Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4304/10.6TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: INSOLVÊNCIA
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
Data do Acordão: 05/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA 1º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 239º Nº3 AL.B) SUBAL.I) DO CIRE
Sumário: I - O sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar, para efeitos da subalín. i), da alín. b), do n.º 3 do art.º 239.º, deve, em princípio, ser fixado no valor correspondente entre 1 e 3 salários mínimos nacionais;

II – As despesas a relevar para a fixação desse valor devem ser reduzidas ao mínimo de vivência digna do devedor e seu agregado familiar.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

Nos autos de insolvência que A... requereu, por apresentação, no 1º Juízo Cível de Leiria, solicitou em simultâneo a sua exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 236.º do CIRE.

Declarada a insolvência, na assembleia de credores que se seguiu, o administrador da insolvência remeteu para o relatório onde se pronunciou pelo deferimento do requerido, a que se opôs o M.º P.º enquanto representante do Estado, como credor.

Foi proferido despacho inicial (fls. 147) a admitir o pedido e determinar que “durante os 5 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão) o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir (a definir aquando do encerramento do processo) se considera cedido ao administrador judicial, que se nomeia fiduciário; durante o período de cessão o devedor ficará ainda sujeito aos demais deveres previstos no n.º 4 do art.º 239.º do CIRE”.

Por seu turno, por despacho de 30.11.11 (fls. 254), foi decidido “fixar em 1 salário mínimo nacional e meio o montante razoavelmente necessário para o sustento e demais despesas do devedor e respectivo agregado familiar, mormente com prestação de alimentos do filho menor, renda, alimentos, gastos domésticos do seu agregado familiar” e determinado que “o insolvente entregue imediatamente ao fiduciário a parte dos seus rendimentos que exceda a quantia mensal correspondente a 1 ordenado mínimo nacional e meio”.

Foi deste despacho que o insolvente recorreu, apresentando extensas conclusões que, com utilidade, podem resumir-se nas seguintes:

a) – A quantia correspondente a 1 e meio salário mínimo nacional de € 727,50 (2011) fixada não é, sequer, suficiente para fazer face a todas as despesas mensais comuns e ordinárias dadas como assentes nos autos;

            b) – O salário auferido pelo recorrente acrescido da quantia diminuta de € 26,54 de abono de família é o único sustento do agregado familiar constituído por si, pela companheira, desempregada e por um filho menor em idade escolar, contando ainda com a prestação alimentícia que está obrigado a entregar a um outro filho menor;

            c) – A juíza a quo não teve em conta o aumento drástico do custo de vida em Portugal em 2012;

            d) – Se com a exoneração do passivo restante o que se pretende é conceder ao devedor um “fresh start”, permitindo-lhe recomeçar a sua actividade sem o peso da insolvência anterior, mal se compreende que durante o período da cessão (5 anos) fique numa situação tão ou pior que a anterior;

            e) – Pelo menos enquanto persistir a actual situação de desemprego da companheira deve ser reduzida a cessão do rendimento disponível a um valor que exclua o equivalente a 2 vezes o salário mínimo nacional;

            f) – O despacho recorrido padece de contradição insanável entre a fundamentação de facto e a decisão e violou a subalín. i), da alín. b), do n.º 3 do art.º 239.º do CIRE e os art.ºs 1.º, 59.º, n.º 1, alín. a), 62.º, n.º 1 e 63.º, n.ºs 1 e 3, da CRP;

            g) – Deve ser revogado e substituído por outro que determine a entrega pelo insolvente ao fiduciário, durante o período da cessão, apenas a parte dos rendimentos que exceda a quantia mensal correspondente a 2 vezes o salário mínimo nacional em vigor.

            Não houve lugar a resposta.

            Dispensados os vistos, cumpre decidir, sendo que a questão a apreciar é somente:

            - Se o sustento minimamente digno do devedor recorrente e do seu agregado familiar a que alude a subalín. i), da alín. b), do n.º 3 do art.º 239.º do CIRE se basta com o montante correspondente a 1 e meio salário mínimo nacional, ou se exige o equivalente a 2 salários mínimos nacionais.


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            2. Fundamentação

            2.1.De facto

            Os factos em que se louvou a decisão recorrida foram os seguintes:

            a) – O insolvente encontra-se empregado, auferindo remuneração base de € 971,50 e líquida de € 882,58 e € 871,12 nos meses de Maio e Junho de 2011, respectivamente, o que dá a média mensal de € 876,85;

            b) – B..., companheira do insolvente, encontra-se desempregada;

            c) – O agregado familiar do insolvente é composto por este, pela companheira e pelo filho de ambos, C... , nascido a 29.1.05, beneficiando do escalão 3 de abono de família, recebendo o insolvente, a tal título, a quantia mensal de € 26,54;

            d) – Na liquidação do IRS referente a 2010 consta como rendimento global a quantia de € 13.499,93;

            e) – O agregado familiar reside em casa arrendada, pagando renda no montante [mensal] de € 250,00;

            f) – O insolvente encontra-se obrigado a pagar ao filho D..., a título de alimentos a prestação mensal de € 100,00, a que acresce, desde Abril de 2011 e durante 10 meses a quantia de € 100,00 relativa a prestações vencidas não pagas;

            g) – O insolvente tem ainda despesas com o seu agregado familiar relativas a alimentação, água, luz, electricidade, gás, vestuário, despesas escolares do filho C..., em montantes não concretamente apurados, que diz importarem globalmente em média mensal não inferior a € 350,00;

            h) – O passivo do insolvente, de acordo com a lista de créditos reconhecidos constante do apenso C, incluindo 3 prestações de alimentos devidas ao filho D..., consideradas na antecedente alín. f), importa em € 6.796,92.


