa aplicabilidade, do Tribunal da Relação do Porto (TRP), acórdãos de 11.12.2013 (processo 969/12.2PWPRT.P1) e de 02.05.2012 (processo 319/10.2PTPRT.P1) e, do Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), acórdão de 09.09.2009 (processo 226/08.9GTCBR-A.C1); já no sentido contrário, do TRP, acórdãos de 03.12.2012 (processo 1165/09.1PTPRT.P1), de 07.12.2011 (processo 626/10.4GAPFR.P1) e de 05.05.2010 (processo 183/09.4GBOAZ.P1) e, do TRC, acórdãos de 28.03.2012 (processo 79/10.7GCSEI.C1) e de 29.06.2011 (processo 190/10.4GAVFR.C1, este ainda que como argumento, dado não ser essa a questão objeto do recurso).

O art. 77º do CP tem o seguinte teor:

1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.

4 - As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.

O cerne da divergência respeita mais propriamente ao nº 4 do preceito.

«O texto comporta múltiplos sentidos (polissemia do texto) e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Mesmo quando aparentemente claro à primeira leitura, a sua aplicação aos casos concretos da vida faz muitas vezes surgir dificuldades de interpretação insuspeitadas e imprevisíveis. Além de que, embora aparentemente claro na sua expressão verbal e portador de um só sentido, há ainda que contar com a possibilidade de a expressão verbal ter atraiçoado o pensamento legislativo (…)». [ ]

Para esse labor interpretativo estabeleceu a lei que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (art. 9º nº 1 do Código Civil), com a limitação de não poder o intérprete considerar um sentido que não tenha um mínimo de correspondência verbal na letra da lei.

Visto isto, devemos iniciar pela abordagem dos institutos do dito cúmulo jurídico e das penas acessórias.

Cremos isento de polémica que o nosso ordenamento jurídico-penal adotou o sistema da pena conjunta como forma de proceder à determinação da pena que cabe ao agente que pratica mais do que um crime (antes de transitar em julgado a condenação por qualquer um deles).

Sistema esse que, com o cunho da originalidade portuguesas, entre nós se designa sistema do cúmulo jurídico, em virtude de entre nós se combinar os princípios da exasperação e da cumulação.

Assim o refere Figueiredo Dias: «De alguma forma podendo, pois, dizer-se que, em hipóteses tais, o princípio combinatório que presidia à formação da pena conjunta resultava de uma mistura dos princípios da exasperação e da cumulação. Nessa base, as nossas doutrina e jurisprudência crismaram um tal sistema, não sem fundamento, de sistema do cúmulo jurídico.

É também um sistema de pena conjunta, obtida através de um cúmulo jurídico, o consagrado atualmente no art. 78º [ ]. Mas, um sistema que — embora, evidentemente, de pena única — todavia encontra num princípio de cumulação a fonte essencial de inspiração.».[ ]

Por outro lado, sabemos também da diferença essencial, a ter em conta, entre concurso efetivo(com uma só ação, o agente viola uma só norma ou, com várias ações, viola normas distintas)e concurso legal(a conduta do agente viola várias vezes a mesma norma ou várias normas), distinção esta que opera com o conceito de unidade ou pluralidade de infrações.

Ora, o sistema do cúmulo jurídico reporta-se tão só ao concurso efetivo de crimes.

E este aspeto oferece-nos essencial.

Na verdade, há que ponderar a ocorrência de situações de concurso legal de crimes, as quais terão de ser deslindadas antes da operação final da pena única, esta em conformidade com o art. 77º do CP.

Quando estamos perante uma hipótese de concurso legal, existe uma operação prévia consistente em definir qual o crime efetivamente cometido pelo agente.

E, neste processo subsumptivo, pode o julgador deparar-se com o facto de, de entre as diversas normas que contendem com a conduta em análise, uma delas poder prever a sanção do agente com uma pena acessória, para além da pena principal.

Ora, se uma tal pena parcelar (uma principal, mais uma acessória) houver depois de ser “incluída” num concurso real/efetivo de crimes, como proceder?

A resposta é-nos então dada pelo nº 4 do art. 77º do CP.

Ou seja, o nº 4 do art. 77º não regula especificamente para a hipótese de concurso de penas acessórias, antes se destinando apenas a prevenir e regular as situações de coexistência de penas principais e de penas acessórias a ser incluídas num cúmulo jurídico.

Este era, aliás, o entendimento preconizado por Figueiredo Dias muito antes da atual redação do preceito (na altura, art. 78º): «Cumulativamente com a pena conjunta de prisão ou de multa, o tribunal condenará, nos termos do art. 78º-4, na pena acessória (…) ou medida de segurança que se ligue a qualquer dos factos praticados (…). Esta solução é compreensível e aceitável de um ponto de vista político-criminal e mesmo da perspectiva da lógica do sistema da pena conjunta: por uma parte, é fruto da ideia de que, por força do concurso, os crimes singulares não perdem a sua individualidade e as suas especificidades (como aconteceria num sistema puro de pena unitária); por outra banda, solução diferente poderia conduzir o agente à prática de outro crime só para evitar uma consequência acessória que ao primeiro se ligava e cuja aplicação pretendesse muito particularmente evitar.». [ ]

Da mesma feita, comentavam Simas Santos e Leal-Henriques[ ]: «A disciplina do nº 4 pode suscitar dúvidas quanto ao problema do concurso aparente (…); mas este conceito não deve levar a que se renuncie a uma pena acessória ou a uma medida de segurança ou análoga prevista no crime cuja pena principal vai ser absorvida por outra mais grave. É que, como se referiu na 1ª Comissão Revisora, o conceito de concurso aparente e a regra em que se baseia – ne bis in idem – só devem valer quanto ao núcleo central da punição, mas não impedem que se renuncie ao fim de política criminal ínsita em qualquer pena acessória, medida de segurança ou de qualquer outra natureza.». [ ]

A conclusão a que chegamos (que o nº 4 do art. 77º se destina a regular tão-somente para as situações de coexistência de penas principais e de penas acessórias a ser incluídas num cúmulo jurídico) afigura-se-nos ser a mais conforme com a unidade do sistema jurídico-penal, para além de ser absolutamente compatível com a letra da lei.

Passando agora à temática das penas acessórias.

Como o próprio nome indica, e se tem por comumente aceite, as penas acessórias têm por pressuposto (formal) a condenação numa pena principal.

Contudo, tal não é bastante para proceder a uma autonomização dos muitos e variados efeitos que surgem associados, ou decorrentes, de condenações penais.

Depois de uma resenha histórica e da demonstração da confusão instalada entre penas acessórias e efeitos penais da condenação, Figueiredo Dias acaba por referir que para se tratar de uma verdadeira pena se torna mister que um tal tipo de sanção se apresente (i) indissoluvelmente ligadas ao facto praticado e à culpa do agente, (ii) dotada de uma moldura penal específica e (iii) que particulares razões político-criminais do ilícito visado na pena principal justifiquem a aplicação dessa pena acessória. [ ]

A referida obra de Figueiredo Dias, e a abordagem que aí é feita das penas acessórias/efeitos das penas/medidas de segurança [ ], foi escrita antes das alterações a que o Código Penal foi posteriormente sujeito, designadamente na temática em questão, e já então ele preconizava: «Seja como for quanto ao ponto acabado de considerar, deve, no plano de lege ferenda, enfatizar-se a necessidade e a urgência político criminais de que o sistema sancionatório português passe a dispor — em termos de direito penal geral e não somente de direito penal da circulação rodoviária — de uma verdadeira pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados. Uma tal pena deveria ter como pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução, ou com utilização de veículo, ou cuja execução tivesse sido por este facilitada de forma relevante; e por pressuposto material a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável. Uma tal pena — possuidora de uma moldura penal específica — só não teria lugar quando o agente devesse sofrer, pelo mesmo facto, uma medida de segurança de interdição da faculdade de conduzir, sob a forma de cassação da licença de condução ou de interdição da sua concessão.». [ ]

Ora, se atentarmos na redação dos artigos 69º e 101º do atual CP [ ], fácil é concluir que tal pensamento foi adotado e concretizado em lei, pelo menos no tocante a crimes relacionados com a circulação rodoviária.