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            2.2. De direito

            Como é sabido, de acordo com o disposto no art.º 235.º do CIRE a exoneração do passivo restante consiste na concessão de uma exoneração de créditos sobre a insolvência que não fiquem integralmente pagos no respectivo processo ou nos 5 anos posteriores ao seu encerramento.

            Visa a extinção das dívidas e concessão de uma nova oportunidade à pessoa singular que caia em situação de insolvência de recomeçar vida nova ao fim do período de 5 anos subsequentes ao encerramento do respectivo processo, denominado período da cessão.

            Como salienta Assunção Cristas[1], os 5 anos assemelhar-se-ão a um purgatório: durante ele o devedor terá que ir pagando as suas dívidas, adoptando um comportamento adequado (art.º 239.º, n.º 2, 3 e 4, do CIRE), considerando a lei esse período para ocorrer o perdão de molde a facultar, então, ao devedor uma nova oportunidade.

            É um prazo fixo estabelecido em benefício dos credores e entendido pelo legislador como o adequado para lhes assegurar uma razoável satisfação dos seus créditos.[2]

            Subjacente ao instituto está a ideia de um equilíbrio entre os interesses dos credores na satisfação dos seus créditos e o interesse do devedor, de redenção, para uma nova vida, o que passa por sacrifícios para ambas as partes.

            O insolvente ao longo dos 5 anos irá somente dispor de um rendimento que lhe assegure o “sustento minimamente digno” para si e seu agregado familiar, para o que necessariamente terá de mudar hábitos de vida e de consumo, de acordo com a subalín. i), da alín. b), do n.º 3 do art.º 239.º do CIRE, sendo o restante rendimento disponível entregue a um fiduciário para posterior distribuição pelos credores (art.º 241.º n.º 1, alín. d) do CIRE).

            Os credores, findo esse prazo, se não receberem, entretanto, a totalidade do crédito (com o que cessaria antecipadamente o procedimento de exoneração – n.º 4 do art.º 243.º do CIRE), receberão o possível, nada mais podendo exigir, do devedor, a partir daí.

            A lei não define o que possa entender-se com o conceito aberto de “sustento minimamente digno”, com o valor máximo legal equivalente, em princípio, a 3 salários mínimos nacionais, podendo-se considerar o seu mínimo como o valor correspondente a 1 salário mínimo nacional, enquanto limite mínimo para assegurar, em nome da dignidade  da pessoa humana, as condições básicas essenciais.

            Trata-se de um valor actualizado anualmente e fixo, isto é, não varia em função da composição do agregado familiar, cujo elemento ou elementos o possam auferir.

            Regressando ao caso dos autos, está provado que o insolvente dispõe da remuneração mensal acrescida de abono de família de € 903,39 e no ano de 2010 liquidou, de IRS, a quantia anual de € 13.499,93.

            Apresenta como despesas mensais a importância de € 700,00, embora deva 7 prestações de alimentos devidos a outro filho menor que vive com o ex-cônjuge mulher.

            O agregado familiar é composto por si, por um filho menor e pela companheira, de momento desempregada.

            O passivo é de € 6.796,20.

            À luz das considerações que se adiantaram, já podemos ver da sem-razão do recorrente, v. g., quando se lhe afigura que no período da cessão possa ficar em igual (ou pior) situação que a anterior.

            Não é disso que se trata. Para chegar a um período da sua vida mais auspicioso terá de fazer, durante 5 anos (ou menos, se entretanto forem satisfeitos os créditos), uma travessia pelo purgatório, para usar a sugestiva expressão da autora acima citada.

            E, depois, contrariamente ao que parece estar a implantar-se em certa opinião, o processo de insolvência e o procedimento da exoneração do passivo não se destinam a melhorara a vida dos devedores, a perdoar as suas dívidas, sem mais!..

            Destina-se a satisfazer um compromisso entre devedor e credor ou credores, com sacrifícios para ambas as partes, como já referimos.

            E, daí, que na determinação daquele “sustento minimamente digno” não haja que abater todas as despesas do agregado familiar, sob pena de nenhum rendimento disponível haver para ceder. Apenas aquelas que se prendam com a subsistência económica do devedor e agregado familiar, o que implica abdicar, espartanamente, muito do consumismo que antes da insolvência se tinha!

            Ora, aqui chegados, não merece censura o despacho recorrido que foi além do mínimo garantido e fixou em 1 salário e meio mínimo nacional o montante adequado ao sustento minimamente digno do insolvente e seu agregado familiar.

            Eis por que, não padecendo a decisão nem de qualquer contradição entre a fundamentação e a sua parte decisória e não violando qualquer preceito legal ou constitucional, soçobram as conclusões recursivas.


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3. Sumariando (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)

I - O sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar, para efeitos da subalín. i), da alín. b), do n.º 3 do art.º 239.º, deve, em princípio, ser fixado no valor correspondente entre 1 e 3 salários mínimos nacionais;

II – As despesas a relevar para a fixação desse valor devem ser reduzidas ao mínimo de vivência digna do devedor e seu agregado familiar.


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            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


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Francisco M. Caetano (Relator)

António Magalhães

Ferreira Lopes


[1] “Exoneração do Passivo Restante”, Themis, 2005, pág. 167.
[2] V. Carvalho Fernandes e João Labareda, “CIRE, Anot.”, 2008, pág. 787.