Cremos ser hoje isento de polémica que a proibição de conduzir veículos com motor prevista no art. 69º do atual CP consubstancia uma verdadeira pena acessória.

Mas, se é assim, tendo a proibição de conduzir veículos a motor a natureza de uma pena, caberia então perguntar porque razão seria insuscetível da aplicabilidade do sistema do cúmulo jurídico(desde que verificada, naturalmente, uma situação de concurso)?

Em favor dessa inadmissibilidade, tem-se argumentado com os diversos fins/objetivos das penas acessórias e das penas principais.

Tal argumento não nos convence. Desde logo porque as penas acessórias não deixam de estar sujeitas às mesmas finalidades das penas principais, plasmadas no art. 40º do CP, bem como aos critérios da determinação da medida da pena previstos no art. 71º do mesmo diploma.

Ora, constituindo a punição do concurso de crimes (no caso, de crimes puníveis com pena acessória) “um caso especial de determinação da pena” [ ], na qual “são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” (art. 77º nº 1 do CP), não se vê onde os fins das penas acessórias possam colidir com os regras do cúmulo jurídico.

Ao contrário, resultaria desconcertante concluir que o legislador pretende punir de forma mais gravosa - naturalmente que o sistema de cúmulo jurídico é mais benéfico para o arguido do que o sistema de uma pura acumulação material - um concurso de penas acessórias do que um concurso de penas principais!

Cremos ainda que a obrigatoriedade da acumulação material das penas acessórias, fundamentada na simples natureza dessas penas, propiciaria a violação do princípio da culpa, hoje inolvidável em qualquer ordenamento jurídico-penal, e colidia frontalmente com as finalidades de prevenção especial.

As razões de política criminal (a “especial censurabilidade” de determinados tipos de conduta) são tidas em conta para fundamentar e legitimar a incriminação (acessória) dessa conduta, não devendo relevar para a determinação da pena a aplicar, como é o caso das regras de punição do concurso (ditadas, também elas, por razões de política criminal).

Por fim, com Faria Costa, «Impõe-se ainda refutar um outro argumento contra o funcionamento das regras do cúmulo jurídico no âmbito das penas acessórias. Não colhe - pelo menos para nós que, em última análise, seja mais benéfico, sob o ponto de vista do condenado, o regime do cúmulo jurídico - que defendemos para as penas acessórias -, do que o regime legal de algumas contra-ordenações, que consagra, no tocante às sanções acessórias, a regra do cúmulo material. E não colhe pelo seguinte: porque o desvalor e a reprovação social que merece aquele que praticou um ilícito criminal deve ser sempre maior do que o desvalor e a reprovação social dado aqueloutro que praticou uma contra-ordenação. E muito especialmente porque estando em causa dois ordenamentos jurídicos sancionatórios de gravidade material tão desigual, por certo que as molduras penais abstractas previstas no CP terão de ser sempre mais gravosas do que as das sanções acessórias. Portanto, por aqui se frustra, de imediato, a hipótese de a pena acessória vir a ser inferior à sanção acessória. A não ser assim, a não se espelhar essa diferença de valoração também nas molduras penais dos dois ordenamentos, a não se revelar a maior ofensividade da censura jurídica no crime do que na contra-ordenação, por certo também aqui haveria violação do princípio da igualdade e, em última análise, do princípio da perequação. Não colhe ainda porque a pena a aplicar em concreto, depois de efectuada a operação do cúmulo jurídico, pode perfeitamente ser igual - ou pelo menos ser praticamente igual - à pena a que se chega através do funcionamento das regras do cúmulo material.». [ ]

Aliás, certamente não será desconhecido dos “práticos” do Direito a ocorrência de casos em que as penas de multa aplicadas, em concreto, em casos de crime de condução de veículo em estado de embriaguez (art. 292º CP) são por vezes inferiores às coimas aplicadas pelas contra-ordenações p. e p. no art. 81º do Código da Estrada, atentas as diferentes regras de apuramento de umas e outras.

Um outro dos fundamentos apresentados é o de que a lei não prevê o cúmulo jurídico para as penas acessórias, sendo até que o nº 4 do art. 77º é no sentido da sua exclusão.

Quanto a este ponto, poderemos dizer que o art. 77º do CP e o sistema do cúmulo jurídico versam sobre concurso de crimes, sendo que as penas (parcelares) aplicadas a cada um dos crimes são consideradas apenas como moldura para a determinação da pena única.

Por outro lado, a não referência expressa no nº 1 do art. 77º pode ter a leitura contrária, ou seja, de que a lei não faz qualquer distinção e, como é sabido, onde a lei não distingue, não o deve fazer o intérprete.

Quanto ao nº 4 do preceito, já atrás nos pronunciamos: consideramos que a melhor interpretação é a de que ele não pretende pronunciar-se sobre concurso de penas acessórias (!), mas tão só de regular como proceder nos casos em que existem penas acessórias e penas principais a serem sujeitas a um cúmulo jurídico (na senda, aliás, do nº 2 do preceito para o caso da coexistência de penas parcelares de prisão e de multa).

Por fim, em abono desta tese, invoca-se idêntico entendimento do STJ: «III -As penas acessórias são verdadeiras penas. Assim sendo, são aplicáveis às penas acessórias (a todas elas), com as devidas adaptações, as disposições dos arts. 77.º e 78.º do CP.

IV - Na determinação da medida da pena conjunta, conforme estabelece o n.º 1 do art. 77.º do CP, são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, tendo-se em conta o número, espécie e gravidade dos factos.». [ ]

Concluímos, portanto, que em caso de concurso de crimes puníveis com pena acessória, deve proceder-se a cúmulo jurídico das penas aplicadas, em conformidade com o art. 77º do CP.

Como consequência, impõe-se alterar a sentença recorrida nesse ponto e proceder agora ao cúmulo.

O arguido foi condenado na pena acessória de 6 meses de proibição de conduzir veículos com motor (por referência ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário) e em idêntica pena de 8 meses (por referência ao crime de resistência e coação sobre funcionário).

Nos termos do nº 2 do art. 77º do CP a moldura penal do concurso é, assim, de 8 a 14 meses.

Quanto à consideração dos factos e da personalidade do agente preconizada no nº 2 do preceito: o arguido, com o fito de se furtar à fiscalização dos agentes que se encontravam a efetuar uma fiscalização de trânsito, desobedeceu ao sinal de paragem, antes conduziu o veículo na direção daqueles e pondo-se depois em fuga; nesse processo de fuga, conduziu com total desrespeito pelas regras de circulação rodoviária, desobedecendo aos limites de velocidade, aos sinais vermelhos, à passagem de peões, ao sinal de Stop, circulando sem luzes e em sentido oposto ao estabelecido. São condutas da maior gravidade pelo tipo de bens jurídicos postos em causa, importando elevada ilicitude. O arguido agiu com dolo intenso.

Quem assim atua, designadamente com 41 anos (idade do arguido), demonstra uma atitude profundamente desrespeitosa não só pelas instituições como pela vida e património alheios, que pôs em causa de forma acentuada pela forma como conduziu o seu veículo.

Em seu favor, a ausência de antecedentes criminais, o fraco nível de escolaridade (6º ano) e o ter uma vida dedicada ao trabalho.

Ponderadas todas estas circunstâncias, entende-se ajustado fixar a pena única acessória de proibição de conduzir veículos com motor em 13 meses.

5.2.CONCURSO DE CONTRAORDENAÇÕES

Nesta vertente estão em causa 12 coimas pela prática de igual número de contraordenações, p. e p. no Código da Estrada (de futuro, apenas CE).

Essas contraordenações são igualmente punidas com sanção acessória de inibição de conduzir veículos a motor, em conformidade com o art. 147º do CE.

De acordo com o art. 134º nº 3 do CE, “As sanções aplicadas às contraordenações em concurso são sempre cumuladas materialmente”.

Portanto, neste caso não há que operar com as regras da interpretação das leis, uma vez que não existe polissemia, ambiguidade ou obscuridade.

O texto é muito claro, no sentido duma frontal opção do legislador pelo sistema de acumulação material, ou seja, dum simples somatório das coimas aplicadas, que, assim, serão cumpridas sucessivamente.

Esta opção do legislador pode ser questionável, mas tal não compete ao julgador.

E quanto às sanções acessórias?

Impõe-se, quanto a nós, a mesma conclusão.

Desde logo, porque o nº 3 do art. 134º não distingue: o preceito refere-se a sanções e não simplesmente a coimas, sendo que a sanção acessória não deixa de ser uma sanção.

Operando o raciocínio atrás expendido, onde a lei não distingue, não o deve fazer o intérprete.

Neste âmbito, e como bem aponta o Mº Pº nas suas alegações de recurso, lavra o Recorrente em confusão entre cúmulo material e cúmulo jurídico.

Na verdade, aludindo e invocando o “cúmulo material”, termina depois peticionando se proceda “a esse cúmulo material, dentro de uma moldura abstracta com um mínimo de 2 meses e um máximo de 22 meses”.

Traduzindo-se o sistema da acumulação material num simples somatório de todas as sanções em concurso, inexiste aqui uma “moldura de concurso” como no caso do sistema cúmulo jurídico.

Contabilizando a totalidade das sanções acessórias aplicadas, temos que o arguido Recorrente irá cumprir, em acumulação material, uma sanção acessória de inibição de conduzir veículos a motor pelo período de 22 meses.

Nesta parte improcede o recurso.

Porém, verifica-se que na douta e muito bem elaborada sentença, ao contrário do que se fez com as diversas coimas, certamente por lapso não se efetuou o somatório das sanções acessórias.

Ora, não constando também expressamente do dispositivo da sentença que as sanções de inibição de conduzir serão cumpridas sucessivamente, tal pode dar origem a confusão, designadamente de ordem burocrático-administrativa, pois muitas vezes, quer a ANSR, quer a entidade policial consideram que tem de se proceder ao “levantamento” do título de condução no final do período de uma das sanções, para que se possa iniciar o cumprimento da segunda sanção.

Incumbe agora, portanto, corrigir tal lapso, deixando expressamente consignado que o arguido cumprirá as ditas sanções em acumulação material, significando uma inibição de conduzir veículos a motor pelo período seguido de 22 meses.

III. DECISÃO

6.         Pelo que fica exposto, no parcial provimento do recurso, acorda-se nesta secção da Relação de Coimbra em revogar a sentença nos seguintes pontos:

a)         na parte respeitante às penas acessórias de proibição de conduzir veículos motorizados, fixando-se agora, em cúmulo jurídico, uma pena acessória única de treze meses.

b)         na parte respeitante às sanções acessórias de inibição de conduzir veículos motorizados, definindo-se agora que o arguido cumprirá, em acumulação material, uma sanção acessória de 22 meses.

c)         ter-se-á em conta, nas comunicações a efetuar à DSIC, ANSR, IMT e entidade policial o agora decidido.

d)         Em tudo o mais se mantém integralmente a sentença recorrida.

Sem custas, atento o provimento parcial do recurso (art. 513º nº 1 do CPP).

Coimbra, 3 de Dezembro de 2014                                                    

(Isabel Silva - Relatora)

(Alcina da Costa Ribeiro - Adjunta,)